domingo, 29 de abril de 2018

Marisa Leticia - Memória & Vigília de Trabalhadores do Brasil.


                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

Uma mulher que não pode ser considerada mero adereço do marido”. Frei Betto, 02/02/2017.

                        
A vigília Lula Livre e as diversas organizações sociais que a integram repudiam de forma veemente o ataque a tiros sofrido contra o acampamento Marisa Letícia, ocorrido na madrugada de 28/04 e que resultou em duas pessoas feridas, uma delas de forma grave, com um tiro no pescoço. O acaso de não ter havido vítimas fatais não diminui a tentativa de homicídio, motivada pelo ódio e provocação de quem não aceita que a vigília é pacífica, que alcança três semanas e vai receber um 1° de Maio com presença massiva de trabalhadores em Curitiba. No fundo, é uma crônica anunciada. Desde o dia 17 quando houve a mudança de local de acampamento, cumprindo demanda judicial, os integrantes do movimento social pró-Lula haviam sido atacados na região. Desde aquele momento, a coordenação da vigília já exigia policiamento e apoio de viaturas, como foi  sinalizado nos acordos para mudança no local do acampamento. – “Nós desmanchamos o acampamento cumprindo ordem oficial. Fizemos a opção de ir para um terreno e seria garantida a segurança. Agora o que cobramos da Secretaria de Segurança Pública é investigação, que identifique o atirador”, enfatiza Dr. Rosinha, presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) estadual e integrante da coordenação da vigília.   
O Comando Exército lançou em 24 de agosto de 2017 quatro portarias de números 966, 967, 968 e 969 estabelecendo quem pode usar tais armas. Diz o texto do Comando Logístico da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército que divulgou a decisão: - “O Comando do Exército Brasileiro assinou, no dia 08 de agosto de 2017, as Portarias 966, 967, 968 e 969, que autorizam a aquisição de até 2 (duas) armas de fogo de porte de uso restrito, no calibre 9mm, na indústria nacional, para uso particular por agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência, policial rodoviário federal, policial ferroviário federal, policial civil, policial e bombeiro militar dos Estados e do Distrito Federal, agentes das polícias legislativas do Congresso Nacional, da Carreira de Auditoria da Receita Federal e Analistas Tributários diretamente envolvidos no combate e na repressão aos crimes de contrabando e descaminho”. É conhecido e delimitado o universo de pessoas aptas a usarem as armas 9 mm. E são todas elas policiais e militares ou agentes de segurança do Estado.
Segundo informações de trabalhadores do Acampamento Lula Livre muitos carros passaram em frente ao local desde as duas da madrugada, gritando palavras de ordem e o nome de Jair Bolsonaro, candidato a presidente preferido pela extrema direita. Após o ataque, os integrantes do acampamento realizaram uma manifestação em uma rua próxima para denunciar o atentado e o “estado de exceção que fere o direito de mobilização do grupo”, além disso, os acampados pediram agilidade por parte da Polícia e Justiça. Após uma passeata do acampamento Marisa Leticia até a Vigília Lula Livre, os acampados deram o reconhecido e já tradicional bom dia ao ex-presidente Lula e denunciaram o atentado. Para Roni Barbosa, secretário nacional de Comunicação da Central Única de Trabalhadores - CUT, e Regina Neves, presidenta da CUT-PR, ambos residentes em Curitiba, “é vergonhoso ver a direita golpista destruir a boa imagem da capital e do estado do Paraná. Eles participaram da caminhada desta manhã, ao lado da vice-presidente da CUT Carmen Foro”. A vigília Lula Livre soltou uma nota de repúdio contra o atentado alegando que a “tentativa de homicídio” não intimidará os manifestantes, que terão presença massiva em Curitiba neste 1° de maio, Dia do Trabalho. O movimento também fala em “crônica anunciada”, devido ao fato dos integrantes já terem sido atacados na região no momento em que houve a troca de local do acampamento. Segundo o texto, as atividades do acampamento seguem normais.

