terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Apenas Podemos Falar da Exegese do Desinteresse em Pierre Bourdieu.

                                                                                     Giuliane de Alencar Braga & Ubiracy de Souza Braga
 
O que é que os profanos consideram num trabalho científico, sobretudo nas ciências sociais?”. Pierre Bourdieu

                          
            No dia 16 de abril de 2002, em Paris, no anfiteatro lotado da École des Hautes Études en Sciences Sociales, no número 105 do Boulevard Raspail, um grupo de pesquisadores tomou a palavra diante de um público variado e atento, para evocar os rastros vivos deixados por um deles. Reunidos em torno de um nome e de uma obra, muitas gerações ficavam lado a lado ou frente a frente segundo as escansões da jornada, construindo um corrente em torno de uma herança intelectual comum. Da tribuna, percebia-se a disposição da assistência, trespassada pela curiosidade de saber o que significaria falar de Pierre Bourdieu a partir de então, mas também por aquela de reconhecer os rostos daqueles que estiveram ao seu lado. Como no teatro Ópera [infelizmente], a distribuição dos lugares não era aleatória, obedecia a uma hierarquia universitária: os estudantes, mais numerosos, apressavam-se para as galerias, enquanto os professores e pesquisadores sucediam-se na plateia e na tribuna, numa feliz mistura. No entanto, nenhum maestro, nenhum organizador improvisado, a não ser uma presença perceptível de Bourdieu, restituída por palavras e inflexões de voz (cf. Encrevé e Lagrave, 2005).
            Mas a trama desta obra conserva a organização da jornada, retomada no título, salvo o grupo das “grandes testemunhas”, em todas as acepções da expressão: Jean-Claude Passeron, Pierre Vidal-Naquet, Lucien Bianco, condiscípulos ou colegas de Pierre Bourdieu. Por intermédio desses testemunhos, desdobra-se um fragmento do universo das ciências sociais de uma época, durante a qual os encontros fortuitos ou sociologicamente prováveis tecem destinos cruzados. Anedotas, retratos de grupos, relatos jocosos, travessuras colegiais, discussões epistemológicas sobre o conteúdo e a forma refletem a atmosfera e os modos de trabalho de uma geração de universitários do pós-guerra, alcançada pela guerra da Argélia. As intervenções distribuem-se, em seguida, em torno de cinco temas, bem como em torno de marcos da prática e da teoria de Bourdieu: reflexividade, lógicas da prática, classificações, organização dos bens simbólicos e das formas de dominação. Desses textos, para o que nos interessa, “não se extrai nenhuma representação acabada, e o conjunto deixa intactas a parte do silêncio e a complexidade inseparavelmente científica e política da obra e do homem, restituídos apenas em filigrana, zonas de sombra invocando pesquisas futuras”. Entre os cursos que Pierre Bourdieu proferiu durante os vinte anos que ocupou a cátedra de sociologia do Collège de France, o volume: Sobre o Estado (2014) contém “in extenso” o curso dedicado ao Estado, que se distribuiu em três anos letivos entre 1989-1991.
                                                  

 Neste período ele publicou vários textos distintos dedicados à emergência do campo jurídico, ao funcionamento do campo administrativo a partir de uma pesquisa sobre a política de habitação na França, bem como à gênese e à estrutura do campo burocrático. Nosso interesse nestas notas refere-se ao quase inesperado encontro de Bourdieu num programa de sociologia do Estado, pois o conceito Estado aparece apenas em sua obra no início dos anos 1980, durante sua aula inaugural no Collège de France. Mesmo quando suas pesquisas se referiam, desde a segunda metade dos anos 1960, ao que comparativamente na França é quase sempre associada ao Estado – a “ideologia dominante”, a “representação política”, a “eficácia da ação política”, as “ciências do governo” e, mais geralmente, os “modos de dominação”, as “estratégias de reprodução”, no âmbito de seus trabalhos sobre as estruturas e as funções do sistema de ensino -, ele não empregava a palavra senão nas suas acepções mais correntes do ponto de vista da análise comparada como as de “Estado-providência” ou “Estado-nação”, sem fazer do Estado a menor análise crítica.  
