Darcy Ribeiro - Deculturação & Aculturação no Processo Civilizatório.
Ubiracy de Souza Braga
“Ser original es en cierto modo estar poniendo
de manifiesto la mediocridad de los demás”. Ernesto Sábato
Oficialmente
República Federativa do Brasil é o maior país da América do Sul e da região da
América Latina, sendo o quinto maior do mundo em área territorial, com 8 510
417,771 km², e o sétimo em população com 203 milhões de habitantes, em agosto
de 2022. É o único país na América onde
se fala majoritariamente a língua portuguesa e o maior país lusófono do planeta
Terra, além de ser uma das nações mais multiculturais e etnicamente diversas,
em decorrência da imigração oriunda de variados locais do mundo. Sua atual
Constituição, promulgada em 1988, concebe o Brasil como uma república
federativa presidencialista, formada pela união dos 26 estados, do Distrito
Federal e dos 5 571 municípios. Banhado pelo Oceano Atlântico tem um litoral de
7 491 km e faz fronteira com quase todos os outros países sul-americanos,
exceto Chile e Equador, sendo limitado a Norte pela Venezuela, Guiana, Suriname
e pelo departamento ultramarino francês da Guiana Francesa; a Noroeste pela
Colômbia; a Oeste pela Bolívia e Peru; a Sudoeste pela Argentina e Paraguai e
ao Sul pelo Uruguai. Vários arquipélagos formam parte do território brasileiro,
como o Atol das Rocas, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, Fernando de
Noronha, sendo o único habitado por civis e Trindade e Martim Vaz. O Brasil é o habitat de uma diversidade de animais selvagens, ecossistemas e de
vastos recursos naturais em uma grande variedade de habitats protegidos.
O
território que forma o Brasil foi oficialmente “descoberto” pelos portugueses
em 22 de abril de 1500, em expedição liderada por Pedro Álvares Cabral. Segundo
alguns historiadores como Antonio de Herrera e Pietro d`Anghiera, o encontro do
território teria sido três meses antes, em 26 de janeiro, pelo navegador
espanhol Vicente Yáñez Pinzón, durante uma expedição. A região, então habitada
por indígenas ameríndios divididos entre milhares de grupos étnicos e
linguísticos diferentes, cabia a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, e
tornou-se uma colônia do Império Português. O vínculo colonial foi rompido, de
fato, quando em 1808 a capital do reino, expulso, foi transferida de Lisboa
para a cidade do Rio de Janeiro, depois de tropas francesas comandadas por
Napoleão Bonaparte invadirem o território português. Em 1815, o Brasil se torna
parte de um reino unido com Portugal. Dom Pedro I, o primeiro imperador,
proclamou a Independência política do país em 1822. Inicialmente “independente”
como um império, período no qual foi uma monarquia constitucional
parlamentarista, o Brasil tornou-se uma República em 1889, em razão de um golpe
de Estado, político-militar chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca, o
primeiro presidente, embora uma legislatura bicameral, agora chamada de
Congresso Nacional, já existisse desde a ratificação da primeira Constituição,
em 1824.
Desde
o início do período republicano, a governança foi interrompida por longos
períodos de regimes autoritários, e particularmente até um governo civil e
eleito assumir o poder em 1985, com o fim da ditadura civil-militar (1964-1984).
Como potência regional e média, a nação tem reconhecimento e influência internacional,
que também é classificada como uma “potência global emergente” e como potencial
“superpotência” por vários analistas sociais. O Produto Interno Bruto nominal
brasileiro é o nono maior do mundo globalizado e o oitavo por paridade do poder
de compra (PPC), sendo, em ambos, o maior da América Latina e do Hemisfério
Sul. É um dos principais “celeiros” do planeta, o maior produtor de café dos
últimos 150 anos, além de ser classificado como uma “economia de renda
média-alta” pelo poderoso Banco Mundial e país recentemente industrializado,
que detém a maior parcela de riqueza global da América do Sul. No entanto, o
país ainda mantém níveis notáveis de corrupção, criminalidade e desigualdade
social. É membro fundador da Organização das Nações Unidas, G20, ou Grupo
dos 20, representando um grupo formado
pelos ministros de finanças e chefes dos bancos das 19 maiores
economias mais a União Africana e União Europeia.