             
O Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, condenou o ataque a tiros contra o acampamento Marisa Letícia em Curitiba, onde dorme parte dos militantes da Vigília Lula Livre, ocorrido na madrugada deste sábado (28/04). Ele afirmou que “quem odeia a democracia tem medo de perder seus privilégios e dispara contra pessoas indefesas durante a noite”. Adolfo Esquivel esteve em reunião no parlamento do Mercosul (Parlasul), onde participou de ato na defesa da liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é mantido encarcerado como preso político na capital paranaense. - Repudiamos el atentado homicida contra el Campamento #LulaLivre en Curitiba. Quienes odian la democracia tienen miedo de perder sus privilegios y disparan a personas indefensas por la noche.#Brasil vive un Estado de excepción.
Em 1974 na cidade de Medellin, na Colômbia, Adolfo Pérez Esquivel coordenou a fundação do Servicio Paz y Justicia en América Latina (SERPAJ-AL), junto com vários bispos, teólogos, militantes, líderes comunitários e sindicalistas. O SERPAJ-AL se dedicou a defender os Direitos Humanos no continente e a difundir a Não-Violência Ativa como instrumento de transformação da realidade e de enfrentamento dos crimes de tortura e desaparecimento forçado de militantes políticos e agentes comunitários e pastorais, praticados pelas Ditaduras Militares que haviam se instalado por toda a América Latina, com o apoio dos Estados Unidos que viviam então o auge da chamada Guerra Fria com a União Soviética. Por essa atividade Adolfo Pérez Esquivel recebeu o Nobel da Paz de 1980. Escultor estudou e obteve formação em arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes da Universidade Nacional de La Plata. A partir de 1968, dedicou particularmente em sua vida a propagar a não violência e defender os direitos humanos: fundou o Jornal Paz e Justiça em 1973, e a partir de 1974 se tornou seu secretário. A publicação se tornou a voz do movimento pacifista na América Latina. Entre 1977 e 1979, comparativamente com o líder sindicalista e ex-presidente Lula, foi preso por questões políticas. Contudo, durante esta reclusão recebeu o Prêmio Memorial de Paz Juan XXIII, entregue pela Organização Pax Christi Internacional.
Marisa Letícia Rocco Casa nascida em São Bernardo do Campo numa família de pequenos sitiantes, ela guardava a firmeza de caráter de seus antepassados italianos. Comedida nas palavras, a ponto de preferir não dar entrevistas, não fazia rodeios quando se tratava de dizer o que pensa, doa a quem doer. Por isso não pode ser incluída entre as tietes do marido. Nos palanques, preferia ficar atrás e não ao lado de Lula. A admiração recíproca que os unia não impediu que, ao vê-lo retornar de uma maratona de reuniões, às 3 da madrugada, ela o convoque para criticar o desempenho dele numa entrevista na TV ou compartilhar decisões domésticas. Nasceu em 7 de abril de 1950 e faleceu em São Paulo, em 3 de fevereiro de 2017. Foi uma grande primeira-dama do Brasil, ocupando o posto entre 1º de janeiro de 2003 e 1º de janeiro de 2011, período em que o seu marido, o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, importante fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) exerceu o cargo de presidente da República.
Filha de Antônio João Casa, filho de Giovanni Casa e Carolina Gambirasio e Regina Rocco, filha de Mariano Rocco e Giovanna Boff, Marisa Letícia Rocco Casa nasceu numa família de imigrantes italianos lombardos de Palazzago, província de Bérgamo de origem agrícola. Tanto quanto Lula, Marisa conhece as dificuldades da vida. Décima filha de Antônio João Casa e Regina Rocco Casa cresceu vendo o pai carregar a charrete de verduras e legumes que ele plantava e vendia no mercado. Se o sítio era pequeno, suficiente para assegurar a precária subsistência da família de onze filhos, o coração dos Casa era grande o bastante para acolher os necessitados. Dona Regineta – como era tratada sua mãe – ficou conhecida como benzedora em São Bernardo do Campo, pois, na falta de médicos e de recursos, muitas pessoas a procuravam, especialmente quem padecia de bronquite. Conviveu com os dez irmãos no sítio dos Giovanni Casa até os cinco anos de idade. Neste sítio, seu avô paterno construiu uma capela em homenagem a Santo Antônio, que ainda existe. Hoje, toda a área do sítio chama-se “Bairro dos Casa”, em homenagem a seus antepassados, pioneiros da região. Em 1955, Marisa e sua família mudou-se para São Bernardo do Campo, região do Grande ABC (SP). Depois de frequentar uma escola humilde, Marisa foi transferida, na terceira série, para o Grupo Escolar Maria Iracema Munhoz.
Aos nove anos, já tinha experiência como pajem de três garotas mais novas. Aos 13 anos de idade, com a autorização do pai, começou a trabalhar na fábrica de chocolates Dulcora, como embaladora de bombons. Permaneceu nesta até os dezenove anos de idade, quando se casou com o motorista Marcos Cláudio dos Santos e mudou seu nome para Marisa Letícia Casa dos Santos. Seis meses após o casamento, seu marido foi assassinado num assalto. Marisa estava grávida de quatro meses e seu filho recebeu o nome de Marcos Cláudio, em homenagem ao pai. Em 1973, trabalhou como inspetora de alunos em um colégio estadual. Neste mesmo ano, já viúva, conheceu Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de sua cidade natal. Os dois casaram-se sete meses depois e passou a se chamar Marisa Letícia Casa da Silva. Quando Lula incorporou seu apelido em seu nome, Marisa mudou novamente de nome, passando a chamar-se Marisa Letícia Lula da Silva. O longo relacionamento político-afetivo de mais de trinta anos gerou três filhos: Fábio, Sandro e Luís Cláudio. Marisa Letícia tinha ainda uma enteada, Lurian, filha de Lula da Silva com a ex-namorada Miriam Cordeiro.
Marisa Leticia começou na vida política militando ao lado do marido, eleito presidente do Sindicato em 1975, para que outras mulheres se juntassem ao movimento sindical na região. Em 1978, iniciaram-se as greves no ABC paulista. Foi Marisa quem cortou e costurou a primeira bandeira do Partido dos Trabalhadores, quando este foi fundado em 10 de fevereiro de 1980. Participou ativamente no início das atividades do partido, ajudando a criar núcleos e a estampar camisetas. Habilidosa na arte do silk-screen, Marisa fez a primeira bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT), num corte de tecido vermelho trazido da Itália. Em 1981, montou em casa uma pequena oficina para estampar camisetas com símbolos do Partido, inclusive criações de Henfil. Para a campanha de Lula a deputado federal, em 1986, ela chegou a estampar cerca de vinte mil camisetas, que foram vendidas para angariar fundos. Ciosa de sua privacidade familiar critica a imprensa quando tenta entrar pela porta de sua casa ou incluir seus filhos no noticiário. Em tais situações, só o cuidado das plantas é capaz de acalmá-la. Desprovida de vaidade, Marisa se vestia pelo figurino do bom gosto, evitando a sofisticação. Comprava a roupa que lhe agradava, sem conferir a etiqueta. Ela sempre foi sua própria manicure/pedicure. Avessa a protocolos, gostava mesmo de ficar entre amigos, cercada de planta e água, em qualquer lugar em que os filhos se divertiam, livres das normas de segurança. Um bom jogo de buraco, o papo solto, o marido de bermudas ao seu lado e o telefone desligado - é o que basta para deixá-la em paz.
Com a intervenção do governo federal no sindicato em abril do mesmo ano, Lula e outros sindicalistas foram presos, e as reuniões eram realizadas ilegalmente em sua casa. Nesse período, quando Lula e diversos sindicalistas estavam presos devido às greves, ela liderou a Passeata das Mulheres em protesto pela liberdade dos sindicalistas. Centenas de mulheres e de crianças, todas cercadas por policiais, tanques e cavalaria, saíram da Praça da Matriz e caminharam pela rua Marechal Deodoro até o Paço Municipal, retomando à Igreja da Matriz. Durante as disputas eleitorais de 1982, 1986, 1994 e 1998, nas quais Lula se candidatou, Marisa dedicou-se aos filhos, à casa e às campanhas. Em 2002, entretanto, com os filhos já adultos, pôde se dedicar exclusivamente à campanha do marido. Em 1º de janeiro de 2003, Marisa Letícia tornou-se a primeira-dama do Brasil. Nos oito anos como primeira-dama do Brasil, Marisa Letícia não participou ativamente de nenhum projeto, fato duramente criticado pela oposição. Tradicionalmente a primeira-dama realiza projetos sociais, em paralelo as ações oficiais. No primeiro turno das eleições de 2006, Marisa não deu tanto apoio a Lula quanto nas eleições anteriores. Assim como o marido, acreditava que a disputa seria resolvida no primeiro turno. Entretanto, com a disputa encaminhada para segundo turno, Marisa começou a participar mais ativamente da campanha, mantendo uma agenda própria e realizando caminhada sozinha em prol do marido em Brasília e em Goiânia. No contexto de manobra política da “Operação Lava Jato”, em setembro de 2016, Marisa tornou-se ré de duas ações penais aparentemente por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Após sua morte, juridicamente as acusações foram extintas.
No artigo de Leonardo Boff, intitulado: “Dona Marisa Letícia ao ódio respondeu doando seus órgãos” (05/02/2017), ele faz análise de conjuntura demonstrando, em suas palavras, que ela morreu num contexto politico conturbado. Nas palavras do próprio Lula, “ela morreu triste” e também traumatizada. Para Boff, as instituições brasileiras não funcionam porque não se qualifica o seu funcionamento. Isto porque se tomamos como referência a mais alta corte da nação, o Supremo Tribunal Federal - STF ai fica claro que as instituições estão corrompidas, incluindo a Polícia Federal e o Ministério Público. Especialmente o Supremo Tribunal Federal é atravessado por interesses políticos e um dos seus ministros, de forma escancarada, rompe diretamente a ética de todo magistrado, falando criticando, atacando fora dos autos e tomando claramente posição por um partido; nada acontece, no nosso vale tudo jurídico, quando deveria sentir o rigor da lei e sofrer um impeachment. Esta situação política e institucional  é um sinal inequívoco que estamos numa derrocada política, ética e institucional.
