sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Heloísa & Abelardo - Trabalho & Teoria do Cavaleiro da Dialética.


                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

      Vivemos tudo, antes que a mão avara nos cortasse ao meio”. Heloísa de Argenteuil
                                                                    

              A história trágica de amor entre Abelardo e Heloísa se passa na França, no século XII, em meados da Idade Média. Filósofo e teólogo escolástico, Pierre Abélard ou Abailard, em latim Petrus Abelardus, nasceu em Le Pallet, perto de Nantes, França, por volta do ano 1079, morrendo no priorado de Saint-Marcel, próximo de Chalôns-sur-Saône, a 21 de abril de 1142. Influenciado desde cedo por Filosofia, estudou Lógica, entre 1094 e 1106, em Loches e Paris, logo entrando em conflito com a tradição conservadora de seus mestres. Foi professor em Melun, comuna francesa localizada na região administrativa da Île-de-France, no departamento Sena e Marne, Corbel, comuna francesa na região administrativa de Auvérnia-Ródano-Alpes, no departamento de Saboia e Paris, ensinando dialética, o que lhe valeu intermináveis perseguições. Isto porque, metodologicamente Abelardo defendia a abstração dos universais, opondo os conceitos de “vox”, nominalismo e “res”, realismo, o “sermo”, tradicionalmente conhecido como latim vulgar. Este latim pertencia a uma população que era muito pouco ou quase nada escolarizada, e por isso mostra um conjunto de inovações gramaticais que não seguem as normas do latim literário como função lógica do espírito. Para Abelardo, o conceito é universal, se paica aos indivíduos que participam no processo de conhecimento, representando, uma “situação” e não uma realidade. Em seus manuscritos procurou aproximar a Teologia da Lógica, ligando a trindade cristã ao conceito “Um-Alma-Mente” do neoplatonismo.
              Acreditando na capacidade da mente humana de alcançar o verdadeiro conhecimento natural e supernatural, defendia o exame crítico das Escrituras à luz da razão. Prestava atenção ao recurso técnico utilizado em relação à linguagem, suscetível a tantas interpretações quanto à diversidade dos que a empregam. Abelardo é a primeira figura do intelectual moderno. Chamaram-lhe de “cavaleiro da dialética”. Estatisticamente entre 1200 e 1400 foram fundadas na Europa 52 universidades, e 29 delas foram edificadas pelo papado. A transformação cultural gerada pelas universidades no século XIII foi reconhecida pela frase de Charles Homer Haskins: “Em 1100, a escola seguia o mestre; em 1200, o mestre seguia a escola”. Algumas dessas universidades recebiam da Igreja católica o título de “Studium Generale”, que indicava que este era um instituto de excelência internacional, levando em consideração os locais de ensino mais prestigiados do velho continente. Acadêmicos de “Studium Generale” eram encorajados a “dar cursos em outros institutos por toda a Europa, bem como a compartilhar documentos”. Esta dinâmica interdisciplinar de seu funcionamento iniciou a cultura de intercâmbio presente ainda hoje nas universidades europeias. Ipso facto, a filosofia do século XII pode ser dividida a partir do desenvolvimento da atividade filosófica que se concentrou antes e depois do nascimento das primeiras universidades. Na Idade Média este sistema orientará, por meio da espacialização do pensamento, a dialética essencial dos valores cristãos.



              Paris, a capital de l’amour, foi o palco do romance. Pedro Abelardo, nascido de família nobre em 1079 deveria seguir a profissão das armas como seus irmãos. Mas desde cedo a convicção do jovem o fez escolher os estudos de Filosofia, Teologia e Letras e seguiu uma carreira na área de Pedagogia. A educação, no século XII, era monopólio da igreja católica que estabelecia normas aos seus professores e estudantes. Uma das imposições era a de que os professores jamais poderiam envolver-se afetivamente com alunos. O desrespeito às regras era considerado crime, seguindo-se punições de acordo com a gravidade dos fatos sociais. Abelardo era um mestre reconhecido por seu grupo, por seus alunos, como erudito e sensível. Na sua maturidade intelectual, ele apresentou questionamentos e críticas aos pensamentos tradicionais, demonstrando afeição aos filósofos não cristãos. Aos 36 anos, Abelardo era um brilhante professor em teologia na Catedral Notre Dame de Paris. Canon Fulbert, um senhor abastado de Paris, era o responsável pelo aprimoramento intelectual da sua sobrinha Heloísa. Como tutor decidiu confiar a jovem ao renomado mestre Abelardo.          
