sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Chico Buarque - Política, Literatura & Musica Popular Brasileira.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

Eu semeio o vento. Na minha cidade. Vou pra rua e bebo a tempestade”. Chico Buarque

 
             O ponto de partida para a constituição do sujeito, diz Kojève (1973), leitor de Hegel, é o desejo, “mas não um desejo dirigido a uma coisa qualquer no mundo”. O homem se torna humano “quando deseja outro desejo”. Abre-se assim um novo viés de liberdade, que se manifesta antes de tudo como um desejo de reconhecimento e produz uma luta de morte por puro prestígio – o ato fundante da história, o ato antropogênico por excelência. Mas para que haja história, é preciso que haja relação social entre homens vivos, lembrava Marx, no ensaio que o encaminhava para a maturidade. A luta não pode terminar com a aniquilação de um dos lados, colocando sua liberdade acima da vida. Todavia, estabelece-se uma relação que se desenvolve concentrada neste segundo polo, outra atividade essencial ao projeto do homem: o trabalho humano. A descrição da dialética que assim se estabelece é um dos pontos culminantes do pensamento humano desde a Antiguidade, em todas as épocas e sua conclusão é surpreendente: “o homem integral, livre, satisfeito com o que é, o homem que se aperfeiçoa”. Não é o senhor nem o escravo, mas sim o escravo que consegue suprimir sua sujeição. A célebre metáfora do senhor e do escravo, tão popularizada na tradição ocidental, foi criada por Hegel e utilizada por muitos pensadores no século XX.
             A estrutura da música pode ser considerada, segundo Ruud (1990) uma espécie de transformação de desejos latentes. A música, comparativamente, equivale ao conteúdo manifesto do sonho e pode ser analisada e compreendida pelas mesmas técnicas que são aplicadas na interpretação do sonho e do chiste. A relação entre música e seu conteúdo é a mesma que ocorre entre um sonho e suas concepções. A transformação na música é feita no inconsciente enquanto o pré-consciente condiciona a forma final. As diversas experiências, impulsos e desejos são representados pelo som. As representações tonais penetram no pré-consciente onde são submetidas a uma elaboração final. Enfim, na criação musical, utilizam-se técnicas semelhantes às do sonho e do chiste: condensação, deslocamento, inversão, lapso e assim por diante. Existem vários motivos pelos quais a música tem condições sociais de obter eficácia simbólica, sociologicamente, como um elemento reforçador. Um motivo importante é que, diante das possibilidades ilimitadas nas quais a música é disposta e apresentada, ela tem meios de alcançar o maior número de pessoas e motivá-las por um período mais extenso. As possibilidades de diversificação das atividades musicais tornam possível a satisfação de necessidades antes que se alcance o ponto de saturação diante da música.


              Para Freud (2017: 637-638), quando afirmamos que um pensamento inconsciente se esforça por obter tradução ao pré-consciente para então irromper na consciência, não queremos dizer que deva se formar um segundo pensamento situado em um novo lugar, uma transcrição, por assim dizer, ao lado do qual o original continua existindo; e também quanto à irrupção na consciência, queremos separar cuidadosamente dela qualquer ideia de mudança de lugar. Quando afirmamos que um pensamento pré-consciente é recalcado e então tomado pelo inconsciente, tais imagens, emprestadas do círculo de representações da luta por um terreno, poderiam nos seduzir a levantar a hipótese de que um arranjo é realmente dissolvido num lugar psíquico e substituído por um novo arranjo em outro lugar. Substituímos essas imagens por aquilo que parece corresponder melhor ao estado real das coisas, a saber, que um investimento de energia é colocado em certo arranjo ou retirado dele, de modo que a formação psíquica cai sob o domínio de uma instância ou é subtraída dela. Mais uma vez, substituímos um modo típico de representação por um dinâmico; não é a formação psíquica que n os parece  como algo móvel, e sim sua inervação. Tudo o que pode se tornar objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida  no telescópio  pela passagem dos raios luminosos. Porém, quanto aos sistemas, que não são algo psíquico e nunca se tornam acessíveis à nossa percepção psíquica, estamos autorizados a supor sua existência tal como as lentes do telescópio que projetam a imagem. Continuando essa análise comparativa, a censura entre os dois sistemas corresponderia à refração dos raios na passagem para um novo meio.  
