segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Natalie Portman - Análise Teórica in De Amor & Trevas.

                                                                                     Ubiracy de Souza Braga*
  Eu não amo estudar, eu odeio estudar. Eu gosto de aprender, a aprendizagem é bonita”. Natalie Portman   
  
                         
            A criação do Estado de Israel ocorreu em 1948, mas o processo político de formação das comunidades judaicas na região da Palestina remonta às últimas décadas do século XIX, quando foi criado o movimento sionista por intelectuais judeus no início da década de 1890 e tinha por objetivo principal o combate ao antissemitismo, que subsistia na Europa desde a Idade Média e que havia se intensificado no século XIX. O Estado de Israel é um dos mais poderosos emblemas sociais, econômico e militarmente do mundo ocidental. É também um Estado que possui uma das mais eficientes e pragmáticas polícias secretas de todo o globo terrestre desde o fim da 2ª guerra mundial (1941-45): a poderosa Mossad. A despeito de sua curta existência enquanto Estado - Israel só foi oficializado e reconhecido como país em 1948 -, foi protagonista de intensos episódios conflituosos ocorridos na região do Oriente Médio na segunda metade do século XX, sobretudo em virtude do paradoxo em torno da geopolítica etnohistórica com os países muçulmanos que circundam seu território.
            Um fato político que contribuiu para estimular a ideia da formação de um Estado judaico na Palestina foi o chamado Caso Dreyfus, uma conspiração de oficiais do exército francês contra Alfred Dreyfus, que também era oficial dessa mesma instituição. Dreyfus foi injustamente acusado por colegas de fornecer informações privilegiadas da inteligência francesa para autoridades do exército alemão, arquirrival da França. Theodor Herzl, que era jornalista, com o escritor Émile Zola, incorreu na defesa pública de Dreyfus nas páginas dos jornais daquele período, denunciando as fraudes das acusações e tornando explícito o antissemitismo que se alastrava na Europa. O estímulo à causa sionista, dado pelo Caso Dreyfus, incitou as várias comunidades de judeus que estavam espalhadas mundo ocidental “a se reunirem em torno de um fundo financeiro para custear a compra de terras na região de Palestina”, então pertencente ao Império Otomano. Aos poucos, na virada do século XIX para o século XX, os terrenos situados entre as Colinas de Golã, a Península do Sinai e o Rio Jordão foram sendo arrendados pelos judeus, que começaram também a migrar para a região nesse espaço/tempo.

                  
A atriz israelense Natalie Portman em seu primeiro longa-metragem passa em revista a história da formação de sua pátria natal como diretora do filme: A Tale of Love and Darkness (“De Amor e Trevas”). O curta de NY, “I Love You” já tratava do tema. E agora ela vai além, explorando um período importante na história e tratando inclusive de temas como a ligação do judeu com as palavras. Centrado em experiências pessoais do autor, este drama recria a Guerra de Jerusalém e seus efeitos sociais e psicológicos sobre a vida de um jovem que cresce em um kibutz, onde tiveram função essencial na criação do Estado judeu. Combinando o socialismo e o sionismo no sionismo trabalhista, os kibutzim são uma experiência única israelita e parte de um dos maiores movimentos comunais seculares na história. Em 2010, estrelou o filme: “Black Swan” pelo qual foi internacionalmente aclamada pela boa crítica. Em Cannes o filme fez sua estreia, fora de competição, em 2015, quando o projeto foi definido como “o inventario de cicatrizes sobre a formação de um Estado”, revelando, a partir de uma “exumação moral”, toda a inquietação estética de uma grande artista.           
Desnecessário dizer que a biografia é um gênero literário em que o autor narra a “história da vida” de uma pessoa ou de várias pessoas. Em certos casos a biografia inclui aspectos da obra dos biografados, como por exemplo, Plutarco, em suas “Bíoi parálleloi” (“Vidas paralelas”), numa abordagem bisada de um ponto de vista crítico e não historiográfico. Em francês, o termo “biographie” é documentado em 1721; a palavra “biography” foi documentada em 1791 e na forma “biografia” já em 1683; em espanhol, “biografia”, em português, aparece somente na segunda metade do século XIX. É comum se solicitar a “biodata” de pessoas que produzem trabalhos artísticos, científicos etc. Este termo remete à vida e às experiências fabulosas de trabalho, bem como a itens que revelem suas opiniões, valores, crenças e atitudes. Os dados transcritos nesta categoria contêm, por vezes, um tipo da informação que é um abstract de trabalho acadêmico, podendo também incluir a descrição dos atributos físicos e imagens.
Optando por filmar em Jerusalém, foi usado o setor ultra-ortodoxo do bairro de Nachlaot, com suas ruas estreitas e casas antigas que, em pleno 2016 de Israel como “start-up nation”, enganam tranquilamente como 1948, época da cidade sitiada e dos racionamentos. Mas com exceção à icônica descrição da votação do Plano de Partilha da Palestina na Assembleia Geral das Nações Unidas, o filme abre mão de grande parte do papel de documento histórico narrado em primeira pessoa que o livro possui.  O escopo na relação entre o jovem Amos e seu pai Arieh, que permeia todo o livro, é alterado para a relação do garoto com a mãe Fania, interpretada pela própria Natalie Portman. Por ser um personagem não menos interessante e complexo - esta escolha acaba por revelar no filme um pouco da força que o livro possui enquanto análise da sociedade judaica ashkenazita de Jerusalém em sua historicidade, em especial de seus círculos no processo de formação de intelectuais.