O Brasil, para Leonardo Boff, vai de mal a pior, pois todos os dias os itens sociais e políticos se deterioram. E afirma: - O que nos parece mais grave é o fato de que se instaurou um real estado de sítio judicial. A chamada operação Lava-Jato mostrou juízes justiceiros que usam o direito como instrumento de perseguição, no caso do Partido dos Trabalhadores e diretamente do ex-presidente Lula. A Polícia Federal, bem no estilo da SS nazista, entrou casa adentro da família Lula, revistaram cada canto, reviraram o colchão, remexeram a penteadeira de Dona Marisa, revolveram a geladeira, carregaram o que puderam e levaram sob vara, pois é esta a expressão correta, quer dizer, coercitivamente o ex-presidente Lula para interrogatório numa delegacia do aeroporto. Tal ato de violência física e simbólica traumatizou a ex-primeira dama. Maior foi o trauma quando foi indiciada como criminosa na operação Lava Jato junto com o marido. Evidentemente isso a encheu de medo e alterou todo seu estado de saúde. Como se não bastassem aquilo que escreveu corajosamente jornalista Hildegard Angel em seu blog na internet - rede mundial de computadores, “os oito anos de bombardeio intenso, tiroteio de deboches, ofensas de todo jeito, ridicularia, referências mordazes, críticas cruéis, calúnias até. E sem o conforto das contrapartidas”.
Concordando com a análise da jornalista, afirma Boff: - faço minhas as palavras de Hildegard Angel, pois representam o que posso testemunhar em mais de 30 anos de amizade entranhável com Dona Marisa e Lula: “Foi companheira, foi amiga e leal ao marido o tempo todo. Foi amável e cordial com todos que dela se aproximaram. Não há um único relato de episódio de arrogância ou desfeita feita por ela a alguém, como primeira-dama do país. A dona de casa que cuida do jardim, planta horta, se preocupa com a dieta do maridão e protege a família formou com Lula, um verdadeiro casal”. Criticam-na porque como primeira dama não assumiu funções públicas. Mas poucos sabem que foi ela que restituiu a forma original do palácio do Planalto, resgatando os móveis e tapetes que haviam sido doados a ministros e a outros departamentos. Ela possuía elevado sentido estético e reconhecido gosto pela arte popular. Foi fundamental na reforma da Catedral que acompanhou passo a passo. Finalmente, foi ela que introduziu no Torto as festas da cultura popular, a celebração de seus santos de devoção que são da maioria do povo brasileiro, Santo Antônio e São João. Lá organizou o carnaval bem no estilo do povo, com as bandeirinhas, a procissão e o pau de sebo. Escândalo da burguesia descolada de nossas raízes e envergonhada de nossas tradições.
Quando ela sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que foi fatal, Leonardo Boff visitou-a na UTI: - Falei-lhe ao ouvido (dizem que mesmo em coma o ouvido ainda funciona) palavras de confiança e de entrega ao Deus Pai e Mãe que ela acreditava com fé profunda. Deus a estava esperando para que caísse em seu seio materno e paterno para ser feliz eternamente. Abracei o ex-presidente que não escondia as lágrimas. Quando se constatou a morte cerebral, o coração ainda pulsava. Ele disse uma palavra verdadeira: - ”O coração dela pulsa porque o nosso amor vai para além da morte”. Ao lado de tanta dor – afirma Boff - se constataram na internet palavras de ódio e de maledicência. Felizes porque morria e merecia morrer daquele jeito. Aí me dei conta de que não temos apenas pedófilos, mas também necrófilos, aqueles que amam e celebram a morte dos outros. Pertinente é a frase atribuída ao Papa Francisco: - ”Quando você comemora a morte de alguém, o primeiro que morreu foi você mesmo”. Diante da morte, o momento derradeiro para cada ser humano, pois vai encontrar-se com Suprema Realidade que é Deus, devemos nos calar reverentes. Ou proferimos palavras de conforto e de solidariedade ou emudecemos respeitosamente. Como podemos ser cruéis e sem piedade diante da morte dolorosa de uma pessoa conhecida como extremamente bondosa, assim como arraigada aos mais pobres, lutadora dos direitos dos trabalhadores e das mulheres e com grande amor ao Brasil? Tanto quanto Lula foi realizada uma devassa em sua vida pelo como um ato incontestavelmente de vingança pelo juiz federal da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba S. F. Moro.   
Ao ódio ela respondeu doando generosamente os próprios órgãos para que outros pudessem viver. Enfim, em 24 de janeiro de 2017, Marisa Leticia foi internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Sírio-Libanês após sofrer um acidente vascular cerebral hemorrágico (AVC). Em 2 de fevereiro, a ex-primeira dama havia tido sua morte cerebral decretada, entretanto o Hospital Sírio-Libanês anunciou que a mesma seria submetida aos primeiros exames para a testificação de morte cerebral no dia seguinte. Após esses exames, o hospital divulgou nota confirmando a morte de Marisa, constatada às 18h57 de 3 de fevereiro de 2017. Sua família autorizou a doação de seus órgãos e a Secretaria Estadual de Saúde confirmou que seriam doados rins, fígado e as córneas. A morte de Marisa Letícia repercutiu no meio político. O ex-presidente Lula recebeu visitas de aliados e outros de vários partidos políticos. Dilma Rousseff afirmou que Marisa foi uma “mulher de fibra, batalhadora que conquistou espaço e teve importante papel político. Marisa foi o esteio de sua família, a base para que Lula pudesse se dedicar de corpo e alma à luta pela construção de outro Brasil”. Marisa Letícia, a Primeira Dama. Da fábrica ao Palácio do Planalto (DF).
O velório ocorreu em 4 de fevereiro na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. O corpo chegou às 9h da manhã e o velório foi fechado para a família até às 10h, quando foi aberto para o público até cerca de 15h30. Amigos, parentes, correligionários e uma multidão em torno de aproximadamente 20 mil pessoas, segundo o Sindicato dos Metalúrgicos, prestaram homenagens a Marisa Letícia. O culto ecumênico foi marcado pelo discurso político-afetivo. Foi neste sentido que Lula emocionado, Lula disse que a sua companheira “Marisa morreu triste porque a canalhice, a leviandade e a maldade que fizeram com ela... Quero provar que os facínoras que levantaram leviandades contra ela tenham um dia a humildade de pedir desculpas”. O corpo foi cremado no cemitério Jardim da Colina após o velório. O Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) homenageou Marisa “com um programa de bolsas para mulheres que lutam pela liberdade e pela democracia”. Em 29 de dezembro de 2017, o prefeito em exercício de São Paulo, sancionou o projeto de lei que dá o nome da ex-primeira dama Maria Letícia a um viaduto no extremo Sul da capital paulista que se inicia na Estrada do M`Boi Mirim e termina na confluência da avenida Luiz Gushiken com a rua Adilson Brito.
Finalizando, a cor vermelha significa paixão, energia e excitação. É uma cor quente. Está associada ao poder, à guerra, ao perigo e à violência. O vermelho é a cor do elemento fogo, do sangue e do coração humano. Simboliza a chama que mantém vivo o desejo, a excitação sexual e representa os sentimentos de amor e paixão. No contexto religioso, o vermelho é a cor da carne, do pecado, do diabo, da tentação; é a cor que provoca a paixão carnal e o desejo. Na política, a cor vermelha está associada ao espírito revolucionário. É a cor do comunismo e da ideologia política de esquerda. A cor vermelha estimula o sistema nervoso, a circulação sanguínea, dá energia ao corpo e eleva a autoestima. Um ambiente pintado de vermelho se torna vibrante, com glamour, requinte e estimula a sexualidade. Em excesso, pode provocar inquietação. Na sala e na cozinha, o vermelho estimula o apetite e a sexualidade deixando-o mais convidativo. Na consciência popular individual (os sonhos) e coletiva (os mitos, os ritos, os símbolos) a bandeira vermelha está associada com o ideário comunista, o sindicalismo marxista em geral e as manifestações populares massivas, fato político que é cimentado com a imagem difundida com as bandeiras de República Popular da China e da União Soviética. Durante o período clássico revolucionário da Comuna de Paris, as bandeiras francesas da cidade foram retiradas e em seus lugares hasteadas bandeiras vermelhas. Enfim, o vermelho irradia-se como uma das sete cores do arco-íris, o vermelho representa uma das sete notas musicais, um dos sete céus, um dos sete planetas, um dos sete dias da semana. Simboliza um dos elementos vitais, o fogo. A dimensão horizontal, mais clara a oriente e mais escura a ocidente. É visto como elemento fundamental da vida e da sensualidade feminina. Como o sol, incita a ação, é tônico, forte e brilhante. 
Bibliografia geral consultada.
MOISÉS, José Álvaro, “PT: Una Novedad Histórica?”. In: Cuadernos de Marcha. México, volume 9, pp. 11-19, 1980; Idem, “Partidos y Gobernabilidad en Brasil. Obstáculos Institucionales”. In: Revista Nueva Sociedad. Caracas, volumen 134, pp. 158-171, 1994; PARANÁ, Denise, Lula, o Filho do Brasil. Tese de Doutorado em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995; GERSTLÉ, Jacques, “La Persuasion de l’Actualité Télévisée”. In: Revue Politix, n° 37, 1997, pp. 81-96; ROZA, Bartira de Aguiar, Efeitos do Processo de Doação de Órgãos e Tecidos em Familiares: Intencionalidade de uma Nova Doação. Tese de Doutorado. Escola Paulista de Medicina. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2005; FARAH, Tatiana, “A Galega que Comanda a Casa e a Vida de Lula”. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/28/11/2011;  RODRIGUES, Angélica de Jesus dos Anjos, A Imagem de Lula nas Eleições Presidenciais. Dissertação de Mestrado em Marketing. Faculdade de Economia. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2015;  ASTURIAS, Miguel Ángel, Viento Fuerte. México: Editorial Dracena, 2016; Frei Betto, “Marisa Letícia”. In: http://www.carosamigos.com.br/02/02/2017; NASCIMENTO, Danielle Cândido da Silva, Medo e Consumo: Os Efeitos de Sentido da ´Possibilidade de Choque`. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2017; BOFF, Leonardo, “Dona Marisa Letícia ao ódio respondeu doando seus órgãos”. In: https://leonardoboff.wordpress.com/2017/02/05/; BOAVENTURA, Luís Henrique, Encenação e Ubiquidade em Discursos no Twitter: Procedimentos de Análise. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Faculdade de Educação. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2017; BITTENCOURT, Julinho, “Marisa Letícia, 1950-2017, filha do Brasil”. In: https://www.revistaforum.com.br/03/02/2018; SILVEIRA, Débora Ely, Marisa Letícia: Morte, Política e Ódio em Tempos de Redes Sociais e Polarização. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Escola de Humanidades. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2018; entre outros.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Montesquieu - Teoria, Passagens & Imaginação da Política à Sociologia.