             A importância de se apresentar os estímulos “reforçadores” em seguida à resposta  a fim de se obter um fortalecimento mais eficaz do comportamento pode, também, ter aplicação no estudo da música. A música “Garota de Ipanema” é uma das mais conhecidas canções da bossa nova e Música Popular Brasileira (MPB) do mundo e foi composta em 1962 por Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim quando “viram a jovem Heloísa Eneida, com apenas 17 anos, andando distraída de biquíni pelas areias quentes da Praia de Ipanema”. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu no Rio de Janeiro, a 25 de Janeiro de 1927 e faleceu em Nova York aos 67 anos. Tom Jobim foi compositor, maestro, pianista, cantor e violinista. A palavra “bossa” apareceu pela primeira vez na década de 1930, em “Coisas Novas”, samba do cantor Noel Rosa. A “bossa nova” é um gênero derivado do samba, com influência do jazz estadunidense, surgido no final da década de 1950 no Rio. O termo era apenas relativo a “um novo modo de cantar e tocar samba dentro do carioca urbano”. Mas com o engajamento, a bossa nova tornar-se-ia um dos movimentos mais influentes da música popular brasileira, reconhecido em todo o mundo e, especialmente, associado a João Gilberto, Nara Leão, Vinicius de Moraes, Antônio Carlos Jobim, Baden Powell e Luiz Bonfá.
              Nascido em 19 de junho de 1944, Chico Buarque cedo demonstrou seu interesse pela música por meio da companhia e influência do poetinha, Vinicius de Moraes, e evidentemente por meio de sambas tradicionais de Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves e canções estrangeiras, como o belga Jacques Brel, os norte-americanos Elvis Presley e o grupo The Platters. Mas foi o disco “Chega de saudade”, de João Gilberto – que mais tarde se casaria com sua irmã Miúcha – que alterou definitivamente sua relação com a música. Em seu site oficial informa que ele o ouvia tão insistente e repetidamente que chegava a irritar os vizinhos. Seu sonho artístico, “era cantar como João Gilberto, fazer música como Tom Jobim e letra como Vinícius de Moraes”. Ipso facto, quando Chico Buarque nos primeiros versos da canção do disco vinil “Paratodos” (1993) homenageia, etnograficamente seu padrinho musical Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, reconhecido como maestro Tom Jobim, também celebra seus ascendentes familiares: - “O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Meu maestro soberano/ Foi Antonio Brasileiro”. Um embrião do movimento, na década de 1950, eram as reuniões casuais, frutos de encontros de um grupo de músicos da classe média carioca em apartamentos da zona sul, como o de Nara Leão, na Avenida Atlântica, na famosa praia de Copacabana.                                              
                Desnecessário dizer que Copacabana é um bairro nobre situado na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. É considerado um dos bairros mais famosos e prestigiados do Brasil e um dos mais conhecidos do mundo. Tem o apelido de “Princesinha do Mar” e “Coração da Zona Sul”. Faz divisa com os bairros nobres da Lagoa, Ipanema, Botafogo, Leme e Humaitá. A população de Copacabana é, em sua maior parte, das classes “média-alta” e média. O bairro tem a maior concentração populacional da Zona Sul carioca, tendo em torno de 150 mil habitantes em 2013. Também abriga a maior quantidade de idosos do município e um dos maiores do país, proporcionalmente falando, com 16,7% da população acima de sessenta anos. De fato, Copacabana é por vezes apontada como “o bairro com população mais idosa do país”. Copacabana atrai um grande contingente de turistas para seus mais de oitenta hotéis, que ficam especialmente cheios durante as épocas do ano-novo e do carnaval. No fim de ano, a tradicional queima de fogos na Praia de Copacabana internacionaliza uma multidão de pessoas. A orla é lugar de variados eventos nacionais e internacionais durante o ano.