              
Sociologicamente o indivíduo, ator, identidade, grupo social, classe social, etnia, minoria, movimento social, partido político, corrente de opinião pública, poder estatal, todas estas “manifestações de vida” no sentido simmeliano, não mais se esgotam no âmbito da sociedade nacional, o que nos faz admitir que a diferenciação em comunidades locais, tribos, clãs, grupos étnicos, nações e mesmo Estados, perderam ao menos algo do seu significado anterior. No contexto da guerra árabe-israelense de 1948 um garoto cresce em uma casa que irradia erudição. O pai escritor, as estantes repleta de livros, música clássica e a mãe que narra para ele aventuras para explicar o mundo e lidar com aquela dura realidade. No começo há um convite: “vamos criar uma história”. Baseado em obra de Amós Oz, escritor e defensor de uma solução para o conflito Israel-Palestina, descreve a história da família durante a guerra da Independência de Israel. Criado em uma família que preza o talento intelectual, o garoto consegue se comunicar em vários idiomas, tem conhecimento de literatura e política muito salutar para a idade. Os indivíduos cuja vida interior se enriquece em diálogo constante com os outros, não se resignam a ser apenas aquilo que já se tornaram, há uma crítica à resignação e querem ser mais do que estão sendo. Cultivam um lado que os impele na direção de uma busca no âmbito de universalização.
            Amós Oz publicou De Amor e Trevas (“Sipur al ahava vechoshech”) em 2002. Trata-se de uma autobiografia, talvez parcial, cobrindo sua infância, adolescência e juventude. O livro rapidamente alcançou sucesso internacional e foi traduzido para cerca de 30 idiomas, incluindo versões não-oficiais em árabe e curdo. O livro é escrito no envolvente estilo de Amós Oz, um dos mais renomados autores israelenses de todos os tempos, e um dos mais reconhecidos internacionalmente na atualidade. É contada com riqueza de detalhes a história da vida do autor, ainda morando com seus pais em um pequeno apartamento na Jerusalém dos últimos anos do Mandato Britânico e nos primeiros anos do Estado de Israel, inclusive durante a Guerra de Independência. Neste ínterim, ainda  garoto começa a jornada como o frágil Amos Klausner, filho de imigrantes intelectuais sionistas-revisionistas da Europa Oriental, e a termina como Amos Oz, membro do Kibutz Hulda, no centro de Israel. Localizado em Shephelah, perto da Floresta Hulda e da Estrada da Birmânia, está sob a jurisdição do Conselho Regional de Gezer. Em 2018, tinha uma população de 1.096 habitantes, após hebraizar seu nome para afirmar-se como pioneiro sionista. Através destas transformações, transparece a própria história do sionismo realizador clássico, e seu objetivo de criar um novo judeu, em oposição aos estereótipos da comunicação do judeu da diáspora.      
            Amós Oz nasceu em Jerusalém, em 4 de maio de 1939, é escritor israelense e cofundador do movimento pacifista Paz Agora (“Shalom Akhshav”),  também referido pela imprensa, em inglês, como Peace Now é uma organização não governamental de esquerda sediada em Israel, cujo propósito declarado é alcançar a paz interna e externa para Israel. Para alcançar essa finalidade, a organização procura influenciar e convencer a opinião pública e o governo israelense sobre a necessidade da paz como requisito para a própria existência do Estado de Israel, e sobre a possibilidade de uma paz justa e de uma conciliação histórica com o povo palestino e com os países árabes vizinhos, com base na fórmula “terra por paz”,  e na criação de um Estado Palestino. O movimento denuncia assentamentos judeus no territórios palestinos ocupados por Israel e a expropriação de terras dos árabes israelenses.                
