domingo, 22 de maio de 2016

Stephen King e a Lógica Espiritual de Misery.



Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga







   “A ilusão nos engana justamente fazendo-nos passar por uma percepção autêntica”. Maurice Merleau-Ponty

               O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty exercitou em sua teoria reflexões sobre a fenomenologia, movimento filosófico segundo o qual, assim que algo se revela frente à consciência humana, o Homem inicialmente o observa e o percebe em completa conformidade com sua forma, do ponto de vista da sua capacidade perceptiva. Na conclusão deste processo, a matéria externa é inserida em seu campo consciencial, convertendo-se, assim, em um fenômeno. O filósofo tem consciência de que as teorias sociais convencionalmente conhecidas sobre a percepção e a psicologia, contrariando Jean-Paul Sartre, percebe  em que instante a consciência é integrada no mundo.  As críticas analíticas de Merleau-Ponty ao modelo representacional da percepção e da consciência se constituem ao longo de sua démarche no âmbito filosófico. Todavia em O Visível e o Invisível (1996; 2007), praticamente abandona a preocupação com a crítica a estas questões. Aprofunda cada vez mais suas concepções sobre o corpo, sobre o Ser, inaugurando a concepção de “carne”. Escreve que a carne (“Chair”) não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso, para designá-la, o velho termo “elemento” (“élément”) “em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo. Isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espaço-temporal e a ideia”.   
             Essa teoria circunscreve três impulsos filosóficos que serão afastados pelo trabalho merleau-pontyano: o teológico, que coloca o Absoluto como ponto de partida; o humanista, presente tanto nas filosofias da consciência quanto nas antropologias filosóficas, que faz da subjetividade o ponto de partida. Enfim, o naturalismo cientificista e o de um certo materialismo que, desejoso de corrigir as tendências anteriores, toma o homem e o mundo como processos objetivos impessoais. Esta é a tônica do filme Misery em que a miséria humana não é determinista, pois acaso, do latim: “a casu”, significa “sem causa”. Acaso é uma palavra que pode ser usada em três sentidos diferentes, dependendo do significado que se dê à palavra causa. A base do conhecimento está, portanto, na capacidade de perceber o que nos cerca. Implica também o processo de dar significado ao que foi captado pelos sentidos, para que se possam realizar as necessárias conexões entre os objetos perceptíveis, o que torna possível vê-los como um todo expresso na dinâmica de seu movimento.
 




  
              Leitora ardente e fã número 1 dos livros dele, Annie o prende na própria casa e o submete a uma série de torturas inimagináveis. Uma adaptação elegante, fiel e recheada de humor mórbido. Escritor de best-sellers, Paul Sheldon (James Caan) é salvo de um acidente por uma fã que resolve “guardá-lo para ela”. Ela se chama Annie Wilkes (Kathy Bates), enfermeira fanática pela personagem Misery Chastain. Paul, com as duas pernas quebradas e preso à cama, sente o alívio de não ter morrido tornar-se horror quando Annie descobre que a personagem Misery morre no último romance da série. Ele é obrigado a queimar o manuscrito com que esperava conquistar respeitabilidade literária. Annie exige que ele resgate Misery dentre os mortos e, diante do trágico e o inusitado, escrever essa história dramática, pois será sua única garantia de vida. Vale lembrar que num curso sobre o conceito de Natureza, ministrado em 1956/57, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma que o problema ontológico é aquele ao qual se subordinam todos os outros e por isso mesmo a ontologia não pode ser um teísmo, um naturalismo ou um humanismo, ou seja, não pode identificar o Ser com um dos seres - Deus, o homem ou a Natureza. Essa posição é reafirmada na última nota de trabalho de seu livro inacabado, O Visível e o Invisível (2007), quando apresenta o plano de seu escrito, escrevendo:  - “Trata-se precisamente de mostrar que a filosofia não pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas”. 