               Heloísa é mais reconhecida pela sua relação com Pedro Abelardo. Ela era brilhante estudiosa de Latim, Grego e Hebraico, e tinha uma reputação de inteligência e perspicácia. Abelardo escreve que ela era nominatissima, “muito conhecida” por seu dom da escrita e leitura. Parece que era de uma classe social mais baixa que a de Abelardo, que era originalmente da nobreza, embora ele tivesse rejeitado fidalguia para ser um filósofo. O que se sabe é que ela era a funcionária de seu tio, cônego em Paris chamado Fulbert. Nos seus manuscritos, Abelardo narra a história da sedução de Heloísa e sua posterior relação ilícita, que continuou até Heloísa ter um filho, a quem  chamou Astrolabius (Astrolábio). Abelardo casou-se secretamente com Heloísa. Eles esconderam esse fato, a fim de não prejudicar a carreira de Abelardo. A opinião aceita é que Fulbert, em sua ira, puniu Abelardo atacando-o enquanto dormia e castrando-o. Outra visão é que Fulbert divulgou o segredo do casamento e sua família procurou vingança, ordenando a castração de Abelardo. Após a castração, Abelardo tornou-se monge. No convento de Argenteuil, Heloísa tomou o hábito e tornou-se abadessa.
              No período de convivência no convento, começou a correspondência entre os dois amantes. Após ter deixado a Abadia do Paracleto, Abelardo fugiu das perseguições, e escreveu sua Historia Calamitatum, explicando suas tribulações, tanto em sua juventude como um filósofo e posteriormente como simples monge. Heloísa respondeu-lhe tanto em nome da Paraclete e dela mesma. Nas cartas que se seguiram, Heloísa manifestou consternação pelos problemas morais e políticos enfrentados por Abelardo. Assim começou uma correspondência apaixonada entre ambos, mas tipicamente erudita. Heloísa incentivava Abelardo em sua obra filosófica e ele dedicou a sua profissão de fé a ela. Em um ponto, ela diz a ele para compartilhar cada detalhe de sua vida e para não protegê-la de aborrecimento. O Problemata Heloissae é uma coleção de 42 perguntas teológicas dirigidas de Heloísa a Abelardo no tempo em que ela era abadessa em Paraclete, e suas respostas a elas. Embora tenham se casado, o cônego Fulberto, tio e responsável da jovem, ficou furioso com a situação e ordenou com que Abelardo, na escuridão da noite, fosse castrado. Assim, por volta de 1118, além de ter ordenado Heloísa a se tornar monja, Abelardo também se abrigou no claustro monástico, mais por conta da “confusão da vergonha” do que “pela vocação de uma vida religiosa”. Tomou a abadia de S. Denis em Paris como refúgio, no entanto sua estadia foi conturbada.

              Por conta de diversos problemas com seus novos irmãos e uma condenação por heresia no concílio de Soissons em 1121, Abelardo, com a ajuda de alguns amigos, fundou o Paracleto,  que significa “aquele que consola ou conforta; aquele que encoraja e reanima; aquele que revive; aquele que intercede em nosso favor como um defensor numa corte”. No cristianismo, o termo é utilizado para se referir ao Espírito Santo e o termo tem sido objeto de longo debate entre os teólogos, com diversas teorias sobre o assunto. um oratório próximo ao rio Ardusson, também em Paris. Sentindo-se pressionado por seus críticos e temendo uma nova condenação, Abelardo abandonou o Paracleto para se tornar abade do mosteiro de Gildas-Rhuys, na Bretanha, em c. 1127.  O comportamento de seus novos irmãos não era compatível ao de monges que eram e, ao tentar corrigi-los, Abelardo foi vítima de algumas tentativas claustrofóbicas de homicídio. Essas informações biográficas são encontradas na Historia Calamitatum, carta que Abelardo escrevera, por volta de 1132, a um amigo não nomeado.
