Felipe Augusto Ferreira Feijão*
O discurso que legitima o ser humano
enquanto pessoa, ser portador de direitos inalienáveis que essencialmente[1]
dignificam a estrutura da condição humana em sua natureza, compõe o cerne justificativo
e propositivo da tradição dos Direitos Humanos. Isso significa que após
notáveis conquistas que marcam profundamente a história recente dos povos da
América Latina, ainda que lideradas pela aristocracia e burguesia, o
condicionamento que dimensiona a estratificação demarcativa, situa que
consequentemente os direitos dos pobres não foram realizados.
Ora, diante do belo discurso
embasado por uma longa tradição de acontecimentos observados e registrados pela
história e perante a vasta diversidade de pensamentos que colaboraram com essa
temática como problema desde o início da América Latina, o percurso das
diferentes declarações sobre os direitos dos pobres, sobretudo indígenas e
negros, guiou a questão dos direitos humanos num sentido latino-americano desde
o início da colonização no século XVI.
Neste texto a América Latina terá
preferência de exposição, por ser o terreno propício para a geração da reflexão
a que se propõe a situação e as condições de possibilidade da filosofia da
libertação mediante a instauração concreta dos direitos humanos. O legado da
colonização de exploração, denotado nas relações de trabalho e nos modos como a
formação do povo americano do Sul se adequou aos parâmetros europeus, explica
bem o atual momento que colhe os amargos frutos desse passado.
Aníbal Quijano, vê na descoberta da
América pelos europeus, uma nova configuração mundial gradualmente constituída.
Devido a essa descoberta, houve então um choque do “Novo Mundo” com os padrões
da sociedade tradicional europeia. Já se sabe bem do impacto estabelecido como
resultado no imaginário europeu da descoberta de povos e culturas altamente
distintas dos paradigmas tradicionais.
Para Quijano, a criação da ideia de
raça se dá pelo desenvolvimento do descobrimento da América, consequência das
novas configurações, classificações e relações que começaram a entrar na cena
da colonização. Nas palavras dele tal acontecimento ocasionou “identidades
sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras.
Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então
indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então
adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial” [2].
Isso representa o que o povo
colonizado, desde o início enfrentou perante uma conquista altamente desmedida
e desregrada, que sempre visou uma exploração desumana e usou de artifícios
bastante prejudiciais para satisfazer os dominadores. Voltando-se para o Brasil, um
exemplo de relevo de luta pelos direitos pode ser visto na resistência ao
período ditatorial no Brasil: “os bispos e a CNBB romperam a censura imposta à
palavra livre no Brasil (a partir de 1968) e anunciaram e denunciaram as
violações sistemáticas aos direitos humanos, as torturas, a insuficiência dos
salários, a expropriação das terras. A Igreja se fez o tribuno do povo” [3].
Menino Sentado - Cândido Portinari, 1945. |
Desse modo, a reflexão filosófica sempre se encontra em situação histórica, social e ética. A
América Latina terá seu enfoque demarcado aqui porque como diz L. Boff: “emergem
os pobres como fenômeno social, as grandes maiorias, marginalizados dos
benefícios do processo produtivo e explorados como excedentes de uma sociedade
que privilegia soluções técnicas a soluções sociais para os seus problemas” [4].
E
como afirma Manfredo Oliveira, a reflexão nesse terreno se insere num contexto de
que “países têm dívida externa, que não podem pagar, porque milhões de nossas
crianças morrem antes de completar o primeiro ano de vida, porque a maioria de
nosso povo vive em extrema pobreza, a filosofia tem de ter a coragem de
refletir a partir da situação concreta e se confrontar com esses problemas” [5].
A partir daí, emerge a necessidade
de uma filosofia que seja capaz de corresponder aos anseios e as pautas do povo
que clama por libertação das mais
diferentes realidades que o escravizam. A Teologia da Libertação surge em
Medellín no seio da Igreja Católica como resultado do processo histórico,
político, social e econômico das sociedades da América Latina que se deparam
com a necessidade de dialogar com as urgências populares conjugadas à estrutura
eclesiástica, e a filosofia da libertação[6],
por sua vez, não sem influencia da teologia sinonimamente designada, mas de
forma autônoma, se elabora na Argentina nos anos 1970.
Mas o que exprime a libertação aqui empregada? A palavra libertação designa um sentido ético:
“ela expressa a rejeição dessa situação de humilhação da pessoa humana e aponta
para a exigência de uma transformação radical dessa situação, a fim de que a
liberdade, autonomia e irmandade se possam tornar realidade na vida humana
histórica” [7].
Em outras palavras a libertação aqui é entendida como
empreendimento confrontante frente às determinações que surpreendem o ser
humano, ou seja, as condições de vida de miséria, de dependência econômica, de
coerção material exercida pelos dominantes[8],
dentre outras.
De fato, o ser humano não possui
liberdade plena que o contemple de uma totalidade livre, mas possui liberdade
na medida em que se liberta daquilo que o oprime. Todas as realidades descritas
explicitam a opressão sofrida pelos povos e aqui com primordial atenção para a
América Latina, uma vez que constitui cenário propício para o surgimento e
desenvolvimento da teologia e filosofia da Libertação.
Dessa forma, enquanto pretensão
filosófica, a libertação precisa de antemão contar com o pressuposto da
filosofia como reflexão histórica e ética para depois, uma vez que se exige
nesse sentido um começo para a filosofia, [9] ao
estar situada, ser transformada numa reflexão a partir da pobreza, ou seja, uma
articulação propriamente como filosofia da libertação.