                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

Liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. Barão de Montesquieu


            O pensamento de Montesquieu representa certo “paradoxo de consequências não intencionais” entre o novo e o tradicional. Múltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal, parece estar em continuidade direta com os ensaístas que o precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos. Com traços de enciclopedismo, várias disciplinas lhe atribuem o caráter referencial de precursor, ora aparecendo como Pai da Sociologia, ora como inspirador do chamado determinismo geográfico, e quase sempre como aquele que, na ciência política, desenvolveu a teoria dos três poderes, que ainda permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de direito. De outra parte, dentro da história do pensamento, Montesquieu também ocupa posição paradoxal. Sua obra trata da questão do funcionamento dos regimes políticos, questão que encara dentro da ótica liberal, ambas as problemáticas consideradas típicas de um período posterior. Montesquieu é membro da nobreza que não tem como objeto de reflexão política a restauração do poder de sua classe, mas sim como tirar proveito de certas características de poder monárquicos, para dotar de maior estabilidade os regimes que viriam a resultar das revoluções democráticas.
         Vale lembrar que um símbolo de alternativas sociais e políticas, o Dia da Bastilha celebrado anualmente a 14 de Julho (14 Juillet) em memória ao histórico da Tomada da Bastilha, em 1789, quando teve início o caráter popular da Revolução Francesa, amplifica com maior impacto do que a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América demonstrando a possibilidade de emancipação vista com medo em toda a aristocracia europeia, enquanto partidários das mudanças revolucionárias esperavam remover as barreiras que tolhiam a burguesia e o livre desenvolvimento das forças produtivas do capital. Os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade foram os conceitos utilizados pelos liberais para justificar teoricamente o desenvolvimento do capitalismo na Europa. A forma como essas ideias vieram para o solo norte-americano também são indispensáveis para a compreensão da estrutura piramidal social que é majoritária hoje. Essas análises da sociologia política tendo como referência a obra de Montesquieu permitem formular os principais problemas de teoria no âmbito geral da sociologia. O primeiro deles tem a ver com a inserção da sociologia política na sociologia do conjunto social. A questão é comparável à que se colocam a propósito do marxismo, quando se quer passar de aspecto privilegiado – para a compreensão do todo.
            O segundo problema é o da relação entre o fato e valor, entre a compreensão das instituições e a determinação do regime desejável ou bom. Assim, de que modo se pode ao mesmo tempo apresentar certas instituições como determinadas, isto é, impostas à vontade dos homens e fazer julgamentos políticos sobre elas? Será possível, para um sociólogo, afirmar que um regime que ele considera, em certos casos, como inevitável, contrariar a natureza humana? O terceiro problema é o que institui no plano de análise  política as relações entre o universalismo racional e as particularidades históricas concretas. Portanto, existem em Montesquieu, implícita ou explicitamente, duas ideias de síntese possíveis. Uma seria a influência predominante do regime político, e a outra, o espírito geral de uma nação. Em relação á primeira – a influência predominante das instituições políticas – pode-se hesitar entre duas interpretações. Trata-se de uma influência predominante no sentido causal do termo ou de uma influência predominante com relação ao que interessa ao analista, com relação aos nossos valores, isto é, com relação à hierarquia da importância que estabelecemos entre diferentes aspectos da vida coletiva. O espírito geral de uma nação é o que mais contribui para manter esse sentimento ou princípio, indispensável à continuidade do regime. O espírito geral de uma nação  não pode ser comparado à vontade criadora de uma pessoa ou coletividade. Para analisar esses problemas, será melhor tomar como ponto de partida uma noção central de L`Esprit des lois, a própria noção de Lei.
            Afinal, a grande obra de Montesquieu se chama L´ Esprit des lois, e é na análise da noção, ou das noções de lei que encontramos a resposta para os problemas que formulamos da política à sociologia. Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental, O espírito das leis, para escapar a uma discussão viciada que dentro da tradição jurídica de seu período, ficaria limitada a discutir as instituições e as leis quanto à legitimidade de sua origem, sua adequabilidade à ordem natural e a perfeição de seus fins. Uma discussão fadada a confundir, nas leis, concepções de natureza política, moral e religiosa. Definindo lei como “relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, ele estabelece uma mediação com as ciências empíricas rompendo com a tradicional submissão da política à teologia, em termos de análise comparativa, que é possível uniformidade, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar os homens, assim como é possível encontra-las nas relações entre os corpos físicos. Também as leis que regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas que sustentam as bases da tipologia analítica na interpretação do fato à política e sociologia para Montesquieu.
            Para o que nos interessa é com o conceito de lei, que Montesquieu traz a política para fora do campo da teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas são relações próprias entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de organização econômica, as formas de distribuição do poder etc. Mas o objeto de pensamento de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações determinadas entre os homens. Ele observa que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar às leis da razão que deveriam reger suas relações, e, além disso, adotam leis escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições. O objetivo de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis (positivas) e “diversas coisas”, tais como o clima, as dimensões do Estado, a organização do comércio, as relações entre as classes etc.  
Montesquieu tenta explicar as leis e instituições humanas, sua permanência e modificações, a partir de leis da ciência política. Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com o estado de natureza, onde a ameaça de guerra de “todos contra todos” põe em risco a sobrevivência da humanidade, o pacto que institui o estado de sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia ou de despotismo. O que deve ser investigado não é, portanto, a existência de instituições propriamente políticas, mas sim a maneira como elas funcionam. Assim ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de governo. Sua natureza diz respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só. As análises sobre as “leis relativas à natureza do governo” deixam claro que se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como o poder se distribui, entre os diferentes grupos e classes da população.
    

Conhecemos a longa história do conceito de Lei: um legislador e súditos. A lei possuía assim a estrutura da ação humana consciente: tinha um objetivo, designava uma finalidade, ao mesmo tempo de exigia uma espera. Para os sujeitos que viviam sob a lei, oferecia o equívoco do constrangimento e do ideal. A ideia de que a natureza podia ter leis que não eram ordens, levou tempo a libertar-se desta herança. Este longo esforço consegue, no século XVIII, encontrar um domínio próprio para o novo sentido de lei: o da natureza, o da física. Ao abrigo decerto de Deus, que lá pelas alturas protegia ainda a antiga forma da lei, salvando as aparências, desenvolvia uma nova forma de lei, que a pouco e pouco, passando de Descartes a Newton, tomou a forma que Montesquieu enuncia: Uma relação constantemente estabelecida entre termos variáveis, e tal que cada diversidade é uniformidade, cada transformação, constância. Isto é importante.
O antigo domínio da lei, que é ordem e fim enunciados por um senhor, conservava as suas posições de origem: o domínio da lei moral (ou natural), o domínio das leis humanas. Ora, Montesquieu propõe que se rejeite a antiga acepção da palavra lei, dos domínios em que ela consideravelmente imperava. E que se consagre para a totalidade dos seres, de Deus á pedra, o reino da definição moderna: a lei-relação. Neste sentido, todos os seres têm as suas leis: a divindade tem as suas leis, o mundo material tem as suas leis, as inteligências superiores ao homem têm as suas leis, os animais têm as suas leis, o homem tem as suas leis. O melhor meio para aniquilar o adversário é colocarmo-nos ao lado dele. Perscrutar os antigos domínios. Ei-los abertos diante de Montesquieu, e para começar o mundo inteiro da existência dos homens nas suas cidades e na sua história. Finalmente, vai poder impor-lhes a sua lei. No momento da descoberta será apenas a hipótese metodológica e só se tornará princípio se verificada.
Mas esta revolução teórica supõe igualmente que não se confunda o objeto da investigação científica, neste caso as leis civis e políticas das sociedades humanas com os resultados da investigação em si: não se pode brincar com a palavra lei. Montesquieu afirma: - Não trato das leis, mas do espírito das leis. Este espírito consiste em diversas relações que as leis podem ter com diversas coisas. Ele não confunde, portanto as leis do seu objeto (o espírito das leis), com o seu objeto em si (as leis). No Livro-Primeiro, após ter demonstrado que todos os seres do universo, inclusive Deus, estão submetidos a leis-relações, Montesquieu encara a diferença de modalidade destas leis. Distingue assim as leis que governam a matéria inanimada e que nunca conhecem qualquer espécie de variação, das leis que regulam os animais e os homens. O mundo inteligente deve ser tão bem governado como o mundo físico. Assim o homem, que tem sobre os outros seres o privilégio do conhecimento, está à mercê do erro e das paixões. Daí as suas oscilações: como ser inteligente que é o homem viola constantemente as leis estabelecidas por Deus, e do mesmo modo transforma as que ele próprio estabeleceu.
O princípio de governo é a paixão que o movo, é o modo de funcionamento dos governos, melhor dizendo, como o poder é exercido. São três os princípios, cada um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma que “toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo” para poder ser estável. Curiosa paixão que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. Esta é a única paixão propriamente dita, o único móvel psicológico dos comportamentos políticos, razão por que o regime que lhe corresponde é um regime que se situa no limiar do fazimento da ação política: o despotismo seria menos do que um regime político, quase uma extensão do estado de violência bruta da natureza, onde os homens atuam movidos pelos instintos e orientados para a sobrevivência. A honra é uma paixão social. Ela corresponde a um sentimento afetivo de classe, a paixão da desigualdade, o amor aos privilégios e prerrogativas que caracterizam a nobreza. 
        O governo de um só baseado em leis fixas e instituições permanentes, com poderes intermediários e subordinados – tal como Montesquieu caracteriza a monarquia -, só pode funcionar se estes poderes intermediários orientarem sua ação pelo princípio da honra. É através da honra que a arrogância e os apetites desenfreados da nobreza bem como o particularismo dos seus interesses se traduzem em bem público. Só a virtude é uma paixão propriamente política: ela nada mais é do que o espírito cívico, a supremacia do bem público sobre os interesses particulares. É por isso que a virtude é o princípio da república. Para Montesquieu, república e despotismo são iguais num ponto essencial, pois em ambos os governos todos são iguais. A diferença é que nos regimes populares o povo é tudo e, no despotismo, comparativamente, nada é. A combinação do princípio com a natureza do regime permite-nos entender melhor a teoria dos três governos. No governo republicano o regime depende dos homens. Sem republicanos não se faz uma república. Os grandes não a querem e o povo não sabe mantê-la. Trata-se de um regime aparentemente muito frágil porque repousa na virtude dos homens.
Quanto ao tempo do despotismo, ele é o contrário da duração: o instante. O despotismo não só não conhece nenhuma instituição, nenhuma ordem, nenhuma família que durem, mas os seus próprios atos brotam no instante. A honra, por exemplo, não é uma paixão “psicológica” é uma paixão simples, ou se se preferir, não é uma paixão “psicológica”. A honra é caprichosa como todas as paixões, mas os seus caprichos são dirigidos: tem as suas leis e o seu código. Não seria mesmo necessário pressionar Montesquieu para lhe fazer confessar que a essência da monarquia é a desobediência, mas uma desobediência dirigida. A honra é, portanto, uma paixão refletida na sua própria intransigência. Por muito tempo “psicológica”, muito imediata que se queira, a honra é uma paixão educada pela sociedade, uma paixão cultivada e, se é ilícito arriscar o termo, uma paixão cultural e social. O mesmo diríamos acerca da virtude na república. Também ela é uma estranha paixão que nada tem de imediato, mas sacrificam no homem os seus próprios desejos para lhe dar o bem como objetivo. A virtude define-se como a paixão do geral. E Montesquieu mostra-nos com benevolência esses monges transferindo na generalidade das suas ordens as paixões particulares que reprimem em si próprios. Como a honra, a virtude tem, pois o seu código e as suas leis. Ou melhor, tem a sua lei, uma lei única: o amor a pátria. A esta paixão do universal falta uma escola universal: a de toda a vida. À questão socrática, de saber se é possível ensinar a virtude, Montesquieu responderia que se deve e que o único destino da virtude  é precisamente o de ser ensinada. A paixão que sustenta o despotismo não conhece esse dever.    
Em todo povo existem homens virtuosos, capazes de colocar o bem público acima do bem próprio, mas as circunstâncias – isto é, essas famosas “relações que derivam da natureza das coisas” – nem sempre ajudam. O comércio, os costumes, o gosto pelas riquezas, o tamanho do país, as dimensões da população, tudo o que contribui para diversificar o povo e aumentar a distância cultural e de interesses entre as suas classes, conspira para a prevalência do bem público. É precisamente este ser errante através de sua história, que é o objeto da sua história, que é o objeto das investigações de Montesquieu: um ser cuja conduta nem sempre obedece às leis que lhe são dadas, e que, além disso, pode ter leis particulares feitas por ele: as leis positivas, sem que isso queira dizer que as respeite. Pode-se de fato dar desta distinção da modalidade das leis duas interpretações diferentes, que representam duas tendências no próprio Montesquieu. Na primeira, poder-se-á dizer: com base no princípio metodológico segundo o qual as leis de relação e variação que se podem extrair das leis humanas são distintas dessas leis, pois, pois fora de dúvida, os erros e as oscilações dos homens relativamente às suas próprias leis de nada põem em causa. Para se perder a coragem de descobrir as leis de conduta dos homens, é preciso cair na ingenuidade de tomar as leis que os homens se dão a si próprios pela necessidade que os governa!
Na verdade, o erro, a aberração dos humores, a transformação e a violação das leis por eles próprios criadas, fazem parte pura e simplesmente da conduta dos homens. É precisamente isso que Montesquieu faz em quase todos os capítulos do Esprit de Lois.   O que seria revolucionário em ocorre na explicação sociológica das leis positivas, o determinismo aplicado á natureza social. A lógica de seu pensamento comportaria apenas três elementos: a observação da diversidade das leis positivas, a explicação dessa diversidade em função das causas múltiplas, e, por fim, os conselhos práticos dados ao legislador, com base na explicação científica das leis. Nesse caso Montesquieu seria um verdadeiro sociólogo positivista, que explica aos homens porque eles vivem de determinada maneira. O sociólogo compreende os outros homens melhor do que eles próprios se compreendem; descobre as causas que explicam a forma assumida pela existência coletiva em diferentes climas e em épocas diferentes; ajuda cada sociedade a viver de acordo com sua própria essência, isto é, de acordo com seu regime, seu clima, seu espírito geral. Os juízos de valor, sociologicamente, estão sempre subordinados ao objetivo que adotamos, e que é sugerido pela realidade.
Nesse esquema não há lugar para as leis universais da razão ou da natureza humana. Certamente Montesquieu desejaria, de um lado, explicar de modo causal a diversidade das leis positivas e, em segundo lugar, desejaria dispor de critérios válidos e universais para fundamentar os juízos de valor, ou morais, relativos às instituições consideradas. Quando o filósofo Louis Althusser critica Montesquieu por essa referência às leis universais da razão e propõe contentar-se com a explicação determinista das leis na sua particularidade, e com os conselhos práticos tirados dessa explicação, ele pensa como marxista. Contudo, se o marxismo condena a referência às leis universais da razão, é porque encontra o equivalente no movimento da história em direção a um regime que realizaria todas as aspirações dos homens e dos séculos passados. De fato, uns ultrapassam a filosofia determinista fazendo apelo ao futuro, enquanto outros, a critérios universais de caráter formal. Montesquieu escolheu este último caminho para ir além da particularidade. Não queremos perder de vista que a interpretação filosófica de Louis Althusser tem como representação uma nova versão de um Montesquieu contraditório, em sua forma de pensar que haveria entre seu gênio inovador e suas opiniões reacionárias. Essa interpretação tem uma parte de verdade.
De acordo com a análise política de Guilhon Albuquerque (2006: 120), lida dessa forma, como propõe Althusser, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve expressivamente na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político. Como toda interpretação do jogo político clássico, o Montesquieu lido por Althusser não pode substituir a leitura dos próprios textos. Toda reinterpretação de uma teoria política se faz tendo em mente os problemas contemporâneos e constitui, portanto, uma nova teoria, contemporânea. No fundo, toda teoria política clássica é por natureza contemporânea.


 Nos conflitos de ideologias do século XVIII, Montesquieu pertence a um partido que se pode qualificar efetivamente de reacionário, porque ele recomendava o retorno a instituições que tinham existido em passado mais ou menos lendário. Sobretudo durante a primeira metade desse século, a grande querela dos escritores políticos franceses era marcada pela teoria da monarquia e a situação de debacle da aristocracia na monarquia. Em linhas gerais, é possível afirmar que duas escolas se opunham. A escola romanista, por exemplo, alegava que a monarquia francesa descendia do império soberano de Roma, de que o rei da França seria o herdeiro. Nesse caso, a história justificava a pretensão do rei francês ao absolutismo. A segunda escola, chamada germânica, alegava que a situação privilegiada da nobreza francesa derivava da conquista do país pelos francos. Esse debate deu origem a doutrinas que se prolongaram no século seguinte, chegando a ideologias propriamente racistas; por exemplo, como ocorre com a doutrina segundo a qual os nobres seriam germânicos, e o povo, galo-romano. A distinção entre aristocracia e povo corresponderia à diferença entre conquistadores e conquistados.
A essência da filosofia política de Montesquieu é o liberalismo, uma doutrina baseada na defesa da liberdade individual, no nível de análise econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal. O objetivo da ordem política é assegurar a moderação do poder pelo equilíbrio dos poderes, o equilíbrio entre povo, nobreza e rei na monarquia francesa ou na monarquia inglesa; o equilíbrio entre o povo e privilegiados, entre plebe e patriciado na república romana. Esses são exemplos diversos da mesma concepção fundamental de uma sociedade, heterogênea e hierárquica, em que a moderação do poder exige o equilíbrio. Qualquer que seja a estrutura da sociedade é sempre possível pensar como Montesquieu, isto é, analisar a forma própria da heterogeneidade de uma determinada sociedade, procurando, pelo equilíbrio dos poderes em confronto, a garantia da moderação e da liberdade. Para os liberais, todo indivíduo têm direitos humanos inatos. Muitos viram aí uma filosofia implícita do progresso inspirada por valores liberais.
Concordarmos com Raymond Aron, em sua observação arguta segundo a qual Montesquieu é o último dos filósofos clássicos; em outro, é o primeiro dos sociólogos. Ainda é um  clássico na medida em que considera que uma sociedade se define essencialmente pelo seu regime político, e na medida em que chega a uma concepção da liberdade. Em outro sentido, porém, reinterpretou o pensamento político clássico no interior de uma concepção global da sociedade, e procurou explicar sociologicamente todos os aspectos das coletividades. De fato, como Montesquieu o percebeu, depois de muitos outros, o devenir político até nossos dias é feito efetivamente de alternâncias, de movimentos de progresso e depois de decadência. O pensamento sociológico de Montesquieu se caracteriza, pela cooperação incessante entre o que se chama de pensamento sincrônico e diacrônico. Isto é, pela combinação sociológica renovada, da explicação das partes contemporâneas de uma sociedade umas pelas outras, com a explicação dessa mesma sociedade pelo passado e pela história. A distinção entre o que Auguste Comte chamava de estática e dinâmica já é visível no método sociológico de L`Esprit des Lois como obra de passagem à interpretação sociológica clássica.  
Bibliografia geral consultada.
DURKHEIM, Émile, Montesquieu et Rousseau Précurseurs de la Sociologie. Nota introdutória de Georges Davy. Paris: Marcel Rivière Editeur, 1953; COTTA, Sergio, Montesquieu e la Scienza della Politica. Turin: Edizioni Ramella, 1953; CHARPENTIER, Jeanne; CHARPENTIER, Michel, Montesquieu. Lettres Persanes. Paris: Ed. Bordas, 1966; ALTHUSSER, Louis, Montesquieu, la Politique et l`histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1959; Idem, Del Espiritu de las Leyes. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1977; MONTESQUIEU, Charles de Secondat, O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Editor Abril Cultural, 1973; ARON, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociológico. 4ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto, “Montesquieu: Sociedade e Poder”. Disponível em: Os Clássicos da Política. 14ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2006; DURKHEIM, Émile, Montesquieu e Rousseau: Pioneiros da Sociologia. São Paulo: Editora Madras, 2008; MOSCATELI, Renato, Rousseau frente ao Legado de Montesquieu: Imaginação Histórica e Teorização Política. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009; DINIZ, Alice Candela, “Montesquieu: Filósofo Iluminista”. In: Oscar d`Alva e Souza Filho, Ensaios Discentes de Filosofia do Direito. Fortaleza: Imprece Editorial, 2011; pp. 15-23; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha, Esboço de uma Sociologia Política das Ciências Sociais Contemporâneas (1968-2010): A Formação do Campo de Segurança Pública e o Debate Criminológico no Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação  em Sociologia. Departamento de Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; NASCIMENTO, Ricardo de Castro, Divisão dos Poderes. Origem, Desenvolvimento e Atualidade. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017; ARCO JÚNIOR, Mauro Dela Bandera, A Origem da Alteração e a Alteração de Origem: Antropologias de Rousseau. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018; entre outros.  

sábado, 21 de abril de 2018

João Cândido - Almirante Negro & Fim da Chibata no Brasil.

                                                                                                  Ubiracy de Souza Braga
 
Salve o Almirante Negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. João Bosco e Aldir Blanc

                       
            A chibata é um instrumento de castigo no Brasil e no mundo. A mais simples delas é constituída por um pequeno bastão terminado em uma lingueta de couro. Outra é o “cat o' nine tails‎”, um suporte que segura nove tiras de corda (ou couro), utilizadas na França, Inglaterra, particularmente em prisões e embarcações. E uma terceira, mais comum na Marinha do Brasil, foi a de uma corda de linho, chamada “corda de barca”, bem grossa contendo na ponta umedecida pequenos pregos ou agulhas. A chibata foi outrora usada para castigar pessoas no Brasil, na época da Escravidão e mesmo na fase inicial da República, durante o governo de Hermes da Fonseca, militar brasileiro, presidente do Brasil entre 1910 e 1914, quando seu uso foi abolido socialmente após a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido. Quando preso no tronco, o escravo punido levava de 20 até 100 chicotadas. Para Engels (1971), a dialética sobre a violência, a força política no mar, tem a sua base e seus alicerces nos modernos navios de guerra, longe de ser uma força imediata, são uma força resultante da mediação do poder econômico, graças ao desenvolvimento da metalurgia e à existência de técnicos hábeis e de abundantes minas de carvão.   
Analisar somente as fontes escritas em 1910 levou muitos autores a repetir o que os contemporâneos diziam naquele momento – que o castigo era desumano, bárbaro, cruel, uma herança da escravidão etc. Neste contexto é possível afirmar que a revolta tenha sido uma simples luta contra a chibata. O fim dos castigos corporais era uma das mudanças propostas, havia outras que somente podem ser entendidas quando analisadas à luz da relação entre marinheiros e oficiais, no período que vai de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Mas, sem dúvida, segundo análise histórica de Nascimento (2001; 2002), havia mais expectativas e esperanças no sentimento dos marinheiros que se levantaram sob o comando de João Cândido e Francisco Dias Martins. A revolta também não representou somente um corre-corre, um encontro de pessoas que nunca haviam se visto e que entraram em luta contra uma lei indesejada. Vale observar que o recrutamento compulsório permaneceu na memória individual e coletiva, relacionado à fuga. Durante o 2° Reinado, essa arbitrariedade violenta assumia a conotação de caçada humana. Na ausência de voluntários predominava o engajamento por “condução coercitiva” executada pela força policial. Para os marinheiros, as condições de vida e de trabalho não eram nada fáceis. Portanto, era perfeitamente compreensível que o voluntariado aparente fosse raro ou quase inexistente.  