              A recomendação de celibato clerical na igreja latina possui sua primeira representação pelo Concílio de Elvira (295-302), mas, como este concílio era apenas um concílio provincial espanhol, pois Elvira era uma cidade romana, junto a Granada, as suas decisões não foram cumpridas por toda a Igreja cristã. O Concílio de Elvira assim legislou: “Bispos, presbíteros, diáconos e outros que ocupem uma posição no ministério devem abster-se totalmente de relações sexuais com suas esposas e da procriação de filhos. Se alguém desobedecer, seja ele privado do estado clerical” (XXXIII cânon). O Primeiro Concílio de Niceia (323) decretou apenas que “todos os membros do clero estão proibidos de morar com qualquer mulher, com exceção da mãe, irmã ou tia” (III cânon). No final do século IV, a Igreja Latina promulgou várias leis a favor do celibato. Foram geralmente bem aceites no Ocidente no pontificado de São Leão Magno (440-461), mas o Concílio de Calcedônia (451) também “proibiu o casamento de monges e virgens consagradas” (XVI cânon), impondo o celibato ao clero.
               Em troca dos ensinamentos feitos por Abelardo à sobrinha, Fulbert hospedou o professor em sua residência em Paris. No início, o tio de Heloísa ficou temeroso de deixar a bela jovem a sós com o professor. Com o passar do tempo, o tio adquiriu confiança em Abelardo. Heloísa, nascida em 1100 e educada, por assim dizer em “berço de ouro”, formosa e delicada, iniciou com 17 anos os seus contatos com o professor Abelardo que quando conheceu a jovem Heloísa de Argentuil, era conhecida “pela abundância dos conhecimentos literários”. Ela já o conhecia de renome e o admirava por sua fama e inteligência. Bastaram os primeiros encontros entre Abelardo e Heloísa para que nascesse entre os dois um amor platônico. Um amor real seria quase impossível a moralidade descrita pelas regras sociais e políticas. Mas com o passar do tempo a paixão e o desejo não puderam resistir e o casal iniciou a relação amorosa. Meses mais tarde, Heloísa ficou grávida e Abelardo e Heloísa refugiaram-se na Bretanha, no norte da França, onde nasceu Astrolábio.         
             Na história da igreja a “virgindade religiosa”, denominada de “Virgindade Sacra”, “Sagrada Virgindade” ou “Santa Virgindade”, é um conceito importante na tradição cristã, especialmente no que diz respeito à Virgem Maria que ocupa um lugar central no dogma cristão católico e ortodoxo. Votos de castidade e celibato são necessários para entrar na vida monástica ou no sacerdócio. A sagrada virgindade e a perfeita castidade considera a Igreja Católica, quando consagrada ao serviço de Deus, um dos mais “preciosos tesouros” deixados por Cristo à sua Igreja. Afirma ainda a Doutrina da Igreja Católica que a santa virgindade é mais excelente que o matrimônio, isto no Concílio de Trento. Sobre o tema afirma João Paulo II na Exortação Apostólica Familiaris consortio (n° 16): - Permanecendo no celibato, o homem pode entregar a Deus um coração indiviso, segundo o modelo do seu Filho, Jesus Cristo, que ao Pai entregou o amor exclusivo e total do seu coração. “É então que o homem conquista o supremo cume, o vértice do testemunho cristão: Tornando livre de um modo singular o coração humano (...) a virgindade testemunha que o Reino de Deus e a sua justiça são aquela pérola que devemos preferir a qualquer outro valor”.

