domingo, 21 de maio de 2017

Eu Fico - A Representação da Farsa na História Nacional

                                                                                          Ubiracy de Souza Braga
Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. D. Pedro I

                        
A expressão, Dia do Fico, deve-se à frase célebre de dom Pedro, então príncipe-regente do Brasil, um Reino Unido a Portugal e Algarves. Em 9 de janeiro de 1822, D. Pedro I recebeu uma carta da corte de Lisboa, exigindo seu retorno para Portugal. Há tempos os portugueses insistiam nesta ideia, pois pretendiam recolonizar o Brasil e a presença de D. Pedro impedia este ideal. Porém, D. Pedro respondeu negativamente aos chamados de Portugal e proclamou: - “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. Porém, para compreendê-la melhor, é necessário conhecer o contexto político em que ela foi dita: Em 1807, com o objetivo de expandir seu poder sobre o continente europeu, Napoleão Bonaparte planejava uma invasão sobre o reino de Portugal, e, para escapar dos franceses, a família real portuguesa transferiu-se para o Brasil, que se tornou o centro do Império português.
A chegada da família real teve um significado para o desenvolvimento do país que era uma das colônias portuguesas. A fixação da corte no Rio de Janeiro teve inúmeras consequências políticas e econômicas, dentre as quais devemos destacar a elevação do país à categoria de Reino Unido, em 1815. O Brasil então deixava de ser colônia. Entretanto, cinco anos depois, com as reviravoltas da política européia e o fim da era napoleônica, uma revolução explodiu em Portugal. As elites políticas de Lisboa adotaram uma nova Constituição e o rei dom João VI, com medo de perder o trono, voltou do Rio para Lisboa, deixando aqui seu filho, dom Pedro, na condição de príncipe-regente. As cortes de Lisboa, porém, não aprovavam as medidas tomadas por dom Pedro para administrar o país. Queriam recolonizar o Brasil e passaram a pressionar o príncipe para que também retornasse a Lisboa, deixando o governo do país entregue a uma junta submissa aos portugueses. A reação dos políticos brasileiros foi entregar ao regente uma lista com aproximadamente 8 mil assinaturas solicitando sua permanência no Brasil. O Dia do Fico, deste modo, é um dos marcos conservadores de recolonização e não do processo de libertação política do Brasil em relação a Portugal.


O ponto de partida para a constituição do sujeito é o desejo, mas não um desejo dirigido a uma coisa qualquer no mundo. O homem se torna humano quando deseja outro desejo. Abre-se assim, ao homem, um novo espaço de liberdade, que se manifesta antes de tudo como um desejo de reconhecimento e produz uma luta de morte por puro prestígio – o ato fundante da história, o ato antropogênico por excelência. Mas para que haja história, é preciso que haja relação social entre homens vivos. A luta não pode terminar com a aniquilação de um dos lados. Um deles, provavelmente, deve abdicar do combate, colocar a liberdade acima de sua vida, fora da relação entre “senhor-escravo”. Nela se concentrando outra atividade essencial ao projeto do homem: o trabalho intelectual como princípio de liberdade. A dialética (cf. Kojéve, 1973; Hegel, 1986) que assim se estabelece é um dos pontos culminantes do pensamento humano em todas as épocas, e sua conclusão é surpreendente e magistral: o homem integral, livre, satisfeito com o que é; o homem que se aperfeiçoa, não é o senhor nem o escravo, mas o que consegue suprimir sua sujeição.
Na linguagem teórica, academicamente entendemos que as palavras e expressões funcionam como representação de conceitos teóricos, mas em sua periodização histórica as palavras e expressões funcionam sempre de forma distinta, porque se referem a concepção pontual de uma teoria da história. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste, pois, neste sentido em que, por detrás do significado usual da palavra, é preciso sempre discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual empírico e casual contido na representação das fontes, nas atas, nos documentos oficiais etc. Na sua significação mais geral deve nos permitir a compreensão histórica e sociológica que tem por efeito social o conhecimento de um objeto: a narrativa da história. É assim que a história abstrata ou a história em geral não existem, no sentido exato do termo, mas apenas a história real, ou “como efetivamente ocorreu” (“essen Sie tatsächlich, es passierte”), desses objetos concretos e singulares que enformam a experiência acumulada da humanidade.
A determinação mais simples e primeira que o espírito pode estabelecer é o Eu, a faculdade de poder abstrair todas as coisas, até sua própria vida. Chama-se idealidade, idealização, precisamente esta supressão da exterioridade. Entretanto, o espírito não se detém na apropriação, transformação e dissolução da matéria em sua universalidade, mas, enquanto consciência religiosa, por sua faculdade representativa, penetra e se eleva através da aparência dos seres até esse poder divino, uno, infinito, que conjunta e anima interiormente todas as coisas, enquanto pensamento filosófico, isto é, como seu princípio universal, a ideia eterna que as engendra e nelas se manifesta. Hegel, afirma, portanto, que o espírito finito dialeticamente segue um passo a passo e se encontra inicialmente numa união imediata com a natureza, a seguir em oposição com esta e finalmente em identidade com esta, porque suprimiu/subssumiu a oposição e voltou a si mesmo e, consequentemente, o espírito finito é a ideia, mas ideia que girou sobre si mesma e que existe por si em sua realidade.
Todo conhecer, todo aprender, toda visão, toda ciência, inclusive toda atividade, não possui nenhum outro interesse além do aquilo que “é em si”, no interior, manifestar-se desde si mesmo, produzir-se, transformar-se objetivamente. Nesta diferença se descobre toda a diferença na história do mundo. Os homens são todos racionais. O formal desta racionalidade é que o homem seja livre. Esta é a sua natureza. Isto pertence à essência do homem. O europeu sabe de si, é objeto de si mesmo. A determinação que ele conhece é a liberdade. Ele se conhece a si mesmo como livre. O homem considera a liberdade como sua substância. Se os homens “falam mal de conhecer é porque não sabem o que fazem”. Conhecer-se, converter-se a si mesmo no objeto (do conhecer próprio) e o fazem relativamente poucos. Mas o homem é livre somente se sabe que o é. Pode-se também em geral falar mal do saber, como se quiser. Mas somente este saber libera o homem. O conhecer-se é no espírito a existência. Esta é a única diferença da existência (Existenz), a diferença do separável. O Eu é livre em si, mas também por si mesmo é livre e eu sou livre somente enquanto existo como livre.

 
A famosa declaração do “Eu Fico”, envolve, porém, um mistério. Tobias Monteiro tomou gosto pela história do Segundo Reinado ao escrever sobre a queda do regime e a proclamação da República. Para ele, ao receber o abaixo-assinado, Dom Pedro teria dito: - “Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as cortes e o meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido”. Essa é a versão constante dos autos da vereação e do Edital publicados no mesmo dia – uma resposta prudente, sem rompimentos, na qual invocava “o bem de toda a nação portuguesa” e respeito às cortes e ao seu pai e rei de Portugal, Dom João VI. Misteriosamente, no dia seguinte um novo edital foi publicado com palavras mais enérgicas. Quem teria mudado a frase de Dom Pedro? As suspeitas recaem sobre a maçonaria carioca.  A nova versão historiográfica estava mais de acordo com as expectativas dos maçons do Rio de Janeiro, mentores do abaixo-assinado e interessados em promover o príncipe Dom Pedro à condição de protagonista da Independência.
      O documento tinha sido preparado nos dias anteriores em uma modesta cela no Convento de Santo Antônio, situado no Largo da Carioca. Seu ocupante, frei Francisco Sampaio, era ligado à maçonaria e foi o autor da representação que, em nome dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, seria entregue ao príncipe pedindo que ficasse no Brasil. Basta observar o quadro da Independência elaborado por Pedro Américo.  Observe no encontro das tropas. A tropa portuguesa vem ao encontro da tropa de D. Pedro, uns estão com espadas erguidas para simular uma luta que não ocorreu e outros soldados estão com chapéus estendidos. Eles estão saudando uns aos outros como que celebrando a farsa que teria dado certo.  Enquanto as tropas se saudavam, uns peões observam “bestializados” sem entender bulhufas o que estava acontecendo, à direita do quadro um negro de chapéu e roupas simples à frente o carro de boi olha atônito. Não houve derramamento de sangue, não houve uma revolução nem uma guerra, não houve combate que justificasse o dia da Independência. Mas o mito do herói na memória do brasileiro que acredita mesmo que D. Pedro teria traído a sua pátria.