             Os seus pais fugiram em 1917 de Odessa, na Ucrânia para Vilnius, na Lituânia e daí para o Mandato Britânico da Palestina em 1933. Em 1954 Oz entrou para o Kibbutz Hulda e tomou então o seu nome atual. Durante o seu estudo de Literatura e Filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém entre 1960 e 1963 publicou seus primeiros contos curtos. Oz participou na Guerra dos Seis Dias e na Guerra do Yom-Kippur e fundou na década de 1970, juntamente com outros, o movimento pacifista israelense Schalom Achschaw (“Peace Now”). Fundador e principal representante do movimento social israelense “Paz Agora”, é o escritor mais influente de seu país. Poucos autores escrevem com tanta compaixão e clareza sobre as agruras do sujeito presentes e passadas de Israel. Em romances como Conhecer uma mulher (1992), o mais importante escritor israelense contemporâneo, lança um olhar atento e sensível sobre os mistérios que, escondidos em cada um de nós, unem e separam as pessoas.
             Depois de trabalhar para o serviço de informações por 23 anos, o agente secreto Yoel Ravid passa em revista sua vida profissional e familiar. Diante da trágica morte da esposa, procura compreender a mulher que apesar de amar, ele nunca conheceu completamente, mas com ela travou durante anos uma batalha subterrânea cujos motivos também lhe escapam; Pantera no porão (1999),  começa  com uma constatação frequente em sociedades polarizadas por embates políticos: - Muitas vezes na vida já fui chamado de traidor. Uma acusação grave  contra ele justamente em 1947, embora o processo de paz tenha diminuído o ímpeto dos inquisidores. Se nas últimas décadas o rótulo de traidor marcou sua vida,  devido à posição favorável ao diálogo israelense-palestino, a acusação apareceu, no romance, por outro motivo, no verão de 1947, numa pichação na parede de sua casa em Jerusalém. O suposto crime: uma amizade com Stephen Dunlop, das forças britânicas que controlavam a Palestina; Meu Michel (2002), em que explora a difícil persistência do amor durante a guerra. Em 2005 publicou suas memórias: De amor e trevas, com a sua interpretação pessoal da criação de Israel.
Em 1991 foi eleito membro da Academia de Letras Hebraicas; em 1992, recebeu o Prêmio de Frankfurt pela Paz, e ganhou o Prêmio Israel, o mais prestigioso do país. A “Primeira Intifada” na Faixa de Gaza e na Cisjordânia começou em 1987 quando palestinos montaram um protesto em larga escala contra a presença militar israelita nos dois territórios, que os palestinos reclamam como seus. A Intifada depressa se tornou violenta quando o exército de Israel e os militantes da Palestina lutaram pelo controle dos territórios seculares em disputa. A Primeira Intifada continuaria até terem início às negociações de paz entre a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e o Estado de Israel, em 1993. Em 1998, durante o 50º ano da Independência de Israel, recebeu o Prêmio Femina em França e foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura em 2002. Em 2004 recebeu o Prêmio Internacional Catalunya, com o pacifista palestino Sari Nusseibeh, e o Prêmio de Literatura alemão: Die Welt, por “Uma História de Amor e Escuridão”. Publicou cerca de duas dezenas de livros em hebraico, e mais de 450 artigos e ensaios em revistas e jornais de Israel e internacionais, sendo muitos dos quais para o jornal do Partido Trabalhista “Davar” e, desde o encerramento deste na década de 1990, para o “Yediot Achronot”. Têm livros e artigos  traduzidos no Ocidente e quase toda a sua obra se encontra traduzida em português. Em 2005 recebeu o prêmio Goethe como escritor. Em 2007, o Prêmio Príncipe das Astúrias de Letras.