             Contudo, o celibato é visto de forma diferente por distintos grupos cristãos. Embora no passado fosse aceite o matrimônio de padres ordenados tendo a inclusão de São Paulo recomendando a fidelidade matrimonial aos bispos, na atualidade, excetuando em casos referentes aos diáconos e a padres ordenados pelas Igrejas orientais católicas e pelos ordinariatos pessoais para anglicanos, todo o clero católico latino é obrigado a observar e cumprir o celibato. Nas Igrejas orientais, o celibato é apenas obrigatório para os bispos, que são escolhidos entre os sacerdotes celibatários. A Igreja Católica de rito latino, sinteticamente, dá as seguintes principais razões de ordem teológica para o celibato dos sacerdotes e religiosos de vida consagrada: a) com o celibato os sacerdotes entregar-se-iam de modo mais excelente a Cristo, unindo-se a Ele com o coração indiviso; b) o celibato facilita ao sacerdote a participação no amor de Cristo pela humanidade uma que vez que Ele não teve outro vínculo nupcial a não ser o que contraiu com a sua Igreja; c) com o celibato os clérigos dedicar-se-iam com maior disponibilidade ao serviço dos outros homens; d) a pessoa e a vida do sacerdote são possessão da Igreja, que faz às vezes de Cristo, seu esposo; e) o celibato dispõe o sacerdote pare receber e exercer com generosidade a paternidade que pertence a Cristo.
               Porém, apesar disso, houve vários avanços e recuos na aplicação desta prática eclesiástica, nomeadamente entre o clero secular, chegando até mesmo a haver alguns Papas casados, como por exemplo, o Papa Adriano II. No século XI, vários Papas, especialmente Leão IX e Gregório VII, esforçaram-se novamente por aplicar com maior rigor as leis do celibato. Isto ocorreu devido à crescente degradação moral do clero, causada em parte pela confusão instaurada pelo desmembramento do Império Carolíngio quando houve padres e bispos que chegaram a demonstrar que tinham esposas ou concubinas. Durante o Concílio de Constança, 700 prostitutas atenderam sexualmente os membros participantes. Por fim, o Primeiro Concílio de Latrão (1123) e o Segundo Concílio de Latrão (1139) condenaram e invalidaram o concubinato e os casamentos de clérigos. Pelo uso da força como Aparelho de Estado secular reforçando assim o celibato clerical, “que já era na altura uma prática frequente e aceite pela maioria como necessária”. O celibato é defendido porque os celibatários eram mais livres e disponíveis. Com o tempo, o clero regular se foi destacando em relação ao clero secular. O celibato clerical voltou ainda a ser defendido em força pelo Quarto Concílio de Latrão (1215) e pelo Concílio de Trento (1545-1563), que impôs definitivamente o celibato obrigatório a todo o clero da Igreja Latina, incluindo o clero secular.    
           As Escolas Monásticas eram articuladas à ordem de Cister e o ensino da filosofia se desenvolveu a partir da leitura de Platão, apropriadas por neoplatônicos e Santo Agostinho. Em geral, elas se fundamentavam em outros tipos de racionalidade, diferente da escolástica que se voltava mais ao estudo da dialética e às disputationes. Na própria escolástica verificamos certa flutuação de racionalidades, como no próprio trabalho de Pedro Abelardo, que, apesar de lógico, compreendeu muitos aspectos da filosofia, principalmente a de cunho ético-teológico, recorrendo à Santo Agostinho e ao neoplatonismo como os participantes das Escolas Monásticas. É nos mosteiros espalhados pela Europa, longe das novas cidades emergentes na Europa, que surgem as Escolas Monásticas que visam, inicialmente, apenas a formação de futuros monges. Funcionando de início apenas em regime de internato, estas escolas abrem mais tarde escolas externas com o propósito da formação de leigos cultos, filhos dos Reis e os servidores também. O programa de ensino, de início, muito elementar - aprender a ler, escrever, conhecer a bíblia - se possível de memória - canto e de aritmética, vai-se enriquecendo de forma a incluir o latim, gramática, retórica e dialética.  
