quinta-feira, 20 de abril de 2017

Umberto Eco - Leitura, Interpretação & Questão da Memória.

                                                                                     Ubiracy de Souza Braga
“Quando os verdadeiros inimigos são muito fortes, é preciso escolher inimigos mais fracos”. Umberto Eco

                       
Umberto Eco frequentou a escola salesiana, um instituto religioso católico romano fundado no século XIX por Saint Don Bosco. Curiosamente o sobrenome Eco, vem do acrônimo latino “ex caelis oblaus” que fora dado ao seu avô, que era um órfão abandonado por um oficial da cidade e que tem como representação religiosa “um presente dos céus”. Entre o final da década de 1950 e 1960, passou a se interessar pela semiótica. Em 1961, escreveu o ensaio: “Fenomenologia di Mike Bongiorno” sobre o fenômeno popular do anfitrião de um Quiz Show chamado Mike Bongiorno e também “Apocalitiici e Integrati” (1964), onde analise a comunicação de massa a partir de uma perspectiva sociológica. Precisa uma nova orientação nos estudos sociais de cultura de massa. Nesse período publicou o seu primeiro livro como uma extensão do trabalho contido de sua tese de doutorado. Sua démarche filosófica obteve impulso com a influência positiva de Luigi Pareyson, na Itália. Ele se concentrou nos estudos sobre estética do período medieval, principalmente aos trabalhos de são Tomás de Aquino, e defendia ardorosamente a dedicação deste membro da Igreja Católica referente às questões do belo.
Logo surge seu segundo livro: “Sviluppo dell´estetica medievale” (1959), em que se posicionou como um pensador da filosofia medieval. Nesse mesmo ano passou a ser um editor sênior na editora Bompiani (Milão), onde permaneceu até 1975. Eco criou na Universidade de Bolonha um programa incomum chamado “Antropologia do Ocidente” a partir da perspectiva dos africanos e estudiosos chineses, onde foi desenvolvida uma rede transcultural na África Ocidental, que resultou na primeira conferência em Guangzhou na China (1991), intitulada: “Fronteiras do Conhecimento”. Sob o olhar semiótico de Umberto Eco, descoberto no filósofo John Locke, aderiu assim à concepção anglo-saxônica desta antiga disciplina, deixando de lado a visão semiológica adotada por Ferdinand Saussure. Ele busca também sua visão renovada da semiótica nos conceitos de Immanuel Kant e Charles Pierce, o que se pode verificar nas obras “As Formas do conteúdo” (1971) e “Tratado Geral de Semiótica” (1975).
Umberto Eco critica o uso esotérico da interpretação, fazendo ver que um texto não pode ser aprisionado em seu conjunto por uma única verdade, pois demonstra que a vontade de uma interpretação única é, afinal, a vontade de manutenção de um segredo, que diz respeito à manutenção de poder. Essa crítica não desfaz a impressão de que a interpretação não pode ser meramente uma impressão subjetiva do texto. Cabe a nós sermos “servos respeitosos” da semiótica. Se nós, leitores, podemos achar no texto um significado, cabe a nós ter claro que esse significado é uma referência nossa, que evidentemente nem sempre irá respeitar o texto original. Portanto, que existe a “intentio lectoris e a intentio operis”, isto é a intenção do leitor e a do texto. Enquanto a intenção do leitor pode ser reconhecida, a intenção do texto parece para sempre perdida, mas deve ser conjecturada pela interpretação desse leitor, pelo menos através de coerência: qualquer interpretação feita de parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte processual do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser.            
Daí a sua importância em distinguir, no modelo comunicacional, e, portanto, no universo retórico, o termo ideologia que se presta a numerosas codificações. Deixando de lado a noção de ideologia como “falsa consciência”, Umberto Eco, reitera o papel da ideologia como tomada de posição filosófica, política, estética, etc. em face da realidade. Nosso intuito, afirma, é conferir ao termo ideologia, e a par dele ao de retórica, uma acepção muito mais ampla vinculada ao universo do saber do destinatário e do grupo a que pertence, os seus sistemas de expectativas psicológicas, os seus princípios morais, isto é, quando o que pensa e quer é socializado, passível de ser compartilhado pelos seus semelhantes. Para consegui-lo, porém, é mister que o sistema de saber se torne sistema de signos : a ideologia é reconhecível quando, socializada, se torna código. Nasce, assim, uma estreita relação entre o mundo dos códigos e o mundo do saber preexistente. Esse saber torna-se visível, controlável, comerciável, quando se faz código, convenção comunicativa. O aparato sígnico remete ao aparato ideológico e vice-versa e a Semiologia, como ciência da relação entre códigos e mensagens, transforma-se concomitantemente na atividade de identificação contínua das ideologias que se ocultam sob as retóricas. Enfim, do ponto de vista teórico e metodológico, a Semiologia mostra-nos no universo dos signos, sistematizado em códigos e léxicos, o universo das ideologias, que se refletem nos modos pré-constituídos da linguagem. Ipso factoem sua gênese, no início do século XIX, designava um estudo das ideias, como elas se formam e que fenômenos incidem para isso, empreendido pelo pensador Destutt de Tracy.




