Giuliane de Alencar Braga & Ubiracy de Souza
Braga
“O que é que os profanos consideram num
trabalho científico, sobretudo nas ciências sociais?”. Pierre
Bourdieu
No dia 16 de abril de 2002, em
Paris, no anfiteatro lotado da École des
Hautes Études en Sciences Sociales, no número 105 do Boulevard Raspail, um grupo de pesquisadores tomou a palavra diante
de um público variado e atento, para evocar os rastros vivos deixados por um
deles. Reunidos em torno de um nome e de uma obra, muitas gerações ficavam lado
a lado ou frente a frente segundo as escansões da jornada, construindo um
corrente em torno de uma herança intelectual comum. Da tribuna, percebia-se a
disposição da assistência, trespassada pela curiosidade de saber o que
significaria falar de Pierre Bourdieu a partir de então, mas também por aquela de
reconhecer os rostos daqueles que estiveram ao seu lado. Como no teatro Ópera [infelizmente], a distribuição dos
lugares não era aleatória, obedecia a uma hierarquia
universitária: os estudantes, mais numerosos, apressavam-se para as galerias,
enquanto os professores e pesquisadores sucediam-se na plateia e na tribuna,
numa feliz mistura. No entanto, nenhum maestro, nenhum organizador improvisado,
a não ser uma presença perceptível de Bourdieu, restituída por palavras e
inflexões de voz (cf. Encrevé e Lagrave, 2005).
Mas a trama desta obra conserva a
organização da jornada, retomada no título, salvo o grupo das “grandes
testemunhas”, em todas as acepções da expressão: Jean-Claude Passeron, Pierre
Vidal-Naquet, Lucien Bianco, condiscípulos ou colegas de Pierre Bourdieu. Por
intermédio desses testemunhos, desdobra-se um fragmento do universo das
ciências sociais de uma época, durante a qual os encontros fortuitos ou
sociologicamente prováveis tecem destinos cruzados. Anedotas, retratos de
grupos, relatos jocosos, travessuras colegiais, discussões epistemológicas
sobre o conteúdo e a forma refletem a atmosfera e os modos de trabalho de uma
geração de universitários do pós-guerra, alcançada pela guerra da Argélia. As
intervenções distribuem-se, em seguida, em torno de cinco temas, bem como em
torno de marcos da prática e da teoria de Bourdieu: reflexividade, lógicas da
prática, classificações, organização dos bens simbólicos e das formas de
dominação. Desses textos, para o que nos interessa, “não se extrai nenhuma
representação acabada, e o conjunto deixa intactas a parte do silêncio e a
complexidade inseparavelmente científica e política da obra e do homem,
restituídos apenas em filigrana, zonas de sombra invocando pesquisas futuras”. Entre
os cursos que Pierre Bourdieu proferiu durante os vinte anos que ocupou a
cátedra de sociologia do Collège de France, o volume: Sobre o Estado (2014) contém “in extenso” o curso dedicado ao
Estado, que se distribuiu em três anos letivos entre 1989-1991.
Neste
período ele publicou vários textos distintos dedicados à emergência do campo
jurídico, ao funcionamento do campo administrativo a partir de uma pesquisa
sobre a política de habitação na França, bem como à gênese e à estrutura do
campo burocrático. Nosso interesse nestas notas refere-se ao quase inesperado
encontro de Bourdieu num programa de sociologia do Estado, pois o conceito
Estado aparece apenas em sua obra no início dos anos 1980, durante sua aula
inaugural no Collège de France. Mesmo quando suas pesquisas se referiam, desde
a segunda metade dos anos 1960, ao que comparativamente na França é quase
sempre associada ao Estado – a “ideologia dominante”, a “representação
política”, a “eficácia da ação política”, as “ciências do governo” e, mais
geralmente, os “modos de dominação”, as “estratégias de reprodução”, no âmbito
de seus trabalhos sobre as estruturas e as funções do sistema de ensino -, ele
não empregava a palavra senão nas suas acepções mais correntes do ponto de vista da análise comparada como as de
“Estado-providência” ou “Estado-nação”, sem fazer do Estado a menor análise
crítica.
