Ubiracy de Souza Braga
“A vida errada não pode ser vivida
corretamente”. Theodor Adorno
Theodor Wiesengrund Adorno provocou
em muitas pessoas reações de forte antipatia. Bertold Brecht, por exemplo,
achava-o pernóstico. Hannah Arendt, que o considerava presunçoso, acusou-o de
ter adotado nos Estados Unidos, definitivamente o nome Adorno porque os
norte-americanos tinham dificuldade para pronunciar Wiesengrund. José Guilherme
Merquior descreve Adorno como “careca, gorducho e baixo” e diverte-se contando
que durante um curso que ministrava em Frankfurt, entusiasmado com as passagens
que lhe pareciam dialéticas, Adorno se punha na ponta dos pés e repetia, excitado, para os alunos: -
“Minhas senhoras e meus senhores, isso é muito dialético”. (“Meine damen und
herren, das ist sehr dialektisch”). Talvez a própria proposta filosófica de
Adorno tivesse, aos olhos da maioria das pessoas, algo de irritante e
provocador. Desde a leitura de História e
Consciência de Classe, de Georg Lukács, e do encontro com Walter Benjamin,
na primeira metade dos anos 1920, Adorno se tornou marxista, a seu modo, pois
fustigou Lukács em Notas de literatura I
(cf. Adorno, 2003: 15-45), dizendo que seu erro básico se impõe em expressar
diretamente a teoria.
Todavia, quando em seu livro História e Consciência de Classe foi
publicado, estava sendo organizado o Instituto de Pesquisa social, que passaria
a funcionar nos anos seguintes em articulação com a Universidade de
Frankfurt/Main, mas preservando sua autonomia graças ao apoio financeiro que
lhe dava o comerciante e veterano socialista Herman Weil, que havia regressado
muito rico da Argentina. Felix Weil, filho do patrocinador, redigiu o memorando
que definia o projeto do social Instituto, e no texto do memorando já se notava
o eco das concepções defendidas por Lukács em 1922: assumia-se o compromisso de
empreender pesquisas voltadas para a “compreensão da vida social em sua
totalidade”. Adotava-se uma perspectiva disposta a avaliar as questões
presentes em cada campo da atividade na inter-relação dinâmica de umas com as
outras, reconhecendo a inserção delas no processo histórico. A sede da
organização foi inaugurada no campus da Universidade de Frankfurt/Main em 22 de
junho de 1924. Na prática, apesar de seu elevado nível qualitativo, a
produção teórica dos pesquisadores do Instituto nos anos de 1920 não se
caracterizou por uma notável criatividade. Sobre a história do Instituto existe
uma vasta bibliografia.
Depois de 1936, o Instituto de Frankfurt deu aulas na divisão de extensão e patrocinou palestras de estudiosos europeus convidados, como Harold Laski, Morris Ginsberg e Celestin Bouglé, abertas à comunidade universitária. O mais importante, é claro, é que a visão europeia do Instituto transparecia sem seu trabalho. Como se poderia esperar, a teoria crítica foi aplicada ao problema mais proeminente da época: a ascensão do fascismo na Europa. Como assinalou Henry Pachter, muitos emigrados sem formação nem interesse político anteriores foram obrigados pelos acontecimentos a estudar o novo totalitarismo. Psicólogos como Ernest Kris examinaram a propaganda nazista, filósofos como Ernest Cassirer e a cientista política Hannah Arendt investigaram a formação do mito do Estado e as origens do totalitarismo, e romancistas como Thomas Mann escreveram alegorias da desintegração alemã. Nesse aspecto, o Instituto estava singularmente equipado para fazer uma contribuição importante. Começara a estudar os problemas da autoridade antes da emigração forçada. A teoria crítica fora desenvolvida, em particular, em resposta ao fracasso da teoria marxista tradicional (cf. Jay, 2008: 166-167) para explicar a relutância do proletariado em cumprir seu papel histórico. Uma das razões primordiais do interesse de Max Horkheimer na psicanálise rinha sido a ajuda que ela poderia fornecer para dar conta do "cimento" psicológico da sociedade. Por conseguinte, quando assumiu o projeto do Instituto em 1930, em seguida anunciou um estudo empírico sobre a mentalidade dos trabalhadores na República de Weimar.