Neste sentido, o perfil do fã do Super-Homem, o comportamento social e a influência exercida pelo desenho no leitor são demonstrados quando subjuga a recepção da mensagem à condição de fantoche dominado pela propaganda massiva ilustrada na imagem do super-herói que tem como parti pris sua função social. Mais do que isso: pela imagem de invencibilidade personificada no papel em Clark Kent, que se assemelha ao homem pelo desejo hierarquizado de ascensão, impotente para vencer suas frustrações, mas que tem embaixo das humildes vestes, a representação simbólica do “brasão em forma de S e a capa vermelha do homem que voa, dobra aço, consegue parar um trem com o corpo, corre na velocidade da luz”. Poderes enfim, que se configuram nas aspirações de ascensão social do cidadão, de vitórias, aplacadas, e saciadas junto às batalhas vencidas pelo ídolo, episódio após episódio. Sem maiores dificuldades, ipso facto nem muita paciência, nem planos em longo prazo, ou problemas que não se resolvam no mesmo dia. Baseado no que lhe impelem as aspirações de status, de nível social, desejando ser algo formado e reproduzido pela mídia, inconscientemente integrado a sua mentalidade subjetivamente, o sujeito se esquece, e por esse lapso temporal perde a identidade. 
Isso se especifica bem usando o herói como modelo de heterodireção: sua figura se insere na mente de seus seguidores da mesma maneira que as apelações publicitárias. A subjetividade, nesse caso, se configura enquanto o “super” também é homem, ou seja, super-homem: é “super”, mas é homem. Ele se identifica com os trabalhadores urbanos quando se humaniza, porque é como eles, se parece com eles, com defeitos e impotências, refletindo seus desejos, também, de poder e ufania. Seus poderes e seu cotidiano sugerem um modo de vida, um tempo presente de vitórias predeterminadas,  sem problemas, sem preocupações, sem planos, sem projetos, sem futuro e sem passado. E a população deseja isso: deixar de ser Clark pra ser Super-Homem. Deixar de ser medíocre para ser um ícone, um destaque entre os demais. Deixar de ser esnobado para ser desejado, como Lois Lane, que contraditoriamente esnoba Clark, mas ama o Super-Homem, como um símbolo de poder, idealização, realização e fantasia contemporânea.
Os “mundos possíveis” são um conceito de Umberto Eco, que vem de pesquisas sobre lógica por Pavel e Van Dijk. Mas Eco define como mundo possível “um estado de coisas que é expressa por um conjunto de propostas que é, para cada proposta, ou ‘p ou não-p'”. Em outras palavras, um “mundo possível” representa o trabalho de indivíduos que carregam com eles um conjunto de propriedades que não apenas se resumem ao dia a dia ou traços de personalidade, mas também por ações. Os mundos possíveis dependem de uma instância narrativa que cria uma unidade e uma coesão entre os vários elementos do mundo possível. A literatura é terapêutica para Eco por permitir escapar do mundo real e de suas ansiedades e descontinuidade. Esta é também a função dos mitos segundo Lévi-Strauss, que os define como uma maneira para ordenar as variadas experiências de vida. Eco sugere a noção de texto como uma máquina “preguiçosa”.  
E para este conceito, ele faz o leitor compreender que a leitura é uma atividade intelectual criadora e o leitor é um agente ativo do texto. Este jogador envolvido no texto é o que ele chama um “leitor modelo”. Melhor dizendo, um agente social capaz de atualizar as propostas dos textos, a fim de compreender todo o potencial implícito nos mesmos. É neste sentido que em “Número Zero”, Eco idealiza um escritor de meia idade que vive de trabalhos avulsos como “Ghost writer” é convidado para assistente de direção em um projeto para a criação de um jornal, trabalho pelo qual será bem recompensado. Para esse projeto são chamados seis redatores que já escreveram para colunas diversas, e todos a princípio ficam satisfeitos com o convite acreditando que o jornal é uma boa aposta, e poderá quem sabe, alavancar suas carreiras. No entanto o diretor já havia aberto o jogo com o assistente: o jornal servirá como uma espécie de fachada para servir às pretensões políticas do editor, um empresário multimilionário que entre seus negócios é dono de canais de TV e o jornal provavelmente não será lançado. A veia cômica do escritor aparece nos diálogos dos repórteres do jornal fictício “Amanhã: ontem”. A trama é ambientada na redação de notícias e nas ruas de Milão no ano de 1992 e descreve de forma alegórica, a “operação mãos limpas” – a grande investigação judicial ocorrida na Itália nos anos 1990, que acabou na prisão de políticos, empresários e integrantes da máfia e resultou no fim da 1ª República Italiana.
Tirando partido do saber acumulado de sua vasta experiência como semiólogo e estudioso da comunicação, o escritor italiano inovou ao combinar as convenções da literatura, por assim dizer, comercial com uma erudição assombrosa e um tratamento inventivo e irônico de seus temas, de tal forma que temos sempre a impressão de ler algo além do que lemos, de que existe outro enredo, ideológico, por trás da trama aparente e linear as superfícies. Comparado a seus romances anteriores, “Número zero”, o título se refere, na prática jornalística, à “edição de teste”, para circulação interna, de uma publicação que ainda está por ser impressa e lançada – pode parecer uma obra menor e pouco ambiciosa. A impressão é enganosa: justamente porque, por trás do enredo aparente, sobre a experiência fracassada dos preparativos para o lançamento de um novo jornal, o “Amanhã”, Eco embute uma crítica cínica e cética não somente à imprensa canalha e sensacionalista, mas também ao Estado ladrão e ineficiente e ao processo de empobrecimento moral da sociedade, que assiste de forma passiva à naturalização dos escândalos desde a corrupção. Sugestivamente, “Número zero” é um romance sobre a morte do “Amanhã”. É um retrato desesperançado da Itália contemporânea, como se ali tivesse falhado o projeto de construção de uma nação.
Isso no ajuda a compreender um ponto importante nesta literatura: a ideologia não é o significado. Mas é uma forma de significado conotativo último e global. Pois, “a ideologia é a conotação final da totalidade das conotações do signo ou do contexto dos signos”. Do ponto de vista pragmático representa toda a verdadeira subversão das expectativas que se efetiva na medida em que se traduz em mensagens que também subvertem os sistemas de expectativas retóricas. E toda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus monumentos definidos como “formalistas”, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias como as quais ele se identificava. Frequentemente, portanto, a obra, como qualquer outra mensagem, contém seus próprios códigos: quem hoje lê os poemas homéricos extrai dos significados denotados pelos versos uma tamanha massa de noções sobre o modo de pensar, de vestir, de comer, de amar ou de guerrear daqueles povos, que está apto a reconstruir seus sistemas de expectativas ideológicas e retóricas.
A leitura da obra desenvolve-se, pois, numa oscilação contínua, pela qual se vai da obra à descoberta dos códigos de origem que ela sugere, dessa descoberta a uma tentativa fiel da obra, para daí voltarmos aos nossos códigos e léxicos de hoje e experimentá-los sobre a mensagem. Metodologicamente, procede-se, destarte, a um confronto contínuo, a uma integração entre as várias “chaves de leitura”, fruindo-se a obra através desta sua ambiguidade, oriunda não só do uso informativo dos significantes em relação ao código de partida, mas do uso informativo dos significantes reportados aos nossos códigos de chegada, o que dá origem a novas mensagens-significado, as quais passam a enriquecer nossos códigos e nossos sistemas ideológicos, reestruturando-os e dispondo os leitores de amanhã a uma nova situação interpretativa em relação á obra, em várias fases, mas que a teoria não pode prever quanto às formas concretas que ira assumir: a mensagem cresce, mas não se sabe como poderá crescer. Portanto, é errado pensar que todo ato comunicacional se baseia numa língua afim aos códigos da linguagem verbal, e que, ipso facto toda língua deva ter articulações fixas.

Para ficarmos num exemplo, no âmbito da comunicação visual, a comunicação fílmica é a que melhor permite verificar porque um código comunicacional extralinguístico não tem necessariamente que construir-se sobre o modelo da língua. O código fílmico não é o código cinematográfico porque se refere à reprodutibilidade técnica da realidade por meio de aparelhos cinematográficos, ao passo que a comunicação fílmica codifica uma comunicação ao nível de determinadas regras narrativas. Não há dúvida que o primeiro se apoia no segundo, assim como o código estilístico-retórico se apoia no código linguístico, como léxico do outro. A denotação cinematográfica é comum ao cinema e à televisão, o que levou Pasolini a aconselhar que essas formas comunicacionais fossem designadas em bloco, não como cinematográficas, mas como audiovisuais. Naturalmente é preciso nos limitar a algumas observações sobre as possíveis articulações de um código cinematográfico, aquém das pesquisas de estilística, de retórica fílmica, de uma codificação da grande sintagmática do filme, como se o cinematógrafo não nos tivesse dado até agora senão: “L`arrive du train à la gare” e “L`arroseur arrose”, esses pequenos filmes de autoria dos irmãos Lumière.
Enfim, uma Semiologia do cinema não pode ser apenas a teoria de uma transcrição da espontaneidade natural; apoia-se numa cinésica, estuda-lhe as possibilidades de transcrição icônica e estabelece em que medida uma gestualidade estilizada, própria do cinema, influi nos códigos cinésicos existentes, modificando-os. O filme mudo, evidentemente, tivera que enfatizar os cinemorfos normais; os filmes de Antonioni, ao contrário, parecem atenuar-lhes a intensidade. Em ambos os casos, a cinésica artificial, fruto de exigências estilísticas, incide sobre os hábitos do grupo que recebe a mensagem cinematográfica, e mofica-lhes os códigos cinésicos. Esse é um argumento interessante para uma Semiologia do cinema, assim como o estudo das transformações, das comutações, dos limiares de recognoscibilidade dos cinemorfos. Mas, adverte Eco, já estamos no círculo determinante dos códigos, e o filme não mais se manifesta aos nossos olhos como a representação milagrosa da realidade, mas como uma linguagem que fala outra linguagem preexistente, ambas interagindo com os seus sistemas de convenções. As unidades gestuais cada vez mais são ulteriores à comunicação cinematográfica. A ilusão da imagem cinematográfica como representação especular da realidade estaria destruída caso não tivesse na experiência prática, um processo dialógico com um indubitável fundamento, e se uma investigação semiológica mais aprofundada não nos explicasse as razões comunicacionais deste fato.
Bibliografia geral consultada. 

GUGLIELMI, Nilda, El Eco de la Rosa y Borges. Buenos Aires: Editorial Universitária, 1988; SILVA FILHO, Waldomiro José da, Texto e Verdade: O Conceito de Interpretação em Umberto Eco. Dissertação de Mestrado em Literatura Estrangeira. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1993; SCHIFFER, Daniel Salvatore, Umberto Eco - O Labirinto do Mundo. Uma Biografia Intelectual. Rio de Janeiro: Editor Globo, 2000; SANTOS, Gerson Tenório dos, O Leitor-modelo de Umberto Eco e o Debate sobre os Limites da Interpetação. In: Kaliope. São Paulo. Ano 3, nº 2, pp. 94-111, jul./dez., 2007; FIORUCI, Wellington Ricardo, Leitor-Modelo e Leitor-Detetive: Crítica e Ficção nas Poéticas de Umberto Eco e Ricardo Paglia. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista, 2007; LOPES, Marcos Carvalho, Sobre Limites da Interpretação: Um Debate entre Umberto Eco e Richard Rorty. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2007; BRITO JUNIOR, Antônio Barros de, Nem Tudo Vale a Pena: Teoria da Cooperação Interpretativa e dos Limites da Interpretação segundo Umberto Eco. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2010; ECO, Umberto, Apocalittici e Integrati. Milano: Bompiani Editore, 1964; Idem, Appunti per una Semiologia delle Communicazioni Visivi. Milão: Bompiani Editore, 1967; Idem, A Estrutura Ausente. Introdução à Pesquisa Semiológica. 3ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976; Idem, Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993; Idem, Arte e Bellezza nell`Estetica Medieval. 11ª edizione.  Roma: Bompiani Editore, 1997; Idem, A Memória Vegetal: E Outros Escritos sobre Bibliofilia. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011; DINIZ, Márcia Ramalho, A Outra Face do Narciso: Cultura do Consumo e Beleza do Corpo na Sociedade Contemporânea. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal da Paraíba, 2014; ANDRES, Fernanda Sagrilo, Participe: A Interatividade do Fazer Televisual. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Departamento de Ciências da Comunicação. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2017;  entre outros. 

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