Melhor
dizendo, as pesquisas que impulsionara, a partir dos anos 1970, no Centre de
Sociologie de l`Education et de la Culture sobre a estrutura das classes
dominantes – o patronato (1978), o episcopado (1982), a alta função pública e o
sistema das grandes escolas-, ligavam-se às frações das classes superiores que
tinham um papel estruturante e efetivo no campo de poder. Em 1982, o livro: “Ce
que Parler Veut Dire” reuniu um conjunto de estudos sobre a eficácia simbólica
dos discursos de autoridade, e notadamente o artigo: “Décrire et Prescrire: les
Conditions de possibilites et eles limites de l`efficacité politique”. Mas
nunca o Estado era aí assimilado ao campo político, cujo funcionamento era
estudado em artigos sobre as pesquisas de opinião e sobre a representação
política. A palavra “Estado” é usada somente em 1984, em Homo academicus, definida lapidarmente como “instância oficial,
reconhecida como legítima, isto é, como detentora do monopólio da violência simbólica legítima.
Em
seguida, é plenamente assumida no próprio título de seu livro: La Noblesse d`État, publicado em 1989
para celebrar “de outra forma” o bicentenário da Revolução Francesa, bem como
num conjunto de textos analisando a “ciência do Estado”, os “espíritos de
Estado” ou a “magia do Estado” – locuções quando não se sabe que, depois de
seus trabalhos sobre o campo do poder, utiliza o termo “Estado” para designar
instituições e agentes sociais que são ao mesmo tempo, e inseparavelmente,
produtores e produtos do Estado. Numa entrevista de 1988, ele declarou que as
pesquisas que fazia desde “La Distintion” (1979) sobre os campos literário,
artístico, universitário, intelectual, patronal, religioso, jurídico e
burocrático resultavam da lógica normal de trabalho e, em especial, da “busca
de compreensão do processo de gênese de um campo”. É também o caso do campo das
instituições estatais: o Estado é um campo que ocupa uma posição tal na
estrutura dos campos que ele condiciona em boa parte o funcionamento destes
últimos. Bem mais, o Estado pode mesmo aparecer como o campo de excelência e
até, segundo sua expressão, como um “metacampo” porque “o Estado é meta”, um
campo no qual as lutas têm como objeto a determinação da posição que os
diferentes campos devem legitimamente ocupar uns em relação aos outros.
A
fim de elaborar um modelo genético de Estado, Bourdieu apoia-se em diversos
trabalhos, mas considera essencialmente a definição que Max Weber dá ao Estado
como monopólio da violência física legítima, mas estende sua ação a toda
atividade simbólica, que ele coloca como princípio do funcionamento e da
legitimidade das instituições dedicadas ao direito, aos fundamentos
antropológicos da noção de interesse e de interesse “público que se outorga
como lei oficial a obrigação do desinteresse”. A importância do Estado reside,
na atenção propriamente sociológica que Bourdieu dava a todas as formas de
dominação. Em cada campo, tanto em sua gênese como em seu funcionamento, o
Estado está presente, e a teoria geral que ele projetava fazer com relação ao
Estado exigia uma análise que lhe fosse especificamente dedicada. O Estado não
se reduz a um aparelho de poder, nem a um lugar neutro de reabsorção dos
conflitos: constitui a forma de crença coletiva que estrutura o conjunto da
vida social nas sociedades fortemente diferenciadas (cf. Bourdieu, 2004:
493).
