domingo, 8 de janeiro de 2017

Filosofia da Libertação: situação e condições de possibilidade.

Felipe Augusto Ferreira Feijão*

         O discurso que legitima o ser humano enquanto pessoa, ser portador de direitos inalienáveis que essencialmente[1] dignificam a estrutura da condição humana em sua natureza, compõe o cerne justificativo e propositivo da tradição dos Direitos Humanos. Isso significa que após notáveis conquistas que marcam profundamente a história recente dos povos da América Latina, ainda que lideradas pela aristocracia e burguesia, o condicionamento que dimensiona a estratificação demarcativa, situa que consequentemente os direitos dos pobres não foram realizados.
            Ora, diante do belo discurso embasado por uma longa tradição de acontecimentos observados e registrados pela história e perante a vasta diversidade de pensamentos que colaboraram com essa temática como problema desde o início da América Latina, o percurso das diferentes declarações sobre os direitos dos pobres, sobretudo indígenas e negros, guiou a questão dos direitos humanos num sentido latino-americano desde o início da colonização no século XVI.
          Neste texto a América Latina terá preferência de exposição, por ser o terreno propício para a geração da reflexão a que se propõe a situação e as condições de possibilidade da filosofia da libertação mediante a instauração concreta dos direitos humanos. O legado da colonização de exploração, denotado nas relações de trabalho e nos modos como a formação do povo americano do Sul se adequou aos parâmetros europeus, explica bem o atual momento que colhe os amargos frutos desse passado.  
            Aníbal Quijano, vê na descoberta da América pelos europeus, uma nova configuração mundial gradualmente constituída. Devido a essa descoberta, houve então um choque do “Novo Mundo” com os padrões da sociedade tradicional europeia. Já se sabe bem do impacto estabelecido como resultado no imaginário europeu da descoberta de povos e culturas altamente distintas dos paradigmas tradicionais.
        Para Quijano, a criação da ideia de raça se dá pelo desenvolvimento do descobrimento da América, consequência das novas configurações, classificações e relações que começaram a entrar na cena da colonização. Nas palavras dele tal acontecimento ocasionou “identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial” [2].
            Isso representa o que o povo colonizado, desde o início enfrentou perante uma conquista altamente desmedida e desregrada, que sempre visou uma exploração desumana e usou de artifícios bastante prejudiciais para satisfazer os dominadores. Voltando-se para o Brasil, um exemplo de relevo de luta pelos direitos pode ser visto na resistência ao período ditatorial no Brasil: “os bispos e a CNBB romperam a censura imposta à palavra livre no Brasil (a partir de 1968) e anunciaram e denunciaram as violações sistemáticas aos direitos humanos, as torturas, a insuficiência dos salários, a expropriação das terras. A Igreja se fez o tribuno do povo” [3].

Menino Sentado - Cândido Portinari, 1945.
            Desse modo, a reflexão filosófica sempre se encontra em situação histórica, social e ética. A América Latina terá seu enfoque demarcado aqui porque como diz L. Boff: “emergem os pobres como fenômeno social, as grandes maiorias, marginalizados dos benefícios do processo produtivo e explorados como excedentes de uma sociedade que privilegia soluções técnicas a soluções sociais para os seus problemas” [4].
E como afirma Manfredo Oliveira, a reflexão nesse terreno se insere num contexto de que “países têm dívida externa, que não podem pagar, porque milhões de nossas crianças morrem antes de completar o primeiro ano de vida, porque a maioria de nosso povo vive em extrema pobreza, a filosofia tem de ter a coragem de refletir a partir da situação concreta e se confrontar com esses problemas” [5].
            A partir daí, emerge a necessidade de uma filosofia que seja capaz de corresponder aos anseios e as pautas do povo que clama por libertação das mais diferentes realidades que o escravizam. A Teologia da Libertação surge em Medellín no seio da Igreja Católica como resultado do processo histórico, político, social e econômico das sociedades da América Latina que se deparam com a necessidade de dialogar com as urgências populares conjugadas à estrutura eclesiástica, e a filosofia da libertação[6], por sua vez, não sem influencia da teologia sinonimamente designada, mas de forma autônoma, se elabora na Argentina nos anos 1970.
           Mas o que exprime a libertação aqui empregada? A palavra libertação designa um sentido ético: “ela expressa a rejeição dessa situação de humilhação da pessoa humana e aponta para a exigência de uma transformação radical dessa situação, a fim de que a liberdade, autonomia e irmandade se possam tornar realidade na vida humana histórica” [7].
            Em outras palavras a libertação aqui é entendida como empreendimento confrontante frente às determinações que surpreendem o ser humano, ou seja, as condições de vida de miséria, de dependência econômica, de coerção material exercida pelos dominantes[8], dentre outras.
          De fato, o ser humano não possui liberdade plena que o contemple de uma totalidade livre, mas possui liberdade na medida em que se liberta daquilo que o oprime. Todas as realidades descritas explicitam a opressão sofrida pelos povos e aqui com primordial atenção para a América Latina, uma vez que constitui cenário propício para o surgimento e desenvolvimento da teologia e filosofia da Libertação.
          Dessa forma, enquanto pretensão filosófica, a libertação precisa de antemão contar com o pressuposto da filosofia como reflexão histórica e ética para depois, uma vez que se exige nesse sentido um começo para a filosofia, [9] ao estar situada, ser transformada numa reflexão a partir da pobreza, ou seja, uma articulação propriamente como filosofia da libertação.
            Certamente, aqui a filosofia recebe a tarefa de ouvir o clamor do povo que sofre e que padece em decorrência do contexto político, social e econômico que o aprisiona. E a partir dessa escuta, refletir de modo que elabore propostas pertinentes, análises e críticas estruturais e conjunturais da relevância na qual se insere por natureza.
           É necessária a percepção de que o discurso cerne exposto no início deste texto, é o que alicerça e gradua a construção do edifício das condições de possibilidade para a efetivação dos direitos aos pobres. No entanto, a sociedade é marcada profundamente pela estratificação das classes sociais e existem os que dominam e os que são dominados.
A efetivação dos direitos está intrinsecamente ligada à realização democrática, como afirma Marilena Chauí: “a classe dominante não foi, não é nem será democrática e que por isso mesmo a ampliação do campo dos direitos decorre das lutas populares por cidadania” [10]. Por isso, a situação histórica e ética contribui eficazmente, uma vez que detecta e reflete as circunstâncias estabelecidas pelas injustiças historicamente legadas aos povos. Exatamente pelo fato de haver forte desigualdade social e pela constatação de que a opressão advém ao pobre (oprimido) por parte dos que dominam (opressores), é que se levanta a importância de filosofar tendo como opção preferencial os pobres[11].
        Portanto, o aparecimento na cena intelectual da filosofia da libertação exprime: a forte influência da religiosidade católica compreendida num sentido mais popular e o pensar e realizar a libertação humana integral. Vale ressaltar que apesar de a variedade bibliográfica de filosofia da libertação versar sobre o pensamento latino-americano, a validade de tal reflexão é universal, embora o enfoque da perspectiva se enquadre em sua manifestação significativa nos parâmetros condicionais da América Latina.