Certamente, aqui a filosofia recebe
a tarefa de ouvir o clamor do povo que sofre e que padece em decorrência do
contexto político, social e econômico que o aprisiona. E a partir dessa escuta,
refletir de modo que elabore propostas pertinentes, análises e críticas
estruturais e conjunturais da relevância na qual se insere por natureza.
É necessária a percepção de que o
discurso cerne exposto no início deste texto, é o que alicerça e gradua a
construção do edifício das condições de possibilidade para a efetivação dos
direitos aos pobres. No entanto, a sociedade é marcada profundamente pela
estratificação das classes sociais e existem os que dominam e os que são
dominados.
A
efetivação dos direitos está intrinsecamente ligada à realização democrática,
como afirma Marilena Chauí: “a classe dominante não foi, não é nem será
democrática e que por isso mesmo a ampliação do campo dos direitos decorre das
lutas populares por cidadania” [10]. Por
isso, a situação histórica e ética
contribui eficazmente, uma vez que detecta e reflete as circunstâncias
estabelecidas pelas injustiças historicamente legadas aos povos. Exatamente
pelo fato de haver forte desigualdade social e pela constatação de que a
opressão advém ao pobre (oprimido) por parte dos que dominam (opressores), é
que se levanta a importância de filosofar tendo como opção preferencial os
pobres[11].
Portanto, o aparecimento na cena
intelectual da filosofia da libertação exprime: a forte influência da
religiosidade católica compreendida num sentido mais popular e o pensar e
realizar a libertação humana integral. Vale ressaltar que apesar de a variedade
bibliográfica de filosofia da libertação versar sobre o pensamento latino-americano,
a validade de tal reflexão é universal, embora o enfoque da perspectiva se
enquadre em sua manifestação significativa nos parâmetros condicionais da
América Latina.
Criança Morta - Cândido Portinari, 1944. |
Segundo J. C. Scannone,[12] a
realização da filosofia latino-americana se dá pela vertente dos que filosofam
na América Latina e dos que explicitamente filosofam a partir da perspectiva
latino-americana. A contribuição da reflexão desses pensamentos visualiza a
possibilidade da América Latina ter sua palavra no diálogo intercultural. A
prevalência da “inspiração cristã” nesse pensamento encontra respaldo porque o
desenvolvimento de tal empreendimento possui sua gênese e constituição no seio religioso
preferencialmente cristão, e é a partir dele que toma forma.
Diante do enquadramento do conjunto
sul-americano como estrutura sofrida e castigada por situações gritantes de
negação de assistência básica para a dignidade humana que aguardam generosa
atenção por parte dos governos dos países e do horizonte estabelecido pela
reflexão enquanto filosofia da libertação pode-se falar de direitos humanos
através da ótica do pensamento enquanto tal.
Entretanto, esse tema de direitos
precisa ganhar uma concretude efetiva e realizável na vida social não só da
América Latina, mas como validade universal tal discurso alcança todos os
continentes. A institucionalização dos direitos pressupõe as condições de
possibilidade para a sua instauração, isto é, entra em cena a problemática do
processo de libertação, o que significa a percepção e o reconhecimento de tarefas
a serem trabalhadas pelas ciências na experiência das situações sociais e da
condução da possível transformação.
As luta, as manifestações, as
intervenções inseridas no contexto de sofrimento e de opressão, se tornam
exigência do processo histórico de conquista do básico que se dispõe hoje, mas
que não se curva ante ao que ainda precisa ser reivindicado como direito, como
necessidade básica, e como novas perspectivas que se estabelecem como direito a
serem efetivados. Assim, a libertação se constitui “uma filosofia que,
conscientemente assume sua responsabilidade frente ao mundo histórico” [13].
Bibliografia
geral consultada:
BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e poder. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 50; CHAUÍ, Marilena, Simulacro e poder. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 112; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito
e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 213; QUIJANO, Aníbal, “Colonialidade
do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: LANDER, Edgardo (org.), A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas. Benos Aires: CLACSO, 2005. p. 107; REIS, Palhares Moreira, O
poder político e seus elementos. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000, p.
85; SCANNONE, Juan Carlos; REMOLINA, Gerardo, Filosofar en situación de
indigencia. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 1999, p. 64; SCANNONE, Juan Carlos, “Fé cristã e filosofia
hoje na América Latina”. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
[1] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 213.
[2] QUIJANO, Aníbal, “Colonialidade
do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: LANDER, Edgardo (org.), A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas. Benos Aires: CLACSO, 2005. p. 107.
[4] Ibid. p. 45.
[6] SCANNONE, Juan Carlos, “Fé cristã
e filosofia hoje na América Latina”. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
[7] Op. cit. p. 204.
[8] REIS, Palhares Moreira, O poder
político e seus elementos. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000, p. 85.
[9]
Op. cit. p. 208.
[11] SCANNONE, Juan Carlos; REMOLINA,
Gerardo, Filosofar en situación de indigencia. Madrid: Universidad Pontificia
Comillas, 1999, p. 64.
[12] SCANNONE, Juan Carlos, “Fé cristã
e filosofia hoje na América Latina”. In: Síntese Nova Fase 56, 1992, p. 49-58.
________________
*Aluno
do curso de Bacharelado em Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza.
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