Foi
criado em 1999, após as sucessivas crises financeiras da década de 1990, BRICS. O agrupamento começou com quatro países sob o nome BRIC, reunindo Brasil,
Rússia, Índia e China, até que, em 14 de abril de 2011, o “S” acrescido
resultou da admissão da África do Sul ao grupo, um país situado na extremidade
sul do continente africano e marcado por vários ecossistemas diferentes. Em 1°
de janeiro de 2024, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes
Unidos aderiram ao bloco como membros plenos, e assim mudando o nome de “BRICS”
para “BRICS+”. O grupo “não é um bloco econômico” ou uma associação de comércio
formal, como no caso da União Europeia. Diferentemente disso, os quatro países
fundadores procuraram formar um “clube político” ou uma “aliança”, e assim
converter “seu crescente poder econômico em uma maior influência geopolítica”.
Desde 2009, os líderes do grupo realizam cúpulas anuais. Historicamente, a
mídia tem classificado os BRICS como uma alternativa geopolítica em relação ao
G7, comparativamente, visto que o grupo buscou criar alternativas em relação
aos métodos utilizados por algumas nações ocidentais, a exemplo do Novo Banco
de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas. As relações bilaterais
entre os países dos BRICS têm sido conduzidas principalmente com base nos
princípios de não-interferência, igualdade e benefício mútuo. Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP), União Latina, Organização dos Estados
Americanos (OEA), Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e Mercado
Comum do Sul (Mercosul).
O
Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca
na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de
descaso. Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não -
afirmava Darcy Ribeiro -, não vou me resignar nunca. Portanto, urge preveni-los
do muito que se poderia fazer, com apoio no saber científico, e do descalabro e
pequenez do que se está fazendo. Mas as vicissitudes do saber e o testemunho
dado pelos autores, dos quais deriva a sua autoridade e que ao mesmo tempo a
transmite como tradição de geração em geração, dizem a respeito da causa da
visão, que a coisa vista envia em todas as direções uma exibição, ou
aspecto visível, ou um ser visto, cuja recepção nos olhos é a visão. O
antropólogo Darcy Ribeiro foi aquele que num projeto ambicioso em seus estudos
de antropologia da civilização mais contribuiu, nestes dias para precisar
o conceito de “processo civilizatório”, fazendo com que a antropologia
brasileira obtenha status de
categoria mundial, no âmbito simultaneamente da etnologia & história
intervindo na elucidação dos grandes problemas da evolução das sociedades humanas.
Em
sua trajetória intelectual transita à vontade tanto pelos “caminhos ocidentais”
como pelas veredas do mundo tribal amazônico, onde soma uma experiência e
vivência de campo junto a tribos indígenas, que atravessam o difícil caminho do
contato e ajustamento com as “frentes de expansão nacional”, em seu processo de
avanço e conquista de territórios tribais ou pelos corredores de mais de dois
“palácios de governo”. Darcy Ribeiro como antropólogo fora uma “pessoa”, o que
deriva de per-sonare, uma voz que “soa através” de uma máscara pública.
Irreversível esse caminho tribal e ipso
facto acelerado pela abertura de novas estradas como vias de comunicação,
como a Transamazônica, a Santarém-Cuiabá, a Perimetral Norte, que atingiram
tribos, que até pouco tempo ocupavam os últimos territórios de refúgio, como
consta na etnografia em Uirá sai à Procura de Deus -
Ensaios de Etnologia e Indigenismo (Ribeiro: 1974), outras no período
recente. Seu compromisso é vital, não setorial; produz-se na cátedra, na
prolongada e boa convivência com os índios, na criação de universidades, dentro
e fora do Brasil, como ministro da Educação ou como chefe da Casa Civil, como
preso político, nas peregrinações do exílio, finalmente como romancista, com
“Maíra” (Ribeiro, 1975).
No
dia 20 de janeiro de 1958, o antropólogo Darcy Ribeiro pronunciou emocionado
discurso, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, diante do corpo do
marechal Cândido Mariano da Silva Rondon com as seguintes palavras. O primeiro
princípio de Rondon, “morrer, se preciso for, matar nunca”, foi formulado no
começo deste século quando, devassando os sertões impenetrados de Mato Grosso
ia de encontro às tribos mais aguerridas, com palavras e gestos de paz,
negando-se a revidar seus ataques, por entender que ele e sua tropa eram os
invasores e, como tal, se fariam criminosos se de sua ação resultasse a morte
de um índio. O segundo princípio é o do respeito às tribos indígenas como povos
independentes que, apesar de sua rusticidade e por motivo dela mesma, têm o
direito de serem eles próprios, de viver suas vidas. O terceiro princípio de
Rondon é o do garantir aos índios a posse das terras que habitam e são necessárias
à sua sobrevivência. O quarto princípio de Rondon é assegurar aos índios a
proteção direta do Estado, não como um ato de caridade ou de favor, mas como um
direito que lhes assiste por sua incapacidade de competir com a sociedade
dotada de tecnologia infinitamente superior que se instalou sobre seu
território.
Em
verdade, um fragmento importante nas páginas da vida latino-americana narradas
da década de 1950 até os dias de hoje, pode se documentar seguindo-se o rastro
aberto na pena da Antropologia das Civilizações de Darcy Ribeiro. Traçou o plano de uma obra que incluiu, entre
outros aspectos, a chamada “revolução humana”; as experiências junto às
“formações pré-agrícolas”; um estudo sobre a “revolução agrícola” e sobre as
“aldeias agrícolas indiferenciadas”; as “sociedades pastoris”; a “revolução
urbana” e os “Estados rurais artesanais” e principalmente, para ermos breves, o
lugar da “revolução do regadio” e os “Impérios teocráticos de regadio”, assim como
a “revolução metalúrgica” e os “Impérios mercantil-escravistas” que têm como
consequência, grosso modo, a “revolução mercantil”. Metodologicamente examina
os efeitos diferenciais das diversas fronteiras de expansão econômica perante
os grupos que classifica segundo a intensidade de sua relação com a sociedade
nacional. Este modelo de análise do ponto de vista técnico-metodológico será desenvolvido anos depois pelos projetos
de investigação e pesquisa mais avançados da antropologia. Por volta de 1957 - assinala
Darcy Ribeiro - “haviam sido extintos só no Brasil, 87 grupos [indígenas], dos
230 registrados em 1900”. Impávido,
admite, o processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer,
porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e
reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos
e na Alemanha. A ousadia de escrever “um livro tão ambicioso me custou algum
despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a um
intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias
tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um
livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso
não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer
outro livro recente sobre o mesmo tema”. Além disso, na medida em que, comparativamente, teve
acesso a obras que em sua maioria estavam sendo publicadas quase que
imediatamente “sobre o estudo das revoluções tecnológicas e na fixação dos
modelos teóricos das formações socioculturais”. Contou também com suas próprias experiências concretas como antropólogo junto a grupos indígenas como os Guajá e os Xokléng, os índios Kadiuéu (1950) e a Arte Plumária dos Índios Kaapor (1957) e, da mesma forma, sobre os índios Urubus-Kaapor (1957b) e as tribos do Xingu, entre outras pesquisas originalmente realizadas sobre os índios no Brasil.
Mesmo o livro de Stanley J. Stein e Barbara
H. Stein, The Colonial Heritage of Latin
America, (Oxford University Press, 1970) publicado dois anos depois do clássico
Processo Civilizatório (1968) onde
inclui fontes bibliográficas importantes sobre a Península Ibérica (1580-1800),
sobre as colônias ibero-americanas com a projeção da América Latina em sua fase
neocolonial no século XIX, desconhece o “Diagrama do Processo Civilizatório.
Principais Focos de Irradiação, suas Interpenetrações e Projeções sobre os
Povos contemporâneos” (Ribeiro, 1968:53), considerando a importância do estudo
de Darcy Ribeiro sobre antropologia das civilizações. Repetem algumas de suas
fontes e referências bibliográficas.
Darcy
Ribeiro (1968) compreendeu que alguns processos civilizatórios brotaram de
gestação autóctone, cumpridas passo a passo, como parece ter ocorrido
analogamente na Mesopotâmia e nas Américas. Outros podem ter surgido da
fecundação de um velho contexto cultural originalmente desenvolvida em
diferentes lugares. Mas o fundamental é que todos se configuram como formações
socioculturais “tão radicalmente diferenciadas das anteriores e das
posteriores” que só podem ser compreendidas “como uma nova etapa da evolução
humana ou como fruto amadurecido de uma nova revolução tecnológica, a do
regadio”. Isto o levou em “busca de explicações terra-a-terra” (sic) para
reconstituir a formação dos povos americanos, com uma profunda reflexão teórica
e metodológica para explicar as causas do seu desenvolvimento. - “Salto, assim,
da escala de 10 mil anos de história geral para os quinhentos anos da história
americana com um novo livro: As Américas
e a Civilização”, ou seja, com a referência ao diagrama do processo civilizatório.
A abordagem consistiu na metodologia própria e original que permitiu reunir os
povos americanos em três categorias gerais explicativas do seu modo de ser e
elucidativas de suas perspectivas de desenvolvimento. Essa nova tipologia
“possibilitou superar o nível de análise meramente histórico, incapaz de
generalizações, e focalizar cada povo de forma mais ampla e compreensível do
que seria praticável com as categorias antropológicas e sociológicas habituais”.
Darcy
Ribeiro observa ainda que a análise de cada situação concreta exigisse dos
clássicos do marxismo a elaboração de diferentes tipologias que, retratando
para cada momento histórico as configurações discerníveis da estratificação
social, permitisse diagnosticar as oposições e complementaridades de interesses
que nela se apresentavam. O que estes e outros esquemas marxistas têm de comum
é a noção de componentes contrapostos dentro das classes dominantes e classes
subordinadas bem como a divisão de umas e outras em diversos segmentos; e a
existência de uma classe oprimida, cuja libertação pressupõe uma revolução
social. Em qualquer caso trazem implícita a necessidade, metodologicamente
falando, de “um estudo fatual das estratificações de classe que se cristalizam
historicamente em cada situação concreta”. A tipologia utilizada por Darcy
Ribeiro foi elaborada, como ele dizia, “com esse espírito”.
CIEPs criados por Darcy Ribeiro.
O
que nos faz depreender em sua etnologia o seguinte: - Em lugar de transpor à
América Latina esquemas desenvolvidos pela análise de distintas situações
históricas, procuramos elaborar uma tipologia fundada na observação da
realidade presente e na análise da formação das classes da América Latina, a
partir da estratificação social registrada nas metrópoles ibéricas e do estudo
de suas transformações posteriores. Nossa tipologia aqui apresentada de forma
sumária nada mais é, na verdade, do que um esquema de posições correntes, e
também mais fiel ao verdadeiro significado da teoria marxista de classes sociais.
Esta tipologia é de caráter étnico-nacional e enquanto povos extra-europeus do
mundo moderno podem ser classificados em quatro grandes configurações, sendo
que cada uma delas engloba populações muito diferenciadas, mas também
suficientemente homogêneas quanto às suas características básicas e quanto aos
problemas de desenvolvimento com que se defrontam, para serem legitimamente
tratadas como categorias distintas. Tais são os “Povos-Testemunho”, os
meso-americanos que integram o México Asteca-Náhuatl os “Povos-Novos”, os brasileiros, os grã-colombianos, os
antilhanos, os chilenos; os “Povos-Transplantados”, os anglo-americanos, os
rio-platenses, e os “Povos-Emergentes”, africanos e asiáticos.
Os
primeiros etnograficamente são constituídos pelos representantes modernos das
velhas civilizações autônomas sob as quais se abateu a expansão europeia. O
segundo bloco é representado pelos povos americanos plasmados nos últimos
séculos como um subproduto da expansão europeia pela fusão e aculturação de
matrizes indígenas, negras e europeias. O terceiro é integrado pelas nações
constituídas pela implantação de populações europeias no ultramar com a preservação
do perfil étnico, da língua e da cultura originais. Finalmente, os últimos,
representam as nações novas da África e da Ásia cujas populações ascendem de um
nível tribal, onde a constatação poética ou, mais tarde, psicológica da
pluralidade da pessoa (“eu é um outro”), pode ser interpretada, de um ponto de
vista antropológico como expressão de um continuun
intangível, ou da constatação da condição de meras “feitorias coloniais” para
a de “etnias nacionais”. A Antropologia reconhece o valor no fato de
pertencermos ao grupo.
