João Cândido - Almirante Negro & Fim da Chibata no Brasil.
Ubiracy de Souza Braga
“Salve o Almirante Negro que tem por
monumento as pedras pisadas do cais”. João Bosco e Aldir Blanc
A chibata é um instrumento de
castigo no Brasil e no mundo. A mais simples delas é constituída por um pequeno
bastão terminado em uma lingueta de couro. Outra é o “cat o' nine tails”, um
suporte que segura nove tiras de corda (ou couro), utilizadas na França,
Inglaterra, particularmente em prisões e embarcações. E uma terceira, mais
comum na Marinha do Brasil, foi a de uma corda de linho, chamada “corda de
barca”, bem grossa contendo na ponta umedecida pequenos pregos ou agulhas. A
chibata foi outrora usada para castigar pessoas no Brasil, na época da
Escravidão e mesmo na fase inicial da República, durante o governo de Hermes da
Fonseca,militar brasileiro, presidente do Brasil entre 1910
e 1914, quando seu uso foi abolido socialmente após a Revolta da Chibata,
liderada pelo marinheiro João Cândido. Quando preso no tronco, o escravo punido levava de 20 até 100 chicotadas. Para Engels (1971), a dialética
sobre a violência, a força política no mar, tem a sua base e seus alicerces nos
modernos navios de guerra, longe de ser uma força imediata, são uma força resultante
da mediação do poder econômico, graças ao desenvolvimento da metalurgia e à
existência de técnicos hábeis e de abundantes minas de carvão.
Analisar
somente as fontes escritas em 1910 levou muitos autores a repetir o que os
contemporâneos diziam naquele momento – que o castigo era desumano, bárbaro,
cruel, uma herança da escravidão etc. Neste contexto é possível afirmar que a
revolta tenha sido uma simples luta contra a chibata. O fim dos castigos
corporais era uma das mudanças propostas, havia outras que somente podem ser
entendidas quando analisadas à luz da relação entre marinheiros e oficiais, no
período que vai de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Mas,
sem dúvida, segundo análise histórica de Nascimento (2001; 2002), havia mais
expectativas e esperanças no sentimento dos marinheiros que se levantaram sob o
comando de João Cândido e Francisco Dias Martins. A revolta também não
representou somente um corre-corre, um encontro de pessoas que nunca haviam se
visto e que entraram em luta contra uma lei indesejada. Vale
observar que o recrutamento compulsório permaneceu na memória individual e
coletiva, relacionado à fuga. Durante o 2° Reinado, essa arbitrariedade violenta
assumia a conotação de caçada humana. Na ausência de voluntários predominava o
engajamento por “condução coercitiva” executada pela força policial. Para os
marinheiros, as condições de vida e de trabalho não eram nada fáceis. Portanto,
era perfeitamente compreensível que o voluntariado aparente fosse raro ou quase
inexistente.
O
marinheiro como força de trabalho representa um auxiliar de operações
marítimas, seja no âmbito das embarcações de empresas privadas ou de
embarcações estatistas, públicas. O marinheiro soldado da Marinha é um militar,
portanto, suas funções são as de obediência de rotinização militar, servindo
para proteger e garantir a soberania da nação. A revolta em questão reuniu uma
parcela bem definida de homens, em uma
atividade de trabalho unissexual, que em determinado momento estabeleceu pontos
em comum e decidiu conquista-los. Durante meses houve um planejamento em que
eles se organizaram politicamente em diversos locais e elaboraram uma proposta
de mudanças, apresentadas ao presidente da República nos dias de novembro de
1910. A sublevação deu-se quando um marinheiro de nome Marcelino Rodrigues
levou 250 chibatadas por ter machucado um companheiro da Marinha no interior do
navio de guerra denominado Minas Gerais, que se encontrava a caminho do Rio de
Janeiro. Os rebeldes assassinaram o capitão do navio e mais três militares. O
líder da insurreição, João Cândido – o célebre Almirante Negro -, foi o
responsável por escrever a missiva ao presidente da República com as
solicitações exigidas para o fim da revolta.
Para
aqueles marinheiros, as águas do mar não eram azuis, ao contrário, eram negras
como a consciência de sua condição humilhante. Indignados com a alimentação
estragada, com os trabalhos pesados e os castigos corporais, os brasileiros se
revoltaram na madrugada do dia 23 de novembro de 1910. A tripulação do navio Minas
Gerais se amotinou, matou 4 oficiais e conseguiu o apoio do Encouraçado São
Paulo, Deodoro, do cruzador Bahia e de mais seis embarcações menores. João
Cândido havia encontrado um meio de conquistar a sonhada liberdade: a Revolta
da Chibata. Enviaram um ultimato ao Presidente da República: abririam fogo
sobre a Capital, se não melhorassem a comida e se não fosse dada anistia aos
revoltosos e apontaram os canhões para Capital do país. O trecho do documento
confirma a luta pela liberdade na exigência de reformar o código imoral e vergonhoso que nos
rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes;
educar os marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda. As
autoridades duvidavam que aparentemente marujos conseguissem conduzir a segunda
esquadra mais vigorosa do mundo. João Cândido demonstra sua capacidade
realizando, perfeitamente, a revolta exigindo, “uma armada de cidadãos e não
uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem
chicoteados”. Do ponto de vista de guerra naval a revolta foi considerada
primorosa, recebendo o adjetivo “Almirante Negro”, designação amplificada pela
imprensa.
João
Cândido foi levado para o Hospital dos Alienados em 18 de abril de 1911, por lá
ficando por alguns meses fazendo exames psiquiátricos e passando por vários
médicos para tentar encontrar algum sinal de loucura dele. Com o tempo, os
sinais de estresse pós-traumático que obteve ao ver os seus companheiros
morrendo na masmorra da Ilha das Cobras foram passando. Fez amizades com
pacientes, teve comportamento normal, e estava em um quarto de frente, bem
arejado e com muito sol. Contemplava a enseada de Botafogo e lia alguns
jornais. Dois meses depois, recebeu alta hospitalar assinada pelo então diretor
do hospital, o Dr. Juliano Moreira. Só que a alta não significou a liberdade.
João Cândido foi enviado à prisão da Ilha das Cobras por dois anos. Enquanto
esteve lá, teve início o julgamento dos marinheiros que participaram da Revolta
da Chibata e suspeitos de participação da revolta do Batalhão Naval. Eles não
tinham advogados, mas a Irmandade da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
contratou três dos melhores causídicos para a defesa dos réus: Evaristo de
Morais (cf. Morais Filho, 1981), Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro de
Barros. Eles entraram em contato social com os marinheiros e os encontraram com a
saúde precariamente abalada, fracos e alguns com tuberculose. Os advogados aceitaram a causa,
recusando pagamento da Irmandade.
A
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é uma confraria de
culto católico, criada para abrigar a religiosidade do povo negro, que na época
da escravidão era impedido de frequentar as mesmas igrejas dos senhores. Mantém
em seu calendário uma devoção secular a Nossa Senhora do Rosário. Os negros
vindos da África, mesmo com suas próprias crenças, se tornaram devotos quando
chegaram ao Brasil, pois, viram um cenário diferente e diante desse cenário
construíram suas próprias irmandades. Historicamente a devoção a Nossa Senhora
do Rosário tem sua origem entre os dominicanos, por volta de 1200. São Domingos
de Gusmão, inspirado pela Virgem Maria, deu ao Rosário sua forma atual. Isto
pode ser comprovado em episódios revelados em sua iconografia. A primeira
irmandade do rosário foi instituída pelos dominicanos em Colônia (Alemanha), em
1408. Logo a devoção se propagou, sendo levada também por missionários
portugueses ao Reino do Congo. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário chegou
ao Brasil em meados do século XVI, sendo a Irmandade dos Homens Pretos de
Olinda a mais antiga do país. A partir do fim do período colonial, as
irmandades do Rosário passam a ser constituídas pelos “homens pretos”. No
Brasil, ela foi adotada por senhores e escravos, sendo que no caso dos negros
ela tinha o objetivo de aliviar-lhes os sofrimentos infligidos pelos brancos.
