quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Em Torno das Raízes Anarcafeministas Brasil-Rússia.

                                                Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

Le pouvoir  est maudit, c`est pour cela que je suis anarchiste”. Louise Michel

                                                                                                                                                              
            O termo “anarca”, em desacordo com a gramática, usa o sufixo “a” para denotar o feminino, ou seja, uma pessoa com cromossomos xx geralmente tem órgãos sexuais e reprodutivos feminisnos e, portanto, geralmente é designada como do sexo feminino. O prefixo anarco é de raiz grega e não tem gênero. A terminologia feminina é defendida por surgir em oposição ao dominante androcentrismo, fato que se exprime pela cultura linguística sexista que toma como neutro o uso generalizado do masculino. O uso de um sufixo feminino não sugeriria, assim, uma dominância feminina. Mas antes chamaria a atenção para um grupo marginalizado, colocando também a mulher no papel de protagonista que ela tem na luta de libertação feminista. Anarquia originalmente significa ausência de coerção e não a ausência de ordem. A noção equivocada de que anarquia é sinônimo de caos, ou mesmo de bagunça, se popularizaram entre o fim do século XIX e o início do século XX, através dos aparelhos de Estado de comunicação de massa patronais, mantidos por instituições políticas e religiosas atreladas ao Estado.
Neste período, em razão do grau elevado de organização dos segmentos operários, de fundo libertário, surgiram inúmeras campanhas antianarquistas. Outro equívoco é considerar anarquia, como sendo a ausência de laços de solidariedade entre os homens, quando em realidade, um dos laços mais valorizados pelos anarquistas é o auxílio mútuo.   Há diversas escolas de pensamento e tradições de anarquismo, as quais não são mutuamente exclusivas. Cada vertente do anarquismo tem uma vertente de compreensão, análise, ação e edificação política específica, embora todas vinculadas pelos ideais bases do anarquismo. Correntes do anarquismo têm sido divididas em anarquismo social e anarquismo individualista, ou em classificações semelhantes. A maioria dos anarquistas é apartidária. Opõe-se ao Estado nacional e a qualquer regime ditatorial, apoiando a autodefesa ou a não violência. Outros apoiam o uso de diversos meios, como a revolução violenta. Outro conceito, a propaganda pelo ato, apesar de ter tido um início violento, incorporou diversos tipos de ações não violentas.         
              

            Nascido na Ucrânia, o movimento “Femen” gerou mais do que dor de cabeça entre as autoridades do mundo por suas ações para denunciar a discriminação contra as mulheres. O grupo é visto como um dos soldados da luta contra a sociedade patriarcal. Muitos apontam que o seu modo de ação baseia-se nos movimentos feministas dos anos 1960. A Gazeta Russa revelou, no entanto, que a origem dessas ações também encontra paralelo na antiga URSS, em específico a partir de 1925, quando mulheres soviéticas se despiram em público com uma faixa no peito com a frase: “Dolói stid!-Eto buryuazni predrassudok” (“Não à  vergonha – Isso é uma preconceito burguês”). Elas entravam em qualquer meio de transporte público sem roupas para sublinhar sua feminilidade e o espírito anti-burguês. Para entender como funcionava esse movimento político é necessário contextualizá-lo no período pós-revolucionário de então, de efervescência cultural e destruição do modelo tradicional burguês e de criação de uma nova sociedade.
O poeta soviético Vladimir Maiakovski, por exemplo, se recusou a seguir a métrica clássica decadente considerada chata. Os arquitetos criaram uma nova forma de construir, mais útil e funcional para a sociedade, lançando o movimento construtivista. Todos procuraram novas soluções para problemas eternos, inclusive a questão feminina. Em 1923, em sua obra: “O novo curso, os problemas da vida cotidiana”, Leon Trotsky explicava como o Estado socialista deveria agir para garantir a libertação das mulheres e a transformação da vida cotidiana. Para isso, era preciso liberar as mulheres da escravidão doméstica, socializar o acolhimento de crianças, construir cozinhas, lavanderias, permitir às mulheres entrar no mercado de trabalho e na política. Cartazes de propaganda soviética com esse lema poderiam ser encontrados em todas as cidades com um desenho de uma mulher na cozinha abrindo as portas para a nova vida, com a inscrição: “Não à escravidão da cozinha, sim a uma nova vida”. Foi criada uma seção feminina chamada “Jenotdel do Partido Comunista”, dirigida por própria Aleksandra Kollontai (1971; 1977), uma das fundadoras do movimento internacional “Dia das Mulheres”, celebrado na Rússia em 8 de março, como de resto no mundo ocidental e no Brasil. Ainda em 1913, Kollontai começou a luta para a igualdade salarial, legalização de abortos, socialização do trabalho doméstico e proclamou “a necessidade de renovação psicológica da humanidade”.

O significado e o sentido de “anarcafeminismo” como o de anarquismo, se opõe a todos os tipos de hierarquia. Entretanto, anarcafeministas dedicam maior atenção à desigualdade existente entre os sexos. Acreditam que as mulheres são exploradas pelo capitalismo, por ele difundir o sexismo em suas instituições e desvalorizar economicamente o seu trabalho doméstico e reprodutivo. Também acreditam que não haverá a destruição do patriarcado, o qual é o principal alvo do ativismo, sem a destruição do capitalismo. O anarcafeminismo se diferencia do “feminismo liberal” por considerar que direitos civis conquistados dentro da sociedade capitalista serão sempre superficiais, visto que só poderão ser desfrutados pelas frações da classe dominante. O termo anarcafeminismo foi criado durante a chamada “segunda onda” do movimento feminista, iniciada no final dos anos 1860. Entretanto, o movimento social é mais comumente associado a autoras do início do século XX, como Emma Goldman e Voltairine de Cleyre, bem como algumas autoras da “primeira onda”, como Mary Wollstonecraft. Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o grupo “Mujeres Libres” defendia ideias anarquistas e feministas. No Brasil, a anarquista feminista mais conhecida foi Maria Lacerda de Moura (1887-1945).
Vera Ivanovna Zasulitch foi uma revolucionária niilista russa depois adepta das ideias marxistas, tal como expressão de uma nova identidade religiosa, ou uma mudança de uma identidade religiosa para outra. Isto envolve tipicamente o devotamento sincero a um novo sistema político de crença, mas também pode ser concebido de outras maneiras, como a adoção em uma identidade de grupo político-ideológica. Nascida numa família nobre empobrecida de Mikhailovka, Rússia, frequentou durante os seus estudos preparatórios em Petrogrado os ambientes revolucionários estudantis. Foi detida e encarcerada em 1869, por manter correspondência com o líder niilista e anarquista Sergei Netchaev. Após o seu encarceramento em 1871, estabeleceu-se em Kiev, onde contatou com “Insurgentes de Kiev”, um grupo revolucionário de simpatizantes de Mikhail Bakunin, tornando-se uma líder extraordinariamente respeitada. Netchaiev já tinha desenvolvido uma consciência crítica sobre a desigualdade social e um ressentimento do local em que morava em sua juventude quando participou de aulas na Universidade de São Petersburgo, mesmo sem ser oficialmente matriculado quando absorveu a literatura de crítica política russa dos grupos radicais “Decembrists”, o “Petrashevsky Circle”, e Mikhail Bakunin, entre outros, com toda a agitação marcadamente estudantil na universidade. Netchaiev participou de um grupo ativista estudantil em 1868-1869, liderando uma minoria radical com Petr Tkachev e outros.
Ele viu a imoralidade implacável na perseguição do controle total pela Igreja e o Estado, e acreditava que o esforço contra os dois deveria ser realizado por todos os meios políticos necessários, sempre focando a destruições dos mesmos. A personalidade individual tem de ser abandonada pelo grande propósito num tipo de ascetismo espiritual no qual Netchaiev avançou mais que um simples teórico, guiando princípios pelo qual ele viveu praticamente sua vida. Também formulou do ponto de vista da ação algumas estratégias e táticas: - “A revolutionary must infiltrate all social formations including the police. He must exploit rich and influential people, subordinating them to himself. He must aggravate the miseries of the common people, so as to exhaust their patience and incite them to rebel. And, finally, he must ally himself with the savage word of the violent criminal, the only true revolutionary in Russia”.
Tendo deixado a Rússia ilegalmente, Netchaiev teve que voltar para Moscou em 1869 com a ajuda dos contatos de Bakunin. Lá ele viveu uma vida severa, gastando dinheiro apenas nas atividades políticas. Ele fingiu ser um representante do departamento russo da “Rede de União Revolucionária” (na qual não existia) e criou uma afiliada da sociedade secreta chamada “Narodnaya Rasprava” (“Represália do Povo”), na qual, ele dizia existir por bastante tempo em cada esquina da Rússia. Ele discursava apaixonadamente para estudantes sobre a necessidade de se organizar. Vera Zasulich, escritora marxista, fala que quando ela encontrou Netchaiev pela primeira vez, ele imediatamente tentou recrutá-la: - “Netchaiev começou a me contar seus planos para organizar uma revolução na Rússia num futuro próximo. Eu me senti terrível: foi realmente doloroso para eu dizer'. Isso é pouco provável, Eu não sei sobre isso'. Eu podia ver que ele estava realmente sério, que isso era uma conversa séria sobre revolução. Ele podia e iria agir – ele não era o líder dos estudantes?... Eu não podia imaginar maior prazer do que servir a revolução. Eu tinha vivido somente para sonhar isso, e agora ele estava dizendo que ele queria me recrutar... E o que eu conhecia sobre ´o povo`? Eu conhecia somente as senzalas de Biakolovo e os membros do meu coletivo tecelão, enquanto ele era um trabalhador desde que nasceu”.
Em 1878, Zasulitch e a revolucionária social Maria Kolenkina planejaram assassinar Vladislav Zhelekhovski, um promotor ultraconservador reconhecido pelos seus processos ideológicos contra a militância revolucionária e o coronel Teodor Trepov, governador de Petrogrado, que era igualmente conhecido “por ter banido as rebeliões polacas em 1830 e 1863”. O atentado contra Zhelekhovski resultou fracassado, mas Vera Zasulitch conseguiu ferir gravemente Trepov. Foi atralhoada, mas no seu amplamente difundido processo, um júri popular favorável a ela declarou-a inocente. Após a anulação do processo, Zasulitch viajou a Suíça, onde contatou com grupos marxistas, vindo a colaborar na fundação do grupo “Emancipação do Trabalho” (“Освобождение труда”) com Georgi Plekhanov e Pavel Akselrod em 1883.
O grupo encarregou Zasulitch a tradução de diversos trabalhos de Marx para o russo, o que contribuiu para ampliar e amplificar a influência do marxismo entre a intelligentsia russa ao ponto de tornar-se fundamental para criação do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR) em 1898. Em meados de 1900, os líderes da ala radical Julius Martov, Vladimir Lenin e Aleksandr Potresov uniram-se a Zasulitch, Plekhanov e Akselrod na Suíça. Devido às tensões entre as duas alas do Partido, os seis membros fundaram o jornal revolucionário Iskra, e formaram seu conselho editorial, que se opunham aos marxistas moderados, conhecidos como “os economistas” e também aos que eram considerados ex-marxistas como Sergei Bulgakov e Piotr Struve. Porém, durante o II Congresso do POSDR, o marxismo verificou uma ruptura entre os mencheviques de Julius Martov e bolcheviques de Lenin. Zasulitch situou-se do lado de Martov, tornando-se uma líder do menchevismo, a principal corrente reformista pequeno-burguesa na socialdemocracia da Rússia. O menchevismo se formou em 1903, no II Congresso do Partido Operário Socialdemocrata da Rússia (POSDR), unificando adversários do princípio leninista de estruturação do partido de “novo tipo”, que ao serem eleitos os organismos centrais do partido, resultaram em minoria, pois vale lembrar que o nome menchevismo decorre deste fato: “menchevismo” em russo significa minoria. O menchevismo foi organicamente entrelaçado com o “marxismo legal” e o economicismo, assim como com o “bernsteinianismo” considerando que a burguesia era a principal força motriz da revolução democrática burguesa, e o campesinato, uma classe reacionária, o menchevismo refutava a hegemonia do proletariado naquela revolução e incitavam a classe operária a submeter-se à burguesia liberal. Talvez por esse motivo o seu interesse na política tenha decaído rapidamente. Regressou à Rússia após a Revolução de 1905. Lá, contraditoriamente apoiou a facção política de participação da Rússia na 1ª grande guerra (1914-18) e opôs-se à histórico-sociológica Revolução de Outubro de 1917 dirigida pelos comunistas bolcheviques.

Na Revolução Russa de 1917, Nestor Makhno tenta implantar o anarquismo na Ucrânia, com apoio de várias comunidades camponesas, mas que acabam derrotadas pela formação do Estado bolchevique de Lênin. Quinze anos depois, anarquistas organizados em torno de uma confederação anarcossindicalista impedem que um golpe político-militar fascista seja bem sucedido na Catalunha (Espanha), e são os primeiros a organizar milícias para impedir o avanço destes na consequente Guerra Civil Espanhola (1936-39). Durante o curso dessa guerra civil, os anarquistas controlaram um grande território que compreendia a Catalunha e Aragão, onde se incluía a região mais industrializada de Espanha, sendo que a maior parte da economia industrial passou a ser compartilhada de forma autogestionada. Na “weltanschaaung” anarquista, a revolução social consistiria na quebra drástica, rápida e efetiva do Estado e de todas as estruturas, materiais e não materiais, que o regiam ou a ele sustentavam com a sua racionalidade.
Este princípio é primordial na diferenciação da vertente de pensamentos libertária em relação a qualquer outra corrente idealista. É a diferença básica entre o dilema “socialismo libertário” versus o “socialismo autoritário”. Nos meios anarquistas, de forma geral, rejeita-se a hipótese de que o governo ou o Estado sejam necessários ou mesmo inevitáveis para a sociedade humana. Os grupos humanos seriam naturalmente capazes de se auto-organizarem: a) de forma igualitária e não hierárquica; b) mediante os progressos originados pela educação libertária. A presença de hierarquias baseadas na força, ao invés de contribuírem para a organização social, antes a corrompem, por inibirem essa capacidade inata de auto-organização dando origem à desigualdade. Desta forma, a partir da conscientização, aceitação e internalização da sua essência humana, ideia suprimida anteriormente pelo Estado, emerge naturalmente na sociedade humana o anseio pela ascensão da ideia-base de qualquer forma de vida real: a Liberdade.
 
Bibliografia geral consultada.

 
KOLLONTAI, Alexandra, The Autobiography of a Sexually Emancipated Communist Woman. New York: Herder and Herder, 1971; Idem, Women Workers Struggle for their Rights. Bristol: Falling Wall Press, 1973; Idem, International Women`s Day. Highland Park, MI: International Socialist Publishing Co., 1974; Idem, Selected Writings of Alexandra Kollontai. Alix Holt, trans. New York: W.W. Norton & Co., 1977; BARROS, Mônica Siqueira Leite de, As Mulheres Trabalhadoras e o Anarquismo no Brasil. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade de Campinas, 1979; BOBROFF, Anne, “Alexandra Kollontai: Feminism, Workers` Democracy, and Internationalism”. In: Radical America, volume 13, número 6, nov.-dec. 1979; pp. 50-75; MIRANDA, Jussara Valéria de, Recuso-me! Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2006; BIAJOLI, Maria Clara Pinto, Narrar Utopias Vividas: Memória e Construção de Si nas Mulheres Livres da Espanha. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Capinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007; MALCOLM, Janet, Duas Vidas. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2008; MENDES, Samanta Colhado, As Mulheres Anarquistas na Cidade de São Paulo: 1889-1930. Dissertação de Mestrado. Faculdade de História, Direito e Serviço Social. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2010; BADINTER, Elisabeth, Le Conflit: La Femme et la Mère. Paris: Éditions Flammarion, 2011; CLEMENTS, Barbara Evans, A History of Women in Russia: From Earliest Times to the Present. Indiana University Press, 2012; LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho, Riot Grrril: Capturas e Metamorfoses de uma Máquina de Guerra. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015; entre outros.

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