           A célebre exposição dos United Buddy Bears realizou-se de maio a fim de julho de 2014 nessa praia carioca, apesar de protestos da FIFA durante toda a Copa do Mundo de futebol. Os ursos puderam ser vistos no famoso calçadão de Copacabana, no bairro do Leme. Contou-se com a presença de mais de um milhão de visitantes. Fizeram parte da exposição mais de 140 esculturas de ursos, cada uma com mais de 2 metros de altura, realizadas por artistas de mais de 140 países, representando 140 nações do mundo. A arte de dar um golpe seja ele qual for econômico ou político, representa o senso de ocasião. Mediante procedimentos que psicanaliticamente Sigmund Freud precisa a respeito do chiste, combina elementos audaciosamente reunidos para insinuar o “insight” de uma coisa na linguagem de um lugar para atingir o destinatário. Contudo, sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz, como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder. A sua dialética poderá ser iluminada pela antiga arte da sofística, de fortificar ao máximo a posição do mais fraco. Mas destaca a relação de forças que está no princípio de uma criatividade intelectual tão tenaz como sutil, incansável, mobilizada à espera da ocasião.
             Historicamente, nestes encontros, cada vez mais frequentes, a partir de 1957, um grupo se reunia para fazer e ouvir música. Dentre os participantes estavam novos compositores da música brasileira, como Billy Blanco, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Sérgio Ricardo, entre outros. O grupo foi aumentando, abraçando também Chico Feitosa, João Gilberto, Luiz Carlos Vinhas, Ronaldo Bôscoli, entre outros. Em 1959, era lançado o primeiro LP de João Gilberto, “Chega de saudade”, contendo a faixa-título - canção com cerca de 100 regravações feitas por artistas nacionais e estrangeiros. A bossa nova se tornara uma realidade. Além de João Gilberto, parte do repertório clássico do movimento deve-se as parcerias de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. O espírito bossa-novista já se encontrava na música que Jobim e Moraes fizeram, em 1956, para a peça “Orfeu da Conceição”, primeira parceria da dupla, que esteve perto de não acontecer, uma vez que Vinícius primeiro entrou em contato com Vadico, o famoso parceiro de Noel Rosa e ex-membros do Bando da Lua, para fazer a trilha sonora. É dessa peça, da tragédia grega Orfeu, das belas composições de Tom e Vinícius, “Se todos fossem iguais a você”, já prenunciando os elementos melódicos da bossa nova.
                Em meados da década de 1960, o movimento apresentaria uma espécie de cisão ideológica, formada por Marcos Valle, Dori Caymmi, Edu Lobo e Francis Hime e estimulada pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes (UNE). Inspirada em uma visão popular e nacionalista, este grupo fez uma crítica das influências do jazz norte-americano na bossa nova e propôs sua reaproximação com compositores de morro, como o sambista Zé Ketti. Um dos pilares da bossa, Carlos Lyra, aderiu a esta corrente, assim como Nara Leão, que promoveu parcerias com artistas do samba como Cartola e Nelson Cavaquinho e baião e xote nordestinos de João do Vale. Nesta fase da bossa nova, foi lançado em 1966 o antológico: “os afro-sambas”, de Vinicius e Baden Powell. Entre os artistas que se destacaram nesta segunda geração (1962-1966) estão Paulo Sérgio Valle, Edu Lobo, Marcos Vasconcelos, Dorival Caymmi, Nelson Motta, Francis Hime, Wilson Simonal.