Um
dos efeitos maiores de um “campo científico” é definir coisas que são interessantes
em certo momento, que é preciso procurar e encontrar. O profano diz: por que
ele atribui tamanha importância ao problema do Estado? Se lhe atribui certa
importância é porque, fala-se disso nos jornais ou porque uma reforma está em
andamento. E, evidentemente, muitos semisociólogos, aqueles que criam mais
efeitos de esoterismo fictícios, são justamente os que só acham interessantes
os problemas quando todo o mundo os acha interessantes. Digo a vocês: - “Para
mim não é um sociólogo”, vocês dirão: - “é um golpe de força arbitrário, um ato
autoritário de censor que procura a distinção”. Então, afirma Pierre Bourdieu,
dou a vocês critérios muito importantes. Um sociólogo profissional é alguém que
acha interessantes os problemas que o campo científico constitui em determinado
momento como interessantes e que às vezes coincidem com o que acham interessante, mas não necessariamente. O que é verdade em teoria quanto à
problemática é também verdade quanto ao método.
O
profissional é alguém que se
interroga sobre certos problemas ligados a uma “história cumulativa” e que se esforçam
em resolvê-los com certos métodos, eles mesmos produzidos pela história
cumulativa. Os profanos que julgam os
trabalhos de profissionais se apressam em julgar os profissionais com critérios
profanos para se legitimarem como pseudoprofissionais realmente profanos. O que
é que os profanos consideram num trabalho científico, sobretudo nas ciências
sociais? Quanto ao sociólogo, ele é submetido constantemente a um veredicto
imediato, pois aquilo de que fala é importante espontaneamente para a maioria
das pessoas. A maioria dos profanos, entre os quais os jornalistas, não têm
sequer consciência de ser profanos na matéria; os melhores são os que sabem
seus limites. Os profanos consideram os resultados. Reduzem um trabalho
científico a teses. A tomadas de posição, que podem ser discutidas, que são
objeto de opinião assim como os gostos e as cores, as quais todo mundo pode
julgar com as armas ordinárias do discurso ordinário: toma-se posição sobre um
trabalho científico como se toma posição sobre a Guerra do Golfo [Pérsico], em
função da escala de opinião veiculada entre a esquerda/direita etc., ao passo
que o que conta são as problemáticas e os métodos; no máximo, o resultado é
secundário.
O
erro de quase todo erudito é viver numa torre de marfim – a lógica autônoma de
um campo que desenvolve, ele mesmo, de maneira autotética, seus próprios
problemas – e, assim sendo, quando encontra problemas de seu tempo encontra por
acaso. Isso faz com que haja aí uma injustiça essencial que sem levarem em
consideração a problemática específica obtém proveitos simbólicos no campo
científico. Isso permite desacreditar um adversário. Sem proceder ao corte, sem
instituir uma série de rupturas. Os profanos também estão em perigo por ter
confiança. Os semi-hábeis têm também um sentimento de naturalidade, como os
primeiros. Restam os hábeis: que não têm apenas o prazer de ver conceitos serem
elaborados de maneira um pouco mais satisfatória, mas também e, sobretudo de
encontrar esquemas de pensamento, hipóteses de pesquisa. Portanto, o Estado não
é simplesmente uma instância que diz: a ordem social é assim. Não é
simplesmente a universalização do interesse particular dos dominantes, que
consegue se impor aos dominados. É uma instância (instare) que constitui o
mundo social segundo certas estruturas. O Estado não é simplesmente um produtor
de discurso de legitimação.
O
Estado estrutura a própria ordem social
e junto nosso pensamento. Essa espécie de pensamento de Estado não é um
metadiscurso a respeito do mundo. É por isso que a imagem da superestrutura,
das ideologias como coisas que pairam acima, é absolutamente funesta, ao mesmo
tempo em que o constitui como ele o é, o faz como ele o é. Isso vale para tudo
que o Estado produz. O Estado é constitutivo da ordem social nesse duplo
sentido. O mundo social é um artefato histórico, um produto da história que é
esquecido em sua gênese em favor da amnésia da gênese que toca todas as
criações tidas como sociais. O Estado é desconhecido como histórico e
reconhecido por um reconhecimento absoluto que é o reconhecimento do
desconhecimento. Os dominantes em geral são silenciosos, não têm filosofia, não
têm discurso; começam a tê-los quando nós os importunamos, quando lhes dizemos:
- “Por que vocês são como são?”. Então, são obrigados a constituir como
ortodoxia, como discurso explicitamente conservador, o que até então se
afirmava, aquém do discurso, no modo do isso-é-óbvio.