             Um egrégio representante das Escolas Monásticas foi São Bernardo de Clairvaux sendo a ele atribuídos o estudo contemplativo e silencioso das Sagradas Escrituras, a restauração da regula benedicti  do sistema disciplinar “ora et labora” em contraposição ao ensino metódico da dialética, que se promovia mais agitado nas formações de “disputationes”. Apesar da concepção de filosofia ser pagã e contradizer em muitos aspectos o estudo das Sagradas Escrituras, a maior parte de seus livros são obra de muitas mãos e a composição de alguns deles durou séculos. Mas ela ainda permanecia nessas escolas com o mesmo propósito de quando adentrou nos primórdios do cristianismo. Os gramáticos pertenciam em grande parte às Escolas Monásticas, como a Escola de Chartres, fundada por Fulbert de Chartres e difundida no século XII por Bernard de Chartres. Os religiosos pertencentes à essa escola tinham por objetivo tanto as categorias de pensamento quanto as categorias da língua. Logo, além de conceberem o estudo da gramática, como objeto de pensamento ainda visava adequá-la ao estudo filosófico na vertente do quadrivium. Pelo fato técnico de trabalhar com números e proporções, o quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois se acreditava que as distancias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. A gramática aliada a  filosofia se centralizava no aprendizado do Timeu de Platão, via tradução de Calcídeo.              
               O desenvolvimento da filosofia na França foi balizado pela influência do platonismo através da escola de Chartres e pela disputa entre a facção dos místicos e teólogos e a dos dialéticos ou filósofos. A dialética significava, predominantemente, a arte de discernir o verdadeiro do falso, melhor dizendo, aquela parte da filosofia que trata dos termos, das proposições e do raciocínio. Um grande representante da dialética desse tempo foi Pedro Abelardo, nascido em 1079, na pequena localidade de Le Pallet, próximo de Nantes, França. Filho de um pequeno nobre chamado Béranger, homem de considerável cultura, Abelardo foi desde cedo orientado para o estudo esquemático do trivium (gramática, retórica e dialética) e, do ponto de vista “indiciário”, nada estudou do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Em 1094, dirige-se a Loches, a fim de estudar lógica sob a orientação de Roscelino, o grande mestre da chamada escola nominalista. Nesse ínterim refaz o mesmo princípio metodologicamente em Paris, tendo como mestre Guilherme de Champeaux, que seguia orientação contrária à de Roscelino, propugnando o realismo filosófico dos universais. A “querela dos universais” desde cedo é um dos principais centros de interesse de Abelardo, que, posteriormente, traria contribuições relevantes nesse campo de indagação filosófica. 
                 A Escola da catedral de Chartres foi uma escola que funcionou na catedral de Chartres e que se tornou um importante centro de estudos na Europa medieval. Seu ápice ocorreu nos séculos XI e XII, durante o chamado renascimento do século XII. Nesse período, segundo alguns historiadores, os grandes intelectuais de seu tempo, como Yves de Chartres, Gilbert de la Porrée, Bernard de Chartres, Guillaume de Conches, Clarembaud d`Arras, Bernard Silvestre, Thierry de Chartres e Jean de Salisbury, teriam sido ligados à escola, contribuindo para a modernidade da instituição. Até a primeira metade do século XX, a Escola de Chartres era considerada pelos historiadores como a mais vigorosa expressão do espírito progressista do século XII. O Ocidente europeu do início da Idade Média era pouco mais que uma colcha de retalhos com populações camponesas e tribos germânicas em processo de desagregação cultural, romantização e asiatização religiosa e cultural, adotando um efêmero movimento religioso do Oriente Próximo e renegando as suas próprias raízes animistas, politeístas e afins. O surgimento da universidade, no início do século XIII, na França e em outros pontos da Europa, representa uma mudança no sistema de ensino medieval. Pela primeira vez, funda-se e organiza-se uma instituição cuja identidade primeira é representado através da dedicação ao estudo. Assiste-se, no interior das relações medievas, a criação de um espaço social destinado somente ao saber. Contudo, entre 1965 e 1970, Richard William Southern, no ensaio Medieval Humanism and Other Studies (Oxford, 1970), demonstra que a análise documental rigorosa não permitiria afirmar que havia essa supremacia. A escola de Chartres não era diferente de outras escolas episcopais, e nada prova que tivesse distinguido por uma excepcional plêiade de mestres, a não ser antevendo o debate. Suas características são, segundo Boehner e Gilson, o cultivo das ciências naturais e a familiaridade com a literatura clássica. 
