sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

À Beira Mar - Solidão & Enamoramento

                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

A felicidade em pessoas inteligentes, é das coisas mais raras que conheço”. Ernest Hemingway

     
            À Beira Mar narra a história social de um casal que se hospeda em uma região pouco frequentada no litoral francês. Juntos há 14 anos, os dois naturalmente vivem uma rotina separada um do outro. Ela passa o dia no quarto do hotel, enquanto que ele  fica no bar conversando com moradores na expectativa de ter uma ideia para seu próximo livro. O dia a dia da dupla muda com a chegada ao hotel de um casal de recém-casados. Além de Angelina Jolie e Brad Pitt, o longa-metragem também traz Niels Arestrup como o dono do restaurante e Mélanie Laurent e Melvil Poupaud como os recém-casados que ocupam o quarto vizinho aos protagonistas: um casal jovem, feliz, amigável e “incansável na cama”, que traz à tona todas as feridas do casal veterano. Juntos em cena desde a “guerra de egos” no filme: “Mr. & Mrs. Smith” (2005), ambos são os principais destaques, ambos se complementam na vida real integrando uma assinatura, ambos são senhores de seus próprios destinos. Angelina Jolie dirige, assina e protagoniza o drama ao lado de Brad Pitt. Ela parece representar o limite da razão, prestes ao fim do princípio do prazer e da loucura possessiva nietzschiana. Ao mesmo tempo, encarna a “soberania do eu” em contraste ao abandono social marcante. Ele aparentemente mais contido, oferece momentos de imperturbável desespero humano.
            Coincide com a dinâmica da história oral a ser utilizada nos anos 1950, após a invenção do gravador, nos Estados Unidos da América, na Europa e no México, e desde então se difundiu bastante. Ganhou também cada vez mais adeptos, ampliando-se o intercâmbio entre pesquisadores sociais que em seu ersatz a praticam: historiadores, antropólogos, cientistas políticos, sociólogos e teóricos da literatura, psicólogos etc. No mundo ocidental é intensa a publicação de livros, revistas especializadas e artigos sobre história oral. Há inúmeros programas e pesquisas que utilizam os relatos pessoais sobre o passado para o estudo dos mais variados temas. Caracterizam-se por serem produzidas a partir de um estímulo, pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas, geralmente depois de consumado o fato empírico que  investiga. Fazem parte, portanto, de um conjunto de fontes documentais de tipo biográfico, ao lado de memórias e autobiografias, situações e modos de vida de um grupo ou da sociedade em geral. O que  torna o estudo da história mais concreto e próximo, facilitando a apreensão do passado pelas gerações presentes e a compreensão das experiências vividas pelos atores sociais.