O marinheiro como força de trabalho representa um auxiliar de operações marítimas, seja no âmbito das embarcações de empresas privadas ou de embarcações estatistas, públicas. O marinheiro soldado da Marinha é um militar, portanto, suas funções são as de obediência de rotinização militar, servindo para proteger e garantir a soberania da nação. A revolta em questão reuniu uma parcela bem definida de homens,  em uma atividade de trabalho unissexual, que em determinado momento estabeleceu pontos em comum e decidiu conquista-los. Durante meses houve um planejamento em que eles se organizaram politicamente em diversos locais e elaboraram uma proposta de mudanças, apresentadas ao presidente da República nos dias de novembro de 1910. A sublevação deu-se quando um marinheiro de nome Marcelino Rodrigues levou 250 chibatadas por ter machucado um companheiro da Marinha no interior do navio de guerra denominado Minas Gerais, que se encontrava a caminho do Rio de Janeiro. Os rebeldes assassinaram o capitão do navio e mais três militares. O líder da insurreição, João Cândido – o célebre Almirante Negro -, foi o responsável por escrever a missiva ao presidente da República com as solicitações exigidas para o fim da revolta.
Para aqueles marinheiros, as águas do mar não eram azuis, ao contrário, eram negras como a consciência de sua condição humilhante. Indignados com a alimentação estragada, com os trabalhos pesados e os castigos corporais, os brasileiros se revoltaram na madrugada do dia 23 de novembro de 1910. A tripulação do navio Minas Gerais se amotinou, matou 4 oficiais e conseguiu o apoio do Encouraçado São Paulo, Deodoro, do cruzador Bahia e de mais seis embarcações menores. João Cândido havia encontrado um meio de conquistar a sonhada liberdade: a Revolta da Chibata. Enviaram um ultimato ao Presidente da República: abririam fogo sobre a Capital, se não melhorassem a comida e se não fosse dada anistia aos revoltosos e apontaram os canhões para Capital do país. O trecho do documento confirma a luta pela liberdade na exigência de  reformar o código imoral e vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; educar os marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda. As autoridades duvidavam que aparentemente marujos conseguissem conduzir a segunda esquadra mais vigorosa do mundo. João Cândido demonstra sua capacidade realizando, perfeitamente, a revolta exigindo, “uma armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados”. Do ponto de vista de guerra naval a revolta foi considerada primorosa, recebendo o adjetivo “Almirante Negro”, designação amplificada pela imprensa.
João Cândido foi levado para o Hospital dos Alienados em 18 de abril de 1911, por lá ficando por alguns meses fazendo exames psiquiátricos e passando por vários médicos para tentar encontrar algum sinal de loucura dele. Com o tempo, os sinais de estresse pós-traumático que obteve ao ver os seus companheiros morrendo na masmorra da Ilha das Cobras foram passando. Fez amizades com pacientes, teve comportamento normal, e estava em um quarto de frente, bem arejado e com muito sol. Contemplava a enseada de Botafogo e lia alguns jornais. Dois meses depois, recebeu alta hospitalar assinada pelo então diretor do hospital, o Dr. Juliano Moreira. Só que a alta não significou a liberdade. João Cândido foi enviado à prisão da Ilha das Cobras por dois anos. Enquanto esteve lá, teve início o julgamento dos marinheiros que participaram da Revolta da Chibata e suspeitos de participação da revolta do Batalhão Naval. Eles não tinham advogados, mas a Irmandade da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos contratou três dos melhores causídicos para a defesa dos réus: Evaristo de Morais (cf. Morais Filho, 1981), Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro de Barros. Eles entraram em contato social com os marinheiros e os encontraram com a saúde precariamente abalada, fracos e alguns com tuberculose. Os advogados aceitaram a causa, recusando pagamento da Irmandade.
     A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é uma confraria de culto católico, criada para abrigar a religiosidade do povo negro, que na época da escravidão era impedido de frequentar as mesmas igrejas dos senhores. Mantém em seu calendário uma devoção secular a Nossa Senhora do Rosário. Os negros vindos da África, mesmo com suas próprias crenças, se tornaram devotos quando chegaram ao Brasil, pois, viram um cenário diferente e diante desse cenário construíram suas próprias irmandades. Historicamente a devoção a Nossa Senhora do Rosário tem sua origem entre os dominicanos, por volta de 1200. São Domingos de Gusmão, inspirado pela Virgem Maria, deu ao Rosário sua forma atual. Isto pode ser comprovado em episódios revelados em sua iconografia. A primeira irmandade do rosário foi instituída pelos dominicanos em Colônia (Alemanha), em 1408. Logo a devoção se propagou, sendo levada também por missionários portugueses ao Reino do Congo. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário chegou ao Brasil em meados do século XVI, sendo a Irmandade dos Homens Pretos de Olinda a mais antiga do país. A partir do fim do período colonial, as irmandades do Rosário passam a ser constituídas pelos “homens pretos”. No Brasil, ela foi adotada por senhores e escravos, sendo que no caso dos negros ela tinha o objetivo de aliviar-lhes os sofrimentos infligidos pelos brancos. Os escravos recolhiam as sementes de um capim incomum cujas contas grossas, são denominadas Lágrimas de Nossa Senhora,  que montavam  terços para rezar.              
Segundo a análise teórica e histórica de Nascimento (2002) aproximadamente cem marinheiros foram indiciados, inclusive os dois sobreviventes da Ilha das Cobras, mas muitos deles já haviam conseguido escapar para outras regiões. Mesmo assim, a Marinha enviava mandados de intimação aos delegados de polícia das principais capitais, para que prendessem os réus e os extraditassem para a capital, no Rio de Janeiro. Os mandados expedidos aos delegados de polícia não alcançaram o resultado esperado e, assim, somente dez marinheiros foram julgados; entre eles, João Cândido, Francisco Dias Martins e Gregório do Nascimento, líderes da primeira Revolta. Durante dois anos, o Conselho de Guerra (tribunal militar da Marinha) registrou o depoimento das testemunhas e dos envolvidos. Foram absolvidos os marinheiros João Cândido, Ernesto Roberto dos Santos, Deusdedit Teles de Andrade, Francisco Dias Martins, Raul de Faria Neto, Alfredo Maia, João Agostinho, Vitorino Nicácio de Oliveira, Antônio de Paula e Gregório do Nascimento, e “suspensa a execução desta sentença em virtude da apelação necessária, interposta para o Supremo Tribunal Militar, na forma da lei”. 
Os quase 75% dos marinheiros a bordo dos navios envolvidos na Revolta da Chibata eram predominantemente analfabetos e negros. Representavam as primeiras gerações de filhos e de netos de ex-escravos ou dos nascidos a partir da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Gerações que testemunharam as famílias escravizadas, que ouviram narrativas sofridas e que presenciaram as incontáveis barreiras impostas à ascensão econômica e aos direitos civis. A escravidão deixara rastros e estilhaços. Não passara em brancas nuvens e nem adormecera “em plácido repouso”, conforme versejou o poeta Francisco Otaviano. Nessa perspectiva, pesquisadores do assunto consideram que a Revolta da Chibata e João Cândido Felisberto simbolizam esse cenário. Para Nascimento, “insere a Revolta da Chibata na história das gerações de descendentes de ex-escravos na pós-abolição”.
   No julgamento João Cândido aproximou-se de Evaristo de Morais e o abraçou como se fosse um irmão. Cumprimentou os advogados Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro de Barros, enquanto os outros companheiros, bem nervosos, se entregavam a justas manifestações de alegria. Foram todos ao encontro de João Cândido e cumprimentaram-no, respeitosamente. Mesmo absolvidos, João Cândido e os outros marinheiros foram excluídos da corporação. Perseguido pelos militares, não conseguiu voltar para a Marinha de Guerra, que tanto amava. Tentou entrar na Marinha Mercante, mas quando descobria quem ele era, João Cândido era dispensado. Casou-se três vezes, teve 11 filhos. Foi morar em São João de Meriti, município da baixada fluminense. Passou o resto de sua vida sustentando sua família vendendo peixe na Praça XV. Em 1953, soube que o encouraçado Minas Gerais ia ser vendido como sucata. Então embarcou em um pequeno barco de pesca e foi até o navio durante a noite, e como forma de gratidão beijando seu casco para se despedir. Depois continuou sua vida simples, até que em 1969 se sentiu mal e foi levado ao Hospital Getúlio Vargas, no subúrbio carioca do Méier, aonde faleceria de câncer, aos 89 anos.
         Desnecessário dizer que um advogado tem como representação um profissional oriundo das artes liberais no Ocidente, que é graduado em direito e autorizado pelas instituições da nação em que vive para exercer “jus postulandi”, a capacidade dos legítimos interesses das pessoas físicas ou jurídicas em juízo ou fora dele, quer entre si, quer ante a tutela do Estado. O advogado é, portanto, uma “peça” essencial do sistema de governo na administração da justiça, constituído para assegurar a defesa dos interesses das partes em juízo. Ao nível ideológico a advocacia não é simplesmente uma profissão, mas um “munus publicum”, condicionado por lei, em atendimento ao poder público que beneficia a coletividade e não pode ser recusado, exceto nos casos previstos em lei. É, portanto, um encargo público que embora não seja agente estatal, compõe um dos principais elementos da administração democrática do Poder Judiciário. A palavra múnus se originou diretamente do latim munus, que quer dizer: dever, ônus, função e encargo. O termo múnus é principalmente utilizado no âmbito jurídico, representando “um conjunto de obrigações de um indivíduo”. O múnus também pode ser considerado o trabalho (cargo) de uma pessoa, levando em consideração a necessidade de cumprir obrigações durante o trabalho. O múnus público é todo o dever e obrigação de que os indivíduos prestam para o poder público, baseado por leis e que cubram os interesses de todos os cidadãos em coletividade. Votar ou justificar o voto, prestar depoimento como testemunha, executar um cargo que atinja os amplos interesses da pátria, da ordem social, são alguns exemplos clássicos de múnus públicos. O múnus sacerdotal é o dever, função e obrigação que cabe ao indivíduo que se dedique ao sacerdócio. A igreja católica, em termos de análise comparada, tem como base a “tríplice múnus”, que é formada em torno do múnus sacerdotal, múnus profético e múnus pastoral. 
Navios do tipo Dreadnought simbolizavam um tempo que se anunciava repleto de promessas inovadoras e que adequava a Marinha do Brasil à tecnologia atualizada. A indústria de guerra naval chegava a comparar esse tipo de encouraçado a uma fábrica moderna. Veloz, possuía 12 canhões de calibre padronizado, assentados em seis torres giratórias avante e a ré, que significava a possibilidade de disparar contra alvos localizados à proa (frente) ou popa (atrás) do navio. Podia embarcar uma tripulação de aproximadamente mil homens. Historiadores voltados para o tema observam que tal número era significativo, pois no navio Minas Gerais e no São Paulo concentrava-se um terço das guarnições da Armada brasileira.  Se por um lado os ganhos pareciam notórios, existiam pontos que mereciam atenção. O governo brasileiro comprara uma frota moderna e precisava qualificar e capacitar o seu efetivo. Do ponto de vista técnico-metodológico as tripulações deveriam reconhecer a eficácia dos Dreadnoughst: maquinário, telégrafos, couraça de aço, eletricidade, e outras peculiaridades. Partindo desse objetivo, um número expressivo de marinheiros foi enviado para a Inglaterra a fim de receber treinamento adequado. Era fundamental ter disponível uma quantidade bem maior de braços para executar as tarefas diárias nas embarcações. Mesmo cada navio possuindo uma “tabela de serviços” organizada pelos oficiais, incluindo manutenção, limpeza, pintura etc., a sobrecarga de afazeres fomentava punições e tensões.
Antônio Evaristo de Morais (1871-1939) foi um rábula, advogado criminalista, e historiador brasileiro. Era filho de Basílio Antônio de Morais e Elisa Augusta de Morais. Estudou no colégio beneditino mantido no Rio de Janeiro, então Capital do Império, onde posteriormente lecionou, a partir do ano seguinte à sua formação ali, em 1886. Em 1890 participou da construção do Partido Operário, primeira agremiação partidária de caráter socialista da história do Brasil. Estreou no júri no ano de 1894, trabalhando no escritório Silva Nunes e Ferreira do Faro. Após 23 anos de prática forense, aos quarenta e cinco de idade, veio finalmente a formar-se em Direito, sendo na ocasião o orador de sua turma. Foi cofundador da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 1908. Na década de 1910 trabalhou na defesa dos marinheiros rebelados na Revolta da Chibata, um motim naval no Rio de Janeiro, ocorrido no final de novembro de 1910. Representou o resultado direto do uso de chibatadas por oficiais navais racistas brancos ao punir marinheiros afro-brasileiros e mulatos. Tornou célebre a campanha pela anistia dos presos, que somente suspenderam a revolta com a promessa jamais cumprida do governo reacionário brasileiro não cometer represálias contra os rebeldes.  
           Em 1910, oficiais liderados por João Cândido sacudiram o País, reivindicando o fim dos castigos físicos na Marinha. Depois de longas e tensas negociações, a Revolta da Chibata foi reprimida; e os rebeldes, presos. Porém, a imagem de João Cândido – o Almirante Negro, nos dizeres da imprensa – seguiu viva. Teve até quem planejasse transportar a história do marinheiro para as luzes do cinema. O documentário “A Vida de João Cândido”, do diretor Alberto Botelho, começou a ser produzido em 1910 e foi finalizado em 1912. Em 22 de janeiro de 1912, o chefe da polícia do Rio de Janeiro, Belizário Fernandes da Silva Távora, proibiu a estreia. Belizário nasceu em Jaguaribe-Mirim, 25 de maio de 1868, filho de Antônio Fernandes da Silva e Idalina Alves de Lima. Cursou o Seminário de Fortaleza, que abandonou em 1883, quando cursava o 2° ano de Teologia. Estudou no Liceu e no Ateneu Cearense. Morou algum tempo em Manaus. Bacharel em Direito pela Faculdade de Recife, em 1892, radicou-se no Rio de Janeiro a partir de 1897, exercendo a advocacia. Foi delegado, chefe de polícia e tabelião. Como jornalista colaborou em numerosos jornais do Ceará, Amazonas, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro. Morreu centenário, no Rio de Janeiro.  Por estas razões políticas o curta-metragem nunca foi exibido. - “Se não fizesse o que fez, talvez a esta hora o Rio em peso estivesse revolucionado”, defendeu o jornal Correio da Manhã. Tido hoje como desaparecido, segundo Hoffmann (2018) “o curta-metragem foi o primeiro filme brasileiro a cair nas garras da censura”.  
       Autodidata, Edmar Morel teve uma infância pobre. Seu pai faleceu em 1931, quando Morel tinha vinte anos, deixando a viúva com seis filhos. Começou a trabalhar cedo, em uma casa comercial. Em seguida, trabalhou nos jornais O Ceará e A Rua, como corretor de anúncios, auxiliar de revisor e auxiliar de repórter. Em 1932, foi para o Rio de Janeiro. Passou fome e dormiu na rua, até encontrar o jornalista Maurício de Lacerda, pai de Carlos, que conhecera em Fortaleza. Maurício de Lacerda, importante articulista do Jornal do Brasil, levou-o a trabalhar no jornal, na sessão de anúncios fúnebres. Em 1937, Edmar Morel ingressou no incipiente jornal “O Globo”. Posteriormente trabalhou também em “A Tarde”, no “Diário da Noite” e na badalada revista “O Cruzeiro”, de 1938 a 1947. Morel foi também funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), durante a chamada “Era Vargas”. Embora tivesse tido problemas com a censura, ele nunca deixou da trabalhar como jornalista, inclusive durante o regime autoritário, implantado em 1° de abril de 1964. Em 1968 ele voltou a trabalhar na revista “O Cruzeiro”, publicando reportagens sobre os mais variados assuntos, porque não contra o governo, como se pode ver em suas memórias póstumas.
Enfim, as condições sociais e jurídicas da Marinha não acompanharam o ritmo das novas tecnologias. Oficiais brancos de elite eram líderes responsáveis pela maioria das equipes de negros e mulatos, muitos dos quais haviam sido forçados à entrar na Marinha por contratos de longo prazo. Estes oficiais frequentemente utilizavam castigos corporais contra seus tripulantes, mesmo para punir “delitos menores”, algo que havia sido banido na maioria dos países e de resto do Brasil. Em resposta, os marinheiros com conhecimento dos processo e métodos de trabalho usaram os novos navios de guerra para um motim cuidadosamente planejado e executado em novembro de 1910. Eles tomaram o controle dos postos de trabalho de ambos os encouraçados novos, um dos cruzadores e um navio de guerra mais velho - um total que deu aos amotinados o tipo de estratégia da recusa que enfraqueceu o resto da Marinha brasileira. Liderados por João Cândido Felisberto, os amotinados enviaram uma carta ao governo que exigia o fim do que eles chamavam de “escravidão praticada pela Marinha”. 
     Esta modernização tecnológica na Marinha do Brasil não foi acompanhada por mudanças sociais, e as tensões entre o núcleo de oficiais contra os tripulantes instigaram muita agitação. Uma citação do Barão de Rio Branco, um estimado político e diplomata profissional, mostra uma das fontes de tensão: Para o recrutamento de fuzileiros navais e homens alistados, trazemos a bordo a escória de nossos centros urbanos, o subproletariado mais inútil, sem preparação de qualquer tipo. Ex-escravos e filhos de escravos compõem as tripulações de nossos navios, a maioria deles de pele escura ou de mulatos escuros. As diferenças raciais na Marinha brasileira seriam imediatamente evidentes para um observador na época: os oficiais encarregados dos navios eram quase todos brancos, enquanto as tripulações eram pesadamente pretas ou, em menor grau, mulatas. Esses homens eram geralmente enviados para a Marinha, empregados como aprendizes quando tinham em torno de 14 anos, e ligados à Marinha por quinze anos. João Cândido Felisberto, o líder da Revolta da Chibata, foi aprendiz aos 13 anos e juntou-se à Marinha aos 16 anos. Indivíduos forçados a entrar na Marinha serviam por doze anos. Voluntários, que com uma percentagem muito baixa do total de recrutas servia por nove anos.