          A vida social deriva inexoravelmente de uma dupla fonte: a similitude das consciências e a divisão do trabalho social. O indivíduo é socializado no primeiro caso, porque, não tendo individualidade própria, confunde-se como seus semelhantes, no seio de um mesmo tipo coletivo; no segundo, porque, tendo uma fisionomia e uma atividade pessoais que o distinguem dos outros, depende deles na mesma medida em que se distingue e, por conseguinte, da sociedade que resulta de sua união. Esta divisão dá origem às regras jurídicas que determinam as relações das funções divididas, mas cuja violação acarreta apenas medidas reparadoras sem caráter expiatório. De todos os elementos técnicos e sociais da civilização, a ciência nada mais é que a consciência levada a seu mais alto ponto de clareza. Nunca é demais repetir que para que as sociedades possam viver nas condições de existência que lhes são dadas, é necessário que o campo da consciência se estenda e se esclareça. Quanto mais obscura uma consciência, mais é refratária à mudança social, porque não vê depressa o que é necessário mudar. Nem em que sentido é preciso mudar. Uma consciência esclarecida sabe preparar de antemão a maneira de se adaptar a essa mudança risível. Eis porque é necessário que a inteligência guiada disciplinarmente pela ciência adquira uma importância maior no curso da vida coletiva. Tais sentimentos são capazes de inspirar não apenas esses sacrifícios cotidianos, mas também atos de renúncia completa e de abnegação exclusiva. A sociedade aprende a ver os membros que a compõem como cooperadores que ela não pode dispensar e para com os quais tem deveres. Na realidade, a cooperação também tem sua moralidade intrínseca. Há apenas motivos para crer, que, em nossas sociedades, essa moralidade ainda não tem todo o desenvolvimento que lhes seria necessário. Daí resulta duas grandes correntes da vida social, que correspondem dois tipos de estrutura não menos diferentes. Dessas correntes, a que tem sua origem nas similitudes sociais corre a princípio só e sem rival.

Bibliografia geral consultada. 
FEUERBACH, Ludwig, Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Granada: Editorial Comares, pp. 73-139; 1995; ROCHA, Zeferino, Abelardo – Heloísa. Cartas. Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1997; SCHMITT, Jean-Claude, “La ‘Découverte de l’Individu’: Une Fiction Historiographique”. In: Les Corps, les Rites, les Rêves, les Temps. Essais d’Anthropologie Médiévale. Paris: Éditions Gallimard, 2001; MAGDALENA, Enrique Miret, “La Azarosa Historia del Celibato Clerical”. In: Jornal El País, 26 de março de 2002; GILSON, Étienne, O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006; Idem, Heloisa e Abelardo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007; TONDINELLI, Tiago, Ética e Justiça no Pensamento de Pedro Abelardo. Tese de Doutorado em Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007; DUBY, Georges, As Damas do Século XII. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013; ESTÊVÃO, José Carlos, Abelardo e Heloísa. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus Editora, 2015; CHAVES-TANNÚS, Marcio, A Ética de Pedro Abelardo: Um Modelo Medieval da Lógica a Moral. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2015; NEVES, Gabrielle Marques, Análise das Cartas de Heloisa de Argenteuil e sua Correspondência com Abelardo: Amor e Violência no Século XII. Trabalho de conclusão de Curso. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017; SILVA, Rodolfo Fernandes da, Intencionalidade, Consciência e Caridade nas Obras Éticas de Pedro Abelardo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2017; LE GOFF, Jacques, O Nascimento do Purgatório. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2017; LAZARINI, Richard, A Noção de Ato de Ser Segundo a Exposição de Tomás de Aquino aos Ebdomadibus de Boécio. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018entre outros.

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