Melhor dizendo, as pesquisas que impulsionara, a partir dos anos 1970, no Centre de Sociologie de l`Education et de la Culture sobre a estrutura das classes dominantes – o patronato (1978), o episcopado (1982), a alta função pública e o sistema das grandes escolas-, ligavam-se às frações das classes superiores que tinham um papel estruturante e efetivo no campo de poder. Em 1982, o livro: “Ce que Parler Veut Dire” reuniu um conjunto de estudos sobre a eficácia simbólica dos discursos de autoridade, e notadamente o artigo: “Décrire et Prescrire: les Conditions de possibilites et eles limites de l`efficacité politique”. Mas nunca o Estado era aí assimilado ao campo político, cujo funcionamento era estudado em artigos sobre as pesquisas de opinião e sobre a representação política. A palavra “Estado” é usada somente em 1984, em Homo academicus, definida lapidarmente como “instância oficial, reconhecida como legítima, isto é, como detentora do monopólio da violência simbólica legítima.
Em seguida, é plenamente assumida no próprio título de seu livro: La Noblesse d`État, publicado em 1989 para celebrar “de outra forma” o bicentenário da Revolução Francesa, bem como num conjunto de textos analisando a “ciência do Estado”, os “espíritos de Estado” ou a “magia do Estado” – locuções quando não se sabe que, depois de seus trabalhos sobre o campo do poder, utiliza o termo “Estado” para designar instituições e agentes sociais que são ao mesmo tempo, e inseparavelmente, produtores e produtos do Estado. Numa entrevista de 1988, ele declarou que as pesquisas que fazia desde “La Distintion” (1979) sobre os campos literário, artístico, universitário, intelectual, patronal, religioso, jurídico e burocrático resultavam da lógica normal de trabalho e, em especial, da “busca de compreensão do processo de gênese de um campo”. É também o caso do campo das instituições estatais: o Estado é um campo que ocupa uma posição tal na estrutura dos campos que ele condiciona em boa parte o funcionamento destes últimos. Bem mais, o Estado pode mesmo aparecer como o campo de excelência e até, segundo sua expressão, como um “metacampo” porque “o Estado é meta”, um campo no qual as lutas têm como objeto a determinação da posição que os diferentes campos devem legitimamente ocupar uns em relação aos outros.
A fim de elaborar um modelo genético de Estado, Bourdieu apoia-se em diversos trabalhos, mas considera essencialmente a definição que Max Weber dá ao Estado como monopólio da violência física legítima, mas estende sua ação a toda atividade simbólica, que ele coloca como princípio do funcionamento e da legitimidade das instituições dedicadas ao direito, aos fundamentos antropológicos da noção de interesse e de interesse “público que se outorga como lei oficial a obrigação do desinteresse”. A importância do Estado reside, na atenção propriamente sociológica que Bourdieu dava a todas as formas de dominação. Em cada campo, tanto em sua gênese como em seu funcionamento, o Estado está presente, e a teoria geral que ele projetava fazer com relação ao Estado exigia uma análise que lhe fosse especificamente dedicada. O Estado não se reduz a um aparelho de poder, nem a um lugar neutro de reabsorção dos conflitos: constitui a forma de crença coletiva que estrutura o conjunto da vida social nas sociedades fortemente diferenciadas (cf. Bourdieu, 2004: 493). 

Um dos efeitos maiores de um “campo científico” é definir coisas que são interessantes em certo momento, que é preciso procurar e encontrar. O profano diz: por que ele atribui tamanha importância ao problema do Estado? Se lhe atribui certa importância é porque, fala-se disso nos jornais ou porque uma reforma está em andamento. E, evidentemente, muitos semisociólogos, aqueles que criam mais efeitos de esoterismo fictícios, são justamente os que só acham interessantes os problemas quando todo o mundo os acha interessantes. Digo a vocês: - “Para mim não é um sociólogo”, vocês dirão: - “é um golpe de força arbitrário, um ato autoritário de censor que procura a distinção”. Então, afirma Pierre Bourdieu, dou a vocês critérios muito importantes. Um sociólogo profissional é alguém que acha interessantes os problemas que o campo científico constitui em determinado momento como interessantes e que às vezes coincidem com o que acham interessante, mas não necessariamente. O que é verdade em teoria quanto à problemática é também verdade quanto ao método.
O profissional é alguém que se interroga sobre certos problemas ligados a uma “história cumulativa” e que se esforçam em resolvê-los com certos métodos, eles mesmos produzidos pela história cumulativa. Os profanos que julgam os trabalhos de profissionais se apressam em julgar os profissionais com critérios profanos para se legitimarem como pseudoprofissionais realmente profanos. O que é que os profanos consideram num trabalho científico, sobretudo nas ciências sociais? Quanto ao sociólogo, ele é submetido constantemente a um veredicto imediato, pois aquilo de que fala é importante espontaneamente para a maioria das pessoas. A maioria dos profanos, entre os quais os jornalistas, não têm sequer consciência de ser profanos na matéria; os melhores são os que sabem seus limites. Os profanos consideram os resultados. Reduzem um trabalho científico a teses. A tomadas de posição, que podem ser discutidas, que são objeto de opinião assim como os gostos e as cores, as quais todo mundo pode julgar com as armas ordinárias do discurso ordinário: toma-se posição sobre um trabalho científico como se toma posição sobre a Guerra do Golfo [Pérsico], em função da escala de opinião veiculada entre a esquerda/direita etc., ao passo que o que conta são as problemáticas e os métodos; no máximo, o resultado é secundário.
O erro de quase todo erudito é viver numa torre de marfim – a lógica autônoma de um campo que desenvolve, ele mesmo, de maneira autotética, seus próprios problemas – e, assim sendo, quando encontra problemas de seu tempo encontra por acaso. Isso faz com que haja aí uma injustiça essencial que sem levarem em consideração a problemática específica obtém proveitos simbólicos no campo científico. Isso permite desacreditar um adversário. Sem proceder ao corte, sem instituir uma série de rupturas. Os profanos também estão em perigo por ter confiança. Os semi-hábeis têm também um sentimento de naturalidade, como os primeiros. Restam os hábeis: que não têm apenas o prazer de ver conceitos serem elaborados de maneira um pouco mais satisfatória, mas também e, sobretudo de encontrar esquemas de pensamento, hipóteses de pesquisa. Portanto, o Estado não é simplesmente uma instância que diz: a ordem social é assim. Não é simplesmente a universalização do interesse particular dos dominantes, que consegue se impor aos dominados. É uma instância (instare) que constitui o mundo social segundo certas estruturas. O Estado não é simplesmente um produtor de discurso de legitimação.
O Estado estrutura a própria ordem social e junto nosso pensamento. Essa espécie de pensamento de Estado não é um metadiscurso a respeito do mundo. É por isso que a imagem da superestrutura, das ideologias como coisas que pairam acima, é absolutamente funesta, ao mesmo tempo em que o constitui como ele o é, o faz como ele o é. Isso vale para tudo que o Estado produz. O Estado é constitutivo da ordem social nesse duplo sentido. O mundo social é um artefato histórico, um produto da história que é esquecido em sua gênese em favor da amnésia da gênese que toca todas as criações tidas como sociais. O Estado é desconhecido como histórico e reconhecido por um reconhecimento absoluto que é o reconhecimento do desconhecimento. Os dominantes em geral são silenciosos, não têm filosofia, não têm discurso; começam a tê-los quando nós os importunamos, quando lhes dizemos: - “Por que vocês são como são?”. Então, são obrigados a constituir como ortodoxia, como discurso explicitamente conservador, o que até então se afirmava, aquém do discurso, no modo do isso-é-óbvio.
Para Bourdieu o Estado é o representante do produto da acumulação progressiva de diferentes espécies de capital, econômico, de força física, simbólica, cultural ou informacional. Essa acumulação, que se realizou em favor do nascimento do Estado dinástico – cujas propriedades específicas será preciso caracterizar -, acompanha-se de uma transmutação. A acumulação não é simplesmente uma soma: ocorrem mudanças ligadas, por exemplo, ao fato de que a mesma instância acumula diferentes espécies de capital que normalmente não são acumuladas pelas mesmas categorias de pessoas. Portanto, tem-se um modelo de acumulação de diferentes espécies de capital, de sua concentração. Num segundo tempo há um modelo de transmutação qualitativa dessas diferentes espécies de capital, associada à concentração. A segunda parte poderia ser: como se transformam os capitais privados em capitais públicos? Como se constitui alguma coisa como capital público? O que Bourdieu procura demonstrar, analisar, captar, é a lógica da acumulação inicial de diferentes espécies de capital que, ao se acumularem, sofrem uma transmutação que atualiza a crítica ao Estado contemporâneo.
Por capital simbólico, “entendo essa forma de capital que nasce da relação entre uma espécie qualquer de capital e agente socializado de maneira a conhecer e reconhecer essa espécie de capital. O capital simbólico, como a palavra diz, situa-se na ordem do conhecimento e do reconhecimento. Para explicar, pego um exemplo simples que expus longamente nos anos anteriores: a força, assim como Pascal a analisa. A força age como tal, pelo constrangimento físico, mas também pela representação que aqueles que a sofrem têm dessa força; a força mais buta e a mais brutal obtêm uma forma de reconhecimento que vai além da simples submissão ao efeito físico da força. Mesmo no caso mais extremo em que a espécie de capital é a mais próxima da lógica do mundo físico, não há efeito físico que não se acompanhe, no mundo humano, de um efeito simbólico. A estranheza da lógica das ações humanas faz com que a força bruta não seja mais apenas força bruta: ela exerce uma força de sedução, de persuasão, que decorre do fato de que consegue obter certa forma de reconhecimento” (cf. Bourdieu, 2014: 259).