            Vale lembrar que o “princípio de individualização” descreve a maneira segundo qual uma coisa é identificada como distinta de outros objetos e coisas. O conceito aparece em numerosos campos e é encontrado em obras de pensadores diversos desde Carl Jung à Friedrich Nietzsche, passando por Arthur Schopenhauer, David Bohm, Henri Bergson, Gilles Deleuze e Manuel De Landa. É expressa na ideia geral do “objeto de pensamento” poder ser referenciado sendo identificado como algo individual, logo “não sendo outra coisa”. Isso inclui como uma pessoa una é realizada para ser diferente dos outros elementos da vida social e como ela se distingue de outras pessoas. Através desse processo, há identificação menos com as condutas morais e valores encorajados pelo meio no qual se encontra e mais com as orientações emanadas do “Si-mesmo”, representando assim a totalidade referida analiticamente como o conjunto das instâncias psíquicas em torno da “persona”, “self”, etc. constitutivo da personalidade individual.
            Remete-nos ainda a refletir sobre a “contracultura” enquanto movimento social periodizado na década de 1960 quando teve lugar e espaço um estilo de mobilização e contestação social  utilizando novos meios de comunicação em massa. Jovens inovando estilos, voltando-se mais para o antissocial aos olhos das famílias mais conservadoras. Com um espírito mais libertário, resumido como uma cultura underground, de forma alternativa ou chamada “cultura marginal”, tendo como escopo principalmente nas transformações da consciência, dos valores sociais e dos comportamentos, na busca de outros espaços sociais e políticos, além de novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano. Embora o movimento hippie, almejasse a “tout court” a transformação da sociedade, através da tomada de consciência, da mudança de atitude e conhecimento do protesto político, seguramente não esteve só nestes aspectos sociais.
            Portanto, o que funciona positivamente para a compreensão do filme é o seu ritmo, que é sensivelmente “amarrado ao ideário romântico na relação entre o ser humano e o mar” (cf. Hemingway, 2005). Para quem não está acostumado com as cenas carregadas pelo silêncio da cotidianidade com poucos diálogos, procure o stress das cidades. Daí a contradição “não-antagônica” quando chegamos ao terceiro ato aflitos porque tudo parece bom, não acontece algo ruim e o fino drama no entorpece, sem sabermos como diante da paixão, aonde estamos indo. Após alguns minutos as coisas fazem mais sentido e cada cena parece sinalizar para a consciência. Temos que ter a “paciência do conceito”, filosoficamente falando, e para tanto a sabedoria para se envolver nos diálogos, nas cenas para não enaltecer o amor diante da solidão. O personagem de Brad Pitt também não recebe muita atenção sobre o passado e como acabamos construindo com ele uma relação positiva entre amargura e desejo.