A
primeira destas configurações designada como “Povos-Testemunho” é integrada
pelos sobreviventes de altas civilizações autônomas que sofreram o impacto da
expansão europeia. São resultantes da ação violenta e traumatizadora daquela expansão e
dos seus esforços de reconstituição étnica como sociedades nacionais modernas.
Reintegradas em sua independência, não voltam a ser o que eram antes, porque se
haviam transfigurado profundamente. Mais do que povos considerados atrasados na
história, eles são os povos espoliados da história. Contando originalmente com
enormes riquezas acumuladas, que poderiam ser agora utilizadas, para custear
sua integração nos sistemas industriais de produção, as viram saqueadas pelo
europeu. Séculos de subjugação ou de dominação direta ou indireta
impuseram-lhes profundas deformações que não só depauperaram seus povos como
também traumatizaram toda a sua vida cultural. Como problema básico, enfrenta a
integração dentro de si mesmo das duas tradições culturais de que se fizeram
herdeiros, não apenas diversas, mas, em muitos aspectos, contrapostas. Atraídos ainda simultaneamente pelas duas
tradições, mas incapazes de fundi-las numa síntese cultural e política significativa para toda a
população, conduzem dentro de si o conflito do processo civilizatório imanente entre a cultura original e
a civilização europeia.
Neste
bloco, encontram-se a Índia, a China, o Japão, a então Coréia unificada, a
Indochina, os países islâmicos e alguns outros. Nas Américas, são representados
pelo México, pela Guatemala, bem como pelos povos do Altiplano Andino,
sobreviventes das populações Asteca e Maia, os primeiros, e da civilização
Incaica, os últimos. Dentre estes povos apenas o Japão e, mais recentemente a
China conseguiram incorporar às respectivas economias a tecnologia industrial
moderna e reestruturar suas próprias sociedades em novas bases. Os dois núcleos
de povos das Américas, como povos conquistados e subjugados, sofreram um
processo de compulsão europeizadora muito mais violento do que resultou sua
complexa transfiguração étnica. Seus perfis étnicos nacionais conformam perfis
neo-hispânicos metidos nos descendentes da antiga sociedade, mestiçados com
europeus e negros. Enquanto que os demais povos extra-europeus apenas coloriram
sua figura étnico-cultural original com influências européias, nas Américas, “a
etnia neo-européia é que se tinge com as cores das antigas tradições culturais,
tirando delas características que as singularizam”(Ribeiro, 1983: 91).
A
segunda configuração, os “Povos-Novos” constituíram-se pela confluência de
contingentes díspares em suas características raciais, culturais e linguísticas.
Reunindo negros, brancos e índios para abrir grandes plantações de produtos
tropicais ou para a exploração mineira, visando tão-somente atender aos
mercados europeus e gerar lucros, as nações colonizadoras acabaram por plasmar
povos profundamente diferenciados de si mesmas e de todas as outras matrizes
formadoras. Estes contingentes básicos, embora exercendo papéis distintos,
entraram a mesclar-se e a fundir-se culturalmente com maior intensidade do que
em qualquer outro tipo de conjunção. Assim, ao lado do branco, “chamado a
exercer os papéis de chefia na empresa”, por força das condições de dominação
impostas aos demais; do negro, nela “engajado como escravo”; do índio, “também
escravizado ou tratado como mero obstáculo a erradicar”, foi surgindo uma
população mestiça que fundia aquelas matrizes nas mais variadas proporções.