Para
Bourdieu o Estado é o representante do produto da acumulação progressiva de
diferentes espécies de capital, econômico, de força física, simbólica, cultural
ou informacional. Essa acumulação, que se realizou em favor do nascimento do
Estado dinástico – cujas propriedades específicas será preciso caracterizar -,
acompanha-se de uma transmutação. A acumulação não é simplesmente uma soma:
ocorrem mudanças ligadas, por exemplo, ao fato de que a mesma instância acumula
diferentes espécies de capital que normalmente não são acumuladas pelas mesmas
categorias de pessoas. Portanto, tem-se um modelo de acumulação de diferentes
espécies de capital, de sua concentração. Num segundo tempo há um modelo de
transmutação qualitativa dessas diferentes espécies de capital, associada à
concentração. A segunda parte poderia ser: como se transformam os capitais
privados em capitais públicos? Como se constitui alguma coisa como capital
público? O que Bourdieu procura demonstrar, analisar, captar, é a lógica da
acumulação inicial de diferentes espécies de capital que, ao se acumularem,
sofrem uma transmutação que atualiza a crítica ao Estado contemporâneo.
Por
capital simbólico, “entendo essa
forma de capital que nasce da relação entre uma espécie qualquer de capital e
agente socializado de maneira a conhecer e reconhecer essa espécie de capital.
O capital simbólico, como a palavra diz, situa-se na ordem do conhecimento e do
reconhecimento. Para explicar, pego um exemplo simples que expus longamente nos
anos anteriores: a força, assim como Pascal a analisa. A força age como tal,
pelo constrangimento físico, mas também pela representação que aqueles que a
sofrem têm dessa força; a força mais buta e a mais brutal obtêm uma forma de
reconhecimento que vai além da simples submissão ao efeito físico da força.
Mesmo no caso mais extremo em que a espécie de capital é a mais próxima da
lógica do mundo físico, não há efeito físico que não se acompanhe, no mundo
humano, de um efeito simbólico. A estranheza da lógica das ações humanas faz
com que a força bruta não seja mais apenas força bruta: ela exerce uma força de
sedução, de persuasão, que decorre do fato de que consegue obter certa forma de
reconhecimento” (cf. Bourdieu, 2014: 259).
O
campo político é o lugar por excelência de exercício do capital simbólico: é um
lugar em que existir, ser, é ser percebido. Um político é, em grande medida, um
homem conhecido e reconhecido; não é um acaso se os políticos são
particularmente vulneráveis ao escândalo, sendo o escândalo gerador de
descrédito, e o descrédito é o inverso da acumulação do capital simbólico. O
capital social e o capital cultural já implicam o simbólico. A propensão de
capital social e o capital cultural a funcionar como capital simbólico é tão
forte que as análises científicas que constituíram o capital cultural como tal
são particularmente difíceis, já que o capital cultural é identificado como um
dom de natureza: aquele que detém o capital cultural da eloquência, da
inteligência ou da ciência é espontaneamente percebido como detentor de uma
autoridade legítima. É por isso que os poderes de tipo tecnocrático têm uma
autoridade de ouro tipo que não os poderes puramente militares, posto que a
autoridade deles repouse numa “espécie de capital espontaneamente reconhecida
como legítima”. Os dirigentes que têm uma autoridade ligada à ciência ou à
cultura são reconhecidos como dignos de exercer seu poder em nome de uma
competência que aparece fundada na natureza, na virtude ou no mérito. O capital
social, como capital de relações, é espontaneamente predisposto a funcionar
como capital simbólico. O capital
simbólico é esse capital que todo detentor de capital detém como
complemento.