Criança Morta - Cândido Portinari, 1944.

         Segundo J. C. Scannone,[12] a realização da filosofia latino-americana se dá pela vertente dos que filosofam na América Latina e dos que explicitamente filosofam a partir da perspectiva latino-americana. A contribuição da reflexão desses pensamentos visualiza a possibilidade da América Latina ter sua palavra no diálogo intercultural. A prevalência da “inspiração cristã” nesse pensamento encontra respaldo porque o desenvolvimento de tal empreendimento possui sua gênese e constituição no seio religioso preferencialmente cristão, e é a partir dele que toma forma.  
          Diante do enquadramento do conjunto sul-americano como estrutura sofrida e castigada por situações gritantes de negação de assistência básica para a dignidade humana que aguardam generosa atenção por parte dos governos dos países e do horizonte estabelecido pela reflexão enquanto filosofia da libertação pode-se falar de direitos humanos através da ótica do pensamento enquanto tal.
         Entretanto, esse tema de direitos precisa ganhar uma concretude efetiva e realizável na vida social não só da América Latina, mas como validade universal tal discurso alcança todos os continentes. A institucionalização dos direitos pressupõe as condições de possibilidade para a sua instauração, isto é, entra em cena a problemática do processo de libertação, o que significa a percepção e o reconhecimento de tarefas a serem trabalhadas pelas ciências na experiência das situações sociais e da condução da possível transformação.
         As luta, as manifestações, as intervenções inseridas no contexto de sofrimento e de opressão, se tornam exigência do processo histórico de conquista do básico que se dispõe hoje, mas que não se curva ante ao que ainda precisa ser reivindicado como direito, como necessidade básica, e como novas perspectivas que se estabelecem como direito a serem efetivados. Assim, a libertação se constitui “uma filosofia que, conscientemente assume sua responsabilidade frente ao mundo histórico” [13].

Bibliografia geral consultada:

BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e poder. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 50;  CHAUÍ, Marilena, Simulacro e poder. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 112;  OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 213; QUIJANO, Aníbal, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Benos Aires: CLACSO, 2005. p. 107; REIS, Palhares Moreira, O poder político e seus elementos. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000, p. 85; SCANNONE, Juan Carlos; REMOLINA, Gerardo, Filosofar en situación de indigencia. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 1999, p. 64;  SCANNONE, Juan Carlos, Fé cristã e filosofia hoje na América Latina. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
        

[1] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 213.
[2] QUIJANO, Aníbal, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Benos Aires: CLACSO, 2005. p. 107.
[3] BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e poder. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 50.
[4] Ibid. p. 45.                                                                        
[5] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 208.
[6] SCANNONE, Juan Carlos, Fé cristã e filosofia hoje na América Latina. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
[7] Op. cit. p. 204.
[8] REIS, Palhares Moreira, O poder político e seus elementos. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000, p. 85.
[9] Op. cit. p. 208.
[10] CHAUÍ, Marilena, Simulacro e poder. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 112.
[11] SCANNONE, Juan Carlos; REMOLINA, Gerardo, Filosofar en situación de indigencia. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 1999, p. 64.
[12] SCANNONE, Juan Carlos, Fé cristã e filosofia hoje na América Latina. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
[13] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 215.

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*Aluno do curso de Bacharelado em Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza.

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