Nas anotações que redigiu na segunda
metade dos anos 1940 e publicou em 1951 como o título, Minima Moralia, Adorno também abordou o tema das novas formas da
ideologia que apareciam nas condições da chamada “indústria cultura”. A
convicção de Adorno é sempre a de que a falsidade da ideologia passa a ser
perversamente mais importante à medida que ela, a ideologia, alimenta a
pretensão de corresponder à realidade. E essa pretensão se fortalece ao máximo
quando o sujeito é induzido a crer que alcançou uma visão global satisfatória,
um conhecimento confiável no todo, do conjunto articulado das coisas
compreendidas. A indústria cultural conferiu poderes avassaladores à capacidade
que a ideologia dominante possui de induzir o pensamento, atenção e mesmo do
olhar, a percepção, para os pontos por ela iluminados. A indústria cultural
possibilitou, no século XX, a criação e o funcionamento de sociedades
“totalmente administradas”, que já não precisam se empenhar em justificar suas
prescrições e imposições: a massa dos consumidores tende a aceita-las
passivamente, considerando-as normais, legitimadas pelo simples fato de existirem.
Para a ideologia dominante, “tudo é
opinião”, mas algumas opiniões são falsas e outras são corretas. O poder de
persuadir os indivíduos das opiniões corretas está ligado à capacidade da
ideologia dominante de se apoiar em todo um vasto sistema educativo, em toda
uma organização de formação cultural corrompida que é proporcionado ao amplo
público consumidor. Mas eficazmente do que o conjunto das escolas, analisadas
posteriormente por Pierre Bourdieu, a indústria cultural serve à multidão de produtos
culturais simplificados, vulgarizados, amontoados acriticamente. Os professores
se convencem de que estão ajudando seus alunos a avançar pouco a pouco na
assimilação da cultura. Os alunos, massificados, lisonjeados com a semicultura,
satisfazem-se com o que lhes está sendo dado, e são induzidos a preservar o que
lhes parece ser o seu saber, e, portanto, o seu patrimônio cultural, reagindo
contra quaisquer objeções dos eternos questionadores, sempre insatisfeitos, ou
contra as investidas insensatas de uma crítica radical. A cultura nem sempre
foi contraditória, por isso não devemos idealizá-la. No século XX, com a
esmagadora predominância de critérios imediatistas e utilitários, esses valores
críticos da cultura sofrem um brutal esvaziamento e as pessoas vão deixando de
ter a capacidade de reconhecê-los, se por acaso com eles se defrontarem.
A
divergência entre Adorno e Benjamin não resultava de um deles ser mais
desconfiado que o outro. Ambos se recusaram a seguir a uma militância
tumultuada, com elevados índices de frustração e autocríticas, concessões
dolorosas feitas ao longo de mais de cinquenta. Na origem das divergências,
estava a convicção de Benjamin de que, para intervir na ação, para
participar ativamente na luta de classes, era preciso atuar de maneira
coletiva, filiar-se ao instrumento da revolução e do partido. Uma das grandes
forças dos escritos de Adorno é a sua capacidade de ligar as maiores questões
metafísicas aos menores detalhes da existência humana. Como ele argumenta na
introdução a Mínima Moralia, isso, em
parte, é uma herança de Hegel. Do ponto de vista estético, Adorno valoriza
Hegel e Beethoven, comparativamente, pela tensão que suas obras mantêm entre o
individual e o global, entre a parte e o todo, mas ele suspeita que, em ambos
os casos, o pequeno torna-se um mero momento no todo maior. O trabalho teórico
de Adorno busca manter essa tensão dialética, como sugere a forma de Mínima Moralia. O livro é ordenado em três sequências de
fragmentos, cobrindo tópicos da vida em família à
história mundial, da experiência da criança no zoológico às críticas de
Adorno a Hegel. Os fragmentos se mantêm juntos na forma do livro, mas não se
somam entre parte e todo, em uma teoria abrangente.
Ao
conectar os detalhes aparentemente mais inocentes da vida cotidiana a absolutos
morais, Adorno parece colocar em ação uma inversão paranoica das tendências
totalitárias que ele discerne na sociedade contemporânea. Mas é apenas uma
reformulação quando ele prefacia sua queixa quanto ao cinema, o fato social de
que “não restou nada de inócuo”. No mundo cotidiano a liquidação do particular
pelo universal é experimentada como sofrimento e mal-estar da civilização.
Nesse cenário vão se propagar, erroneamente, cada vez mais ideias que aspiram
por um vulgar impulso por transcendência. O desespero pelo que existe propaga
as ideias, que em outros tempos foram contidas. Qualquer um, inclusive as pessoas
que se ocupam com negócios desse mundo, considerará um desvario a ideia de que
esse mundo finito de tormento infinito seja abarcado por um plano universal
divino. Theodor Adorno refere-se a essa experiência da “via negativa” da
“metafísica em queda” como a busca da “imediatez subjetiva intacta” ou
“subjetivismo do ato puro”, experiência que nos daria o “interior dos objetos”,
a redenção do materialismo por meio da metafísica que, finalmente, revelaria a aparente
verdade do mundo. Que ele tenha, por outro lado, querido intensivamente ter
contradito tal veredito, testemunham os 370 fragmentos que compõem o livro
inacabado, nos quais Adorno trabalhou durante parcela significativa de sua vida
intelectual, de 1938 até o final de sua vida, em 1969. Seu principal objetivo
diria respeito à própria natureza e alcance da filosofia da música enquanto
disciplina do ponto de vista do conhecimento científico.
O
livro deveria fornecer a filosofia da música, ou seja, determinar decididamente
a relação da música com a lógica conceitual, no que Beethoven e Hegel são
tomados como “paradigmas” em seus domínios respectivos. O problema social da
forma de disjunção do interesse universal e particular seria, ao mesmo tempo, o
problema da filosofia moral. Nisso, podemos seguir as ponderações de Adorno. As
realidades sociais caracterizam-se pelo fato de que interesses particulares, ao
nível ideológico, se colocam como interesses gerais. Os indivíduos devem
representar seus interesses particulares, como se o interesse universal e o
particular coincidissem. Enquanto esse estado de coisas se mantiver,
encontramo-nos numa aporética situação de contradição. Por isso, a questão
sobre a vida reta ou boa, refletiu Adorno, só poderia ser respondida por meio
da “negação determinada” e isto, para ele, significava a práxis: nós poderíamos ainda assim tentar existir decentemente,
mesmo quando o estado geral social, na condição do todo, impede-nos de fazê-lo,
uma socialização heterônoma às formas
socialmente sancionadas do ângulo da moral repressiva, isto é, tendo em vista as
condições e possibilidades de se agir como representante da vida reta, a única
que seria possível no todo falso.
A
ética ou a filosofia moral se tornam uma luz que permite discernir entre aquilo
que é certo ou não do ponto de vista ético. É um dos valores que não se
encontra inserido no contexto de uma religião específica, mas no contexto da
lei natural que rege aquilo que é conveniente para o ser humano de acordo com
sua dignidade e natureza. A moral tem sua base na liberdade do ser humano
através da qual uma pessoa pode realizar boas ações, mas que também tem a
liberdade de praticar atitudes injustas. A reflexão moral ajuda o ser humano a
tomar consciência de sua própria responsabilidade no trabalho de crescer como
pessoa, tendo sempre claro o princípio da verdade e do bem. A filosofia como
reflexão moral é muito importante, uma vez que a retidão no trabalho ajuda o ser
humano a melhorar como pessoa e a alcançar uma vida boa. A filosofia moral
mostra a responsabilidade humana em trazer esperança à sociedade que vive, uma
vez que através de ações individuais exerce influência no bem comum. Esta
filosofia moral toma como fundamental os princípios da conduta humana. Estas
normas éticas dignificam a pessoa através de valores como mostra a superação
pessoal, o amor próprio, o respeito, o princípio do dever e a busca
pela felicidade. Um princípio moral essencial é lembrar que o fim nem sempre
justifica os meios.
O
fim do idealismo alemão, o aparecimento do materialismo, o pensamento de
Friedrich Nietzsche e as teorias de Freud pareciam unir-se na luta contra a
filosofia positivista que ganhava força com a industrialização: ordem e
progresso unidos sob a batuta da ciência. Recorde-se que o anarquismo tinha
ganhado raízes em Ascona, desde que em 1869, o célebre anarquista russo Mikhail
Bakunin tinha vindo residir como refugiado político. Também pouco tempo depois
começaram a chegar outros refugiados com projetos distintos, como o de fundar
um convento laico com o nome de Fraternitas,
por iniciativa dos teósofos Alfredo Pioda e Franz Hartmann, justamente nas
montanhas de Ascona, que receberiam então, mais tarde, o nome de Monte Verità.
Em 1900, sob o ambiente histórico e filosófico da Europa do período da
pré-guerra, aparece a singular história da realização de uma utopia que tomou o
nome de Monte Verità. Singular não só pelo seu alcance, mas também pela
radicalidade das suas propostas iniciais, e pela atração que exerceu sobre
inumeráveis artistas e pensadores, mas também
pelo fato da criação do “Círculo de Eranos”, o qual teve como expoentes figuras
como Carl G. Jung, Rudolf Otto, Karl Kerenyi, Joseph Campbell, Mircea Eliade,
Gilbert Durand, Gershim Scholem, Henry Corbin e Gerardus van der Leeuw.
Eranos
é a designação dada a um encontro de pensadores dedicados aos estudos da
espiritualidade que ocorreu regularmente próximo a Ascona, na Suíça, a partir
de 1933. O nome, sugerido por Rudolf Otto, é derivação da palavra grega que
significa “um banquete onde não existe um anfitrião a prover os convidados, mas
onde todos contribuem com sua comida”. O grupo de Eranos foi fundado por Olga
Froebe-Kapteyn em 1933, e as conferências ocorreram anualmente em sua
propriedade desde então - às margens do Lago Maggiore, próximo a Ascona, na
Suíça. Por mais de setenta anos, as reuniões serviram como ponto de contato
entre intelectuais de diferentes orientações de pensamento. As conferências
tinham duração de oito dias. Durante esse período, os participantes realizavam
suas atividades em conjunto, vivendo de “forma comunal” e exercendo abertamente
o diálogo e o debate. Dada a diversidade de pensamento, não é possível designar
os encontros de Eranos como uma “escola de pensamento”, embora tenha havido uma
intensa troca e partilha de questões em comum, como a hermenêutica dos símbolos
e os fundamentos da possibilidade do conhecimento científico.
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Horkheimer, Adorno à direita e Habermas. |
Nesses
movimentos havia chefes e discípulos que utilizavam uma linguagem e um estilo
específico, elemento e imagem de “sua intimidade emocional”, e celebravam
certas palavras, como exemplo, gemeinshaft:
a comunidade era aos seus olhos uma invocação mágica. As aspirações e valores
dos wandervogel exprimiam “sua busca
de alma, sua desconfiança em relação ao espírito”. Para falar do complexo de
sentimentos e reações que exprime o espírito deste movimento de juventude,
vale-se da expressão “busca de unidade”, que representa, em seu ponto de vista,
uma regressão oriunda de um grande medo: “o medo da modernidade”. Segundo Peter
Gay, as abstrações que Ferdinand Tönnies e tantos outros pensadores utilizaram revelam
uma necessidade desesperada de raízes e pertença a uma determinada comunidade,
constituem uma rejeição radical da razão,
a que se acrescenta o apelo à ação direta ou à submissão a um chefe
carismático. Observa que este conglomerado de sentimentos hostis que se fazia
passar por filosofia incitou Ernst Troeltsch, a assinalar o perigo desta
inclinação, a seus olhos alemã, que favorecia a “mistura de misticismo e brutalidade”.
À medida que a situação política na
Alemanha de Weimar se deteriorava, essa teologia subterrânea era mais ou menos
veladamente transfigurada em uma estrutura confessadamente marxista. Na
verdade, a separação de crítica, cultura e questões de mobilização política e
organização partidária, pela qual Adorno geralmente é atacado. A tarefa do
intelectual não devia ser encontrar premonições de revolução nas ruínas da
antiga ordem, mas lançar um ataque à nova ordem e aos movimentos que afirmavam
ser capazes de transformá-la. A consistência intelectual da posição de Adorno
baseia-se no repúdio de qualquer pretensão a um ponto de vista privilegiado para
o intelectual como observador da sociedade. O elitismo inerente da arte, da
política e da teoria da vanguarda era anátema para Adorno, e isto lança os
fundamentos para a divergência entre o seu trabalho e as variedades comuns ou
domesticadas da crítica marxista da ideologia. Mínima Moralia é a resposta de Adorno. Isto capacita Adorno a
reformular vagas aspirações
políticas e sociais de amigos em temos explicitamente morais.
Para um melhor dimensionamento do que
se pode extrair desta frase para a interpretação do pensamento estético e
filosófico de Adorno, convém ainda tematizar rapidamente o significado
intrateórico de seu inacabado Beethovenbuch,
cujo primeiro capítulo ela praticamente deveria introduzir, se seguirmos a
ordenação proposta por Rolf Tiedemann, editor e aluno do filósofo. Dentre os
projetos inacabados que Adorno gostaria de ter finalizado constituindo um
momento essencial no desenvolvimento de sua obra e, por preencherem lacunas
constatáveis, teria lhe conferido nova consistência, figura exemplarmente esse
livro sobre Beethoven, que deveria se chamar, muitíssimo significativamente: “Beethoven:
Filosofia da música”, pois salta aos olhos que Adorno não tenha escrito uma
filosofia da música, mas apenas uma filosofia da nova música. As categorias, para Adorno essencialmente correlatas,
de imanência e de totalidade serão, assim, essenciais para a compreensão do que
Beethoven e Hegel representariam a história da música e da sua
relação com a filosofia ocidental.
A
relação particular do sistema beethoveniano comparativamente com o sistema hegeliano reside no
fato de que a unidade do todo de pensamento deve ser compreendida apenas como uma unidade
mediatizada. A forma beethoveniana é um todo integral, no qual cada momento
particular só se determina a partir de sua função no todo, apenas na medida em
que esses momentos particulares se contradizem e suprassumem na complexidade de apreensão do todo. Em outros termos, poder-se-ia resumir a argumentação
de forma bastante esquemática e mesmo algo violenta à sua
complexidade, às seguintes teses correlatas. Arte e filosofia ocidental apresentam
um desiderato interno. Manifesto, sobretudo na modernidade, referido à autonomização. Seus discursos são traduzidos
essencialmente em sua progressiva emancipação de elementos transcendentes:
categorias teológicas, no caso da filosofia ou de inteligibilidade naturalizados
– e de seu correlativo estabelecimento como totalidade conceitual, para a filosofia,
e formal no caso das artes, dotada de sentido imanente.
Essencial
para a plena consecução de tal autonomização decorreu, no caso da música, a
consolidação do idioma tonal e, a ele correlato, da forma musical integral, com
o advento do classicismo vienense; e no caso da filosofia, a dissolução de toda
transcendência em sentido especulativo, tal como levada à cabo por Immanuel
Kant que, por sua vez, se encontra nas tentativas sistemáticas do idealismo Alemão
que por intermédio das interpretações de Beethoven e Hegel se concretizam tais
processos. Dialética negativa é o nome que tem como representação o programa teórico que procura oferecer
consistência a um pensamento que se localiza em tal lugar de enunciação. Por um
lado, endossa-se enfaticamente o colapso do idealismo e de sua correlativa
pretensão sistemática à totalidade, o que fará de uma dialética negativa um “antissistema”
ou uma “anti-filosofia” que procura dissolver internamente todo sistema
filosófico e toda filosofia da imanência; por outro lado, afirma-se simultaneamente
que a filosofia só se realiza com uma visada à totalidade e à imanência
radicais, o que faz da dialética negativa um antissistema que permanece fiel à
sua vocação clássica e atrelada ao ideal da filosofia
hegeliana. - “Por isso, a dialética negativa permanece atrelada, como seu ponto
de partida, às mais elevadas categorias da filosofia da identidade”.
É
neste sentido que o viver correto seria impossível, não tanto porque a
sociedade, de certa maneira, é inerentemente má, mas porque a natureza do certo
e do errado é tal que nunca podemos dizer como confiança que um eclipsou o
outro. Parte do contraponto que podemos sentir ao uso que Adorno faz da ideia
de liberdade é que a maneira como geralmente pensamos sobre liberdade evoluiu
para evitar justamente esse tipo de conflito: uma tendência encontrada não
apenas no nosso cotidiano do termo, mas também nas tendências predominantes na
teoria política liberal. Quando usamos a palavra “liberdade” tendemos a querer
dizer que nenhuma limitação física ou jurídica nos impede de agir segundo
nossos desejos ou, vendo pelo outro lado, segundo a capacidade jurídica ou
física de realizar muitas ações desejadas. Em termos políticos, este é o famoso
contraste entre liberdades positivas e negativas: a liberdade como um conjunto
de direitos que detemos como cidadão; a liberdade como um conjunto de
restrições ao que os outros, ou o Estado, como ocorre no julgamento político do líder sindical e ex-presidente
do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva impõem. A liberdade, em todos os sentidos,
está intimamente ligada à ideia do indivíduo. Os indivíduos detêm direitos como
cidadão ou são protegidos contra a violação de suas liberdades. A
autonomia do indivíduo é presumida ao invés de provada. Ao rejeitar nossa interdependência mútua frente aos outros
e o mundo que nos sustenta, a moralidade torna-se mera justificativa para a continuação da Bellum omnium contra omnes, que Adorno,
seguindo Hobbes, supõe como estado de natureza.
Uma filosofia moral liberal, que
parte do homem como indivíduo autônomo e independente, simplesmente não é uma
filosofia moral, porque segundo Adorno (1989) a moralidade é um dos aspectos da cultura que nos
permite suspender tal violência. Adorno segue uma tradição alternativa,
exemplificada melhor na obra de Rousseau e Hegel, pensadores para quem a liberdade para um
não tem significado sem a liberdade para o todo. A antipatia do indivíduo para
com uma ordem social que ele sente como imposta a ele é uma consequência da
natureza irreconciliada da sociedade, igualmente exibida na antinomia
filosófica de sujeito e objeto. Portanto, Adorno não nega a experiência
subjetiva da alienação, de ser colocado contra uma totalidade social que não
parece corresponder aos nossos interesses e desejos. Pois, tanto o pensamento
político liberal, como a experiência individual na sociedade tem de ser
explicada, não como uma forma solucionada de uma síntese superior, mas como um
problema insuperável. A liberdade deixa à altura sua
promessa de reconciliação social: uma promessa que nos
permite criticar não apenas a não liberdade social, mas também a liberdade
parcial hipostasiada nas filosofias liberais que justificam a liberdade dos
indivíduos.
As
sugestões autoritárias da insistência na autonomia moral como submissão ou
respeito à lei derivam da experiência de leis como exteriores ao indivíduo. A
discussão adorniana não pretende solucionar este puzzle ou mesmo sua condição
de liberdade. A concepção da personalidade como estrutura é a melhor
salvaguarda contra a inclinação a atribuir as tendências persistentes no
indivíduo a algo inato ou básico ou racial que existe dentro dele. A alegação
nazista segundo a qual são os traços naturais e biológicos que decidem o modo
de ser global de uma pessoa não seria um expediente político tão bem sucedido
se não fosse possível apontar as numerosas instâncias de fixação relativa na
conduta humana e desafiasse aqueles que pensam poder explicá-las em qualquer
outra base que não a biológica. Privados do entendimento da personalidade como
estrutura, os autores cuja abordagem descansa na premissa de que a capacidade
humana de responder e se adaptar à situação social existente é infinita em nada
ajudaram, no tocante à matéria, ao referir-se às tendências persistentes com as
quais eles não concordam como confusão,
psicose ou o [próprio] mal, sob um ou outro nome. Obviamente, existe
alguma base para descrever como patológicos os padrões de conduta que não se conformam às respostas
tidas como mais comuns e, aparentemente, mais regulares aos estímulos do
momento. Porém isso é usar o termo patológico no sentido muito estreito de
desvio da média encontrada em um contexto social particular e, o que é pior,
sugerir que tudo aquilo que existe na estrutura da personalidade pode ser posto
sob esse título. Realmente a personalidade abarca variáveis amplas disseminadas
na população e que possuem relações regulares umas com as outras.