           
            Essa assinatura pode ser rememorada psicanaliticamente na démarche de Angelina Jolie, já no filme “Garota Interrompida” (2000) tem como representação o ano de 1967. Mas trata-se de garotas marcadas pela sociedade, excluídas, consideradas insanas, doentes e descartadas logo no início da vida adulta. Polly, Georgina, Daisy e Lisa. Estão todas ali. O longa-metragem relata a história de uma jovem com “Transtorno de Personalidade Borderline”, que na década de 1960 havia tentado suicídio por estar deprimida. Por este motivo, sua família procura a ajuda de um psicanalista amigo da família e ambos decidem pela sua internação em hospital psiquiátrico. O padrão sociológico está presente no início da idade adulta e ocorre em uma variedade de situações e contextos sociais. Devido ao fato de um transtorno de personalidade ser um padrão mal adaptativo de experiências pessoais disseminado, contínuo, inflexível e com comportamentos patológicos, há uma relutância em diagnosticá-los antes da adolescência ou início da vida adulta. Entretanto, alguns enfatizam que, sem tratamento, os sintomas podem piorar. Outros sintomas incluem um intenso medo de abandono, crises de raiva e irritabilidade em contraste à razão.
            Mas também quando nos coloca analiticamente diante do processo de separação de Angelina Jolie e Brad Pitt que irá levar à venda um dos símbolos do casamento de casal: o Château Miraval, castelo ao sul da França, onde eles se casaram a pouco em 2014. Angelina Jolie e Brad Pitt se pronunciaram em conjunto pela primeira vez desde a separação. Na nota enviada à imprensa o casal que não se encontra desde o divórcio, confirmado pelo sigilo e desligamento indicado pela imprensa massificada há algumas semanas. – “Ambas as partes e seus advogados assinaram um acordo que prioriza preservar a privacidade das crianças e da família, mantendo todos os documentos confidenciais e determinando que um juiz privado seja o responsável por qualquer decisão legal para facilitar todas as decisões que precisem ser tomadas. Os pais estão comprometidos em trabalhar de forma conjunta em prol da recuperação e reunião da família”, diz o comunicado dos dois atores, separados desde agosto do ano passado.
Mas também nos aproxima do ponto de vista da “comunicação visual” do  expressionismo contido no filme norte-americano: “Summer of '42”, de 1971, do gênero drama, dirigido por Robert Mulligan e estrelado por Jennifer O`Neill, tendo sua história baseado nas memórias do roteirista Herman Raucher quando adolescente, que passara as férias de verão na ilha de Nantucket e vivera uma paixão platônica por uma jovem cujo marido estava fora, lutando na 2ª guerra mundial. A história descreve o afã de jovens garotos em “perder a virgindade”, ocasião em que apresenta aspectos morais de comédia. Ainda em 1971, com o sucesso do filme, Herman Raucher lançou um livro homônimo. A reedição mais recente do romance é de 2015. O filme teve uma sequência com os mesmos personagens, escrito por Raucher, intitulado: “Class of '44”, de 1973.
Filosoficamente a finitude é uma característica dos entes que se modificam ou têm limites. Cada atributo vale lembrar é infinito no seu gênero. Não é limitado pela Substância nem por outros atributos, pois não tem nada em comum com os mesmos. Cada atributo tem infinitos modos. Os modos são finitos ou limitados, pois estão em comunidade com outras coisas do mesmo gênero que eles mesmos. A limitação dos modos é carência de infinitude, ou simplesmente finitude, uma característica das coisas singulares que pertencem a certo atributo da Substância. E finitude significa ser limitado por outras coisas singulares do mesmo atributo. Todos os seres vivos são seres finitos isto quer dizer que todos morremos porque temos um final. A filosofia de Spinoza tem muito em comum com o estoicismo, mas difere muito dos estoicos na medida em que rejeitou fortemente a afirmação de que a razão pode dominar a emoção. Pelo contrário, analiticamente defendeu que uma emoção pode ser ultrapassada apenas por uma emoção maior. A distinção crucial deriva, entre as emoções ativas e passivas, sendo as primeiras àquelas que são compreendidas racionalmente e as outras: as que não o são.
“À Beira-Mar”, seguindo nesta direção, revela e descreve um casal norte-americano em crise emocional e artística em um resort litorâneo francês. Angelina Jolie é Vanessa, uma mulher que resolveu assumir sua relação exageradamente indisposta após ter abandonado a dança por causa da idade. O marido, Brad Pitt, é um escritor imerso na atividade intelectual em crise criativa profunda. A múltipla influência do plano profissional no âmbito pessoal, a fissura na relação de Roland e Vanessa é muito mais aparente do que profunda. Eles se distanciaram mais do que a intimidade e o respeito um pelo outro, durante os 14 anos de vida amorosa. Num certo momento, o marido descreve os dois como o casal perfeito de Nova York: - “eu era um escritor e ela, tinha um corpo incrível”. A depreciação de Vanessa não é puramente acidental e ajuda a compor o puzzle no âmbito do contexto social e psicológico da personagem, necessário para compreender o conteúdo de sentido de suas reações orgástico-libidinais. Estes episódios revividos na década de 1970 e distanciados paradoxalmente da contracultura assumem uma ideia conservadora de corte religioso cristã, pois cresceu acreditando no casamento como um dos objetivos finais na vida gozosa de uma mulher.
Por isso, quando questionada sobre sua profissão, define-se como “esposa” e resigna-se no sentido de Max Weber, de crítica e resignação, a passar dias inteiros ociosos dentro das quatro paredes do quarto do hotel. A viagem para o resort francês tem como prisma reaproximar afetivamente o casal. Enquanto Roland tenta rememorar com a esposa a felicidade perdida, Vanessa tenta de todas as maneiras “sabotar as investidas do marido”. Contudo, a chegada de um casal em “lua de mel” vai perturbar ainda mais as percepções de Roland e Vanessa de sua própria relação. O olhar para a cumplicidade e desejo do casal, vivido por Mélanie Laurent e Melvil Poupaud, parece contraditoriamente desestruturar ainda mais a ilusão solitária de Vanessa. Particularmente Roland vê no inesperado exercício de voyeurismo, uma oportunidade de restabelecer a aparente intimidade anteriormente conquistada com a esposa.
Etnograficamente a primeira referência a uma prática de “lua de mel” está descrita no Deuteronômio 24:5: - “Se um homem tiver se casado recentemente, não será enviado à guerra, nem assumirá nenhum compromisso público. Durante um ano, estará livre para ficar em casa e fazer feliz à mulher com quem casou”. Originalmente “lua de mel” simplesmente descreveu o período logo após o casamento quando o enamoramento está na sua fase mais encantadora. Presume-se que ela dure em torno de um mês. O primeiro prazo para isto em inglês foi “honeymoon”, que foi registrado já em 1546. Na cultura ocidental, o costume de recém-casados saírem de férias juntos originou-se no início do século XIX na Grã-Bretanha, um conceito emprestado da elite indiana. Casais endinheirados teriam um “tour de noiva”, por vezes acompanhados por amigos ou familiares, para visitarem parentes que não puderam comparecer ao casamento. A prática se espalhou ao continente europeu e passou a ser conhecido como “voyage à la façon anglaise”, difundido na França a partir do início da década de 1820.



Analogamente no filme eles passam a observar pacientemente toda a intimidade do casal francês, tornando erótica inclusive suas relações sexuais, com a percepção de um buraco na parede do quarto do hotel em que estão hospedados. A atividade produz efeitos conflitantes no casal, mas serve para tirar Vanessa da letargia em que ela se encontrava. Há um percentual nada desprezível de coragem por parte da direção cinematográfica de Angelina Jolie de caracterizar Vanessa e Roland como figuras inseridas no livre arbítrio de contexto artístico. Isto porque é razoável supor que comparações eróticas entre casais sejam no plano da ficção erótica, como no plano amoroso do casal história da vida real lubrifiquem e estimulem a imaginação angustiada pelo consumo efetivo do desejo. Estreitar os vínculos psíquico-afetivos entre eles é digno de “observação participante” neste sentido antropológico. Há outras possíveis referências que podem ser objeto de interação social, ipso facto de caráter permanente para aqueles homens e mulheres que também se reconhecerem enquanto voyeurs. Analiticamente o voyeurismo tem como representação do olhar uma prática que consiste num indivíduo conseguir “obter prazer sexual” através da observação de pessoas.
Assim, cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem, enquanto aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo menor impulso, arrastados de um lado para outro. Sem dúvida, tudo isso demonstra claramente que tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento. Existe uma distinção sociológica entre a emoção e os resultados da emoção, principalmente os comportamentos gerados e as expressões emocionais. Mas a emoção não representa apenas uma experiência subjetiva, associada ao sexo e ao temperamento, personalidade e motivação. As emoções sempre se constituem sob as condições culturais ou associações combinadas com as emoções básicas, como a raiva e desgosto e podem ser combinados conjunturalmente em um sentido mais amplo em termos de desprezo, na vida social e política, o que leva à banalização da punição.  

Bibliografia geral consultada:

DELEUZE, Gilles, Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Éditions Minuit, 1968; ALBERONI, Francesco, Innamoramento e amore. 1ª edizione. Milano: Editor Garzanti, 1979, pp.148 e ss.; XENAKIS, Françoise, Zut! on a encore oublie madame Freud. Paris: Éditions Hachette, 1984; ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon, Metáforas da Desordem. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985; COSTA, Jurandir Freire, A face e o verso. São Paulo: Editora Escrita, 1995; Idem, “A Intencionalidade da Dor”. In: Folha de S. Paulo, 09/11/1997; Idem, “O mito psicanalítico do desamparo”. In: Revista Agora. Rio de Janeiro, v. 3, n°1, pp. 25-47, 2000; Idem, O vestígio e a aura - corpo e consumismo na moral do espetáculo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004; CAWTHORNE, Nigel, A vida sexual dos ídolos de Hollywood. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004; HEMINGWAY, Ernest, O velho e o mar. 50ª edição. Rio de Janeiro: Editor Bertand-Brasil, 2005; GAY, Peter, Modernismo: Fascínio da Heresia - De Baudelaire a Beckett e mais um pouco. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009; entre outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário