segunda-feira, 2 de abril de 2018

FHC: Inbreeding Acadêmico, Política & Consanguinidade no Brasil.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

             “É preciso cuidado, ter sempre uma janela aberta, o inbreeding é muito ruim”. Fernando Henrique Cardoso


         O grande mérito de Lewis Morgan, afirma Friedrich Engels, é ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais o fundamento pré-histórico da história escrita e  ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história social da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não foi trabalho de um dia. Levou cerca de 40 anos elaborando dados. O estudo da história da família começa, de fato, em 1861, com o “Direito Materno”, de Bachofen. Nesse livro formula as seguintes teses, resumidamente: 1. Primitivamente os seres humanos viveram em promiscuidade sexual; 2. Estas relações excluíam toda possibilidade de estabelecer, com certeza, a paternidade; 3. Em consequência desse fato, as mulheres como mães, como únicos progenitores conhecidos da jovem geração, gozavam de grande apreço e respeito, chegando ao domínio feminino absoluto; 4. A passagem para a monogamia incidia na transgressão de uma lei religiosa antiga, em que devia ser castigada, ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros homens. Johann Jakob Bachofen encontrou as provas dessas teses em trechos da literatura antiga por ele reunidos com zelo singular.  
        Com uma franqueza absoluta Fernando Henrique Cardoso (FHC) afirma: - Sou mau “ledor” e gosto de entremear as leituras com observações mais espontâneas. Sempre tive inveja de quem tem a capacidade de escrever textos e de lê-los como se fossem peças de teatro representadas por atores. Não tenho talento para tanto, daí que escreva uma coisa, diga outra e, ao rever, publique uma terceira versão do mesmo texto base. Por circunstâncias e entrecruzamento de vida me beneficiei do contato direto com vários dos autores como Florestan Fernandes, meu professor e de quem fui assistente antes de sermos colegas e vizinhos de rua, assim como com Antônio Candido, também professor e mais tarde colega. Com Celso Furtado nos breves meses em que ele trabalhou na Cepal depois do golpe de Estado de 1964, quando moramos na mesma casa em Santiago e, mais tarde, de conviver com ele nos períodos em que coincidiu estarmos juntos em Paris no final dos anos 1960 e na década de 1970. Com Caio Prado no final dos anos 1950 e inícios da década seguinte quando ele era o inspirador da Revista Brasiliense, na qual eu colaborava, afirma, sem falar em nossas desventuras de militância ao redor do Partidão.  
            No entanto, com relação a Sérgio Buarque de Holanda, embora tivesse menos  convivência, conheci-o o suficiente para admirá-lo e para me ter beneficiado de suas críticas nas duas vezes em que formou parte da banca que me examinou no doutorado e no concurso de cátedra. Aliás, também Florestan Fernandes foi, além de incentivador, meu examinador em teses acadêmicas, e o mesmo posso dizer de Caio Prado, que, como Sérgio, fez parte da banca de meu doutorado. Com muito menor familiaridade posso também dizer que vi de perto o jeito, mais do que o pensamento, de Gilberto Freyre e de Raymundo Faoro, do primeiro nas poucas vezes que fui a Recife ou nas ocasiões em que, estando em São Paulo, pudemos conversar, e do segundo quando da militância contra o regime autoritário. Apesar da relativa familiaridade com os autores que comento neste livro (2013), não posso dizer que pertenço à mesma geração deles. Antes fui beneficiário das suas descobertas, intuições e análises. Euclides da Cunha, assim como Paulo Prado, sem falar de Nabuco, comparativamente, deram suas contribuições em épocas anteriores, mas não deixam de formar parte da mesma “tradição cultural” dos demais autores mencionados. Em que sentido eles formariam parte da mesma tradição e até que ponto minha geração participa de outro momento cultural? Basicamente o que une os autores referidos é a preocupação em analisar a “formação do Brasil”.   