             Neste aspecto filosófico e metodológico, Marx, depois de Hegel, é quem melhor precisa, a ideia segundo a qual “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seios da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo existiam ou estavam, ao menos em via de aparecer. Narra que existe a “carne do mundo” e a “carne do corpo” e se imbricam numa relação de percepção mútua. - “A carne é fenômeno de espelho e o espelho é extensão da minha relação com meu corpo”. É a possibilidade de ambos (corpo e mundo) terem uma carne que os faz reconhecíveis um para o outro, que nos faz capazes de, percebendo o mundo, refletirmos sobre este e sobre nós mesmos.
              Merleau-Ponty foi, ao lado de Jean-Paulo Sartre, a figura mais representativa do pensamento filosófico francês após a 2ª guerra mundial, e que se celebrizou por uma de suas manifestações reconhecidas: o existencialismo. Ele procura persuadir o leitor de que os conceitos fundamentais da filosofia - sujeito e objeto, fato e essência, ser e nada, consciência, imagem, coisa, palavra - já representam determinada interpretação singular do mundo. Sua obra foi profundamente inspirada pelos trabalhos de Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia, apesar de negar sua doutrina do conhecimento intencional, preferindo basear sua construção teórica na maneira de se portar do corpo e na captação de impressões dos sentidos.  No exame minucioso da percepção, Merleau-Ponty converte o processo fenomenológico em uma modalidade existencial, resumindo no logos a estrutura do mundo. Segundo sua concepção, a filosofia permite um novo aprendizado do olhar sobre o universo que o envolve, um retorno ao âmago do objeto. A base do conhecimento está, portanto, na capacidade de perceber o que nos cerca, o que implica também o processo de dar significado ao que foi captado pelos sentidos, para que se possam realizar as necessárias conexões entre os objetos perceptíveis, o que torna possível vê-los como um todo.










                        
                  O trabalho parece ser uma categoria muito simples. A ideia de trabalho nesta universalidade, como  trabalho em geral, é também das mais antigas. No entanto, concebido do ponto de vista econômico nesta forma simples, o trabalho é uma categoria tão moderna como as relações que esta abstração simples engendra. Assim, apesar de historicamente a categoria mais simples poder ter existido antes da mais concreta, pode pertencer, no seu completo desenvolvimento - em compreensão e em extensão -, precisamente a uma forma de sociedade complexa, enquanto a categoria mais concreta se achava já completamente desenvolvida numa forma de sociedade mais atrasada. Assim, a abstração mais simples, que a economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, só aparece no entanto sob esta forma abstrata como verdade prática enquanto categoria da sociedade mais moderna. Isto é importante, na medida em que para Marx, o todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, ou seja, analiticamente, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático, antes como depois, o objeto real conserva a sua independência fora do espírito; e isso na duração em que tiver uma atividade meramente especulativa, meramente teórica. Por consequência, também no emprego do método teórico é necessário que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro.   
             No filme, a máquina de escrever de Paul tem como representação uma tecla “N” defeituosa, o que alude assim como uma das primeiras máquinas históricas de escrever de Stephen King. Antes de James Caan assumir o papel de Paul Sheldon, ele foi oferecido para o genial Jack Nicholson. O ator recusou porque tinha feito O Iluminado em 1980, e não queria fazer outra adaptação de um livro de King. Curiosamente James Caan apareceu uma vez no set de ressaca, e todas as cenas que ele filmou naquele dia obviamente não ficaram boas para exibição. O diretor Rob Reiner disse a James Caan que ele teria que fazer as cenas novamente porque havia “um problema no laboratório”. Quando Caan descobriu que não tinha nada de errado com o laboratório, ele se ofereceu para cobrir o dinheiro que o estúdio perdeu com a gravação extra. Annie Wilkes é a personagem escrita favorita na literatura ficcionista de King, porque ela sempre foi surpreendente para escrever, com profundidade e simpatia inesperadas. Segundo Merleau-Ponty, a esfera humana é uma espécie de “intermundo”, o qual pode ser explicado como o contexto histórico, a simbologia, ou a verdade a ser construída.