Vale
lembrar que analisar a acumulação das diferentes formas de capital é darem-se
os meios de compreender sobre as outras espécies de capital. Essa distinção
entre a posse de capital e a posse de um capital que dá poder sobre esse
capital funciona em todos os tempos. O Estado, à medida que acumula em grande
quantidade diferentes espécies de capital, encontra-se dotado de um metacapital
que permite exercer um poder sobre qualquer capital. Essa definição, que parece
ser abstrata, torna-se muito concreta se a ligamos à noção de campo de poder,
lugar onde se enfrentam os detentores de capital, entre outras coisas sobre a
taxa de câmbio entre as diferentes espécies de capital. Ora, o Estado, como
detentor de um metacapital, é um campo dentro do qual os agentes lutam para
possuir um capital que dê poder sobre os outros campos. O Estado pode tomar
tais medidas transcampos porque se constitui progressivamente como uma espécie
de metacampo de um campo em que se produz, se conserva, se reproduz um capital
que dá poder sobre as outras espécies de capital. Um dos princípios
unificadores do campo de poder é que os que lutam pelo poder sobre o Estado,
por esse capital que dá poder sobre a conservação é a reprodução das diferentes
espécies de capital.
O
processo de concentração física de força pública se acompanha de uma
desmobilização da violência ordinária. A violência física só pode ser aplicada
por um agrupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim,
claramente identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um
agrupamento simbólico, centralizado e disciplinado. A noção de disciplina, sobre
a qual Max Weber escreveu páginas magníficas, é capital: não se pode concentrar
a força física sem, ao mesmo tempo, controla-la, do contrário é o desvio da
violência física, e o desvio da violência física está para a violência física
assim como o desvio de capitais está para a dimensão econômica: é o equivalente
da concussão. A violência física pode ser concentrada num corpo formado para
esse fim, claramente identificado em nome da sociedade pelo uniforme simbólico,
especializado e disciplinado, isto é, capaz de obedecer como um só homem a uma
ordem central que, em si mesma, não é geradora de nenhuma ordem.
O
conjunto das instituições mandatadas para garantir a ordem, a saber, as forças
públicas e de justiça, são, portanto, separadas pouco a pouco do mundo social
corrente. Essa concentração do capital físico se realiza em um duplo contexto.
Para uns, o desenvolvimento do exército profissional está ligado à guerra,
assim como o imposto; mas há também a guerra interior, a guerra civil, a
arrecadação do imposto como uma espécie de guerra civil. O Estado se constitui,
portanto, em relação a um duplo contexto: de um lado, em relação a outros
Estados atuais ou potenciais, isto é, os princípios concorrentes – portanto,
precisa concentrar “capital de força física” para travar a guerra pela terra,
pelos territórios; de outro lado, em relação a um contexto interno, a
contrapoderes, isto é, príncipes concorrentes ou classes dominadas que resistem
à arrecadação do imposto ou ao recrutamento de soldados. Esses dois fatores
favorecem a criação de exércitos poderosos dentro dos quais se distinguem
progressivamente forças propriamente militares e forças propriamente policiais
destinadas à manutenção da ordem interna. Essa distinção exército/polícia,
evidente hoje, tem uma genealogia extremamente lenta, as duas forças têm sido
por muito tempo confundido.