Os
“Povos-Novos” surgem hierarquizados, como os “Povos-Testemunho”, pela distância
social que separa a sua camada senhorial de fazendeiros, mineradores,
comerciantes, funcionários coloniais e clérigos da massa escrava engajada na
produção. Constituíam-se de rudes empresários, senhores de suas terras e de
seus escravos, forçados a viver junto a seu negócio e a dirigi-lo pessoalmente
com a ajuda de uma pequena camada intermédia, de técnicos, capatazes e
sacerdotes. Onde a empresa prosperou muito, como nas zonas açucareiras e
mineradoras do Brasil e das Antilhas, puderam dar-se ao luxo de residências
senhoriais e tiveram de alargar a camada intermédia, tanto dos engenhos como
das vilas costeiras, incumbidas do comércio exterior. Vale lembrar que nenhum
dos povos deste bloco constitui uma nacionalidade multiétnica. Em todos os
casos, seu processo de formação foi suficientemente violento para compelir a
fusão das matrizes originais em novas unidades homogêneas. Somente o Chile, por
sua formação peculiar, guarda no contingente Araucano, uma micro-etnia
diferenciada da nacional, historicamente reivindicante do direito de ser ela
própria, ao menos como modo diferenciado de participação na sociedade nacional.
Os
chilenos e os paraguaios contrastam também com os outros Povos-Novos pela
ascendência principalmente indígena de sua população e pela ausência do
contingente negro escravo, bem como do sistema de plantation, que tiveram papel
tão saliente na formação dos brasileiros, dos antilhanos, dos colombianos e dos
venezuelanos. Ambos conformam, por isto, juntamente com a matriz étnica
original dos rio-platenses, uma variante dos “Povos-Novos”. A composição
predominantemente “índio-espanhola” dos Povos-Testemunho se diferencia dessa
variante porque suas populações indígenas originais não haviam alcançado um
nível de desenvolvimento cultural equiparável ao dos mexicanos ou dos Incas. É
o resultado da seleção de qualidades raciais e culturais das matrizes
formadoras, que melhor se ajustaram às condições que lhes foram impostas. O
papel decisivo em sua formação foi representado pela escravidão que, operando
como força distribalizadora,
desgarrava as novas criaturas das tradições ancestrais. São produto tanto da deculturação redutora de seus
patrimônios tribais indígenas e africanos, quanto da aculturação seletiva desses patrimônios e da própria criatividade
face ao novo meio de reprodução da vida.
A
terceira configuração histórico-cultural é representada pelos chamados “Povos-Transplantados”,
correspondentes às nações modernas criadas pela migração de populações
européias para novos espaços mundiais, onde procuram reconstituir formas de
vida essencialmente idênticas às de origem. Cada um deles estruturou-se segundo
modelos de vida econômica e social da nação de que provinha, levando adiante,
nas terras adotivas, processos de renovação que já operavam nos velhos
contextos europeus. Suas características referem-se à homogeneidade cultural
que mantiveram pela origem comum de sua população, ou que plasmaram pela
assimilação dos novos contingentes. A maioria destes contingentes veio ter à
América como trabalhadores rurais aliciados mediante contr@tos, que os submetiam
a anos de trabalho servil, embora em sua grande parte tenha conseguido, mais
tarde, ingressar na categoria de granjeiros livres e de artesãos também
independentes. Integram o bloco de “Povos-Transplantados” a Austrália e a Nova
Zelândia, formadores dos bolsões neo-europeus de Israel,
da União Sul-Africana e da devastada Rodésia.
Nas
Américas são representados pelos Estados Unidos, pelo Canadá e também pelo
Uruguai e a Argentina. Nos primeiros casos tais povos nascem de projetos de
colonização implantados sobre territórios, cujas populações tribais foram
dizimadas ou confinadas em reservations
para que uma nova sociedade neles se instalasse. No caso dos países
rio-platenses, encontramos a resultante de um empreendimento peculiaríssimo de
uma “elite crioula” – inteiramente alienada e hostil à sua própria etnia de
Povo-Novo – que adota como projeto nacional a substituição de seu próprio povo
por europeus brancos e morenos, concebidos como gente com mais peremptória
vocação para o progresso. A Argentina e o Uruguai resultam, de um
processo de sucessão ecológica deliberadamente desencadeada pelas oligarquias
nacionais, através do qual uma configuração de Povo-Novo se transforma em
Povo-Transplantado. Neste processo, a população ladina e a gaúcha, originária
da boa mestiçagem dos povoadores ibéricos com o indígena, foi tragicamente esmagada
e substituída, como contingente básico da nação, por um alude de imigrantes
europeus em busca de terra e trabalho.
O
quarto bloco de povos extra-europeus do mundo moderno é constituído pelos “Povos-Emergentes”.
São integrados pelas populações africanas que ascendem no processo
civilizatório da condição tribal à nacional. Na Ásia encontram-se também alguns
casos de “Povos-Emergentes” que transitam da condição tribal à nacional. Esta
categoria não surgiu na América, apesar do avultado número de populações
tribais que, ao tempo da conquista, contavam com centenas de milhares e com
mais de um milhão de habitantes. Este fator, tanto de deculturação como de
aculturação, mais do que qualquer outro, exprime a violência da dominação,
primeiro europeia que se prolongou por quase quatro séculos, depois nacional, a
que estiveram submetidos os povos tribais americanos. Dizimados prontamente
alguns deles, outros mais lentamente, somente sobreviveram uns poucos que foram
anulados como etnias e como base de novas nacionalidades, enquanto seus
equivalentes africanos e asiáticos, apesar da violência do impacto que
sofreram, ascendem hoje para a vida nacional. A consciência étnica percorre
todo o mundo. Nunca as chamadas “minorias nacionais”, foram tão combativas como
hic et nunc. Isto se pode constatar
pela luta dos povos Bascos, Catalães, Galegos, Bretões, Flamengos e de outras
nacionalidades fanaticamente apegadas a tudo que afirme seu caráter de etnias
autônomas imersas em entidades multiétnicas.
Bibliografia
geral consultada.
RIBEIRO, Darcy, O Processo Civilizatório. Etapas da Evolução
Sociocultural. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968; Idem, Os Índios e a Civilização. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970; STAVENHAGEN, Rodolfo, “Siete
Tesis Equivocadas sobre a América Latina”. Disponível em: Desarrollo Indoamericano, 1 (1966); STEIN, Stanley, The Colonial Heritage of Latin America. Essays on
Economic Dependence in Perspective. Oxford
University Press, 1970; MARIÁTEGUI, José Carlos, Defensa del Marxismo. 6ª edicíon. Lima: Biblioteca Amauta, 1974; MASCARO, Alysson
Leandro Barbate, “O sentido jurídico brasileiro - Reflexões para uma teoria
política e jurídica a partir de O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro”. In:
Revista da Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, vol.
95, pp. 405-414, 2000; SABATO,
Ernesto, España en los Diarios de mi
Vejez. Barcelona: Editorial Seix Barral, 2004; MATTOS, Andre Luis Lopes Borges de, Darcy Ribeiro: Uma Trajetória (1944-1982). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007; SOARES, Antonio
Aroldo Lins, Avaliação Institucional: O Caso da Faculdade de Tecnologia
Darcy Ribeiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em
Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará, 2010; BOMENY, Helena, Darcy Ribeiro: A Sociologia de um
Indisciplinado. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas
Gerais, 2001; Idem, “Em boa Companhia. Relações com Anísio Teixeira e Leonel
Brizola fizeram de Darcy Ribeiro um dos Expoentes das Reformas Educacionais no
País”. Disponível em: Revista de
História. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. 10, p. 3639; 2015;
DORIGÃO, Antonio Marcos, Darcy Ribeiro e
a Reforma da Universidade: Autonomia, Intencionalidade e Desenvolvimento.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual
de Maringá. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2015; MIGLIEVICH-RIBEIRO,
Adélia, “Darcy Ribeiro e UnB: Intelectuais, Projeto e Missão”. Ensaio:
Avaliação e Políticas Públicas em Educação. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 96,
pp. 585-608, jul./set 2017; BRITO, Carolina Arouca Gomes de, Antropologia de um Jovem Disciplinado: A trajetória de Darcy Ribeiro no Serviço de Proteção aos Índios (1947-1956). Tese Doutorado em História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz. Fundação Oswaldo Cruz, 2017; entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário