“Vivemos
tudo, antes que a mão avara nos cortasse ao meio”. Heloísa de Argenteuil
A
história trágica de amor entre Abelardo
e Heloísa se passa na França, no século XII, em meados da Idade Média. Filósofo
e teólogo escolástico, Pierre Abélard ou Abailard, em latim Petrus Abelardus,
nasceu em Le Pallet, perto de Nantes, França, por volta do ano 1079, morrendo
no priorado de Saint-Marcel, próximo de Chalôns-sur-Saône, a 21 de abril de
1142. Influenciado desde cedo por Filosofia, estudou Lógica, entre 1094 e 1106,
em Loches e Paris, logo entrando em conflito com a tradição conservadora de
seus mestres. Foi professor em Melun, comuna francesa localizada na região
administrativa da Île-de-France, no departamento Sena e Marne, Corbel, comuna
francesa na região administrativa de Auvérnia-Ródano-Alpes, no departamento de
Saboia e Paris, ensinando dialética, o que lhe valeu intermináveis
perseguições. Isto porque, metodologicamente Abelardo defendia a abstração dos
universais, opondo os conceitos de “vox”, nominalismo e “res”, realismo, o “sermo”,
tradicionalmente conhecido como latim vulgar. Este latim pertencia a uma
população que era muito pouco ou quase nada escolarizada, e por isso mostra um
conjunto de inovações gramaticais que não seguem as normas do latim literário como função lógica do espírito. Para Abelardo, o conceito é
universal, se paica aos indivíduos que participam no processo de
conhecimento, representando, uma “situação” e não uma realidade. Em seus manuscritos procurou aproximar a Teologia da Lógica,
ligando a trindade cristã ao conceito “Um-Alma-Mente” do neoplatonismo.
Acreditando na capacidade da mente humana de alcançar o verdadeiro conhecimento
natural e supernatural, defendia o exame crítico das Escrituras à luz da razão. Prestava atenção ao recurso técnico
utilizado em relação à linguagem, suscetível a tantas interpretações quanto à
diversidade dos que a empregam. Abelardo é a primeira figura do intelectual moderno. Chamaram-lhe de “cavaleiro
da dialética”. Estatisticamente
entre 1200 e 1400 foram fundadas na Europa 52 universidades, e 29 delas foram
edificadas pelo papado. A transformação cultural gerada pelas universidades no
século XIII foi reconhecida pela frase de Charles Homer Haskins: “Em 1100, a
escola seguia o mestre; em 1200, o mestre seguia a escola”. Algumas dessas
universidades recebiam da Igreja católica o título de “Studium Generale”, que
indicava que este era um instituto de excelência internacional, levando em
consideração os locais de ensino mais prestigiados do velho continente.
Acadêmicos de “Studium Generale” eram encorajados a “dar cursos em outros
institutos por toda a Europa, bem como a compartilhar documentos”. Esta
dinâmica interdisciplinar de seu funcionamento
iniciou a cultura de intercâmbio presente ainda hoje nas universidades
europeias. Ipso facto, a filosofia do
século XII pode ser dividida a partir do desenvolvimento da atividade
filosófica que se concentrou antes e depois do nascimento das primeiras
universidades. Na Idade Média este sistema orientará, por meio da espacialização do pensamento, a dialética essencial dos valores cristãos.
Paris,
a capital de l’amour, foi o palco do
romance. Pedro Abelardo, nascido de família nobre em 1079 deveria seguir a
profissão das armas como seus irmãos. Mas desde cedo a convicção do jovem o fez
escolher os estudos de Filosofia, Teologia e Letras e seguiu uma carreira na
área de Pedagogia. A educação, no século XII, era monopólio da igreja católica
que estabelecia normas aos seus professores e estudantes. Uma das imposições
era a de que os professores jamais poderiam envolver-se afetivamente com
alunos. O desrespeito às regras era considerado crime, seguindo-se punições de acordo com a gravidade dos fatos
sociais. Abelardo era um mestre reconhecido por seu grupo, por seus alunos, como
erudito e sensível. Na sua maturidade intelectual, ele apresentou
questionamentos e críticas aos pensamentos tradicionais, demonstrando afeição
aos filósofos não cristãos. Aos 36 anos, Abelardo era um brilhante professor em
teologia na Catedral Notre Dame de Paris. Canon Fulbert, um senhor abastado de
Paris, era o responsável pelo aprimoramento intelectual da sua sobrinha Heloísa.
Como tutor decidiu confiar a jovem ao renomado mestre Abelardo.
Heloísa
é mais reconhecida pela sua relação com Pedro Abelardo. Ela era brilhante
estudiosa de Latim, Grego e Hebraico, e tinha uma reputação de inteligência e
perspicácia. Abelardo escreve que ela era nominatissima, “muito conhecida” por
seu dom da escrita e leitura. Parece que era de uma classe social mais baixa
que a de Abelardo, que era originalmente da nobreza, embora ele tivesse
rejeitado fidalguia para ser um filósofo. O que se sabe é que ela era a
funcionária de seu tio, cônego em Paris chamado Fulbert. Nos seus manuscritos,
Abelardo narra a história da sedução de Heloísa e sua posterior relação
ilícita, que continuou até Heloísa ter um filho, a quem chamou Astrolabius (Astrolábio). Abelardo
casou-se secretamente com Heloísa. Eles esconderam esse fato, a fim de não prejudicar
a carreira de Abelardo. A opinião aceita é que Fulbert, em sua ira, puniu Abelardo
atacando-o enquanto dormia e castrando-o. Outra visão é que Fulbert divulgou o
segredo do casamento e sua família procurou vingança, ordenando a castração de
Abelardo. Após a castração, Abelardo tornou-se monge. No convento de
Argenteuil, Heloísa tomou o hábito e tornou-se abadessa.
No período de convivência no convento,
começou a correspondência entre os dois amantes. Após ter deixado a Abadia do
Paracleto, Abelardo fugiu das perseguições, e escreveu sua Historia Calamitatum, explicando suas tribulações, tanto em sua
juventude como um filósofo e posteriormente como simples monge. Heloísa respondeu-lhe
tanto em nome da Paraclete e dela mesma. Nas cartas que se seguiram, Heloísa
manifestou consternação pelos problemas morais e políticos enfrentados por
Abelardo. Assim começou uma correspondência apaixonada entre ambos, mas
tipicamente erudita. Heloísa incentivava Abelardo em sua obra filosófica e ele
dedicou a sua profissão de fé a ela. Em um ponto, ela diz a ele para
compartilhar cada detalhe de sua vida e para não protegê-la de aborrecimento. O
Problemata Heloissae é uma coleção de
42 perguntas teológicas dirigidas de Heloísa a Abelardo no tempo em que ela era
abadessa em Paraclete, e suas respostas a elas. Embora tenham se casado, o cônego
Fulberto, tio e responsável da jovem, ficou furioso com a situação e ordenou com
que Abelardo, na escuridão da noite, fosse castrado. Assim, por volta de 1118, além
de ter ordenado Heloísa a se tornar monja, Abelardo também se abrigou no claustro
monástico, mais por conta da “confusão da vergonha” do que “pela vocação de uma
vida religiosa”. Tomou a abadia de S. Denis em Paris como refúgio, no entanto sua
estadia foi conturbada.
Por
conta de diversos problemas com seus novos irmãos e uma condenação por heresia
no concílio de Soissons em 1121, Abelardo, com a ajuda de alguns amigos, fundou
o Paracleto, que significa “aquele que consola ou conforta; aquele que encoraja e reanima; aquele que revive; aquele que intercede em nosso favor como um defensor numa corte”. No cristianismo, o termo é utilizado para se referir ao Espírito Santo e o termo tem sido objeto de longo debate entre os teólogos, com diversas teorias sobre o assunto. um oratório próximo ao rio Ardusson, também em Paris. Sentindo-se
pressionado por seus críticos e temendo uma nova condenação, Abelardo abandonou
o Paracleto para se tornar abade do mosteiro de Gildas-Rhuys, na Bretanha, em
c. 1127. O comportamento de seus novos irmãos
não era compatível ao de monges que eram e, ao tentar corrigi-los, Abelardo foi
vítima de algumas tentativas claustrofóbicas de homicídio. Essas informações
biográficas são encontradas na Historia
Calamitatum, carta que Abelardo escrevera, por volta de 1132, a um
amigo não nomeado.
A
recomendação de celibato clerical na igreja latina possui sua primeira
representação pelo Concílio de Elvira (295-302), mas, como este concílio era
apenas um concílio provincial espanhol, pois Elvira era uma cidade romana,
junto a Granada, as suas decisões não foram cumpridas por toda a Igreja cristã.