Os
padrões de personalidade que têm sido desprezados como patológicos, porque não
estão de acordo com as tendências manifestas mais comuns, ou mesmo com a
maioria dos ideais dominantes existentes na sociedade, revelam-se à luz de uma
investigação mais detalhada não ser senão exageros de algo que é quase
universal no plano subjacente a essa sociedade. O que é patológico hoje pode se
tornar a tendência dominante de amanhã, com a mudança das condições sociais.
Parece claro então que uma abordagem adequada dos problemas que temos pela
frente precisa levar em conta ao mesmo a fixidez e flexibilidade [da
personalidade]; precisa ver as duas coisas não como categorias mutuamente
exclusivas, mas como extremos de um mesmo contínuo, ao longo do qual as
características humanas podem ser colocadas; e, por fim, precisa nos dar a base
para entender as condições que favorecem um ou outro extremo. Personalidade é
um conceito para dar conta de uma permanência relativa. Porém podemos enfatizar
mais uma vez que ele designa, sobretudo,
em potencial; é a prontidão para conduta
antes que a própria conduta. Embora
consista em disposições para se conduzir de certo modo, a conduta realmente
verificada vai depender da situação
objetiva. Onde a preocupação é com as tendências antidemocráticas, a
delimitação das condições para expressão individual requer um entendimento da
organização global da sociedade. Afirma-se há algum tempo que a estrutura da
personalidade pode ser tal que torna o indivíduo suscetível à propaganda
antidemocrática. Pode-se agora perguntar quais são as condições sob as quais
tal propaganda poderia, aumentando seu grau e volume, vir a dominar a imprensa
e o rádio e excluir os estímulos ideológicos contrários, de modo que o que
agora jaz em potencial se tornasse efetivamente manifesto. A resposta não deve
ser procurada em qualquer personalidade singular, nem nos fatores de
personalidade existentes na massa da população, mas nos processos em ação na
sociedade. Atualmente parece bem entendido que se a propaganda antidemocrática
vai ou não se tornar uma força dominante neste país depende fundamentalmente da
situação da maior parte dos interesses econômicos mais poderosos; se eles, seja
ou não através de um plano consciente, farão uso desse expediente para manter
seu status dominante; e essa é uma matéria sobre a qual a grande maioria das
pessoas teria pouco a dizer.
Bibliografia
geral consultada.
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1992; Idem, “O Ensaio como Forma”. Disponível em: Notas
de literatura I. São Paulo: Editora 34, pp. 15-45; 2003; Idem, Minima Moralia: Reflexões a partir da Vida
Lesada. Rio de Janeiro: Editor Azougue, 2008; Idem, Três Estudos sobre Hegel. São Paulo: Editora Unesp, 2013; SCHWEPPENHÄUSER, Gerhard, “A Filosofia
Moral Negativa de Theodor Adorno”. Disponível em: Educ.
Soc. Campinas, volume 24, n° 83, pp. 391-415, 2003; RODRIGO DUARTE, Virginia Figueiredo; KANGUSSU, Imaculada, Theoria Asthetica em Comemoração ao Centenário de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Escritos Editora, 2005; THOMSON, Alex, Compreender Adorno. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2010; MUSSE,
Ricardo, “Experiência Individual e Objetividade em Mínima Moralia”. Disponível em: Tempo
Social - Revista de Sociologia da Universidade de São Paulo, volume 23, n°
1, 2011; LEMOS, Sólon
Sales, Dialética Negativa: Formação e
Resistência em Theodor Adorno. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-graduação em Educação Brasileira. Universidade Federal do Ceará, 2013; PUCCIARELLI,
Daniel, “Só há Beethoven e Hegel? Breve reflexão sobre uma frase de Adorno”.
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julho 2014; VIANA, Cynthia Maria Jorge, A Tessitura do Ensaio em Theodor W. Adorno. Tese de Doutorado em Educação. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2015; FLECK, Amaro de Oliveira, Theodor W. Adorno: Um Crítico na Era Dourada do Capitalismo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2015; SAIZ, Gustavo dos
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Brasileiro (1950-2015). Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais. Faculdade de Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2017; LIMA, Bruna Della Torre de Carvalho, Adorno, Crítico Dialético da Cultura. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017; KUGNHARSKI, Gabriel Petrochen, A Categoria de Totalidade na Dialética Negativa de Theodor Adorno. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018; entre outros.
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