      Foram cerca de 8 mil assinaturas recolhidas no abaixo assinado feito por José Bonifácio entregue a D. Pedro. Portanto, a Independência representa uma farsa que as elites políticas conseguiram transcrever em livros para a sociedade escravagista como verdadeira.  O impulso revolucionário do capitalismo no sentido da utilização das línguas vulgares recebeu um ímpeto adicional de três fatores externos, segundo Anderson (1989: 46), dois dos quais contribuíram diretamente para o surgimento da consciência nacional. O primeiro deles, e em última análise o menos importante, foi uma alteração no caráter da própria língua latina. Graças ao labor dos humanistas, fazendo renascer a enorme literatura da antiguidade pré-cristã e disseminando-a por meio do mercado editorial, tornou-se patente, no seio da//intelligentsia transeuropeia, uma nova forma de apreciar os elaborados resultados estilísticos dos antigos. O latim que agora se pretendia escrever tornava-se cada vez mais ciceroniano e, como prova disso, cada vez mais afastado da vida eclesiástica e da vida quotidiana. Dessa maneira, ele adquiriu uma característica esotérica, muito diversa da do latim da Igreja da época medieval.
Pois o antigo-Latim não era obscuro devido a seu conteúdo ou a seu estilo, mas apenas por ser inteiramente escrito, isto é, devido a seu status como texto. Agora, tornava-se obscuro devido ao que era escrito, devido à linguagem em si mesma. Em segundo lugar, foi o impacto da Reforma que, ao mesmo tempo, deveu muito de seu êxito ao capitalismo editorial. Antes da Era da Imprensa, Roma ganhava facilmente todas as guerras contra a heresia na Europa ocidental, porque sempre teve linhas internas de comunicação melhores que seus desafiantes. Quando, porém, em 1517, Martinho Lutero afixou suas teses na porta da capela em Wittenberg, elas foram impressas em tradução pari pasu para o alemão e, “no espaço de quinze dias [haviam sido] conhecidos em todos os cantos do país”. Nas duas décadas de 1520-1540, foram editadas três vezes mais livros na Alemanha do que no período de 1500-1520, transformação espantosa, para a qual Lutero foi absolutamente fundamental.
A coalizão entre o protestantismo e o capitalismo editorial, que explorava edições populares baratas, criou rapidamente grandes públicos leitores novos - inclusive entre mercadores e mulheres, que tipicamente pouco ou nada. Conheciam de latim - e simultaneamente mobilizava-os para fins político-religiosos. Inevitavelmente, não era apenas a Igreja que se abalava em seus fundamentos. O mesmo terremoto produziu os primeiros Estados europeus não dinásticos e não cidades-estados de importância, na República da Holanda e na Comunidade dos Puritanos. Em terceiro lugar, havia a disseminação, lenta e geograficamente desigual, de línguas vulgares específicas como instrumento de centralização administrativa por determinados “pseudomonarcas”, na expressão de Anderson, absolutos presuntivos bem posicionados. É conveniente que se lembre, aqui, que a universalidade do latim na Europa ocidental medieval jamais correspondeu a um sistema político universal. É instrutivo o contraste comparativo com a China Imperial, onde o âmbito da burocracia dos mandarins e a dos caracteres desenhados coincidia em grande medida. A fragmentação política da Europa ocidental, após o colapso do Império do Ocidente, significava que nenhum soberano poderia monopolizar o latim e torná-lo sua língua oficial exclusiva e, desse modo, a autoridade religiosa do latim nunca possuiu um verdadeiro correspondente político.
Contudo, é óbvio que, embora hoje em dia quase todas as pretensas nações - e também as nações-Estado - possuam “línguas impressas nacionais”, muitas delas possuem essas línguas em comum e, em outras, apenas uma fração mínima da população “usa” a língua nacional em conversa ou no papel. Os Estados-nação da América Espanhola, ou os da “família anglo-saxônica” são exemplos notáveis do primeiro resultado; muitos ex-Estados coloniais, particularmente na África, do segundo. Em outras palavras, a formação concreta dos Estados-nação contemporânea não é de modo algum isomórfica com o alcance estabelecido de determinadas línguas impressas. Para explicar-se a descontinuidade-em-conexão entre línguas impressas, consciências nacionais e Estados-nação, é necessário voltar-se para o amplo conjunto das novas sociedades que brotaram no hemisfério ocidental entre 1776 e 1838, todas as quais se definiram conscientemente como nação e, com a curiosa exceção do Brasil, como republica (não dinásticas). Pois não apenas eram elas historicamente os primeiros Estados desse tipo a surgir no mundo, e inevitavelmente os primeiros modelos reais de com que deveriam esses Estados “se parecerem”, como também o número delas e seu aparecimento simultâneo oferecem terreno fértil para um estudo comparativo.


De modo muito semelhante, assim que se imprimiram a respeito deles, os movimentos de independência nas Américas se tornaram “conceitos”, “modelos” e, de fato, “projetos”. Na realidade, o medo de Simon Bolívar das insurreições de negros e a convocação de San Martin de seus indígenas à “peruanidade” chocam-se caoticamente. Mas a palavra impressa eliminou o primeiro quase que imediatamente, de tal modo que, ainda que lembrado, aparece como uma anomalia inconsequente. Da confusão da americanidade brotam estas comunidades imaginadas: Estados-nação, instituições republicanas, cidadania universal, soberania popular, bandeiras e símbolos nacionais, etc., e em consequência a liquidação de seus contrários: impérios dinásticos, instituições monárquicas, absolutismos, vassalagens, nobrezas hereditárias, servidões, guetos, etc. A criação de um discurso comum, compartilhado e isolado em diferentes agrupamentos geográficos, foi o primeiro passo para a formação da comunidade imaginada que complementou as formas institucionais já existentes dos Estados nacionais. Para Anderson, o ideário do nacionalismo e das nações é incompleto sem que a formação e dinâmicas dessa espécie de comunidade extra- institucional sejam consideradas.
Como teóricos anteriores, por exemplo, Johann Gottfried Herder, Anderson evita resumir a nação a um fenômeno puramente institucional, ao conceito filosófico de Estado. Como lemos na introdução à segunda edição do livro, tanto o marxismo quanto o liberalismo de sua época não fracassaram em compreender o conceito da nação, mas por se afiliarem demais à versão oficial do conceito. Em contraste com outros analistas que, como Anderson, acreditam que o nacionalismo seja uma interpretação derivada do Iluminismo e das revoluções do século XVIII, ele não é hostil à ideologia nacionalista, nem pensa que ela seja uma crença obsoleta no mundo globalizado. Anderson valoriza o elemento utópico nas ideologias nacionalistas e seu conceito de utopia, por sua vez, é largamente derivado do de Ernst Bloch. Nada mais constante no contexto colonialista, do que a supressão generalizada da escravidão maciça dos Estados Unidos da América, modais do século XIX, e da língua compartilhada das repúblicas modais da América Latina. Além disso, a validade e a generalidade do projeto singular se confirmaram indubitavelmente pelo pluralismo dos Estados independentes. Sustentamos a tese segundo a qual o Brasil, como “povo-nação” é visto socialmente  como uma “comunidade imaginada” na História, Antropologia e Teoria Política, exceto na Sociologia, que não confunde as práticas dos rituais com seu sentido na história.  
Vale lembrar que a nação é uma representação cultural, política e social que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui efetivamente em uma “comunidade política imaginada”. Nesse processo de construção histórica, a relação etnográfica entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a modernidade é uma constante e se reveste de importância, portanto fundamental. Assim como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói uma identidade nacional que procura dar uma imagem à comunidade abrangida por ela. Nesse sentido o processo de consolidação dos Estados-nações é extremamente recente, mesmo em sociedades que atualmente parecem ser bem integradas. De outra parte, há casos em que uma mesma sociedade é representada como se fosse dividida em duas grandes regiões antagônicas. Um ponto de referência para elucidar a questão é o processo de unificação nacional que acompanha a formação do Estado e que, além de centralizar o poder, tem se demonstrado contrário à manutenção das diversidades regionais e culturais.