        

Observou o jornalista Ruy Fabiano, mutatis mutandis, que algo mais que ser identificado por uma sigla une o destino político de JK e FHC: ambos experimentaram a glória e o escárnio. A diferença é que JK só foi reabilitado depois de morto. Em vida, após um governo de grandes transformações e ressonância popular, viu-o transmutado em “herança maldita”, pelo sucessor, Jânio Quadros, e pelas forças políticas que o apoiavam. Jânio renunciou, mas o combate de seus ex-aliados não cessou e desembocou na cassação de JK em 1964. Dali em diante, viveu o ostracismo e a difamação, impedido até de visitar a própria cidade que construíra Brasília, ameaçada por Jânio de virar centro internacional de convenções e perder seu status político de capital central. Somente no último governo militar, do general  João Figueiredo (1979-1985) deu continuidade ao projeto iniciado no governo anterior de abertura do regime golpista, como designado pelos militares de maneira “lenta, gradual e segura”, fazendo com que duas décadas depois, JK começasse a ser reabilitado. Já havia falecido uma década antes. Tornou-se sequência o contrário do que lhe era até então imputado: de perdulário e corrupto, passou a presidente modelo, realizador, referência de todos os que aspiravam ao cargo. A História, pois, o absolveu, embora não a tempo de informá-lo e confortá-lo. Fernando Henrique Cardoso teve mais sorte: o que ocorre é que está sendo reabilitado em longa e produtiva carreira e vida política. O ex-presidente apoiou o golpe de Estado de 17 de abril de 2016, com a queda da presidenta Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT). E não se trata de ressentimento, mas um golpe da classe política.  

         Fernando Henrique Cardoso é oriundo de uma tradicional família de militares e políticos do Império do Brasil: seu bisavô foi o capitão Felicíssimo do Espírito Santo, deputado e senador pelo Partido Conservador e presidente da província de Goiás; e o avô foi o general de brigada Joaquim Ignácio Baptista Cardoso. Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1931, Fernando Henrique Cardoso é o filho mais velho do militar Leônidas Cardoso e de Nayde Silva Cardoso. Seu pai foi general de brigada e deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Sua mãe nasceu em Manaus proveniente de família alagoana, e fez formação secundária em um colégio de freiras. Recebeu a instrução básica no Rio de Janeiro. A partir de 1940, com a transferência de seu pai para a cidade de São Paulo, o jovem prosseguiu seus estudos em colégios particulares da capital paulista até o ensino superior, quando ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Formou-se bacharel em Ciências Sociais em 1952, especializando-se em Sociologia no ano seguinte. Foi professor da Faculdade de Economia entre 1952 a 1953, analista de ensino da cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia em 1953. Em 1955, foi primeiro-assistente de Florestan Fernandes e auxiliar de ensino de Roger Bastide, então professor visitante. Em 1954, foi eleito, entre alunos, o mais jovem membro do Conselho Universitário da vetusta Universidade de São Paulo. Obteve o título de Doutor em Ciências Sociais em 1961 com sua tese sobre o capitalismo e a escravidão. Optando pela carreira acadêmica, especializou-se na França e tornou-se professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo, onde obteve o grau de Livre-docente em 1963.

           Em 1974, a convite de Ulysses Guimarães presidente do Movimento Democrático Brasileiro, coordenou a elaboração da plataforma eleitoral do partido, estimulando o MDB a moldar-se no Partido Democrata norte-americano e pregou que tanto fazendo alianças amplas como repudiando a luta armada, o partido chegaria ao poder pelo voto popular. Fernando Henrique saiu dos bastidores acadêmicos e começou a participar de campanhas políticas pessoalmente a partir das eleições gerais de 1978. Naquele ano, lançou-se candidato ao Senado Federal por São Paulo. Sua candidatura foi apoiada pela esquerda tradicional, por parcelas da classe média mais liberal, por artistas, como Chico Buarque de Holanda, e por lideranças sindicais, como o então sindicalista Lula da Silva, fundador do PT, que chegou a representá-lo em comícios. Assim, obteve 1,2 milhão de votos, tornando-se suplente de Franco Montoro, também do MDB. O bipartidarismo vigente desde o início do golpe civil-militar de 1° de abril de 1964 foi extinto em 1979, passando ao multipartidarismo. Com isso, filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o sucessor do Movimento Democrático Brasileiro.