                     

No filme o pai é escritor e rememora com Amos a etimologia das palavras. A mãe narra aventuras repletas de ensinamentos. Quando mãe e o menino se relacionam é a melhor representação do filme. A fala dela sobre a hora certa de mentir é um exemplo. A violência da guerra é consentida de forma macrossociológica: temos a votação da independência de Israel, em uma cena muito bonita e os dilemas vividos pela família ou então o bullying sofrido por Amos na escola estão bem presentes. Há outra cena onde mulheres falam das desventuras de se ter um filho e logo em seguida a uma explicação  quase poética, sobre o quão é vazio não tê-los. Além desses momentos da vida cotidiana temos a oposição entre a brutalidade e a leveza, a inocência e a sabedoria, a velhice e a juventude, a firmeza e a fraqueza e o claro e o escuro. A fotografia revela alguns tons azulados na hora de dormir daquela família e amarelados nas narrativas etnográficas de Fania (a mãe) e na cena descrita de Amos com a menina. Há uma explicação muito coerente sobre o que está por trás das relações sociais e afetivas entre árabes e judeus comparando-os como irmãos com uma relação com um pai e como eles passam a enxergar no outro o limite da relação de paternidade.
De Amor e Trevas não é um daqueles raros casos de obra que já nasce com status de clássico, e suas múltiplas versões internacionais lhe garantiram lugar cativo em muitas estantes pelo mundo. Nada mais natural que apenas alguém que gozasse de certo prestígio tanto entre a intelligentsia esquerdista israelense a qual Amos Oz faz parte, quanto entre os managements da indústria cinematográfica de Hollywood, conseguisse obter os direitos para produzir sua adaptação cinematográfica. Foi aí que se engajou Natalie Portman. A atriz nascida em Jerusalém é declaradamente sionista e orgulhosa de sua identidade judaica e israelense, além de usar o prestígio de ser um dos principais nomes da década em Hollywood para defender todo tipo de causas que os norte-americanos chamam de “liberais”, inclusive a solução de dois Estados para o conflito entre Israel e Palestina. É sabido que Natalie Portman adquiriu os direitos cinematográficos sobre a obra em uma conversa com Amós Oz e sua mulher, na casa da família. Em seguida, partiu em uma jornada de oito anos para financiar o trabalho de pesquisa e descrever com muita argúcia e simplicidade De Amor e Trevas em sua estreia na produção cinematográfica pari passu como roteirista e diretora.
    Natalie Portman nasceu em Jerusalém, de pai israelense e mãe norte-americana, e mudou-se com a família para os Estados Unidos da América aos três anos. Não se trata só da sensação de pertencer a dois mundos em oposição assimétrica: há uma ligação bem mais específica no fato de um desses mundos ser um ideal que prossegue sempre, mas sem nunca se realizar como no plano imaginado, e que exige muito mais envolvimento afetivo, reflexão e tomada de posição do que é habitual na vida dos cidadãos. E é também um filme muito sólido na maneira como tece seu emaranhado, fundindo o que de há mais íntimo na vida de um menino, o refúgio que ele e a mãe constituem um para o outro, com o destino que essa mãe sem saber está traçando para o filho, e com o destino do próprio país que ela quis ajudar a fundar. Como atriz Natalie é mestre na melancolia, e a Fania do livro e do filme comparativamente é toda ela um estudo pródigo da melancolia: atriz e personagem são soberbamente talhadas para dar forma a essa ideia tão persistente não só na cultura judaica, de que a história social e a memória são a única pátria verdadeiramente indevassável.
Bibliografia geral consultada.

SIMMEL, Georg, On Individuality and Social Forms. Chicago: University of Chicago Press, 1971; Idem, La Tragédie de la Culture. Paris: Petite Bibliothèque Rivages, 1988; Idem, Philosophie de l`amour. Paris: Petite Bibliothéque Rivages, 1988; HELLER, Agnes, Sociologia della vita quotidiana. Roma: Editore Riuniti, 1975; BOUDON, Raymond, Effets Pervers et Ordre Social. Paris: Presses Universitaires de France, 1977; DURAND, Gilbert, Science de l’ Homme et Tradition. Paris: Berg International Editor, 1979; Idem, As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; GINZBURG, Carlo, Occhiacci di legno - Nove riflessioni sulla distanza. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 1998; SONDHAUS, Lawrence, World War One: The Global Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2011; SCHLESINGER, Juliana Portenoy, Conflitos Identitários do Árabe Israelense: Aravim Rokdim de Sayed Kashua. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas e Língua, Literatura e Cultura Árabe. Departamento de Letras Orientais. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011; CESAR, Daniel Clós, Ensino de História das Religiões: Cristianismo, Islã e Judaísmo nas Histórias em Quadrinhos. Dissertação de Mestrado. Programa de Mestrado em História. Universidade de Caxias do Sul, 2015; SILVA, Raquel do Monte, Devir-mundo: A Errância no Cinema Contemporâneo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015;  BOSCOV, Isabela, “De Amor e Trevas”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/06/06/2016 ; AMBRA, Pedro Eduardo Silva, Das Fórmulas ao Nome: Bases para uma Teoria da Sexuação em Lacan. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Sexual. Instituto de Psicologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017; entre outros.  

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