             Em 1963, Chico Buarque ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo que cursaria só até o terceiro ano. No ano seguinte, inscreveu-se no festival promovido pela TV Excelsior (SP) com “Sonho de um Carnaval”, cantada por Geraldo Vandré. Seu reconhecimento ocorre pari pasu passando a apresentar-se no Teatro Paramount, ainda em 1964, quando participou do programa “O Fino da Bossa”, apresentado pela cantora Elis Regina. Sua primeira gravação, de 1965, resultou no compacto “Olé Olá”. A consagração, no entanto, viria com o festival de MPB da TV Record (SP). Chico Buarque concorreu com a marcha “A Banda”, que foi interpretada por Nara Leão e venceu o festival junto com a música “Disparada”, de Geraldo Vandré. Chico Buarque ganhou projeção nacional, e sua carreira tomou impulso. Contudo, com o acirramento da ditadura civil-militar estabelecida em 1964, sua produção artística e literária sofreu grande impacto. Em 1967, ele estreou o espetáculo “Roda-Viva”, O espetáculo narra a história social de um ídolo da canção que decide mudar de nome para agradar ao público, em um contexto cultural e televisivo nascente no Brasil dos anos 1960, que acabou sendo inutilmente censurado.
            Em 1968, dada a repressão política, Chico Buarque preferiu o exílio na Itália. Ali nasceu a primeira filha, Sílvia, mas viriam ainda Helena e Luísa. Voltou para o Brasil em 1970 e lançou o álbum “Construção” no ano seguinte. Já foi considerada uma “unanimidade nacional” nos anos 1970, consagrando-se como o grande compositor brasileiro da MPB sob a ditadura. Em 1972, foi ator em “Quando o Carnaval Chegar”, filme de Cacá Diegues para o qual havia composto várias músicas e ainda faria a trilha sonora do filme “Vai Trabalhar, Vagabundo”, dirigido pelo ator Hugo Carvana em 1973. Neste ano, em parceria com o dramaturgo Ruy Guerra, escreveu o texto e as músicas da peça “Calabar, o Elogio da Traição” (1973), é o título da peça de teatro musicada, escrita por Chico Buarque e o cineasta Ruy Guerra. Na peça, Domingos Calabar passa de comerciante que visava o lucro no processo civilizatório e que, por isto, traíra os portugueses e colonos brasileiros - para um “quase” herói, que tinha por objetivo não o ganho pessoal, o jeitinho brasileiro, mas o melhor para o povo brasileiro.
             A intenção dos autores, porém, não era denunciar um erro histórico, nem tinha a pretensão de promover uma revisão literária: o alvo era, justamente, o próprio regime militar golpista, sua terrível e violenta censura, os veículos de comunicação que, engessados pelas versões dos fatos sempre acordes com o sistema, passavam ao povo imagens que precisavam ser questionadas em sua veracidade. A peça foi proibida, embora algumas canções tivessem sido gravadas em disco. Em 1974, veio o álbum “Sinal Fechado”, interpretando músicas de outros compositores, mas iniciando nova carreira, como escritor, publicando a novela “Fazenda Modelo”, baseada no livro: “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, a obra retrata o cotidiano opressor de uma fazenda de bois e vacas, uma metáfora do regime militar. No ano seguinte, escreveu com o dramaturgo Paulo Pontes a peça “Gota d'Água”, uma tragédia carioca, baseada na adaptação que Oduvaldo Vianna Filho, havia realizado para consumo no mercado globalizado da televisão tendo como base sua reinterpretação de Medéia, de Eurípedes.
           A peça se tornou um dos maiores sucessos de crítica e público. Por essa peça o autor ganhou o Prêmio Molière como melhor autor teatral, mas em protesto contra a censura, que proibira peças de vários autores naquela conjuntura política, ele não compareceu à cerimônia de entrega dos prêmios. Em 1975, Chico inovou “Os Saltimbancos”, uma fábula musical que ele traduziu e adaptou do italiano “I Musicanti”, de Luiz Enriquez e Sergio Bardotti. As canções foram grande sucesso e serviram para a montagem teatral “Os Saltimbancos”.Três anos depois, escreveu e compôs as canções da “Ópera do Malandro”, obtendo o Prêmio Molière de melhor autor teatral de 1978. Em 1979, publicou “O Chapeuzinho Amarelo”, primeiro livro infantil de sua autoria. É notável porque narra a história de uma menina com medo do medo, melhor dizendo, uma menina amarela de medo que transforma a fantasia dos contos em sua própria realidade, chegando ao ponto de não brincar, não se divertir, não comer, nem mesmo dormir. Enfrentando o desconhecido “O Lobo”, ela supera medos, inseguranças e descobre a alegria de viver. Com sensibilidade, Chico Buarque constrói um texto no qual transparece o valor mágico que o autor atribui à palavra e não só trata com maestria nossos medos, como também, ensina as crianças a superar suas fobias.