Michel Foucault (2014) apresenta exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes., não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas definem bem, cada um deles, certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia de castigo. Época de grande “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos “modernos”: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma nova era. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancolia festa da punição vai-se extinguindo. Nessa transformação, misturaram-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai se obliterando e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo: o pelourinho foi suspenso em 1789; a Inglaterra o aboliu em 1837. A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções  da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser cumpridas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com o criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração.

A punição vai se tornando, pois a parte mais velada do processo penal, provocando várias seqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua faticidades. A eficácia é atribuída à sua faticidade, não à sua intensidade visível: a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. As caracterizações da infâmia são redistribuídas: no castigo-espetáculo um horror confuso nascia do patíbulo; ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado; e, se por um lado, sempre estava a transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em infâmia e violência legal do executor. Desde então, o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinquente com o sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo sempre a confiá-la a outros sob a marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição, e pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe. A execução da pena vai se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena. Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral. O desaparecimento dos suplícios é, pois, o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue.  
Outra controvérsia partia do uso disciplinar pesado pela Marina do castigo corporal até mesmo para punir delitos considerados menores. Enfim, o ato de beber a bordo é considerado uma tradição naval importante, cultivada e ensinada, apesar de não ser autorizada oficialmente. Todavia, é interessante notar que a própria questão da tradição costuma ser naturalizada, como se a pretensa ancestralidade de uma determinada prática justificasse sua manutenção. O objetivo e a característica das tradições é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas normalmente formalizadas, tais como a repetição. Não só o consumo de etílicos deve restringir-se às situações específicas em certos limites bem definidos de quantidade de unidades a serem consumidas. Obedecendo às características intrínsecas das relações de poder, essas configurações de dominação se reproduzem, estabelecendo novas mediações de poder. No século XIX, essa figuração era assegurada pelo oficialato, com os castigos corporais, visando manter a ordem e a hierarquia, assim como a disciplina nas embarcações para reafirmar a autoridade nas manifestações públicas de sofrimento do infrator. Os inúmeros casos de insubordinação, muitas vezes inflamados pelos efeitos da aguardente e o isolamento da casa, acabavam desmoralizando por atitudes comandantes e oficiais.    

As Forças Armadas brasileiras resolviam os problemas disciplinares castigando o corpo do infrator. No caso da Marinha de Guerra, o tipo de castigo (golilha, chibata, palmatória, prisão a ferros, solitária) e a quantidade aplicada (dias na solitária, pancadas nas mãos e costas) eram definidos após decisão de um Conselho de Disciplina formado pelo comandante e mais dois oficiais a bordo. Embora tais medidas disciplinares tenham sido proibidas na população em geral desde a Constituição Imperial de 1824 e no Exército desde 1874, a Marinha só foi afetada com o golpe republicano de novembro de 1889, quando a legislatura da nova república proibiu tal processo disciplinar. A lei foi rescendida menos de um ano depois, em meio a descumprimento generalizado. Em vez disso, o castigo físico só seria permitido numa Companhia Correcional, criada com o propósito de submeter a regime de disciplina especial os chamados “praças” e punir faltas em casos que não exijam conselho de guerra. As punições iam desde prisão a ferro na solitária, por um a cinco dias, a pão e água. Para as faltas “leves”, até as vinte e cinco chibatadas, no mínimo, para as faltas graves. A legislatura vislumbrou como um freio à prática, já que marinheiros com “históricos” violentos ou de subversão enfrentariam a chibata. A realidade era diferente uma vez que as companhias existiam em qualquer lugar nos navios. O marinheiro poderia ser em tese transferido para a Companhia Correcional, mas sem ter mudanças em suas rotinas diárias de trabalho.    

Bibliografia geral consultada. 
ENGELS, Friedrich, Anti-Duhring. Trad. Émile Bittigelli. Paris: Éditions Sociales, 1971; cap. II, “Notions théoriques”; GRANATO, Fernando, O Negro da Chibata: o marinheiro que colocou a República na mira dos canhões. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do, Do Convés ao Porto: A Experiência dos Marinheiros e a Revolta de 1910. Tese de Doutorado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2002; MORGAN, Zachary Ross, Brazil: The Revolt of the Lasch, 1910 in Twentieth Century Naval Mutinies. London: Frank Cass Publisher, 2003; RODRIGUES, Flávio Luís, Vozes do Mar: O Movimento dos Marinheiros e o Golpe de 64. São Paulo: Editora Cortez, 2004;  VIANA, Larissa, O Idioma da Mestiçagem. As Irmandades de Pardos na América Portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007; SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da, Discurso Jurídico e (Des) Qualificação Moral e Ideológica das Classes Subalternas na Passagem à Modernidade: Evaristo de Moraes (1871-1939). Dissertação de Mestrado em História. Departamento de História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007; ALMEIDA, Silvia Capanema Pereira de, Nous, Marins, Citoyens Brésiliens et Républicans: Identités, Modernité et Mémoire de la Revolte des Matelots. Tese de Doutorado. Paris: École des Hautes Études en Ciences Sociales, 2009; ALMEIDA, Sílvia Capanema Pereira de, “A Modernização do Material e do Pessoal da Marinha nas Vésperas da Revolta dos Marujos de 1910: Modelos e Contradições”. In: Estudos Históricos.  Rio de Janeiro, vol.23, n° 45, 2010; SOUSA, Cláudio Barbosa de, Marinheiros em Luta: A Revolta da Chibata e suas Representações. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal de Uberlândia, 2012; FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. 42ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; SANTOS, Lauciana Rodrigues dos, Da Roseta as Estrelas: Um Debate sobre a Representação Feminina na Marinha Brasileira. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília: Universidade Estadual Paulista, 2014; HOFFMANN, Bruno, “Filme sobre o Almirante Negro inaugurou a censura no cinema nacional”. In: https://almanaquebrasil.com.br/2018/01/03/; NEVES, José Roberto de Castro, Como os Advogados Salvaram o Mundo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2018; entre outros.