Os escravos recolhiam as sementes de um capim incomum cujas contas grossas,
são denominadas Lágrimas de Nossa Senhora, que montavam terços para rezar.
Segundo
a análise teórica e histórica de Nascimento (2002) aproximadamente cem
marinheiros foram indiciados, inclusive os dois sobreviventes da Ilha das
Cobras, mas muitos deles já haviam conseguido escapar para outras regiões. Mesmo
assim, a Marinha enviava mandados de intimação aos delegados de polícia das
principais capitais, para que prendessem os réus e os extraditassem para a
capital, no Rio de Janeiro. Os mandados expedidos aos delegados de polícia não
alcançaram o resultado esperado e, assim, somente dez marinheiros foram
julgados; entre eles, João Cândido, Francisco Dias Martins e Gregório do
Nascimento, líderes da primeira Revolta. Durante dois anos, o Conselho de
Guerra (tribunal militar da Marinha) registrou o depoimento das testemunhas e
dos envolvidos. Foram absolvidos os marinheiros João Cândido, Ernesto Roberto
dos Santos, Deusdedit Teles de Andrade, Francisco Dias Martins, Raul de Faria
Neto, Alfredo Maia, João Agostinho, Vitorino Nicácio de Oliveira, Antônio de
Paula e Gregório do Nascimento, e “suspensa a execução desta sentença em
virtude da apelação necessária, interposta para o Supremo Tribunal Militar, na
forma da lei”.
Os
quase 75% dos marinheiros a bordo dos navios envolvidos na Revolta da Chibata
eram predominantemente analfabetos e negros. Representavam as primeiras
gerações de filhos e de netos de ex-escravos ou dos nascidos a partir da Lei do
Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Gerações que testemunharam as famílias
escravizadas, que ouviram narrativas sofridas e que presenciaram as incontáveis
barreiras impostas à ascensão econômica e aos direitos civis. A escravidão
deixara rastros e estilhaços. Não passara em brancas nuvens e nem adormecera
“em plácido repouso”, conforme versejou o poeta Francisco Otaviano. Nessa
perspectiva, pesquisadores do assunto consideram que a Revolta da Chibata e
João Cândido Felisberto simbolizam esse cenário. Para Nascimento, “insere a
Revolta da Chibata na história das gerações de descendentes de
ex-escravos na pós-abolição”.
No
julgamento João Cândido aproximou-se de Evaristo de Morais e o abraçou como se
fosse um irmão. Cumprimentou os advogados Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro
de Barros, enquanto os outros companheiros, bem nervosos, se entregavam a
justas manifestações de alegria. Foram todos ao encontro de João Cândido e
cumprimentaram-no, respeitosamente. Mesmo absolvidos, João Cândido e os outros
marinheiros foram excluídos da corporação. Perseguido pelos militares, não
conseguiu voltar para a Marinha de Guerra, que tanto amava. Tentou entrar na
Marinha Mercante, mas quando descobria quem ele era, João Cândido era
dispensado. Casou-se três vezes, teve 11 filhos. Foi morar em São João de
Meriti, município da baixada fluminense. Passou o resto de sua vida sustentando
sua família vendendo peixe na Praça XV. Em 1953, soube que o encouraçado Minas
Gerais ia ser vendido como sucata. Então embarcou em um pequeno barco de pesca
e foi até o navio durante a noite, e como forma de gratidão beijando seu casco
para se despedir. Depois continuou sua vida simples, até que em 1969 se sentiu
mal e foi levado ao Hospital Getúlio Vargas, no subúrbio carioca do Méier,
aonde faleceria de câncer, aos 89 anos. Desnecessário
dizer que um advogado tem como representação um profissional oriundo das artes
liberais no Ocidente, que é graduado em direito e autorizado pelas instituições
da nação em que vive para exercer “jus postulandi”, a capacidade dos legítimos
interesses das pessoas físicas ou jurídicas em juízo ou fora dele, quer entre
si, quer ante a tutela do Estado. O advogado é, portanto, uma “peça” essencial
do sistema de governo na administração da justiça, constituído para assegurar a
defesa dos interesses das partes em juízo. Ao nível ideológico a advocacia não
é simplesmente uma profissão, mas um “munus publicum”, condicionado por lei, em