       Fernando Henrique passou a participar das articulações visando a transição do regime militar para a democracia, tornando-se um dos grandes fomentadores das Diretas-já. Com prestígio junto a Tancredo Neves e Ulisses Guimarães e trânsito entre os militares, contribuiu para que não houvesse radicalização política e que acontecesse uma transição pacífica do regime militar para a democracia em 1985. Teve voz na formação do governo Tancredo, mas a morte deste, seguida da ascensão de José Sarney, reduziu sua área de influência. Em 1985, licenciou-se do Senado Federal para concorrer à prefeitura de São Paulo. Durante o último debate ideológico da eleição, o então candidato deixou de responder objetivamente a pergunta “o senhor acredita em Deus?”, feita pelo jornalista Boris Casoy, que se tornou notório por ter sido “âncora” do TJ Brasil, exibido pelo SBT entre 1988 e 1997. O episódio chegou a ser considerado como “uma quase confissão” de que seria ateu. Seu adversário, ex-presidente Jânio Quadros, explorou ao fim da campanha a falta de crença de Fernando Henrique, realizando uma campanha difamatória de cunho religioso. Posteriormente, ele afirmou nunca ter sido ateu. Jânio o derrotou por uma diferença de 3,37%, ou pouco mais de 141 mil votos.
      Fernando Henrique exerceu durante o governo Sarney o cargo de líder do governo e do PMDB no senado (1985-1988). Nas eleições de 1986, foi reeleito senador com 6,2 milhões de votos. Os peemedebistas tiveram uma grande vitória em todo o país devido a popularidade do Plano Cruzado. Naquele ano, Mário Covas e Cardoso elegeram-se, nessa ordem, os senadores mais votados da história - cada um com mais votos do que o governador eleito Orestes Quércia. Após a eleição, os dois tornaram-se os principais líderes nacionais do PMDB. Em 1988, devido à falta de espaço no PMDB, participou da fundação de um novo partido político, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). O político deixou os cargos de liderança do PMDB que tinha no senado após filiar-se ao novo partido, sendo escolhido como líder dos chamados tucanos na casa. Entre 1987 e 1988, foi membro da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição brasileira de 1988. Em maio de 1993, Itamar nomeou FHC para o Ministério da Fazenda; Itamar já havia realizado três trocas no ministério em apenas sete meses. O sucesso do plano no combate a hiperinflação (cf. Neto, 2003) fez com que Fernando Henrique se tornasse um forte candidato à presidência da República.
No final de março de 1994, ele deixou o cargo de ministro da Fazenda para concorrer às eleições presidenciais daquele ano. A efetiva participação política de Fernando Henrique na elaboração e condução do plano gera divergências. Enquanto alguns afirmam que o plano foi organizado e dirigido exclusivamente pelos economistas ligados ao PSDB, o partido e o próprio FHC o consideram politicamente o “pai do Real”. Posteriormente, Itamar Franco declarou que “a todo instante assistimos na TV o PSDB comemorando os quinze anos do Plano Real. Ora, isso não nos magoa, mas é uma deturpação, uma negação da história”. Ainda de acordo com Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso assinou as cédulas da então nova moeda após ter deixado o Ministério da Fazenda e que isso foi decisivo para sua eleição à presidência. Mas FHC, contudo, negou a afirmação e afirmou que as assinaturas do real foram regulares.
A política social foi baseada no documento: “Uma estratégia de desenvolvimento social”, lançado pela Presidência da República em 1996. O documento apresentou propostas de atuação para “garantir o direito social, promover a igualdade de oportunidades e proteger os grupos vulneráveis”. O governo criou a “Rede Social Brasileira de Proteção Social”, formada por programas de transferência de renda, como a Bolsa-escola e o Auxílio-gás. Para coordenar e articular as ações do governo, foi criado o Programa Comunidade Solidária. Em fevereiro de 1999, FHC sancionou a criação dos medicamentos genéricos. Em setembro de 2000, sancionou a Emenda Constitucional nº 29, que estabeleceu a destinação de patamares mínimos de recursos do governo federal, estados e municípios para a saúde pública. Na área educacional, sancionou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Em 1996, foi implementado o benefício de prestação continuada (BPC). Em novembro de 1999,  sancionou a lei 9.876, que mudou o cálculo das aposentadorias e instituiu o Fator Previdenciário, ajudando a diminuir os déficits do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ao retardar aposentadorias precoces. Um ano antes, ao defender a reforma da Previdência, declarou: “pessoas que se aposentam com menos de 50 anos são vagabundos, que se locupletam de um país de pobres e miseráveis”. O gasto social comparativamente ao Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 1,8%, com maior ampliação durante o primeiro mandato. Alguns índices sociais melhoraram, como o aumento de crianças nas escolas e a diminuição da pobreza. Porém, pesquisas realizadas no último ano do governo indicaram que as maiores taxas de reprovação ao desempenho do presidente estavam ligadas à questão social. Uma matéria da revista Veja, publicada em maio de 2002, concluía: “a pobreza caiu, o consumo aumentou, mas a desigualdade manteve-se praticamente estável, com uma pequena diminuição que pouco alterou o quadro”.