O regionalismo, nessa perspectiva, desvinculando a parte do todo, pode ser encarado como um “campo de forças” nos quais grupos com diferentes posições e interesses se enfrentam. Neste sentido, as lutas a propósito da identidade regional se constituem num caso particular de lutas de classificação, lutas pelo monopólio de impor a definição legítima da di-visão do mundo social. Além disso, a construção social da memória se reveste de importância fundamental. Maurice Halbwachs demonstra como a memória pessoal está ligada à memória grupal, e esta por sua vez à memória coletiva de cada sociedade que poderia ser chamada de tradição. Na medida em que a nação era vista como a forma aparentemente acabada de um grupo, a memória nacional representaria a forma mais completa de uma memória coletiva.  Mas não se constitui como fato empiricamente demonstrável, uma vez que a problemática da nação e da tradição permanece inoperável, num mundo que tende a se tornar uma “aldeia global”. Mas só aparentemente quando as pessoas continuam a nascer num determinado país e região, a falar sua língua, a adquirir seus costumes, a se identificar com seus símbolos e valores, a torcer por suas seleções nacionais de esportes, a respeitar sua bandeira e a serem convocados para defender as fronteiras da pátria e morrer pela honra nacional.
Assim, constatada a existência de uma concepção e de vasto referencial historiográfico com definida fundamentação ideológica, pressupostos teóricos, objetos, metodologia e resultados cognitivos relevantes e influentes em momentos posteriores da ciência social brasileira e do “culto à memória nacional”, equacionar como e por que se construiu o discurso historiográfico, como se manipulou as fontes documentais, qual a interpretação da história do Brasil que lhe foi consequente e que articulação teve com o quadro histórico em que foi gerado? Particularmente, mas não apenas, na conjuntura histórica que se estende de 1838 a 1854. Daí que do ponto de vista ideológico a questão da unidade nacional, consolidada graças à institucionalização aparentemente “bem-sucedida”, do ângulo da hegemonia sócio-política no Segundo Reinado (1840-1889), existem na historiografia brasileira contemporânea, particularmente, três tipos de teses acadêmicas.
Em primeiro lugar as tradicionalmente inspiradas pelo nacionalismo e enraizadas no próprio século XIX, têm como preocupação maior a justificação e o elogio da fórmula política encontrada com a Maioridade; em segundo lugar, as análises neomarxistas, em graus variáveis, procuram associar a centralização do Segundo Reinado e a unidade do país à ação (ou reação) da classe dominante rural pragmática contra as tendências centrífugas, sobretudo pelo que estas pudessem significar de risco para o statu quo escravista; em terceiro lugar, as de inspiração weberiana, que por sua vez, apontam para a formação de um “estamento burocrático” com finalidades próprias e que acabaria por manipular ao seu talante as frações das classes sociais, jogando com seus interesses complementares e contraditórios. Quer designemos a questão da consolidação do Estado nacional pelos nomes de “projeto político regressista”, “tempo Saquarema” ou “ação política do liberalismo doutrinário”, o fato central está em que este o supunha a afirmação de uma cultura nacional por meio - naturalmente, não fosse à época historicista - do culto e da criação de uma memória nacional. 
Para o historiador José Honório Rodrigues (1978), F. A. de Varnhagen é um mestre da história geral do Brasil por várias razões. Metodologicamente falando, vale lembrar, por que como historiador, todos os seus contemporâneos, desde 1878 – data de sua morte e do elogio do escritor cearense Capistrano de Abreu – até os dias de hoje é um historiador incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou; incomparável pela publicação de inéditos que promoveu; incomparável pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira, até então nunca palmilhados; incomparável pela obra preliminar que antecede sua História do Brasil; incomparável por esta mesma História Geral, que desconhecia antecessores nacionais; incomparável, ainda, pela própria obra complementar que supre lacunas e amplia o horizonte do conhecimento; incomparável, finalmente, porque a obra parcial, como a História dos Holandeses no Brasil ou a História da Independência, representa, na conjuntura história de seu tempo, um novo avanço metodológico e historiográfico e uma nova aquisição da consciência nacional.
Realmente, a História geral do Brasil contém como revelação de fatos mais do que se pode esperar o leitor desavisado. O que é desastroso, para alguns críticos, mesmos nos dias de hoje, diz respeito ao fato de que, “a distribuição da matéria não obedece a critérios rigorosos; segue mais a cronologia que a temática; a intitulação dos capítulos é inexpressiva, pois mais esconde que revela as novidades que contêm”. Porque é mais cronológica que temática, na concepção geral, é também expressão de um processo construtivo mais estático que dinâmico. Quando repete o mesmo tema – os progressos do Brasil, por exemplo, nos respectivos séculos XVI, XVII e XVIII – inspirado, creio eu, no historiador inglês Robert Southey, que assim o fizera, a dinâmica do processo histórico se caracteriza, tendo em vista que “o grande tema é a obra da colonização portuguesa no Brasil”.
O longo e sinuoso caminho colonial da história do Brasil não foi escondido por Varnhagen, pois quem ler integralmente a História geral do Brasil verá que nela não se foge à verdade de que no Brasil o grande problema foi sempre garantir e assegurar a maioria contra os abusos e os excessos da minoria: perseguições políticas e religiosas, discriminações raciais, censura, absolutismo, falta de ensino, de imprensa, somam-se aos excessos dos castigos exemplares dados às maiorias conservadas sempre em estado de “minoridade política e civil”. Abusos das autoridades, lutas entre governadores e magistrados, a corrupção e relaxação das minorias dirigentes – os governos longos, de trinta, de vinte e cinco, de quinze anos não são exceção – dão ipso facto à História geral do Brasil, escrita, como é sabido por um conservador, um sentido revelador. Ou seja, não é surpresa que um homem tão solidamente fortificado na sua ideologia conservadora e na sua política pragmática, que jamais colocou o debate no terreno abstrato e absoluto da Justiça, mas no da convivência e da utilidade, como observou Capistrano de Abreu, deixasse ocultas as fraquezas essenciais do colonialismo.
O Estado é prioritário, como observou o historiador José Honório Rodrigues, “o povo é secundário”. Em toda a sua obra, a consolidação (estatal) da nação é o escopo; os fins do Estado são positivos sempre que visem à ampliação das fronteiras, à sua defesa ou à eliminação de inimigos – sejam “quilombolas, rebeldes ou indígenas”. Hoje com o golpe de Estado de 17 de abril de 2016, através do apoio incondicional de partidos de governo: PMDB e PSDB. Por tais manifestações, podemos admitir desde a historiografia de Francisco Adolfo de Varnhagen, embora não fosse um filósofo político e estivesse longe de constituir um pensamento explícito na política, foi, pragmaticamente falando, um hobbesiano-hegeliano em matéria de relações estatais. Ele admitiu a possibilidade de um Estado forte, maior do que a sociedade, criador da nação e aperfeiçoador pedagógico e étnico do povo, portanto, eis o ideal de Varnhagen”, hoje praticamente assumido pelas forças centristas reacionárias e contrárias à democracia e ás transformações sociais e políticas.   
Monumento à Independência do Brasil, Ipiranga/São Paulo - SP.
Não devemos perder de vista que a elite política imperial deu uma demonstração de força durante a década de 1860 e 1870, aproveitando-se de circunstâncias econômicas favoráveis no seu relacionamento com Portugal para afirmar sua ação no exterior, notadamente no continente europeu, respaldando um ato intervencionista desgastante como foi o da chamada guerra do Paraguai. Se, por um lado, a balança comercial pendia para a nação lusitana, por outro, o expressivo fluxo migratório na direção da América do Sul, conferia ao Brasil um notável poder de barganha, face à importância das remessas dos portugueses residentes no Império. Esse dinheiro enviado para o velho continente era essencial para cobrir o crônico déficit na balança de pagamentos de Portugal. Por força econômica dos interesses comerciais, financeiros e colonialistas de além-mar, o governo português foi obrigado a agir, só aparentemente com moderação e cautela, mesmo diante de agressões contra a colônia lusitana nas capitanias açucareira do Rio de Janeiro e de economia\ cafeeira em Pernambuco.