atendimento ao poder público que beneficia a coletividade e não pode ser
recusado, exceto nos casos previstos em lei. É, portanto, um encargo público
que embora não seja agente estatal, compõe um dos principais elementos da
administração democrática do Poder Judiciário. A palavra múnus se originou
diretamente do latim munus, que quer dizer: dever, ônus, função e encargo. O
termo múnus é principalmente utilizado no âmbito jurídico, representando “um
conjunto de obrigações de um indivíduo”. O múnus também pode ser considerado o
trabalho (cargo) de uma pessoa, levando em consideração a necessidade de
cumprir obrigações durante o trabalho. O múnus público é todo o dever e
obrigação de que os indivíduos prestam para o poder público, baseado por leis e
que cubram os interesses de todos os cidadãos em coletividade. Votar ou
justificar o voto, prestar depoimento como testemunha, executar um cargo que
atinja os amplos interesses da pátria, da ordem social, são alguns exemplos
clássicos de múnus públicos. O múnus sacerdotal é o dever, função e obrigação
que cabe ao indivíduo que se dedique ao sacerdócio. A igreja católica, em
termos de análise comparada, tem como base a “tríplice múnus”, que é formada em
torno do múnus sacerdotal, múnus profético e múnus pastoral.
Navios
do tipo Dreadnought simbolizavam um
tempo que se anunciava repleto de promessas inovadoras e que adequava a Marinha
do Brasil à tecnologia atualizada. A indústria de guerra naval chegava a
comparar esse tipo de encouraçado a uma fábrica moderna. Veloz, possuía 12
canhões de calibre padronizado, assentados em seis torres giratórias avante e a
ré, que significava a possibilidade de disparar contra alvos localizados à proa
(frente) ou popa (atrás) do navio. Podia embarcar uma tripulação de
aproximadamente mil homens. Historiadores voltados para o tema observam que tal
número era significativo, pois no navio Minas Gerais e no São Paulo
concentrava-se um terço das guarnições da Armada brasileira. Se por um lado os ganhos pareciam notórios,
existiam pontos que mereciam atenção. O governo brasileiro comprara uma frota
moderna e precisava qualificar e capacitar o seu efetivo. Do ponto de vista
técnico-metodológico as tripulações deveriam reconhecer a eficácia dos Dreadnoughst: maquinário, telégrafos,
couraça de aço, eletricidade, e outras peculiaridades. Partindo desse objetivo,
um número expressivo de marinheiros foi enviado para a Inglaterra a fim de
receber treinamento adequado. Era fundamental ter disponível uma quantidade bem
maior de braços para executar as tarefas diárias nas embarcações. Mesmo cada
navio possuindo uma “tabela de serviços” organizada pelos oficiais, incluindo
manutenção, limpeza, pintura etc., a sobrecarga de afazeres fomentava punições
e tensões.
Antônio
Evaristo de Morais (1871-1939) foi um rábula, advogado criminalista, e
historiador brasileiro. Era filho de Basílio Antônio de Morais e Elisa Augusta
de Morais. Estudou no colégio beneditino mantido no Rio de Janeiro, então
Capital do Império, onde posteriormente lecionou, a partir do ano seguinte à
sua formação ali, em 1886. Em 1890 participou da construção do Partido
Operário, primeira agremiação partidária de caráter socialista da história do
Brasil. Estreou no júri no ano de 1894, trabalhando no escritório Silva Nunes e
Ferreira do Faro. Após 23 anos de prática forense, aos quarenta e cinco de
idade, veio finalmente a formar-se em Direito, sendo na ocasião o orador de sua
turma. Foi cofundador da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 1908. Na
década de 1910 trabalhou na defesa dos marinheiros rebelados na Revolta da
Chibata, um motim naval no Rio de Janeiro, ocorrido no final de novembro de
1910. Representou o resultado direto do uso de chibatadas por oficiais navais
racistas brancos ao punir marinheiros afro-brasileiros e mulatos. Tornou
célebre a campanha pela anistia dos presos, que somente suspenderam a revolta
com a promessa jamais cumprida do governo reacionário brasileiro não cometer
represálias contra os rebeldes.