            
              Algo que acena com a possibilidade de uma significação das coisas, apesar de todos os paradoxos existenciais. Neste sentido, ser é visto pelo outro como uma fração de mundo, a interação social entre as consciências e a ligação dialética entre o senhor e o escravo no sentido hegeliano. Contudo, as obras mais significativas de Merleau-Ponty são as de natureza psicológica, para o que nos interessa, estão entre elas: A Estrutura do Comportamento, de 1942, e Fenomenologia da Percepção, de 1945. Na sua fase de inferência política elaborou uma série de outros ensaios de teor marxista como: Humanismo e Terror, de 1947, uma apologia do comunismo soviético de fins da década de 1940. Em 1955 ele passa por uma modificação na sua weltanschauung sobre este regime, no ensaio: As Aventuras da Dialética, de 1955, no qual o marxismo é visto comparativamente mais como um método de análise do que representando uma práxis revolucionária para se avançar politicamente sobre o debate da questão tópica da verdade no âmbito histórico da fenomenologia. Ao distanciar-se de suas primeiras obras e buscar a ontologia, Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se na nota de trabalho de O Visível e o Invisível, na medida em que para ele: “o Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”.
               Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: “filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações”. Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do pensador. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que  abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser. Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto. Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis, que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim “eu quero”, “eu posso”, mas que “não saberia como concretizar isto que ele quer e pode senão querendo e podendo”. Isto é, agindo, realizando uma experiência e sendo essa própria experiência na existência.






              O que torna possível a experiência criadora é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito da ação como intenção de significar alguma coisa muito precisa e determinada no campo da ação social. Em A Estrutura do Comportamento, obra dedicada ao tema da relação entre corpo e espírito, Merleau-Ponty confronta as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia, e afirma que o interesse pela noção de comportamento advém de suas possibilidades para uma compreensão do mundo humano que escape tanto da redução mecanicista dos acontecimentos psíquicos quanto da assimilação do psiquismo à consciência pura. Graças a essa noção, pensada como estrutura, o filósofo pode distinguir entre a ordem física, a biológica e a humana, ordens que não podem ser reduzidas umas às outras, por nenhum tipo de mentalidade, mas dotadas de especificidade e diferença intrínseca. A elaboração da idéia de ordem humana como instituição da ordem simbólica da cultura efetuada pela percepção, pela linguagem e pelo trabalho, ou como relação com o possível e com o ausente,  assegura a  irredutibilidade dessa ordem à ordem física e à biológica, mas nem por isso a concebe como uma construção intelectual específica posta pela consciência reflexiva: o comportamento humano não é uma coisa nem é uma ideia.
              O referencial teórico de Merleau-Ponty ainda conserva ressonâncias da tradição esquecida da antropologia filosófica, pois o papel central é conferido à consciência perceptiva e não à percepção. Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber, a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem são dissimuladas? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevôo é um “projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento”. A crítica analítica do possessivo é, simultaneamente, afirmação de que a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um ponto de partida absoluto, Deus, o homem, a Natureza, mas um solo originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados: o que está ligado de forma inseparável ao ser. É aquilo que está intimamente unido e que diz respeito ao próprio ser. A miséria humana é inerente e faz parte da pessoa ou coisa e que lhe é inseparável por natureza. É o que é intrínseco, específico e que pode servir para caracterizar algo ou alguém para o bem ou o mal.  
Bibliografia geral consultada. 

MERLEAU-PONTY, Maurice, La Structure du Comportement. Paris: Presses Universitaires de France, 1942; Idem,  Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo: Editor Saraiva, 1973; Idem, “Textos Selecionados”. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980; Idem, Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996; Idem, Le Primat de la Perception et ses Conséquences Philosophiques, Précédé de, Projet de Travail sur la Nature de la Perception. Lagrasse: Éditios Verdier, 1996; Idem, Le Visible et le Invisible. Paris: Éditions Gallimard, 1996; Idem, O Visível e o Invisível. 4ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007; MOUTINHO, Luiz Damon Santos, “O Invisível como Negativo do Visível: A Grandeza Negativa em Merleau-Ponty”. In: Trans/Form/Ação. Vol.27 n° 1 Marília, 2004;SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da, A Carnalidade da Reflexão: Ipseidade e Alteridade em Merleau-Ponty. Tese de Doutorado em Ciências Humanas. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2007; CHAUÍ, Marilena, “Merleau-Ponty: A Obra Fecunda”. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/; GRESS, Thibaut, “Maurice Merleau-Ponty: Oeuvres”. In: Actu-Philosophia, 6 février 2011; KING, Stephen, Misery: Louca Obsessão. Rio de Janeiro: Editor Francisco Alves, 1991; Idem, Misery: Louca Obsessão. São Paulo: Editora Suma de Letras, 2014; DIAS, João Carlos Neves de Souza e Nunes, O Corpo como Expressão e Carne: Texturas do Corpo na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty. Tese de Doutorado em Filosofia. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017; entre outros.

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