O
desenvolvimento do imposto está ligado às despesas de guerra. O nascimento do
imposto é simultâneo a uma acumulação de capital detido pelos profissionais da
gestão burocrática e à cumulação de um imenso capital informacional. É o
vínculo entre Estado e estatística: o Estado está associado a um conhecimento
racional do mundo social. A institucionalização do imposto é o desfecho de uma
espécie de guerra interior travada pelosa gentes do Estado contra as
resistências dos sujeitos. Os historiadores se perguntam, com muita razão, em
que momento aparece o sentimento de pertencer a um Estado, que não é
necessariamente o que se chama de patriotismo, o sentimento de ser um dos sujeitos
do Estado. A experiência de pertencimento a uma unidade [territorial] definida
está muito fortemente ligada à experiência da tributação. Nós nos descobrimos
como sujeitos descobrindo-nos como tributáveis, contribuintes. Há uma invenção
extraordinária de medidas jurídico-policiais destinadas a fazer pagarem os maus
pagadores, que são a ordem de prisão e a responsabilidade in solidum. Enfim, a metáfora de Norbert Elias dizendo que o Estado
não passa de uma extorsão legítima é mais que uma metáfora. Tendo em vista que se
trata de criar um corpo de agentes encarregados da coleta e capazes de operá-la
sem desviá-la em proveito próprio.
Era
preciso que os agentes e os métodos de cobrança fossem facilmente identificados
com a pessoa, a dignidade do poder, fosse legado da cidade, do senhor ou do
soberano. Os meirinhos precisavam usar sua libré, ter autorização de portar
seus emblemas, notificar suas ordens em nome dele. Precisavam ser percebidos
como mandatários tendo a plena potentia
agendi, e que essa delegação se manifestasse não só por uma ordem assinada
como também por uma libré que expressasse a dignidade e, ao mesmo tempo, a
legitimidade de sua função. Essa delegação, que é problemática – todo
mandatário pode desviar em benefício próprio os proveitos que pode tirar do
poder que lhe foi delegado -, implica um controle dos mandatários; portanto,
precisa-se de controladores dos cobradores de impostos. Para que os mandatários
exerçam seu ofício sem ter de recorrer cada vez à violência física, a autoridade
simbólica deles precisa ser reconhecida; faz referência tácita à ideia de que a
cobrança do imposto é legítima; a autoridade de quem mandata as pessoas
exercendo essas extorsões de fundos deve ser legítima, mesmo quando essas
extorsões de fundos parecem ser na realidade injusta.
Bibliografia
geral consultada.
BOURDIEU,
Pierre, “L`opinion publique n`existe pas”. In: Les Temps
Modernes, 318: 1292-1309, 1973; Idem, El Oficio de Sociólogo. Presupuestos Epistemológicos. Siglo Veintiuno
Editores, 1975; Idem, “L’Invention de la Vie d’Artiste”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
Paris, n° 2, Vol. 1, pp. 67-93, 1975; Idem, “Les Trois États du Capital Culturel”. In: Actes de la Recherche en Sciences
Sociales. Paris, n° 1, Vol. 30, 1979; Idem, La Distinction: Critique Social du Jugement. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1979; Idem, Homo Academicus. Paris: Éditions de Minuit, 1980; Idem, O Poder Simbólico.
Lisboa: Difel
- Difusão Editorial, 1989; Idem, Sobre
o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). 1ª edição. São Paulo:
Editora Companhia das Letras, 2014; BARANGER, Denis, “The Reception of Bourdieu in Latin America and Argentina”. In: Italian Journal of Sociology. Bolonha, n° 2, 2008; FERES, Glória Georges, A Pós-Graduação em Ensino de Ciências no Brasil: Uma Leitura a partir da Teoria de Bourdieu. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências. Bauru: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, 2010; SANTOS, José Vicente Tavares dos, “A Violência Simbólica: O Estado e as Práticas Sociais”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 108: 2015; pp. 183-190; CARDOZO, José Carlos da Silva, “Por uma
concepção mais ampla de Estado”. In: Revista
Tempo e Argumento. Florianópolis, Volume 7, n° 15, pp. 249-255, maio/ago.
2015; WATANABE, Graciella, A Divulgação Cientítica Produzida por Cientistas: Contribuições para o Capital Cultural. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação Interunidades em Ensino de Ciência. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; SOBRAL, Bruna Oliveira, O Pêndulo de Bourdieu: Variações na Operacionalização da Noção de Habitus. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Gradução em Sociologia. Recife: UNiversidade Federal de Pernambuco, 2017; entre outros.
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