Em 1910, oficiais liderados por João
Cândido sacudiram o País, reivindicando o fim dos castigos físicos na Marinha.
Depois de longas e tensas negociações, a Revolta da Chibata foi reprimida; e os
rebeldes, presos. Porém, a imagem de João Cândido – o Almirante Negro, nos
dizeres da imprensa – seguiu viva. Teve até quem planejasse transportar a
história do marinheiro para as luzes do cinema. O documentário “A Vida de João Cândido”,
do diretor Alberto Botelho, começou a ser produzido em 1910 e foi finalizado em
1912. Em 22 de janeiro de 1912, o chefe da polícia do Rio de Janeiro, Belizário
Fernandes da Silva Távora, proibiu a estreia. Belizário nasceu em
Jaguaribe-Mirim, 25 de maio de 1868, filho de Antônio Fernandes da Silva e
Idalina Alves de Lima. Cursou o Seminário de Fortaleza, que abandonou em 1883,
quando cursava o 2° ano de Teologia. Estudou no Liceu e no Ateneu Cearense.
Morou algum tempo em Manaus. Bacharel em Direito pela Faculdade de Recife, em
1892, radicou-se no Rio de Janeiro a partir de 1897, exercendo a advocacia. Foi
delegado, chefe de polícia e tabelião. Como jornalista colaborou em numerosos
jornais do Ceará, Amazonas, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro. Morreu
centenário, no Rio de Janeiro.Por estas
razões políticas o curta-metragem nunca foi exibido. - “Se não fizesse o que
fez, talvez a esta hora o Rio em peso estivesse revolucionado”, defendeu o
jornal Correio da Manhã. Tido hoje como desaparecido, segundo Hoffmann (2018)
“o curta-metragem foi o primeiro filme brasileiro a cair nas garras da
censura”.
Autodidata, Edmar Morel teve uma
infância pobre. Seu pai faleceu em 1931, quando Morel tinha vinte anos,
deixando a viúva com seis filhos. Começou a trabalhar cedo, em uma casa
comercial. Em seguida, trabalhou nos jornais O Ceará e A Rua, como
corretor de anúncios, auxiliar de revisor e auxiliar de repórter. Em 1932, foi
para o Rio de Janeiro. Passou fome e dormiu na rua, até encontrar o jornalista
Maurício de Lacerda, pai de Carlos, que conhecera em Fortaleza. Maurício de
Lacerda, importante articulista do Jornal do Brasil, levou-o a trabalhar no
jornal, na sessão de anúncios fúnebres. Em 1937, Edmar Morel ingressou no incipiente
jornal “O Globo”. Posteriormente trabalhou também em “A Tarde”, no “Diário da
Noite” e na badalada revista “O Cruzeiro”, de 1938 a 1947. Morel foi também
funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), durante a chamada “Era
Vargas”. Embora tivesse tido problemas com a censura, ele nunca deixou da
trabalhar como jornalista, inclusive
durante o regime autoritário, implantado em 1° de abril de 1964. Em 1968 ele
voltou a trabalhar na revista “O Cruzeiro”, publicando reportagens sobre os mais
variados assuntos, porque não contra o governo, como se pode ver em suas memórias
póstumas.
Enfim,
as condições sociais e jurídicas da Marinha não acompanharam o ritmo das novas tecnologias.
Oficiais brancos de elite eram líderes responsáveis pela maioria das equipes de
negros e mulatos, muitos dos quais haviam sido forçados à entrar na Marinha por
contratos de longo prazo. Estes oficiais frequentemente utilizavam castigos
corporais contra seus tripulantes, mesmo para punir “delitos menores”, algo que
havia sido banido na maioria dos países e de resto do Brasil. Em resposta, os
marinheiros com conhecimento dos processo e métodos de trabalho usaram os novos navios de guerra para um motim cuidadosamente planejado
e executado em novembro de 1910. Eles tomaram o controle dos postos de trabalho
de ambos os encouraçados novos, um dos cruzadores e um navio de guerra mais
velho - um total que deu aos amotinados o tipo de estratégia da recusa que enfraqueceu o
resto da Marinha brasileira. Liderados por João Cândido Felisberto, os
amotinados enviaram uma carta ao governo que exigia o fim do que eles chamavam
de “escravidão praticada pela Marinha”.
Esta modernização tecnológica na Marinha do Brasil não foi acompanhada por mudanças sociais, e as tensões entre o núcleo de oficiais contra os tripulantes instigaram muita agitação. Uma citação do Barão de Rio Branco, um estimado político e diplomata profissional, mostra uma das fontes de tensão: Para o recrutamento de fuzileiros navais e homens alistados, trazemos a bordo a escória de nossos centros urbanos, o subproletariado mais inútil, sem preparação de qualquer tipo. Ex-escravos e filhos de escravos compõem as tripulações de nossos navios, a maioria deles de pele escura ou de mulatos escuros. As diferenças raciais na Marinha brasileira seriam imediatamente evidentes para um observador na época: os oficiais encarregados dos navios eram quase todos brancos, enquanto as tripulações eram pesadamente pretas ou, em menor grau, mulatas. Esses homens eram geralmente enviados para a Marinha, empregados como aprendizes quando tinham em torno de 14 anos, e ligados à Marinha por quinze anos. João Cândido Felisberto, o líder da Revolta da Chibata, foi aprendiz aos 13 anos e juntou-se à Marinha aos 16 anos. Indivíduos forçados a entrar na Marinha serviam por doze anos. Voluntários, que
com uma percentagem muito baixa do total de recrutas servia por nove
anos.
Michel
Foucault (2014) apresenta exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles
não sancionam os mesmos crimes., não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas
definem bem, cada um deles, certo estilo penal. Menos de um século medeia entre
ambos. É a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda
a economia de castigo. Época de grande “escândalos” para a justiça
tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do
crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das
antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos “modernos”:
Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788;
França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma nova era. No fim
do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a
melancolia festa da punição vai-se extinguindo. Nessa transformação,
misturaram-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas
razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da
pena vai se obliterando e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de
administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela
primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por
breve tempo: o pelourinho foi suspenso em 1789; a Inglaterra o aboliu em 1837.
A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar
de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da
cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser cumpridas, ficou a suspeita de
que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades
espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os
espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados,
mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com o
criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis,
fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração.
A punição vai
se tornando, pois a parte mais velada do processo penal, provocando várias seqüências:
deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata;
sua eficácia é atribuída à sua faticidades.
A eficácia é atribuída à sua faticidade,
não à sua intensidade visível: a certeza de ser punido é que deve desviar o
homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição
muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume
publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. As
caracterizações da infâmia são redistribuídas: no castigo-espetáculo um horror
confuso nascia do patíbulo; ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o
condenado; e, se por um lado, sempre estava a transformar em piedade ou em
glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar
geralmente em infâmia e violência legal do executor. Desde então, o escândalo e
a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinquente com o sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da
sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça
tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo sempre a
confiá-la a outros sob a marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição,
e pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça
estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe. A execução da pena vai se
tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a
justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático
da pena. Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma
vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente:
sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia
moral. O desaparecimento dos suplícios é, pois, o espetáculo que se elimina;
mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue.
Outra controvérsia partia do uso disciplinar pesado pela Marina do castigo
corporal até mesmo para punir delitos considerados menores. Enfim, o ato de beber a bordo é
considerado uma tradição naval importante, cultivada e ensinada, apesar de não
ser autorizada oficialmente. Todavia, é interessante notar que a própria questão
da tradição costuma ser naturalizada, como se a pretensa ancestralidade de uma
determinada prática justificasse sua manutenção. O objetivo e a característica
das tradições é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se
referem impõe práticas fixas normalmente formalizadas, tais como a repetição.
Não só o consumo de etílicos deve restringir-se às situações específicas em
certos limites bem definidos de quantidade de unidades a serem consumidas.
Obedecendo às características intrínsecas das relações de poder, essas configurações
de dominação se reproduzem, estabelecendo novas mediações de poder. No século
XIX, essa figuração era assegurada pelo oficialato, com os castigos corporais,
visando manter a ordem e a hierarquia, assim como a disciplina nas embarcações
para reafirmar a autoridade nas manifestações públicas de sofrimento do
infrator. Os inúmeros casos de insubordinação, muitas vezes inflamados pelos efeitos da aguardente e o
isolamento da casa, acabavam desmoralizando por atitudes comandantes e
oficiais.
As
Forças Armadas brasileiras resolviam os problemas disciplinares castigando o corpo do infrator. No caso da Marinha de Guerra, o tipo de castigo
(golilha, chibata, palmatória, prisão a ferros, solitária) e a quantidade
aplicada (dias na solitária, pancadas nas mãos e costas) eram definidos após
decisão de um Conselho de Disciplina
formado pelo comandante e mais dois oficiais a bordo. Embora tais medidas
disciplinares tenham sido proibidas na população em geral desde a Constituição Imperial de 1824 e no
Exército desde 1874, a Marinha só foi afetada com o golpe republicano de
novembro de 1889, quando a legislatura da nova república proibiu tal processo
disciplinar. A lei foi rescendida menos de um ano depois, em meio a
descumprimento generalizado. Em vez disso, o castigo físico só seria permitido
numa Companhia Correcional, criada com o propósito de submeter a regime de
disciplina especial os chamados “praças” e punir faltas em casos que não exijam
conselho de guerra. As punições iam desde prisão a ferro na solitária, por um a
cinco dias, a pão e água. Para as faltas “leves”, até as vinte e cinco
chibatadas, no mínimo, para as faltas graves. A legislatura vislumbrou como um
freio à prática, já que marinheiros com “históricos” violentos ou de subversão
enfrentariam a chibata. A realidade era diferente uma vez que as companhias
existiam em qualquer lugar nos navios. O marinheiro poderia ser em tese
transferido para a Companhia Correcional, mas sem ter mudanças em suas rotinas
diárias de trabalho.
Bibliografia geral consultada.
ENGELS, Friedrich, Anti-Duhring. Trad. Émile Bittigelli. Paris: Éditions Sociales, 1971; cap. II, “Notions théoriques”; GRANATO, Fernando, O Negro da Chibata: o marinheiro que colocou a República na mira dos
canhões. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000; NASCIMENTO, Álvaro Pereira
do, Do Convés ao Porto: A Experiência
dos Marinheiros e a Revolta de 1910. Tese de Doutorado em História.
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2002; MORGAN, Zachary Ross, Brazil: The Revolt of the Lasch, 1910 in Twentieth Century Naval Mutinies. London: Frank Cass Publisher, 2003; RODRIGUES, Flávio Luís, Vozes do Mar: O Movimento dos Marinheiros e o Golpe de 64. São Paulo: Editora Cortez, 2004; VIANA, Larissa, O Idioma da Mestiçagem. As Irmandades de
Pardos na América Portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007; SILVA, Ana
Paula Barcelos Ribeiro da, Discurso
Jurídico e (Des) Qualificação Moral e Ideológica das Classes Subalternas na Passagem
à Modernidade: Evaristo de Moraes (1871-1939). Dissertação de Mestrado em
História. Departamento de História. Niterói: Universidade Federal Fluminense,
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