             Em 1992, viria o primeiro romance, “Estorvo”, que retrata um personagem estranhíssimo que pelo olho mágico vê um homem que parece lhe espiar. Começa, então, um caminho obsessivo atrás de nada, através de uma lógica desenraizada, sem qualquer estrutura, inclusive, intelectual e racional. Esse rapaz sempre a um passo da alucinação e do sonho permanece sua trajetória pelos espaços atormentado por tudo e por nada: é a cidade e são as pessoas que impõe uma forma de deslocamento do “eu” construído por Chico Buarque que parece completamente fora do eixo do mundo. Sem centro ele perambula e o mundo é completamente turvo como a imagem de um olho mágico, em 1995, o segundo, “Benjamin”, tem como escopo Benjamim Zambraia que vê em Ariela Masé a imagem de uma mulher que conhecera muito tempo atrás. Essa obsessão entre a imagem dessa jovem moça e a memória se misturam numa confluência de tempos dentro da cabeça de Benjamin e faz com que sua capacidade de perceber o mundo seja profundamente modificada. Assim como em O Estorvo, Chico Buarque tira o “eu” da personagem do centro e, desfocado, ele não consegue se colocar: algumas vezes está alheio, alienado e não percebe nada do que se passa, em outras não consegue se comunicar, pois a Ariela de agora é apenas um movimento da outra anterior. Além disso, o corpo de Benjamin, seduzido por essa fantasmagoria estética, encarnado no presente, mostra marcas de um anacronismo entre a subjetividade e a realidade.
             Em 2003 publicou “Budapeste”, romance que se tornou sucesso de público e crítica. Budapeste, como José Miguel Wisnik comenta na contracapa do livro, se torna poesia no instante em que acaba. É uma obra de “imaginação sociológica” e de uma inventividade de linguagem, talvez se aproximando de Ludwig Wittgenstein, e neste sentido, poucas vezes vista na literatura brasileira, fato ressaltado na esteira da literatura de José Saramago. O enredo é sobre José Costa, um escritor fantasma que conhece Kriska em Budapeste e começa uma relação com ela ao mesmo tempo em que aprende o idioma Húngaro. Aos poucos, a língua na boca das personagens vai se tornando o monumento de poética construída palavra a palavra em um jogo de linguagem alucinado entre José Costa, sua esposa Vanda e seu novo amor Kriska. Essas três instâncias de linguagem, como caleidoscópio, buscam se encontrar, mas como a literatura vezes incessantemente espelha a vida cotidiana fracassa em cada tentativa.

            Em seu livro relativamente recente: “Leite Derramado” (2009) o músico e escritor e, não por acaso, é autêntico historicista.  Narra a história angustiante de um velho que, na cama de um hospital, nos últimos momentos da vida, relembra o seu passado e tenta recompor sua história de forma dramática. A fixidez do velho e o excesso de lembranças que passam por eles, vindas desde o surgimento da família lá com os portugueses até à decadência socioeconômica do presente, desloca a narrativa daquilo que Chico Buarque vinha se especializando em fazer: montar um mundo alucinado, mas agora mais do que nunca próximo da experiência vivida. A memória, sempre mais lenta que qualquer gesto, esfria o livro e faz que tudo fique estático, imaginativo, burguês, como se tratasse da quantidade de tradições que ele próprio é obrigado a carregar e não consegue escapar. É o livro de um homem que vislumbra o fim da vida e precisa de alguma forma, ficcionalizar o sentido das memórias construídas na vida a fim de que elas se tornem mais claras e palpáveis.
            O Irmão Alemão (2014), de Chico Buarque narra a história de Francisco de Hollander, um sujeito que, logo quando criança, encontra em um dos livros da imensa biblioteca da casa, o que reporta sua infância entre livros com seus pais – biblioteca por sinal que ocupa todos os cômodos da casa – uma carta de uma mulher alemã que diz ter tido um filho com seu pai. Assim, Francisco passa a vida tentando encontrar pistas, “indícios e sinais”, no sentido que emprega Ginzburg (1986) de que existiria, realmente, um irmão alemão. Passa, então, sua infância, na democracia brasileira, o golpe civil-militar de 1964, quando seu irmão, este reconhecido, desaparece por conta do regime, até sua vida adulta e seu gradual envelhecimento. O irmão alemão, de Francisco, ou Chico, enfim, esteve presente em toda sua vida, mesmo como uma ausência-presente. O livro não é feito de uma criação, mas de um eterno “fazendo” que coloca em destaque a própria literatura e o contar. Sua obra não para de se revigorar em energia. É possível até que, se fosse reescrever sua obra, sequer uma linha permanecesse. Talvez, por isso, “Leite Derramado” não tenha perdido tanto em relação às suas outras obras. A memória de um moribundo ainda está presa à moral, a uma necessidade de permanecer: nesta obra do irmão inexistente, mas real, Chico pode novamente reinventar a própria vida.
Bibliografia geral consultada.
GHISLIERI, Michela, La Opera do Malandro di Chico Buarque de Hollanda. Corso di Laurea in Lingue e Letterature Straniere Moderne. Universitá Degli Studi di Pavia, 1995/96; FERNANDES, Rinaldo de (org.), Chico Buarque do Brasil: Textos sobre as Canções, o Teatro e a Ficção de um Artista Brasileiro. São Paulo: Editora Garamond, 2004; RUFINO, Janaína de Assis, As Mulheres de Chico Buarque: Análise da Complexidade Discursiva de Canções Produzidas no Período da Ditadura Militar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006; PINTO, Fabiane Batista, O Brasil de Chico Buarque: Nação, Memória e Povo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Departamento de Ciências Sociais. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007; PRADO, Elaine Laura Fernandes, O Discurso Moderno em Budapeste de Chico Buarque. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007; ORTOLAN, Leandro Henrique, O que não tem limite: o erotismo na poesia de Chico Buarque de Hollanda. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007; DIETRICH, Peter, Semiótica do Discurso Musical: Uma Discussão Musical a Partir das Letras das Canções de Chico Buarque. Tese de Doutorado. Departamento de Linguística. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2008; TELLES, Tereza, Chico Buarque na Sala de Aula. Rio de Janeiro: Editoras Vozes, 2009; BUARQUE, Chico,  Leche Derramada. Tradução de Ana Rita da Costa García. Barcelona: Ediciones Salamandra, 2010; OLIVEIRA, Marcelo Dantas de, “Canções para as Salas de Aula: As Mulheres nos Tempos da Ditadura Civil-Militar através de Chico Buarque”. In: Revista Latino-Americana de História. Volume 3, nº 11, set. de 2014; Artigo: “Chico Buarque vence prêmio literário na França”. In: https://gauchazh.clicrbs.com.br/2017/01; BARROS, Maria Irenilce Rodrigues, Os Sujeitos Discursivos nas Canções de Chico Buarque nos Períodos Ditatorial e Democrático. Tese de Doutorado em Estudos Linguísticos. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2017; NOGUEIRA, Márcia Barbosa, O Ensino de História e as Músicas de Chico Buarque de Holanda: Da Escuta à Produção de Sentidos Históricos na Escola Estadual Engenheiro Palma Muniz, em Redenção-PA. Dissertação de Mestrado Profissional.  Programa de Pós-Graduação em Ensino de História. Araguaína: Universidade Federal do Tocantins, 2018; entre outros.

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