O Concílio de Elvira assim legislou: “Bispos, presbíteros, diáconos e outros
que ocupem uma posição no ministério devem abster-se totalmente de relações
sexuais com suas esposas e da procriação de filhos. Se alguém desobedecer, seja
ele privado do estado clerical” (XXXIII cânon). O Primeiro Concílio de Niceia
(323) decretou apenas que “todos os membros do clero estão proibidos de morar
com qualquer mulher, com exceção da mãe, irmã ou tia” (III cânon). No final do
século IV, a Igreja Latina promulgou várias leis a favor do celibato. Foram
geralmente bem aceites no Ocidente no pontificado de São Leão Magno (440-461),
mas o Concílio de Calcedônia (451) também “proibiu o casamento de monges e
virgens consagradas” (XVI cânon), impondo o celibato ao clero.
Em
troca dos ensinamentos feitos por Abelardo à sobrinha, Fulbert hospedou o
professor em sua residência em Paris. No início, o tio de Heloísa ficou
temeroso de deixar a bela jovem a sós com o professor. Com o passar do tempo, o
tio adquiriu confiança em Abelardo. Heloísa, nascida em 1100 e educada, por assim dizer em “berço
de ouro”, formosa e delicada, iniciou com 17 anos os seus contatos com o
professor Abelardo que quando conheceu a jovem Heloísa de Argentuil, era
conhecida “pela abundância dos conhecimentos literários”. Ela já o conhecia de renome
e o admirava por sua fama e inteligência. Bastaram os primeiros encontros entre
Abelardo e Heloísa para que nascesse entre os dois um amor platônico. Um amor
real seria quase impossível a moralidade descrita pelas regras sociais e políticas. Mas com o passar do tempo
a paixão e o desejo não puderam resistir e o casal iniciou a relação amorosa. Meses
mais tarde, Heloísa ficou grávida e Abelardo e Heloísa refugiaram-se na
Bretanha, no norte da França, onde nasceu Astrolábio.
Na
história da igreja a “virgindade religiosa”, denominada de “Virgindade
Sacra”, “Sagrada Virgindade” ou “Santa Virgindade”, é um conceito importante na
tradição cristã, especialmente no que diz respeito à Virgem Maria que ocupa um
lugar central no dogma cristão católico e ortodoxo. Votos de castidade e
celibato são necessários para entrar na vida monástica ou no sacerdócio. A
sagrada virgindade e a perfeita castidade considera a Igreja Católica, quando
consagrada ao serviço de Deus, um dos mais “preciosos tesouros” deixados por
Cristo à sua Igreja. Afirma ainda a Doutrina da Igreja Católica que a santa
virgindade é mais excelente que o matrimônio, isto no Concílio de Trento. Sobre
o tema afirma João Paulo II na Exortação Apostólica Familiaris consortio (n° 16): - Permanecendo no celibato, o homem pode entregar a Deus um coração
indiviso, segundo o modelo do seu Filho, Jesus Cristo, que ao Pai entregou o
amor exclusivo e total do seu coração. “É então que o homem conquista o supremo
cume, o vértice do testemunho cristão: Tornando livre de um modo singular o
coração humano (...) a virgindade testemunha que o Reino de Deus e a sua
justiça são aquela pérola que devemos preferir a qualquer outro valor”.
Contudo, o celibato é visto de
forma diferente por distintos grupos cristãos. Embora no passado fosse aceite o
matrimônio de padres ordenados tendo a inclusão de São Paulo recomendando a
fidelidade matrimonial aos bispos, na atualidade, excetuando em casos referentes
aos diáconos e a padres ordenados pelas Igrejas orientais católicas e pelos ordinariatos pessoais para anglicanos,
todo o clero católico latino é obrigado a observar e cumprir o celibato. Nas
Igrejas orientais, o celibato é apenas obrigatório para os bispos, que são
escolhidos entre os sacerdotes celibatários. A Igreja Católica de rito latino,
sinteticamente, dá as seguintes principais razões de ordem teológica para o
celibato dos sacerdotes e religiosos de vida consagrada: a) com o celibato os sacerdotes
entregar-se-iam de modo mais excelente a Cristo, unindo-se a Ele com o coração
indiviso; b) o celibato facilita ao sacerdote a participação no amor de Cristo
pela humanidade uma que vez que Ele não teve outro vínculo nupcial a não ser o
que contraiu com a sua Igreja; c) com o celibato os clérigos dedicar-se-iam com
maior disponibilidade ao serviço dos outros homens; d) a pessoa e a vida do
sacerdote são possessão da Igreja, que faz às vezes de Cristo, seu esposo; e) o
celibato dispõe o sacerdote pare receber e exercer com generosidade a paternidade
que pertence a Cristo.
Porém, apesar disso, houve
vários avanços e recuos na aplicação desta prática eclesiástica, nomeadamente
entre o clero secular, chegando até mesmo a haver alguns Papas casados, como
por exemplo, o Papa Adriano II. No século XI, vários Papas, especialmente Leão
IX e Gregório VII, esforçaram-se novamente por aplicar com maior rigor as leis
do celibato. Isto ocorreu devido à crescente degradação moral do clero, causada
em parte pela confusão instaurada pelo desmembramento do Império Carolíngio
quando houve padres e bispos que chegaram a demonstrar que tinham esposas ou
concubinas. Durante o Concílio de Constança, 700 prostitutas atenderam
sexualmente os membros participantes. Por fim, o Primeiro Concílio de Latrão
(1123) e o Segundo Concílio de Latrão (1139) condenaram e invalidaram o
concubinato e os casamentos de clérigos. Pelo uso da força como Aparelho de
Estado secular reforçando assim o celibato clerical, “que já era na altura uma
prática frequente e aceite pela maioria como necessária”. O celibato é
defendido porque os celibatários eram mais livres e disponíveis. Com o tempo, o
clero regular se foi destacando em relação ao clero secular. O celibato
clerical voltou ainda a ser defendido em força pelo Quarto Concíliode Latrão
(1215) e pelo Concílio de Trento (1545-1563), que impôs definitivamente o
celibato obrigatório a todo o clero da Igreja Latina, incluindo o clero
secular.
As Escolas Monásticas eram
articuladas à ordem de Cister e o ensino da filosofia se desenvolveu a partir
da leitura de Platão, apropriadas por neoplatônicos e Santo Agostinho. Em
geral, elas se fundamentavam em outros tipos de racionalidade, diferente da
escolástica que se voltava mais ao estudo da dialética e às disputationes. Na própria escolástica
verificamos certa flutuação de racionalidades, como no próprio trabalho de
Pedro Abelardo, que, apesar de lógico, compreendeu muitos aspectos da
filosofia, principalmente a de cunho ético-teológico, recorrendo à Santo
Agostinho e ao neoplatonismo como os participantes das Escolas Monásticas. É nos
mosteiros espalhados pela Europa, longe das novas cidades emergentes na Europa,
que surgem as Escolas Monásticas que visam, inicialmente, apenas a formação de
futuros monges. Funcionando de início apenas em regime de internato, estas
escolas abrem mais tarde escolas externas com o propósito da formação de leigos
cultos, filhos dos Reis e os servidores também. O programa de ensino, de
início, muito elementar - aprender a ler, escrever, conhecer a bíblia - se
possível de memória - canto e de aritmética, vai-se enriquecendo de forma a
incluir o latim, gramática, retórica e dialética.
Um egrégio representante das
Escolas Monásticas foi São Bernardo de Clairvaux sendo a ele atribuídos o
estudo contemplativo e silencioso das Sagradas
Escrituras, a restauração da regula
benedictido sistema disciplinar “ora
et labora” em contraposição ao ensino metódico da dialética, que se promovia
mais agitado nas formações de “disputationes”. Apesar da concepção de filosofia
ser pagã e contradizer em muitos aspectos o estudo das Sagradas Escrituras, a maior parte de seus livros são obra de muitas mãos e a composição de alguns deles durou séculos. Mas ela ainda permanecia nessas escolas com o
mesmo propósito de quando adentrou nos primórdios do cristianismo. Os
gramáticos pertenciam em grande parte às Escolas Monásticas, como a Escola de
Chartres, fundada por Fulbert de Chartres e difundida no século XII por Bernard
de Chartres. Os religiosos pertencentes à essa escola tinham por objetivo tanto
as categorias de pensamento quanto as categorias da língua. Logo, além de
conceberem o estudo da gramática, como objeto de pensamento ainda visava
adequá-la ao estudo filosófico na vertente do quadrivium. Pelo fato técnico de trabalhar com números e proporções, o quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois se acreditava que as distancias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. A gramática aliada a filosofia se centralizava no aprendizado do Timeu de Platão, via tradução de Calcídeo.
O desenvolvimento da filosofia na França foi balizado pela influência do platonismo através da escola de Chartres e pela disputa entre a facção dos místicos e teólogos e a dos dialéticos ou filósofos. A dialética significava, predominantemente, a arte de discernir o verdadeiro do falso, melhor dizendo, aquela parte da filosofia que trata dos termos, das proposições e do raciocínio. Um grande representante da dialética desse tempo foi Pedro Abelardo, nascido em 1079, na pequena localidade de Le Pallet, próximo de Nantes, França. Filho de um pequeno nobre chamado Béranger, homem de considerável cultura, Abelardo foi desde cedo orientado para o estudo esquemático do trivium (gramática, retórica e dialética) e, do ponto de vista “indiciário”, nada estudou do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Em 1094, dirige-se a Loches, a fim de estudar lógica sob a orientação de Roscelino, o grande mestre da chamada escola nominalista. Nesse ínterim refaz o mesmo princípio metodologicamente em Paris, tendo como mestre Guilherme de Champeaux, que seguia orientação contrária à de Roscelino, propugnando o realismo filosófico dos universais. A “querela dos universais” desde cedo é um dos principais centros de interesse de Abelardo, que, posteriormente, traria contribuições relevantes nesse campo de indagação filosófica.
A Escola da catedral de Chartres foi
uma escola que funcionou na catedral de Chartres e que se tornou um importante
centro de estudos na Europa medieval. Seu ápice ocorreu nos séculos XI e XII,
durante o chamado renascimento do século XII. Nesse período, segundo alguns
historiadores, os grandes intelectuais de seu tempo, como Yves de Chartres,
Gilbert de la Porrée, Bernard de Chartres, Guillaume de Conches, Clarembaud
d`Arras, Bernard Silvestre, Thierry de Chartres e Jean de Salisbury, teriam
sido ligados à escola, contribuindo para a modernidade da instituição. Até a
primeira metade do século XX, a Escola de Chartres era considerada pelos
historiadores como a mais vigorosa expressão do espírito progressista do século
XII. O Ocidente europeu do início da Idade Média era pouco mais que uma colcha de retalhos com populações camponesas e tribos germânicas em processo de desagregação cultural, romantização e asiatização religiosa e cultural, adotando um efêmero movimento religioso do Oriente Próximo e renegando as suas próprias raízes animistas, politeístas e afins. O surgimento da universidade, no início do século XIII, na França e em
outros pontos da Europa, representa uma mudança no sistema de ensino medieval.
Pela primeira vez, funda-se e organiza-se uma instituição cuja identidade primeira
é representado através da dedicação ao estudo. Assiste-se, no interior das relações medievas, a
criação de um espaço social destinado
somente ao saber. Contudo, entre 1965 e 1970, Richard William Southern, no
ensaio Medieval Humanism and Other Studies (Oxford, 1970), demonstra que a
análise documental rigorosa não permitiria afirmar que havia essa supremacia. A
escola de Chartres não era diferente de outras escolas episcopais,
e nada prova que tivesse distinguido por uma excepcional plêiade de
mestres, a não ser antevendo o debate. Suas características são, segundo Boehner
e Gilson, o cultivo das ciências naturais e a familiaridade com a literatura
clássica.
A
vida social deriva inexoravelmente de uma dupla fonte: a similitude das consciências
e a divisão do trabalho social. O indivíduo é socializado no primeiro caso,
porque, não tendo individualidade própria, confunde-se como seus semelhantes,
no seio de um mesmo tipo coletivo; no segundo, porque, tendo uma fisionomia e
uma atividade pessoais que o distinguem dos outros, depende deles na mesma
medida em que se distingue e, por conseguinte, da sociedade que resulta de sua
união. Esta divisão dá origem às regras jurídicas que determinam as relações
das funções divididas, mas cuja violação acarreta apenas medidas reparadoras
sem caráter expiatório. De todos os elementos técnicos e sociais da
civilização, a ciência nada mais é que a consciência levada a seu mais alto
ponto de clareza. Nunca é demais repetir que para que as sociedades possam
viver nas condições de existência que lhes são dadas, é necessário que o campo
da consciência se estenda e se esclareça. Quanto mais obscura uma consciência,
mais é refratária à mudança social, porque não vê depressa o que é necessário
mudar. Nem em que sentido é preciso mudar. Uma consciência esclarecida sabe
preparar de antemão a maneira de se adaptar a essa mudança risível. Eis porque
é necessário que a inteligência guiada disciplinarmente pela ciência adquira
uma importância maior no curso da vida coletiva. Tais sentimentos são capazes
de inspirar não apenas esses sacrifícios cotidianos, mas também atos de
renúncia completa e de abnegação exclusiva. A sociedade aprende a ver os
membros que a compõem como cooperadores que ela não pode dispensar e para com
os quais tem deveres. Na realidade, a cooperação também tem sua moralidade
intrínseca. Há apenas motivos para crer, que, em nossas sociedades, essa
moralidade ainda não tem todo o desenvolvimento que lhes seria necessário. Daí
resulta duas grandes correntes da vida social, que correspondem dois tipos de
estrutura não menos diferentes. Dessas correntes, a que tem sua origem nas
similitudes sociais corre a princípio só e sem rival.
Bibliografia geral consultada.
FEUERBACH, Ludwig, Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud.
Granada: Editorial Comares, pp. 73-139; 1995; ROCHA, Zeferino, Abelardo
– Heloísa. Cartas.Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1997; SCHMITT, Jean-Claude, “La ‘Découverte de l’Individu’: Une Fiction Historiographique”. In: Les Corps, les Rites, les Rêves, les Temps. Essais d’Anthropologie Médiévale.Paris: Éditions Gallimard, 2001; MAGDALENA, Enrique Miret, “La Azarosa Historia del Celibato Clerical”. In: Jornal El País, 26 de março de
2002; GILSON, Étienne, O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006; Idem, Heloisa e Abelardo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007; TONDINELLI, Tiago, Ética e Justiça no Pensamento de Pedro Abelardo. Tese de Doutorado em Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007; DUBY, Georges, As Damas do Século XII. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013; ESTÊVÃO, José Carlos, Abelardo e Heloísa. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus Editora, 2015; CHAVES-TANNÚS, Marcio, A Ética de Pedro Abelardo: Um Modelo Medieval da Lógica a Moral. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2015; NEVES, Gabrielle Marques, Análise das Cartas de Heloisa de Argenteuil e sua Correspondência com Abelardo: Amor e Violência no Século XII. Trabalho de conclusão de Curso. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017; SILVA, Rodolfo Fernandes da, Intencionalidade, Consciência e Caridade nas Obras Éticas de Pedro Abelardo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2017; LE GOFF, Jacques, O Nascimento do Purgatório. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2017; LAZARINI, Richard, A Noção de Ato de Ser Segundo a Exposição de Tomás de Aquino aos Ebdomadibus de Boécio. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018; entre outros.
“Há
mais pessoas que desistem, do que pessoas que fracassam!”. Henry Ford
Foram os índios centro-americanos
os primeiros a descobrir e fazer uso das propriedades singulares da borracha
natural. Entretanto, foi na floresta amazônica que de fato se desenvolveu a
atividade da extração da borracha, a partir da seringueira (“Hevea brasiliensis”),
uma árvore que pertence à família das Euphorbiaceae,
também reconhecida como “árvore da fortuna”. Do caule da seringueira é extraído
um líquido branco, denso, chamado látex, uma substância praticamente neutra.
Mas, quando exposta ao ar por um período de 12 a 24 horas, sofre coagulação
espontânea, formando o polímero que é a típica representação da borracha. Através de um
tratamento industrial, eliminam-se do coágulo as impurezas e submete-se a
borracha resultante a um processo denominado vulcanização, resultando a
eliminação das propriedades indesejáveis. Torna-se assim imperecível,
resistente a solventes e a variações de temperatura, adquirindo excelentes
propriedades mecânicas e perdendo o carácter pegajoso. A semente da seringueira
é rica em óleo e, por ser rica em nutrientes é usada na fabricação de
suplementos alimentares. Os grupamentos indígenas ainda utilizam as sementes da
seringueira como alimento.
O desenvolvimento tecnológico e a Revolução Industrial, na Europa, foi
o estopim que fizeram da borracha natural, até então um produto exclusivo da
Amazônia, um produto muito procurado e valorizado, gerando lucros e dividendos
a quem quer que se aventurasse neste comércio. Desde o início da segunda metade
do século XIX, a borracha passou a exercer forte atração sobre empreendedores
visionários. A atividade extrativista do látex na Amazônia revelou-se de
imediato lucrativa. A borracha natural logo conquistou um lugar de destaque nas
indústrias da Europa e da América do Norte, alcançando elevado preço no mercado.
Daí a diversidade de pessoas vindas ao Brasil na intenção de conhecer a
seringueira e os métodos de trabalho e processos de extração, a fim de também lucrar
de alguma forma com esta riqueza. A partir da extração da borracha surgiram várias
vilas e povoados, que depois foram transformados em radiantes cidades. As cidades de Belém e Manaus, passaram então por importante processo desenvolvimento e transformação social e arquitetônica de urbanização.
O ciclo da borracha representou um
momento da história econômica e social do Brasil, relacionado à exploração do
trabalho na Amazônia, com a extração de látex da seringueira e comercialização
da borracha. Teve o seu centro na região amazônica, e proporcionou expansão da
colonização, atração de riqueza, transformações culturais, sociais,
arquitetônicas, e impulso ao crescimento de Manaus, Porto Velho e Belém, até
hoje capitais e maiores centros de desenvolvimento de seus respectivos Estados,
Amazonas, Rondônia e Pará. Manaus do ponto de vista econômico foi a segunda
cidade do Brasil, depois de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, a
introduzir a eletricidade na iluminação pública, criando viabilidade para a
comunicação, o bonde elétrico. No mesmo período, foi criado o território
federal do Acre, atual Estado do Acre, cuja área foi adquirida da Bolívia, por
meio da compra no valor de 2 milhões de libras esterlinas, em 1903. O ciclo da
borracha ocorreu entre 1879-1912, com sobrevida entre 1942 e 1945, durante a formação do mercado bélico globalizado da 2ª guerra mundial.
A ideia de construir uma ferrovia
nas margens dos rios Madeira e Mamoré surgiu na Bolívia, em 1846. Inicialmente
optava pela via da navegação fluvial, subindo o rio Mamoré em território
boliviano e depois pelo rio Madeira, no Brasil. Mas o percurso fluvial tinha
grandes obstáculos naturais, como vinte belas cachoeiras que impediam a
navegação. assim se cogitou a construção de estrada de ferro que cobrisse por
terra o trecho topográfico. Em 1867, no Brasil, também visando encontrar algum
meio de comunicação que favorecesse o transporte da borracha, os engenheiros
José e Francisco Keller organizaram expedição, explorando a região das
cachoeiras do rio Madeira para delimitar o melhor traçado, visando também à
instalação de uma ferrovia. Em 1869, o engenheiro estadunidense George Earl
Church obteve do governo da Bolívia a concessão para criar e explorar uma
empresa de navegação que ligasse os rios Mamoré e Madeira. Mas, vendo as
dificuldades reais desta empreitada, os planos foram definitivamente mudados
para a construção de uma ferrovia. As negociações avançaram e, ainda em 1870, o
mesmo George Church recebe do governo brasileiro a permissão para construir uma
ferrovia ao longo do percurso das cachoeiras do Rio Madeira.
Em 1927, quando Henry Ford anuncia
que sua empresa tinha adquirido, na Amazônia brasileira, uma concessão do
tamanho de Connecticut para cultivar borracha e construir uma cidade em plena
selva, a imprensa norte-americana celebrou o evento como o encontro de duas
forças paralelas irresistíveis: a invenção do trabalho em cadeia e o triunfo de
novas normas de produção, e o processo civilizatório da maior bacia fluvial do
planeta, irrigando nove países com um terço do continente sul-americano, uma
zona selvagem e plena de vida que as águas que margeiam o território comprado
por Ford continham mais espécies de peixes que todos os rios da Europa
reunidos. Para a revista Time (1927),
não havia dúvida que o sistema de produção de Ford aperfeiçoaria a produção de borracha a
cada ano “até a completa industrialização de toda a floresta”. Segundo o Washington Post, Ford levaria à floresta
“a magia do homem branco”, isto é a ideologia do trabalho (cf. Braga, 1988; Braga Neto, 2002), e não somente “a borracha, mas os
seringueiros em si mesmos” (1931).
De 1927 a 1945, quando cedeu sua
parcela ao governo brasileiro, o industrialista Henry Ford gastou dezenas de milhões de dólares para
construir duas cidades norte-americanas em plena selva amazônica; a primeira foi
abandonada depois da destruição de uma plantação por um parasita vegetal. Seus
habitantes gozavam de todas as vantagens da civilização: praças, calçadas,
saneamento, hospitais, gramados, cinemas, piscinas, terrenos de golfe e, claro,
carros da Ford para passear nas ruas pavimentadas. Em dezembro de 1930, dois
meses depois da radicalização política que tinha levado Getúlio Vargas ao
poder, uma revolta explode em Fordlândia, sob o slogan “O Brasil para os brasileiros. Morte aos norte-americanos”,
os trabalhadores saquearam parte das instalações e fizeram valer suas
reivindicações. Os executivos estadunidenses não ignoram que, para seu
empregador, a organização dos trabalhadores constituía “o maior flagelo que o
planeta sofreu”. Eles obtiveram o apoio das forças armadas brasileiras, e como
resultado da ação os manifestantes foram demitidos, os pequenos comércios vizinhos
foram fechados. Depois, a vez da natureza se revoltar. A Fordlândia parecia
amaldiçoada, não somente em razão do desastre dos primeiros anos, mas também,
uma vez que a ordem foi mais ou menos assegurada, em razão da recusa obstinada
imposta pela natureza da vegetação à economia com a transplantação da brigada corporativa e militarizada fordista.
Henry
Ford (1863-1947) foi empresário e engenheiro mecânico norte-americano,
fundador da Ford Motor Company, autor dos livros Minha Filosofia de Indústria
e Minha Vida e Minha Obra, e o primeiro empresário a aplicar a montagem
em série de forma a produzir em massa automóveis em menos tempo e a um menor
custo. A introdução do modelo Ford T revolucionou os transportes e a indústria
dos Estados Unidos da América. Ford foi um inventor prolífico e registrou 161
patentes nos Estados Unidos. Como único dono da Ford Company, ele se tornou um
dos homens mais ricos e reconhecidos do mundo ocidental. No dia 16 de junho de
1903, dia da fundação da Ford Motor Company, foi investido um capital de US$
150 000, de 12 sócios, sendo que US$ 28 000 foram investidos pelo próprio Ford,
com então 40 anos de idade. A ele é atribuído o “fordismo”, isto é, a produção
em grande quantidade de automóveis a baixo custo por meio da utilização do
artifício reconhecido como “linha de montagem”, o qual tinha condições de
fabricar um carro a cada 98 minutos, além dos “altos salários” oferecidos a
seus operários — notavelmente o valor de 5 dólares por dia, adotado em 1914.
O
intenso empenho de Henry Ford para baixar os custos resultou em muitas
inovações técnicas e de negócios, incluindo um sistema de franquias que
instalou uma concessionária em cada cidade da América do Norte, e nas maiores
cidades em seis continentes. Ford deixou a maior parte de sua grande riqueza
para a Fundação Ford, mas providenciou para que sua família pudesse controlar a
companhia permanentemente. Ford foi resguardado como um pacifista durante boa
parte da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e na década seguinte ficou conhecido
como notório antissemita, publicando uma série de quatro livros chamados The
International Jew. Ford criou um sólido sistema de publicidade em Detroit
para garantir que cada jornal transmitisse notícias e anúncios sobre o novo
produto. A rede de concessionários locais de Ford tornou o carro onipresente em
praticamente todas as cidades da América do Norte. Como revendedores
independentes, as franquias enriqueceram e fizeram a propaganda não apenas de
Ford, mas também do próprio conceito de automobilismo; clubes locais de
automóveis surgiram para ajudar novos motoristas e para explorar o campo.
Ford
foi sempre ávido para vender aos fazendeiros, que viram no veículo um
dispositivo comercial para ajudar em seus negócios. As vendas subiram
rapidamente - vários anos tiveram 100% de lucros em relação ao ano anterior.
Sempre na busca de maior eficiência e menores custos, em 1913 Ford introduziu a
montagem em esteiras em movimento nas suas instalações, o que permitiu um
enorme aumento da produção. As vendas ultrapassaram 250 000 unidades em 1914.
Por volta de 1916, tendo o preço baixado para US$ 360,00 para os carros de
passeio básicos, as vendas atingiram 472 000 unidades. Em 1918, metade dos
carros na América do Norte eram Modelos T. A alta produção conseguida pelo
sistema de montagem da Ford tem como característica marcante a escolha de uma única
cor de veículo, que era preta. Desta forma, ele conseguia montar os veículos
sem ter que diferenciar o processo de pintura. Existe uma frase famosa que Ford
escreveu em sua autobiografia sobre a escolha da cor do veículo: “O cliente
pode ter o carro da cor que quiser, contanto que seja preto”.
Antes
do desenvolvimento da linha de montagem, que exigia a cor preta por sua secagem
mais rápida, o Modelo T era disponível em outras cores, incluindo o vermelho.
Esse esquema era veementemente defendido por Henry Ford, e a produção continuou
até 1927; a produção final total foi de 15 007 034 unidades. Esse foi um
recorde que permaneceu por 45 anos. Em 1918, o presidente Woodrow Wilson (1856-1924)
pediu pessoalmente a Ford para que se candidatasse ao Senado dos Estados
Unidos, de Michigan, como um democrata. Embora a nação estivesse na guerra,
Ford concorreu como um candidato pacífico e um forte apoiador da proposta Liga
das Nações. Em dezembro de 1918, Henry Ford transferiu a presidência da Ford
Motor Company para seu filho Edsel Ford. Henry, entretanto, retinha a
autoridade de decisão final e algumas vezes revogou as decisões de seu filho.
Henry e Edsel compraram todas as ações restantes de outros investidores, dando
deste modo à família exclusivo domínio sobre a companhia. Em meados da década
de 1920, as vendas do Modelo T começaram a declinar devido à concorrência
crescente. Outros fabricantes de automóveis ofereciam planos de pagamentos
pelos quais os clientes podiam comprar seus carros, que comumente incluíam características
mecânicas mais modernas e estilos não disponíveis no Modelo T. Apesar dos
estímulos de Edsel, Henry recusava-se firmemente a incorporar novas
características ou a criar um plano de crédito para os compradores.
A história social do Exército da Borracha
começou oficialmente em 1942. O ataque japonês à base militar de Pearl Harbor,
no final de 1941, fez com que os Estados Unidos (EUA) entrassem definitivamente
na 2ª guerra mundial . Mas um insumo importante para a indústria bélica e
comercial dos norte-americanos, o látex, estava sob poder nipônico e a produção
inglesa na Malásia estava comprometida. Foi neste ponto que o Brasil ganhou
importância, já que o país possuía um estoque de 300 mil árvores seringueiras
prontas para produzir. Em março, o presidente Getúlio Vargas finalmente
escolheu sua posição no campo de batalha e firmou um acordo com o presidente
dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, para fornecimento de borracha aos
Países Aliados. Só faltava a mão de obra. Para reunir e redirecionar estes
trabalhadores aos seus postos no “front” amazônico, o governo criou o Serviço
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia e a Comissão Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia. O cartunista suíço
Jean-Pierre Chabloz foi contratado para desenvolver imagens através de cartazes e folhetos que
seriam usados com o objetivo de persuasão ideológica econômica no recrutamento dos trabalhadores.
O extrativismo descontrolado da
borracha alimentada pelo “aquecimento”, na falta de melhor expressão, da
indústria automobilística dos Estados Unidos da América estava em vias de
provocar um conflito internacional, onde os trabalhadores brasileiros cada vez
mais adentravam nas florestas do território da Bolívia em busca de novas
seringueiras, gerando conflitos e lutas por questões da fronteira no final do
século XIX. Sendo chamados de Questão doAcre, exigiram a presença do exército
liderado pelo militar José Plácido de Castro. Então houve a intervenção do
diplomata Barão do Rio Branco e do embaixador Assis Brasil, em parte
financiados pelos barões da borracha, que culminou na assinatura do Tratado de
Petrópolis em novembro de 1903. Com o fim da contenda com a Bolívia, efetivado com
a compra do território, garantiu-se o efetivo controle e a posse das terras e
florestas do Acre do Brasil, em troca das terras de Mato Grosso e do
compromisso de construir uma ferrovia que superasse o trecho encachoeirado do
rio Madeira possibilitando o acesso das mercadorias e da borracha bolivianas,
aos portos brasileiros do Atlântico, inicialmente Belém do Pará, na foz do rio
Amazonas.As cidades deste novo Estado
se transformaram de forma simbiótica nos personagens centrais da Questão
Acre: a capital, Rio Branco, e dos municípios Assis Brasil e Plácido de
Castro.
O que viria a ser constituído como
Estado do Acre era parte integrante do território boliviano desde 1750. A
partir do início ciclo da borracha, em 1879, deu-se nessa região a mobilização
e a busca intensa por látex e isto fez com que os seringueiros do Brasil
subissem o rio Purus, iniciando, então, o processo de povoamento do Acre. No
ano de 1898 o Brasil reconheceu que o atual estado do Acre pertencia à Bolívia,
porém os bolivianos eram considerados incapazes de povoá-lo dado o seu difícil
acesso. Foi naquele mesmo ano que a Bolívia enviou uma missão de ocupação ao
Acre, causando, um ano depois, uma revolta armada dos colonos brasileiros que
ali estavam em um grande número. Essa rebelião contou com o apoio do Estado do
Amazonas. Após esse episódio, a Bolívia organizou uma missão militar de
ocupação da região, mas foram impedidos pelos brasileiros que ainda se
encontravam no local. A Revolução Acreana teve como representação uma revolta
popular contra a Bolívia, quando o território é proclamado República do Acre,
com Luís Gálvez Rodríguez de Arias, finalizando em 1903, com a assinatura do
Tratado de Petrópolis, com anexação da região ao Brasil.
Os bolivianos que ocupavam a
região foram expulsos e o governador do Amazonas, Ramalho Júnior, organizou uma
invasão do território liderada pelo espanhol Luiz Gálvez Rodríguez de Arias. A
expedição de Gálvez declarou o Acre como uma República independente em 1899.
Mas o Brasil reconhecia o Acre como território boliviano, enviou então uma
tropa para dissolver a Revolução Acreana. A Bolívia decidiu reagir, organizou
também uma expedição militar para conquistar o território. Foram, no entanto,
os seringueiros que trabalhavam no local que impediram o avanço dos bolivianos.
Para completar, o governador Silvério Néri, do Amazonas, enviou outra expedição
de defesa que declarou pela segunda vez o Acre como uma República independente,
em 1900. Rodrigo Carvalho assumiu o cargo de presidente. Antes das batalhas,
representantes dos governos do Brasil e da Bolívia se reuniram para assinar no
dia 21 de março de 1903 um tratado de paz inicial. Ao final do mesmo ano, em 17
de novembro, o tratado definitivo foi assinado. O Tratado de Petrópolis
estabeleceu o fim do confronto por terras entre brasileiros e bolivianos pelo
território do Acre.
A negociação de paz foi muito
bem conduzida pelo ministro Barão do Rio Branco e resultou na concessão, por
parte da Bolívia, da região acreana. Em troca, o Brasil cedeu com o acordo
firmado, uma parcela do território do Mato Grosso e ainda pagou dois milhões de
libras esterlinas. A Bolívia ainda requisitou a construção da ferrovia
Madeira-Mamoré para permitir o escoamento da produção, especialmente marcada
pelo extraordinário boom da borracha.
No ano de 1904 o Tratado de Petrópolis foi regulamentado por lei federal e o
Acre passou a fazer parte oficialmente do território brasileiro, mas somente em
1962 é que o Acre foi considerado Estado brasileiro. Somente em 1962, durante o
governo do Presidente João Goulart, é que o Acre foi elevado à condição de
Estado, em razão da região ter atingido o nível de
arrecadação fiscal exigido pela constituição de 1946. As cores da bandeira do
Acre são, o verde, que representa as matas, o amarelo, das riquezas minerais, e
o vermelho, como homenagem aos mortos nos confrontos com os bolivianos pela
disputa da área.
Luís Galvez que, trabalhando então
para o cônsul boliviano em Manaus, descobriu que os bolivianos estavam em
tratativas de passar o controle do território do Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate de Nova York,
que tinha o milionário Withridge como seu acionista principal. Era um contrato
do tipo conhecido como chartered companies, em voga na África naquela época,
pelo qual uma empresa concessionária qualquer, européia ou americana,
praticamente assumia as funções soberanas sobre certa área que ela desejava
explorar economicamente. Detinha não só o monopólio sobre a produção e
exportação como também auferia os direitos fiscais, mantendo ainda as tarefas
de polícia local. Concretizado o contrato, o Bolivian Syndicate associado a U.S. Rubber Co., que compraria toda
a produção da borracha atrairia para a região amazônica o poder dos Estados
Unidos que, em última instância, assumiriam, ainda que indiretamente, a
proteção dos interesses de uma empresa norte-americana no Acre que gozaria de
privilégios. Portanto, qualquer desavença que ocorresse entre os seringueiros e
os interesses do Bolivian Syndicate,
oporia o Brasil aos Estados Unidos da América. Dois acontecimentos vieram então
atrapalhar aqueles planos dos bolivianos: a rebelião acreana de Plácido de
Castro e a ação diplomática do barão de Rio Branco, que considerou a concessão
boliviana ao Syndicate como uma “monstruosidade legal”.
Neste período, uma série de
conflitos fez com que esta região fosse proclamada autônoma por três vezes como
Estado Independente, embora apenas reconhecida pelo governo brasileiro. Como na
primeira vez, os revoltosos ainda contaram com o apoio do governador do
Amazonas, Silvério Neri, que enviou uma nova expedição para a ocupação, que foi
denominada como a Expedição dos Poetas,
onde proclamaram a Segunda República do Acre em novembro de 1900. Porém, desta
vez, quem reagiu foi a própria tropa militar boliviana, que colocou fim à República
um mês depois. Em 6 de agosto de 1902, no entanto, o militar brasileiro Plácido
de Castro foi enviado para o Acre pelo governador do Estado do Amazonas e
iniciou a Revolução Acreana. Os rebeldes tomaram toda a região e implantaram a
Terceira República do Acre, agora com o apoio do presidente do Brasil, Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919) que governou São Paulo
por três mandatos entre 1887 e 1888, como presidente da província, como quinto
presidente do estado de 1900 a 1902 e como nono presidente do estado de 1912 a
1916. Elegeu-se duas vezes presidente da República, cumprindo integralmente o
primeiro mandato (1902 a 1906), mas faleceu antes de assumir o segundo mandato que deveria se estender de 1918 a 1922, e do ministro do exterior, Barão do Rio Branco (1845-1912). A Bolívia
tentou reagir novamente, mas antes que ocorresse alguma batalha, o Barão do
Rio Branco intermediou diplomaticamente propondo um acordo entre o Brasil e a
Bolívia, que ficou reconhecido como o Tratado de Petrópolis.
A rápida revolução dos transportes
nos países Europeus e nos Estados Unidos da América, paralela à expansão da eletricidade, tinha
necessidade de borracha, que naquela época saía hegemônica da Amazônia, sendo
que 60% eram extraídas do território acreano. Obviamente que o governo andino não
via com bons olhos aquela competitividade dos brasileiros. Para os bolivianos,
a situação praticamente repetia o que ocorrera, analogamente na década de 1870
com a penetração de trabalhadores chilenos na área do Atacama atrás do salitre.
O que provocara a Guerra do Pacífico
(1879-1883), que fez com que a Bolívia, derrotada, perdesse a sua saída para o
oceano Pacífico, tendo que o isolamento de comunicação dos oceanos do mundo.
José Paravicini, o embaixador boliviano no Rio de Janeiro, determinou que fosse
fundado, em 3 de novembro de 1899, um posto alfandegário em Puerto Alonso, para
se fazer presente na área. Ato de soberania nacional que, se bem que legítimo,
irritou profundamente os seringueiros brasileiros que cercaram o posto e
expulsaram os funcionários dali. Neste entremeio, chega ao Acre o aventureiro
Luís Galvez, dito “o Imperador do Acre”, apoiado por Ramalho Júnior, o governador
do Estado do Amazonas, que decidiu proclamar um Estado independente do Acre no
dia 14 de julho de 1901. Cada vez ficava mais evidente de que a Questão do Acre repetia politicamente o ocorrido com Atacama. A capital La Paz
precisava agir para manter o território em mãos nacionais. Enviando uma força
para lá, engendraram outro caminho.
Quando a extensão ou comunicação da
guerra ao Pacífico e Indico, interrompeu o fornecimento da borracha asiática as
autoridades norte-americanas entraram em pânico. O presidente Franklin Roosevelt
nomeou uma comissão para estudar a situação dos estoques de matérias-primas
essenciais para a guerra. As atenções do governo norte-americano se voltaram
então para a Amazônia, grande reservatório natural de borracha, com seringueiras
prontas para a produção de milhares de toneladas de borracha anuais, mais que as
necessidades bélicas norte-americanas. Entretanto, só havia na região cerca de
35.000 seringueiros em atividade com uma produção fordista de 16.000-17.000
toneladas na safra de 1940-1941. Para alcançar esse objetivo ocorreram intensas
negociações entre brasileiros e norte-americanos que culminaram com a assinatura
dos Acordos de Washington. O governo norte-americano passaria a investir no financiamento
da produção de borracha amazônica, em contrapartida o governo brasileiro
caberia o encaminhamento de milhares de trabalhadores para os seringais, no que
passou a ser tratado como “um heroico esforço de guerra”. Somente no Estado do Ceará cerca de 30.000
flagelados da seca de 1941-42 estavam disponíveis para serem enviados
imediatamente para os seringais. Mesmo que de forma pouco organizada oDepartamento Nacional de Imigração ainda
conseguiu enviar para a Amazônia, durante o ano de 1942, quase 15.000 pessoas,
sendo a metade de homens aptos ao trabalho. Um exército de retirantes convocado
pelo Estado reviveu os tempos de escravidão em plena década de 1940. Enquanto a
2ª guerra mundial espalhava-se pela Europa e Ásia, perto de 55 mil brasileiros
enfrentaram doenças fatais, passaram fome e estavam presos aos domínios dos
coronéis donos dos seringais na região amazônica. Muitos desses “soldados da
borracha” deram a vida, em busca de sonhos e de trabalho para alimentar a indústria
bélica durante o conflito de terras e fornecer insumos para armas e pneus.
Bibliografia
geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, A Racionalização Fordista no Brasil: Efeitos Econômicos e Políticos na
Reprodução do Trabalho. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 1988; BRAGA NETO, Ruy Gomes, A Nostalgia do Fordismo: Elementos para uma Crítica da Teoria Francesa da Regulação. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade de Campinas, 2002; VERA, Loreto Correa & VERA, Cristián Garay, “Bolivia
en dos Frentes: Las Negociaciones de los Tratados de Acre y de límites con Chile”.
In: Revista Universum, volume 1, 2007; SOUZA, Márcio, História da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2009; LIMA, Frederico Alexandre Oliveira, Soldados da Borracha: Das Vivências do Passado às Lutas Contemporâneas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Instituto de Ciências Humnas e Letras. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013; COSTA, Francisco Pereira, Para a Chuva não Beber o Leite. Soldados da Borracha: Imigração, Trabalho e Justiças na Amazônia, 1940-1945. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; CARVALHO, Terciane
Sabadini, Uso do Solo e Desmatamento nas Regiões da Amazônia Legal Brasileira:
Condicionantes Econômicos e Impactos de Políticas Públicas. Tese de
Doutorado. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional. Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas
Gerais, 2014;CARVALHO, Terciane
Sabadini; MENDES, Lidiane
Álvares, Na Esteira da Loucura: Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro - Práticas
e Representações na Ala Feminina. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em História. Manaus: Universidade
Federal do Amazonas, 2016; SILVA, Maria Liziane Souza, A Batalha da Borracha: Os Migrantes Nordestinos - Memória e Imaginário. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Geografia. Porto Velho: Fundação Universidade Federal de Rondônia, 2018; PARENTE, Izabel Cavalcante Ibiapina, O Amazonismo e as Representações sobre os Seringueiros e a Natureza Amazônica. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Instituto de Ciências Sociais. Departamento de Antropologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2018; entre outros.
“O dinheiro não traz felicidade - para quem não sabe o que fazer com ele”. Machado de Assis
A classe média brasileira, criada pela expansão do emprego público e pela criação de empregos privados em geral, tem sido representada pelos trabalhadores que prestam serviços diretamente aos grupos empresariais e por extensão das elites econômicas e elites políticas, como os profissionais com ensino superior empregado em funções medianas em empresas. Os profissionais com ensino superior, funcionários públicos em empregos bem situados, composto por médicos do sistema público, advogados e profissionais liberais concursados. Os funcionários de escritório mais requalificados, de empresas privadas ou estatais, composto por diretores e supervisores de colégios privados e escolas públicas, bancários de postos intermediários, delegados de polícia em início de carreira, enfermeiras experientes, etc. Enfim, inclusive pelos trabalhadores manuais de maior requalificação, os operários especializados e semiespecializados de indústrias públicas e privadas, composto por mecânicos, eletricistas, encanadores, metalúrgicos, fresadores, instrumentistas, inspetores de qualidade, torneiros mecânicos e de cargos recém-criados de inovação.
Na esfera da vida social a luta
política é uma das questões que sempre marcaram a dialética entre capital e
trabalho. Mas a esfera social onde a ideologia manifesta mais explicitamente
seu poder de enviesamento é, com certeza, o campo da atividade intelectual. O
sujeito da ação política é alguém que quer conhecer o quadro em que age; que
quer poder avaliar o que pode e o que não pode fazer. Mas, ao mesmo tempo, é um
sujeito que depende, em altíssimo grau, de motivações particulares, sua e dos
outros para agir. A política é levada,
assim, a lidar com duas referências contrapostas, legitimando-se através da
universalidade dos princípios e viabilizando-se por meio das motivações
particulares. Mas vale lembrar que os caminhos trilhados na política (ou na
universidade) evitam a opção por uma dessas linhas extremadas: o doutrinarismo,
o oportunismo crasso, o cinismo ostensivo ou a completa e absurda indiferença.
São frequentes as combinações de elementos de tais direções, porém combinados
em graus e dimensões diversas. E é nessa combinação
hábil que se enraíza a ideologia política. Sua atividade interpretativa também
pode ser criativa, de modo que ao interpretar um caso, determinado ator social
aplicaria e criaria um direito novo, praticamente legislando.
As três dimensões da atividade
acadêmica, ensino, pesquisa e extensão, vêm se tornando
dependentes de um processo burocrático incontrolável, submetido a normas e
dependências que conduz a distorções com a plena identidade da atividade de
pesquisa de Tese de Titular em Sociologia que se desenvolve por ação complementar dos
docentes, em ambientes de ensino e de caracterização muito individualizada. Os
ambientes de pesquisa que identificam um nível elevado e próprio dessa
atividade acadêmica são raros. O departamento é, insofismável e claramente, um
órgão estanque, burocrático e corporativo por excelência, organizando-se em
núcleos ou laboratórios por meio de projetos específicos, diretamente, com as
agências de financiamento públicas. Nos órgãos públicos o padrão de
funcionalidade burocrática tem identidade própria. O sujeito da ação funcional,
individual ou coletivamente, é um agente do poder público, tanto na atividade
meio como na atividade fim. O poder público é uma instituição em nome da qual exerce uma administração regida por leis, normas,
regulamentos e códigos de conduta que em tese devem ser cumpridos, mas na realidade social em que vivemos, a prática, na teoria é outra.
Não
raras vezes, no âmbito comportamental, a noção de poder público assume uma
indefinição conceitual, carregada de subjetividades culturais à medida de atribuições e
responsabilidades. A forma de comportamento na dinâmica burocrática,
administrativa e acadêmica, das universidades se reporta em grande parte, às
competências distribuídas e amparadas no sistema normativo instituído. Os
conflitos ditos de competência e desempenho resultam do confronto da autoridade
com uma forma de comportamento não desejada, porém amparada em normas, regras e
leis. Uma das consequências é que a responsabilidade pelos resultados de cada
um é sempre neutralizada ou desculpada a partir do contexto em que cada um de
nós atuou. Consequentemente muito pouca responsabilidade individual é atribuída
a cada um de nós, do ponto de vista institucional no caso das universidades. A
sociedade brasileira rejeita a avaliação
e a universidade padece com ela, geralmente vista como algo negativo, como representação
simbólica de uma ruptura de um universo aparentemente amigável, homogêneo e
saudável, no qual a competição, vista como um mecanismo social profundamente
negativo encontra-se ausente. Tendo em vista que, na universidade não há
“premiação” para o bom professor em nenhum aspecto, mas aqueles que
fazem pesquisa e orientam alunos, fazem porque querem fazer, porque podem
fazê-lo, não porque a universidade lhes gratifica.
Isto
quer dizer que através dos exercícios de abstinência e de domínio que
constituem a askesis necessária, o
lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se
pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem
definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz
e do que é capaz de fazer – no cerne da constituição do sujeito moral. E,
finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela
soberania do indivíduo sobre si mesmo. Mas essa soberania amplia-se numa
experiência onde a relação assume a forma, não somente de uma dominação, mas de
um gozo sem desejo e sem perturbação. É possível dizer que não há idade para se
ocupar consigo. Mas uma espécie de idade de ouro na chamada “cultura de si”,
sendo subentendido com isso, evidentemente, que esse fenômeno só concerne aos
grupos sociais. Ou seja, aqueles que querem salvar-se devem viver cuidando-se
sem cessar. Ademais, é conhecida a amplitude ética tomada em Sêneca pelo tema
da aplicação a si próprio: é para consagrar-se a esta que é preciso renunciar
às outras ocupações: poder-se-ia desse modo tornar-se disponível para si
próprio. Sêneca dispõe de um vocabulário para designar as diferentes formas que
o “cuidado de si” deve tomar e a pressa com a qual se procura unir-se a si
mesmo. Apressa-te, pois para o objetivo: - “dize adeus às esperanças vãs,
acorre em tua própria ajuda se te lembras de ti mesmo, enquanto ainda é
possível”.
Pode-se
também interromper de tempos em tempos as próprias atividades ordinárias e fazer
um desses retiros que Caio Musônio Rufo, célebre filósofo estoico do primeiro
século e professor de Epiteto, dentre outros, recomendava vivamente: eles
permitem ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar
diante de si o conjunto da vida transcorrida, familiarizar-se, através da
leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar,
graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional.
É possível ainda, no meio ou no fim da própria carreira, livrar-se de suas
diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos
ficam aparentemente apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, no
trabalho filosófico ou, como referia Spurrima, na calma de uma existência
agradável, “à posse de si próprio”. Esse tempo não é vazio: ele é povoado por
exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas em seu dia a dia. Ocupar-se de si não é
uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, sem os excessos da chamada “corpolatria”, os regimes de saúde, os
exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida quanto possível, as
necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão certamente relidas, a
rememoração das verdades que se sabe, mas que convém apropriar-se melhor. Marco Aurélio nos dá um exemplo de anacorese em si próprio, de reativação
de princípios e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar
com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas.Esse
tempo não é vazio, ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas,
atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados
com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a
satisfação, tão medida quanto possível, as necessidades. Existem as meditações,
as leituras, as anotações que se toma sobre livros, ensaios ou conversações
ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se
sabe, mas de que convém apropriar-se ainda melhor. Marco Aurélio fornece,
assim, um exemplo de “anacorese em si próprio”: trata-se de um longo trabalho
de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a
não deixar-se irritar com os outros, nem com os acidentes, nem tampouco com as
coisas. Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a
si mesmo. Ela não constitui um exercício comumente visto da solidão. Em verdade, o exercício da
leitura, da reflexão e da escrita se tratava de uma verdadeira prática. E isso, em vários e múltiplos sentidos.
Toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das
escolas, do ensino técnico e dos profissionais da direção da alma. Ela encontrava,
facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de
amizade ou de obrigação. Quando, no exercício do “cuidado de si”, faz-se apelo
ao outro, o qual se advinha que possui aptidão para dirigir e para aconselhar,
faz-se uso de um direito através do hábito, da cultura, da formação. E é um
dever que se realiza quando se proporciona ajuda ao outro ou quando se recebe
com gratidão as lições que ele pode lhe dar. Acontece também do jogo entre os
cuidados de si e a ajuda do outro inserir-se em relações preexistentes às quais
ele dá uma nova “coloração” e um calor maior. O cuidado de si – ou os cuidados
que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então
como uma intensificação das relações sociais. Sêneca dedica um consolo à sua
mãe, no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar
essa infelicidade atual e, talvez,
mais tarde, infortúnios maiores. O “cuidado de si” aparece, portanto, intrinsecamente
ligado a uma espécie de serviço da alma que comporta a possibilidade de um jogo
de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas, de
interpretação e de camaradagem, de conflito e sociabilidade.
A
mobilidade é mais frequentemente medida de forma quantitativa em termos de
mudança de mobilidade econômica, tais como mudanças na renda ou riqueza. A
ocupação é outra medida utilizada na pesquisa de mobilidade, o que geralmente
envolve tanto a análise quantitativa quanto qualitativa dos dados. No entanto,
outros estudos podem concentrar-se na classe social. A mobilidade pode ser
intrageracional, dentro da mesma geração ou entre gerações, entre uma ou mais
gerações. Vale lembrar que a classe média brasileira está plenamente integrada
nos modernos padrões de consumo de massas. Todavia, estatisticamente a
distribuição das classes sociais no Brasil é distorcida pela desigualdade
social e econômica, na medida em que os 10 % mais ricos da população nacional,
quase toda parcela da classe alta chegavam, em 1980, a controlar 50,9% de toda
a renda disponível no país. Se somarmos a esse contingente a parte mais rica da
classe média brasileira, ou seja, outros 10 % da população nacional, notaremos
que essa parcela de apenas 20% controlaria quase 67% de toda a renda nacional.
A mobilidade social é dependente da
estrutura de status sociais e
ocupações em uma dada sociedade. A extensão de diferentes posições sociais e a
maneira pela qual elas são interdependentes e se relacionam fornecem a
estrutura social global de tais posições. Estas dimensões diferentes de
mobilidade social podem ser classificadas em termos de tipos de “capital” que
contribuem para mudanças na mobilidade diferentes. Adicionando-se a isso as
diferentes dimensões da estrutura econômica, as formas de prestígio e poder
temos o potencial de complexidade de determinado sistema de estratificação
social. Além disso, em que sociedade pode ser vista como variáveis
independentes que podem explicar diferenças na mobilidade social, em diferentes
tempos sociais e lugares, em diferentes sistemas de estratificação. A tese central do nacionalismo desenvolvimentista tem como representação social o desenvolvimento econômico e a consolidação da nacionalidade constituindo dois aspectos do mesmo processo emancipatório. O desenvolvimento dependeria, assim, de uma consciência nacional mobilizada em torno de uma vontade no plano global de desenvolvimento. Na esfera cultural, a retórica do início dos anos 1960, tanto de “direita” como de “esquerda”, para lembrarmo-nos da ciosa interpretação de Norberto Bobbio, foi demarcada pelo uso corrente das categorias sociais “povo” e “nação”, ou nacional- popular. Os movimentos sociais no caso emblemático do Centro Popular deCultura (CPC), além do discurso anti-imperialista adotaram uma postura vanguardista, de que a autêntica cultura popular é aquela produzida por artistas e intelectuais que optaram por ser povo - enquanto a cultura do povo era considerada arcaica e atrasada. Neste
sentido é que compreendemos as variáveis que contribuem como intervenientes
para a avaliação do rendimento, ou riqueza, e quando afetam o status, classe social e a
desigualdadeno âmbito da mobilidade
social. Estes incluem sexo ou gênero, raça ou etnia e idade. Na modernidade o “capital cultural”
representa o processo de distinção entre os aspectos econômicos da classe e
bens culturais poderosos, descritos por P. Bourdieutrês tipos que situam uma pessoa em uma
determinada categoria social: o capital econômico; o capital social e o capital
cultural. O capital econômico inclui recursos econômicos, tais como dinheiro,
crédito e outros bens materiais. O capital social inclui recursos que se
alcançam com base nos membros do grupo, redes de influência, relações e apoio
de outras pessoas. O capital cultural é uma vantagem que uma pessoa tem que
lhes dá um status mais elevado na
sociedade, como a educação, as habilidades, ou qualquer outra forma de
reconhecimento. Normalmente, as pessoas com todos os três tipos de capital têm
um status elevado na sociedade, tendo em vista que a cultura da classe social
superior é mais orientada para o raciocínio formal e o pensamento abstrato. Ele
também descobriu que o ambiente em que a pessoa se desenvolve tem um grande
efeito político sobre os recursos culturais que uma pessoa vai ter a seu
dispor.
A
desigualdade social reproduzida através da classe social está relacionada ao
poder aquisitivo, ao acesso à renda, à posição social, ao nível de escolaridade
e ao padrão de vida existente entre as frações da classe dominante que controlam
direta ou indiretamente o Estado, através de efeitos de poder político, na
educação e trabalho, reproduzindo inexoravelmente uma estrutura social implantada
e difundida pelos métodos de trabalho e de produção no âmbito das esferas sociais
e de poder dominante. A divisão da sociedade em classes é consequência dos
diferentes papéis que os grupos sociais têm no processo de produção, ocupado
por cada classe que depende o nível de fortuna e de rendimento, o gênero de
vida e numerosas características culturais das diferentes classes. Classe
social define-se como conjunto de agentes sociais nas mesmas condições no
processo de produção e que têm afinidades eletivas políticas e ideológicas.
E
esse problema não estava relacionado exclusivamente ao trabalho manual e às
classes trabalhadoras. Basta pensarmos na referência ao capitão Hawdon, ou
Nemo, de A casa abandonada, de Charles
Dickens. O personagem era um ex-oficial do Exército que ganhava a vida fazendo
trabalhos temporários como jurista. Mas no caso de Marx, lembra Jones (2017:
357), não se tratava de pobreza no sentido comum da palavra. Em 1862, sugestão de Lassale de que a de Marx trabalhasse para ganhar
dinheiro com a condessa Von Hatzfeldt, sua companheira, foi recebida como um indizível
desrespeito ao status social deles e provocou um dos mais repulsivos insultos
de Marx. – “Imagine só! Esse sujeito, sabendo do caso americano etc. [a perda
dos rendimentos do Tribune], e
portanto da situação de crise em que me encontro, teve a insolência de
perguntar se eu cederia uma das minhas fihas à la Hatzfeldt como “dama de
companhia”. Uma justificativa para o comportamento era que isso seria determinado pela
necessidade de garantir o futuro das filhas. Em julho de 1865, admitiu: - “É
verdade que minha casa está acima de meus meios, e que temos, além disso,
vivido melhor este ano do que foi o caso antes. Mas é o único jeito de as
meninas se estabelecerem socialmente, com vistas a assegurar o seu futuro”.
As novas abordagens sociológicas em
termos de classe “c” em seguida de “nova classe média” constitui a pauta do
debate, pós-governos Lula-Dilma pelo volume dos trabalhos analíticos e estatísticos
realizados e pelo impacto de sua linha interpretativa. Não se trata apenas de
uma linha de estudo e de transformação brasileira, mas de algo que diz respeito
as dinâmicas globais. No Brasil, desde 2001, a desigualdade em termos de renda
diminuiu regularmente. A renda per capita
dos 10% mais ricos da população aumentou em média de 1,49% ao passo que a dos
mais pobres tem aumentado 6,79%. Isso num movimento oposto ao que caracterizou
o Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC), que juntos formam um grupo
político de cooperação intercontinental. Em 14 de abril de 2011, o “S” foi oficialmente
adicionado à sigla para formar o BRICS, após a admissão da África do Sul. Em consequência,
a pobreza diminuiu constantemente desde 2003. - “Estimamos que, entre 1993 e
2011, 59,8 milhões de brasileiros (o equivalente a uma République française) chegaram à condição
social de nova classe média”. Mas a mobilidade chegou mesmo a ritmos consistentes no
período conjuntural de 2003 a 2011, quando 40 milhões de brasileiros entraram
para a classe média que passou assim de 65,9 a 105,5 milhões de pessoas, ou
seja, um aumento de 60%. Segundo as previsões estatísticas, até 2014, mais 12
milhões migrariam para a classe “C” e 7,7 milhões irão para a as classes “B” e
“A”. Com exceção do Nordeste, as classes A, B e C serãode 75% da população.
- “A nova classe média brasileira é filha da combinação do crescimento com a
equidade, que difere de nossa história pregressa e daquilo que ocorre nas
últimas décadas em países emergentes e desenvolvidos onde a concentração de
renda sobe”.
Mudanças na composição orgânica da
sociedade brasileira desestabilizaram crenças e ideologias arraigadas sobre “desigualdade
social, a pobreza e a mobilidade”. De acordo com Kopper e Damo (2018), a
linguagem da “nova classe média” articulou, simultaneamente, diferentes
acepções da mobilidade econômica, refletindo-se ainda como um índice de
desigualdade social e de distribuição de renda. Neste debate, Nova Classe Média
difere em espírito da expressão “nouveau riche”, que acima de tudo discrimina a
origem das pessoas. Nova classe média não é definida pelo ter, mas pela
dialética entre ser e estar olhando para a posse de ativos e para decisões de
escolha entre o hoje e o amanhã. Eles informariam as necessidades e valores desse
novo segmento de pessoas, e sua focalização em subpopulações como um todo e da
“nova classe média” em particular: os negros, as mulheres e os jovens. A
possibilidade de proclamar o Brasil um país de “classe média” chamou a atenção
do governo federal. Foi formulado um novo de estratificação que buscava mapear
e sistematizar conceitos de classe média com vistas à sua aplicação à realidade
brasileira. A iniciativa desembocou no projeto social intitulado: Vozes da Classe Média, que
perdurou até 2015, procurando decifrar as expectativas e desejos dessa
população urbana para aperfeiçoar a formulação de políticas econômicas do Estado.
A tese da “nova classe média”
conduziu Marcelo Neri (2010) a uma rápida ascensão e queda política. Na
transição do governo Lula para o governo Dilma Rousseff, a partir de 2011, o
economista passou a participar de avaliações de programas sociais e de reuniões
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Em 2012,
assumiu a presidência do IPEA e, em março de 2013, com a saída de Moreira
Franco para a Secretaria de Aviação Civil (SAC), tornou- se ministro interino
da SAE, sendo oficializado no ano seguinte no mesmo cargo, onde deu
continuidade à agenda de pesquisas sobre classe média e introduziu novas
metodologias, como o índice de satisfação com a vida, mensurado pelo Gallup World Poll. Nesse mesmo período,
Neri foi escolhido como um dos cem brasileiros mais influentes, segundo
pesquisa anual realizada pela revista Época.
Tomando como ponto de partida o trabalho seminal de Marcelo Neri (2010), as páginas
dos jornais, dentro e fora do país passaram a escrever a crônica da “nova classe
média”. Em novembro de 2009, a revista The
Economist publicou uma reportagem de capa intitulada “Brazil takes off ”, à
luz da imagem do Cristo Redentor decolando. Imagens que antes clamavam pelo
combate à pobreza eram agora substituídas por comportadas famílias de classe
média sorridentes posando em ambientes domésticos com objetos de consumo. Outras
procuravam acentuar os contrastes e ambivalências que ainda existiam, à frente muitas
vezes de suas precárias habitações em “zonas periféricas” de cidades. Embora
não fosse unanimidade, a tese da “nova classe média” expandiu-se no circuito
midiático, político e científico.
Bibliografia
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O Horror não Está no Horror: Cinema de Gênero, Anos Lula e Luta de Classes
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