Além do que até o século XVII, com o absolutismo monárquico, o suplício, para lembrarmo-nos do filósofo Michel Foucault, quando tematiza “a ostentação dos suplícios” não desempenhava o papel de reparação moral; tinha, antes, o sentido de uma “cerimônia política”, o que lembra-nos certamente o lugar que ocupou o coliseu, do grego kolossaîon, pelo latim, colossaeu, anfiteatro da antiga Roma, objeto de sadismo como analisou brilhantemente o psicólogo Eric Fromm, mas que não trataremos agora. O delito como tal devia ser considerado como um desafio à soberania do monarca: ele perturbava a ordem de seu poder sobre os indivíduos e as coisas. “O suplício público, longo, terrificante, tinha exatamente a finalidade de reconstituir essa soberania; seu caráter espetacular servia para fazer participar o povo do reconhecimento dessa soberania”.
A valorização romântica, nacionalista e historicista do passado nacional cristalizou-se, entre outros aspectos, no indígena. Um bom exemplo reside no estado do Ceará, tradicionalmente considerado pela elite política como alencarina, o que dispensa-nos comentários. Quanto a ele, prevaleceu a crítica ao naturalismo de Rousseau: em vez de caracterizá-lo como “o homem primitivo”, foi visto por von Martius, p. ex., como o final de um processo cultural, o último elo de um processo civilizatório que entrara em decadência séculos antes. Aliás, o autor bávaro, premiado em 1843 pelo Instituto Histórico, qualificou a obra do historiador como “de amor à pátria”; no caso do Brasil, em especial, pede atenção para o fato de que a “mescla de povos” provoca uma situação peculiar jamais acontecida anteriormente na história, necessitando, mais do que em outros países, de uma “história popular” que explique o “desenvolvimento progressivo” do país. Apesar, portanto, da crença no “gênio da história”, segundo Wehling, para o “progresso da humanidade”, havia uma tensão permanente entre a valorização da cultura nacional e o padrão universal do naturalismo racionalista. No Instituto Histórico (IHGB), como na historiografia ocidental em geral, consolidar-se-ia a versão nacionalista e romântica do historicismo na constituição da nacionalidade.  

KOJÉVE, Alexandre, Introduction à la Lecture de Hegel. Paris: Éditions Gallimard, 1973; RODRIGUES, José Honório, História da História do Brasil. São Paulo: CEN, 1978; HEGEL, Friedrich, System der Wissenschaft/Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Editor Suhrkamp, 1986; “Bewusstsein”, pp. 82-136; ANDERSON, Benedict Ruth, Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Editora Ática, 1989; Idem, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London: Editor Verso, 1991; pp. 224 e ss.; CARVALHO, José Murilo de, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002; WEHLING, Arno, Estado, História, Memória. Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Tese de Titular em História. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira/UNIRIO, 1999; BELEM, Paula Rodrigues, “Para o bem do povo e felicidade geral da nação”: povo, nação, felicidade e soberania no Dia do Fico. Dissertação de Mestrado. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2011; CORDEIRO, Janaína Martins, Lembrar o Passado, Festejar o Presente: As Comemorações do Sesquicentenário da Independência entre Consenso e Consentimento (1972). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2012; CHARLE, Christophe, Homo Historicus: Réflexions sur L'histoire, les Historiens et les Sciences Sociales. Paris: Éditions Armand Colin, 2013; ENDERS, Armelle, Os Vultos da Nação: Fábrica de Heróis e Formação dos Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2014; entre outros.

2 comentários:

  1. Muito bom o texto, professor. A parte sobre a dialética hegeliana veio em boa hora, esclareceu muito a compreensão do método. Abraço!

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  2. Nara Lívia, eu darei uma conferência na UFC em julho sobre Hegel e Marx, fique atenta na programação, e se puder convide os colegas interessados. Ubiracy

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