A maior contribuição de Marx ao jornalismo foi sua inabalável profissão de fé na liberdade de imprensa, mais de uma vez registrado nas páginas do New York Tribune. Nos tempos de Marx, ainda não havia grandes monopólios de “mídias”, enquanto comunicação massiva, sendo o jornal impresso uma das poucas fontes de informação e difusão de um conjunto de práticas e saberes sociais. A variedade de  publicações, nas mais diversas correntes ideológicas era tão grande, que Marx habilmente pode utilizar o jornalismo, porque existiam outras vozes para lhes fazer contrapontos. O próprio New York Tribune – visceralmente abolicionista e vagamente socialista utópico –, do qual Marx era colaborador assíduo, enviando àquele jornal, entre 1851 e 1862, mais de 500 artigos, pôs a nu as mais diversas mazelas vitorianas, com destaque para as exorbitâncias do colonialismo britânico na Índia e na China.
O culto social da indiferença de classe representa o hábito de estupidez de uma sociedade que perdeu o sentido de comunidade. O consumo é o leitmotiv do progresso que faz da cidade um lugar passageiro. Onde tudo pode ser destruído e reconstruído a qualquer momento, onde as histórias são substituídas por outras sem perspectiva de futuro. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber, a simultaneidade e o encontro aparente não podem desaparecer. A cidade é fora de dúvida a maior vitrine, onde os episódios cotidianos da existência material são vividos e observados na indiferença da reprodução do capital. A ocupação divertida do urbano, por uma população sonhadora movida pelo acaso de viver o imprevisível, é descartada pela cidade contemporânea. A cidade é o palco da reprodução do “capital cultural” dominante, onde tudo se descobre ou se reinventa, e se apaga na mesma velocidade. Tudo é vivido na condição de espetáculo como se a vida urbana fosse um conjunto de cenas de teatro. A favela é fruto da falta de observação que o operário existe na construção civil irradiada pela visão de Chico Buarque. Ele é um ator social, construtor e a realidade não é virtual.   
Estatisticamente a aprovação do governo durante o primeiro mandato manteve-se na casa dos 40%. A maior taxa foi de 47%, registrada em dezembro de 1996, e o pior momento foi em junho daquele ano, quando era aprovado por 30% e reprovado por 25%. No segundo mandato, teve uma reprovação maior do que aprovação em quase todo o período, variando de forma consistente. Em setembro de 1999, a aprovação foi de 13% e a reprovação de 56%. Em julho de 2002, 31% aprovavam e 26% reprovavam. De acordo com uma pesquisa conduzida pelo Datafolha, terminou o mandato aprovado por 26% e reprovado por 36%, superando a aprovação de José Sarney e Fernando Collor de Mello, mas com popularidade menor do que Itamar Franco e do que a si próprio ao terminar o primeiro mandato. Ao deixar a presidência, uma pesquisa revelou que 35% dos eleitores consideravam que o país estava melhor do que antes do início do governo, enquanto que para 34% estava pior. A pesquisa também indicou que as áreas mais aprovadas foram a saúde, educação, economia, controle da inflação e a área social. Segundo a mesma pesquisa, os mais prejudicados pelo desempenho do governo foram os trabalhadores, os setores da agricultura, comércio e serviços, e a indústria.
Da posse de Luiz Inácio Lula da Silva à de Dilma Rousseff, cumpriu por oito anos o papel de bode expiatório das mazelas públicas brasileiras, acusado pelo Partido dos Trabalhadores de “governante injusto, elitista e predador do patrimônio nacional”. Seu próprio partido, o PSDB, aderiu, pela omissão, ao processo. FHC foi banido de quase todos os palanques tucanos na eleição passada. Que se saiba apenas o candidato ao Senado por São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira, o quis como cabo eleitoral – e, não por acaso, tornou-se o senador mais bem votado da história do país. Já ali havia um sinal claro de que a desconstrução política fracassara o que deve ter levado os tucanos a verter grossas lágrimas de crocodilo, por não percebê-lo a tempo. Ao completar 80 anos, FHC foi surpreendido por  carta da presidente eleita Dilma Rousseff (2011-2016), do Partido dos Trabalhadores (PT) reconhecendo as contribuições de seu governo ao país, sobretudo na estabilização econômica e na erradicação da hiperinflação, com o Plano Real. Ao que parece, nenhum programa de inclusão teria efeito sem tal premissa.
A revista Veja é uma distribuição semanal brasileira publicada pelo Editor Abril às quartas-feiras. Criada em 1968, pelos jornalistas Roberto Civita e Mino Carta, a revista trata de temas variados de abrangência nacional e global. Entre os temas tratados com frequência estão questões articuladas em torno de temas políticos, econômicos e culturais. Com uma tiragem superior a um (01) milhão de cópias, sendo a maioria de assinaturas, a revista Veja é um produto comercial de maior circulação de âmbito nacional. Quando Roberto Civita residia em Tóquio como subchefe da sucursal da revista Time, convidado pelo pai a vir para o Brasil e trabalhar em sua editora, a Abril, pôs como uma de suas condições criar uma revista semanal nos moldes da revista Time.   Do ponto de vista estatístico durante os quatro anos do primeiro mandato, o governo Lula e o PT foram temas de 54 capas da revista Veja, das 206 publicadas no período indicando o papel de “cão de guarda” (“watchdog role”), como tem sido recorrente da imprensa. Quer dizer que a cada quatro edições a revista dedicou pelo menos uma capa aos petistas. A ênfase do semanário em privilegiar as piores ações do governo, verificada na pesquisa, foi maximizada nas capas. Enquanto as matérias sobre os escândalos tomaram pouco mais de 40% do espaço dedicado pela revista à gestão Lula, as capas exploraram muito mais o tema. Das 54 capas sobre o governo Lula, 32 tratavam de escândalos, segundo classificação da própria Veja, ou seja, 59,3% do total. Outras 17 capas, embora não tratem de escândalos, são francamente negativas e apenas três podem ser classificadas como positivas e duas neutras, todas no início do governo.
Entre 27 de outubro e 20 de novembro de 1997, o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, ex-Editor executivo da revista Veja, foi recebido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para nove sessões de entrevista na biblioteca do Palácio da Alvorada. O livro: “O Presidente segundo o Sociólogo” (Editora Companhia das Letras, 1998: 366 páginas) representa o resultado desses encontros com um depoimento de vinte horas. Não se trata apenas da mais extensa entrevista de Fernando Henrique Cardoso. É a primeira entrevista semiestruturada de um presidente eleito democraticamente que se transforma em livro ainda durante sua gestão. Uma das características da entrevista semiestruturada é a utilização de um roteiro previamente elaborado. É também a mais abrangente, incluindo grandes temas, abordados pelo entrevistado pelo duplo foco da lente de sociólogo e político. Alguns dos assuntos discutidos são: religião e sociedade; violência e drogas; o papel da imprensa; a montagem do plano de estabilidade Real; preconceito racial; presidentes do passado; o papel dos militares; Nordeste; a herança da escravidão na formação da sociedade brasileira. Dividido em 25 capítulos, “O presidente segundo o sociólogo” é ordenado por temas, para que o leitor possa ir direto ao que mais lhe interessa, sem prejuízo do conjunto da explanação. Sem perder de vista os caminhos enveredados pelo governo, o papel da oposição e tendências do mundo contemporâneo.
      Etnograficamente, afirma o jornalista na entrevista: há certas esquisitices num palácio presidencial. No caso do Palácio da Alvorada, a esquisitice começa com as emas que vivem em seu jardim. Sim, emas – um bicho silencioso e tímido, que caminha como se não quisesse incomodar, naquele passo que os romances populares descreve como “pé ante pé”. Contudo, transposta a porta do palácio, passeia-se por grandes salões igualmente silenciosos, em geral ermos. Quando se está numa ponta de um desses salões e a pessoa que se espera surge na outra, decorre uma enormidade de tempo até que um chegue ao outro. A esquisitice é esta: supõe que um palácio presidencial seja o centro nervoso da decisão e da ação, o lugar onde as coisas fervem, e, no entanto o ritmo de trabalho lá dentro obedece ao mesmo ritmo manso do avanço da ema, e o clima de comunicação se rege pela mesma solidão dos passos nos salões desertos. Imagina-se que acontece tudo no Palácio da Alvorada, e, no entanto não acontece nada.
Analogamente, quem espera um presidente desgrenhado, num dia de crise financeira, não se contendo na cadeira, falando em dois telefones ao mesmo tempo soa um terceiro, os fundos olhos indormidos, a gravata deslocada na camisa aberta, um auxiliar lhe estendendo um papel enquanto outros circulam em volta, engana-se. O presidente Fernando Henrique Cardoso despontava sereno, a cada encontro, por mais que as manchetes naquelas mesmas manhãs estivessem anunciando o fim do mundo. Combinou-se que não se falaria da crise, a não ser nos seus aspectos conceituais, para não fugir do espírito da entrevista, que era o de procurar manter-se o mais longe possível dos acidentes de conjuntura. Conforme o jornalista: “assim foi feito”. No fim, além dos temas conceituais planejados desde o início, a entrevista acabou se desviando muitas vezes para o relato de lembranças pessoais do entrevistado e considerações de si próprio – seu modo de ver a política e atuar nela. Talvez não seja pretensioso afirmar  que, para firmar uma palavra mais aplicada a mecanismos, porém apropriada, pois é de mecanismo que se trata, de como “funciona” a relação entre entrevistar e entrevistado. Roberto Pompeu Toledo admite: duro é o ofício do entrevistador. Deve se manter sempre alerta ao fato de que o que interessa é que o entrevistado – e não ele – pensa, faz ou é, mas também não perder de vista que a condução da conversa é sua.
Naquele momento justa ou injustamente, tenha ou não competência para tal, ele está investido na função de representante público, e é o interesse desse público que deve pautar a escolha das perguntas, a insistência na exploração deste ou daquele detalhe, ou a conveniência de mudar o rumo da conversa. No entanto, mais duro ainda é o ofício de transpor para a forma escrita uma entrevista gravada. Não é recomendável transcrevê-la ipsis litteris, porque equivaleria a submeter o leitor a uma linguagem que, por fluir livre e solta, cheia de perífrases e volteios, livres associações e outras características do discurso informal, resultam de difícil compreensão. Tem por dever o entrevistador, dadas essas circunstâncias, e por razões de clareza, concisão, correção gramatical, eliminação de repetições e ordenamento mais direto das frases, mexer no discurso tal qual se deu originalmente. Esse procedimento deve ser contrabalanceado por dois balizamentos: 1) a fidelidade, máxima possível, ao estilo, aos métodos explanatórios, ao vocabulário e ao ritmo do entrevistado, e 2) a característica de oralidade que é própria do gênero entrevista. Em suma, a regra, para Pompeu Toledo, “é mexer não para ser infiel – mas para ser mais fiel ainda”. Isto, não para metamorfosear a informalidade da linguagem oral num elaborado discurso escrito, mas para, escoimando-a do entulho que a atravanca, tornar a oralidade, se se permite o paradoxo, como “legível”.
Vale lembrar que na linguagem teórica, as palavras e expressões funcionam como conceitos teóricos. Em sua periodização histórica, teórica e ideológica as palavras e expressões funcionam de forma distinta, porque se referem à concepção de uma determinada teoria da história. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste, pois, em que, por detrás do significado usual da palavra, é preciso sempre discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual corrente nas fontes, nas atas, nos documentos oficiais, no âmbito da formação discursiva. Na sua significação mais geral deve nos permitir a compreensão que tem por efeito o conhecimento de um objeto: a narrativa da história. É assim que a história abstrata criticada com sabedoria por Marx ou a história em geral não existem, no sentido exato do termo, mas apenas a história real, ou, se quisermos “como efetivamente ocorreu” (“essen Sie tatsächlich, es passierte”), desses objetos concretos e singulares que enformam a experiência acumulada em torno da constituição da humanidade.     
            Em Brasília, nos início da década de 1960, os professores e pós-graduandos da Universidade de Brasília (UnB), Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Luís Fernando Victor, Teodoro Lamounier, Albertino Rodriguez, Perseu Abramo e Vania Bambirra, iniciam um seminário permanente de leitura de O Capital de Marx, aplicando seu método marxista analítico à interpretação da realidade de desenvolvimento histórico latino-americano. Naquela conjuntura histórica e ideológica se reuniram representantes das mais importantes tendências interpretativas da obra fundamental de Marx, entre os quais André Gunder Frank, como convidados estrangeiros que ajudaram a disseminar pelos outros países do continente as reflexões desenvolvidas por esse grupo de pesquisadores. Essas novas análises retomam o pensamento de Lenin e de Rosa Luxemburgo, sobre o imperialismo, de desenvolvimento desigual e combinado de Leon Trotsky, além da concepção crítica analítica sobre o desenvolvimento latino-americano formulada por Gunder Frank, que por sua vez tem origem no conceito de “subdesenvolvimento” desenvolvido por Paul A. Baran e Paul Sweezy, abrindo caminho para a teoria marxista da dependência vis-à-vis ao imperialismo norte-americano.
        A tese central do “nacionalismo desenvolvimentista” tem como representação social o desenvolvimento econômico e a consolidação da nacionalidade constituindo dois aspectos do mesmo processo emancipatório. O desenvolvimento dependeria, assim, de uma consciência nacional mobilizada em torno de uma vontade no plano global de desenvolvimento. Na esfera cultural, a retórica do início dos anos 1960, tanto de “direita” como de “esquerda”, para lembrarmo-nos da ciosa interpretação de Norberto Bobbio, foi demarcada pelo uso corrente das categorias sociais “povo” e “nação”, ou nacional- popular. Os movimentos de esquerda no caso emblemático do Centro Popular de Cultura (CPC), além do discurso anti-imperialista adotaram também uma postura vanguardista, baseada na premissa de que a autêntica cultura popular revolucionária é 2aquela produzida por artistas e intelectuais que optaram por ser povo - enquanto a cultura do povo era considerada arcaica e atrasada. A coleção Cadernos Brasileiros e a Revista Civilização Brasileira, editadas por Ênio Silveira, e a História Nova, por Nelson Werneck Sodré, sugerem a intensa colaboração entre o ISEB e o CPC.
         Nesse processo intelectual realizado na UnB, ocorre a superação crítica da posição do pensamento social brasileiro tanto em relação ao reformismo comunista quanto ao estagnacionismo que dominava a intelectualidade antes do período do chamado “milagre brasileiro”. A crítica atingia, por um lado, as teses progressistas, representada pelo nacional-desenvolvimentismo da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) estabelecida pela resolução 106 (VI) do Conselho Econômico e Social, de 25 de fevereiro de 1948, e do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o funcionalismo do pensamento social na esteira da Universidade de São Paulo (USP), ou o reformismo ligado ao PCB. Por outro lado, criticava o liberalismo do imperialismo britânico das elites agrárias exportadoras e as teorias de modernização associadas ao imperialismo norte-americano, de desenvolvimento equilibrado, para assentar as bases de um paradigma próprio que estruturava o pensamento social. O processo de apropriação das ideias culmina com o transplante de uma teoria da dependência em novos parâmetros teorizando a realidade brasileira e latino-americana.
Bibliografia geral consultada.
ROMANO, Vicente, Desarrollo y Progreso: Por una Ecologia dela Comunicación. Barcelona: Editorial Teide, 1993; RIDENTE, Marcelo, Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à Era da TV. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000; PRETTO NETO, Dary, Um Histórico das Receitas Econômicas de Combate à Inflação no Brasil. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências Econômicas. Departamento de Economia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; SILVA, André Luis Reis da, Do Otimismo Liberal à Globalização Assimétrica: A Política Externa do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2002). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,  2008; CARDOSO NETO, Felicíssimo, Memórias de Luz e Sombra. 1ª edição. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2009; ALMEIDA, Cristiane D`Avila Lyra, João do Rio a Caminho da Atlântida: Por uma Aproximação Luso-Brasileira. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2010; MESQUITA, Lucas Ribeiro, Itamaraty, Partidos Políticos e Política Externa Brasileira: Institucionalização de Projetos Partidários nos Governos FHC e Lula. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2013; SANTOS, Inês Cristina dos, A Influência da Teoria da Dependência nas Ciências Sociais: Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília: Universidade Estadual Paulista, 2014; LIMA, Pedro Luiz da Silva Rego, As Desventuras do Marxismo: Fernando Henrique Cardoso, Antagonismo e Reconciliação (1955-1968). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Centro de Ciências Sociais. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015; BEAL, Marcos Antônio, Fernando Henrique Cardoso e o Pensamento Político Brasileiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2015; CHAMIÇO, Eduardo Domingues, A Nova Matriz Econômica: Uma Interpretação. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Economia. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2018; entre outros.

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