O campo político é o lugar por excelência de exercício do capital simbólico: é um lugar em que existir, ser, é ser percebido. Um político é, em grande medida, um homem conhecido e reconhecido; não é um acaso se os políticos são particularmente vulneráveis ao escândalo, sendo o escândalo gerador de descrédito, e o descrédito é o inverso da acumulação do capital simbólico. O capital social e o capital cultural já implicam o simbólico. A propensão de capital social e o capital cultural a funcionar como capital simbólico é tão forte que as análises científicas que constituíram o capital cultural como tal são particularmente difíceis, já que o capital cultural é identificado como um dom de natureza: aquele que detém o capital cultural da eloquência, da inteligência ou da ciência é espontaneamente percebido como detentor de uma autoridade legítima. É por isso que os poderes de tipo tecnocrático têm uma autoridade de ouro tipo que não os poderes puramente militares, posto que a autoridade deles repouse numa “espécie de capital espontaneamente reconhecida como legítima”. Os dirigentes que têm uma autoridade ligada à ciência ou à cultura são reconhecidos como dignos de exercer seu poder em nome de uma competência que aparece fundada na natureza, na virtude ou no mérito. O capital social, como capital de relações, é espontaneamente predisposto a funcionar como capital simbólico. O capital simbólico é esse capital que todo detentor de capital detém como complemento.
Vale lembrar que analisar a acumulação das diferentes formas de capital é darem-se os meios de compreender sobre as outras espécies de capital. Essa distinção entre a posse de capital e a posse de um capital que dá poder sobre esse capital funciona em todos os tempos. O Estado, à medida que acumula em grande quantidade diferentes espécies de capital, encontra-se dotado de um metacapital que permite exercer um poder sobre qualquer capital. Essa definição, que parece ser abstrata, torna-se muito concreta se a ligamos à noção de campo de poder, lugar onde se enfrentam os detentores de capital, entre outras coisas sobre a taxa de câmbio entre as diferentes espécies de capital. Ora, o Estado, como detentor de um metacapital, é um campo dentro do qual os agentes lutam para possuir um capital que dê poder sobre os outros campos. O Estado pode tomar tais medidas transcampos porque se constitui progressivamente como uma espécie de metacampo de um campo em que se produz, se conserva, se reproduz um capital que dá poder sobre as outras espécies de capital. Um dos princípios unificadores do campo de poder é que os que lutam pelo poder sobre o Estado, por esse capital que dá poder sobre a conservação é a reprodução das diferentes espécies de capital.  
O processo de concentração física de força pública se acompanha de uma desmobilização da violência ordinária. A violência física só pode ser aplicada por um agrupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim, claramente identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um agrupamento simbólico, centralizado e disciplinado. A noção de disciplina, sobre a qual Max Weber escreveu páginas magníficas, é capital: não se pode concentrar a força física sem, ao mesmo tempo, controla-la, do contrário é o desvio da violência física, e o desvio da violência física está para a violência física assim como o desvio de capitais está para a dimensão econômica: é o equivalente da concussão. A violência física pode ser concentrada num corpo formado para esse fim, claramente identificado em nome da sociedade pelo uniforme simbólico, especializado e disciplinado, isto é, capaz de obedecer como um só homem a uma ordem central que, em si mesma, não é geradora de nenhuma ordem.
O conjunto das instituições mandatadas para garantir a ordem, a saber, as forças públicas e de justiça, são, portanto, separadas pouco a pouco do mundo social corrente. Essa concentração do capital físico se realiza em um duplo contexto. Para uns, o desenvolvimento do exército profissional está ligado à guerra, assim como o imposto; mas há também a guerra interior, a guerra civil, a arrecadação do imposto como uma espécie de guerra civil. O Estado se constitui, portanto, em relação a um duplo contexto: de um lado, em relação a outros Estados atuais ou potenciais, isto é, os princípios concorrentes – portanto, precisa concentrar “capital de força física” para travar a guerra pela terra, pelos territórios; de outro lado, em relação a um contexto interno, a contrapoderes, isto é, príncipes concorrentes ou classes dominadas que resistem à arrecadação do imposto ou ao recrutamento de soldados. Esses dois fatores favorecem a criação de exércitos poderosos dentro dos quais se distinguem progressivamente forças propriamente militares e forças propriamente policiais destinadas à manutenção da ordem interna. Essa distinção exército/polícia, evidente hoje, tem uma genealogia extremamente lenta, as duas forças têm sido por muito tempo confundido.

O desenvolvimento do imposto está ligado às despesas de guerra. O nascimento do imposto é simultâneo a uma acumulação de capital detido pelos profissionais da gestão burocrática e à cumulação de um imenso capital informacional. É o vínculo entre Estado e estatística: o Estado está associado a um conhecimento racional do mundo social. A institucionalização do imposto é o desfecho de uma espécie de guerra interior travada pelosa gentes do Estado contra as resistências dos sujeitos. Os historiadores se perguntam, com muita razão, em que momento aparece o sentimento de pertencer a um Estado, que não é necessariamente o que se chama de patriotismo, o sentimento de ser um dos sujeitos do Estado. A experiência de pertencimento a uma unidade [territorial] definida está muito fortemente ligada à experiência da tributação. Nós nos descobrimos como sujeitos descobrindo-nos como tributáveis, contribuintes. Há uma invenção extraordinária de medidas jurídico-policiais destinadas a fazer pagarem os maus pagadores, que são a ordem de prisão e a responsabilidade in solidum. Enfim, a metáfora de Norbert Elias dizendo que o Estado não passa de uma extorsão legítima é mais que uma metáfora. Tendo em vista que se trata de criar um corpo de agentes encarregados da coleta e capazes de operá-la sem desviá-la em proveito próprio.
Era preciso que os agentes e os métodos de cobrança fossem facilmente identificados com a pessoa, a dignidade do poder, fosse legado da cidade, do senhor ou do soberano. Os meirinhos precisavam usar sua libré, ter autorização de portar seus emblemas, notificar suas ordens em nome dele. Precisavam ser percebidos como mandatários tendo a plena potentia agendi, e que essa delegação se manifestasse não só por uma ordem assinada como também por uma libré que expressasse a dignidade e, ao mesmo tempo, a legitimidade de sua função. Essa delegação, que é problemática – todo mandatário pode desviar em benefício próprio os proveitos que pode tirar do poder que lhe foi delegado -, implica um controle dos mandatários; portanto, precisa-se de controladores dos cobradores de impostos. Para que os mandatários exerçam seu ofício sem ter de recorrer cada vez à violência física, a autoridade simbólica deles precisa ser reconhecida; faz referência tácita à ideia de que a cobrança do imposto é legítima; a autoridade de quem mandata as pessoas exercendo essas extorsões de fundos deve ser legítima, mesmo quando essas extorsões de fundos parecem ser na realidade injusta.     
Bibliografia geral consultada.
BOURDIEU, Pierre, “L`opinion publique n`existe pas”. In: Les Temps Modernes, 318: 1292-1309, 1973; Idem, El Oficio de Sociólogo. Presupuestos Epistemológicos. Siglo Veintiuno Editores, 1975; Idem, “L’Invention de la Vie d’Artiste”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, n° 2, Vol. 1, pp. 67-93, 1975; Idem, “Les Trois États du Capital Culturel”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, n° 1, Vol. 30, 1979; Idem, La Distinction: Critique Social du Jugement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979; Idem, Homo Academicus. Paris: Éditions de Minuit, 1980; Idem,  O Poder Simbólico. Lisboa: Difel - Difusão Editorial, 1989; Idem, Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). 1ª edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2014; BARANGER, Denis, “The Reception of Bourdieu in Latin America and Argentina”. In: Italian Journal of Sociology. Bolonha, n° 2, 2008; FERES, Glória Georges, A Pós-Graduação em Ensino de Ciências no Brasil: Uma Leitura a partir da Teoria de Bourdieu. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências. Bauru: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, 2010; SANTOS, José Vicente Tavares dos, “A Violência Simbólica: O Estado e as Práticas Sociais”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 108: 2015; pp. 183-190; CARDOZO, José Carlos da Silva, “Por uma concepção mais ampla de Estado”. In: Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, Volume 7, n° 15, pp. 249-255, maio/ago. 2015; WATANABE, Graciella, A Divulgação Cientítica Produzida por Cientistas: Contribuições para o Capital Cultural. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação Interunidades em Ensino de Ciência. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; SOBRAL, Bruna Oliveira, O Pêndulo de Bourdieu: Variações na Operacionalização da Noção de Habitus. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Gradução em Sociologia. Recife: UNiversidade Federal de Pernambuco, 2017;  entre outros.  

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