sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Darcy Ribeiro - Deculturação & Aculturação no Processo Civilizatório.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

Ser original es en cierto modo estar poniendo de manifiesto la mediocridad de los demás”. Ernesto Sábato

Oficialmente República Federativa do Brasil é o maior país da América do Sul e da região da América Latina, sendo o quinto maior do mundo em área territorial, com 8 510 417,771 km², e o sétimo em população com 203 milhões de habitantes, em agosto de 2022.  É o único país na América onde se fala majoritariamente a língua portuguesa e o maior país lusófono do planeta Terra, além de ser uma das nações mais multiculturais e etnicamente diversas, em decorrência da imigração oriunda de variados locais do mundo. Sua atual Constituição, promulgada em 1988, concebe o Brasil como uma república federativa presidencialista, formada pela união dos 26 estados, do Distrito Federal e dos 5 571 municípios. Banhado pelo Oceano Atlântico tem um litoral de 7 491 km e faz fronteira com quase todos os outros países sul-americanos, exceto Chile e Equador, sendo limitado a Norte pela Venezuela, Guiana, Suriname e pelo departamento ultramarino francês da Guiana Francesa; a Noroeste pela Colômbia; a Oeste pela Bolívia e Peru; a Sudoeste pela Argentina e Paraguai e ao Sul pelo Uruguai. Vários arquipélagos formam parte do território brasileiro, como o Atol das Rocas, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, Fernando de Noronha, sendo o único habitado por civis e Trindade e Martim Vaz. O Brasil é o habitat de uma diversidade de animais selvagens, ecossistemas e de vastos recursos naturais em uma grande variedade de habitats protegidos.

O território que forma o Brasil foi oficialmente “descoberto” pelos portugueses em 22 de abril de 1500, em expedição liderada por Pedro Álvares Cabral. Segundo alguns historiadores como Antonio de Herrera e Pietro d`Anghiera, o encontro do território teria sido três meses antes, em 26 de janeiro, pelo navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón, durante uma expedição. A região, então habitada por indígenas ameríndios divididos entre milhares de grupos étnicos e linguísticos diferentes, cabia a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, e tornou-se uma colônia do Império Português. O vínculo colonial foi rompido, de fato, quando em 1808 a capital do reino, expulso, foi transferida de Lisboa para a cidade do Rio de Janeiro, depois de tropas francesas comandadas por Napoleão Bonaparte invadirem o território português. Em 1815, o Brasil se torna parte de um reino unido com Portugal. Dom Pedro I, o primeiro imperador, proclamou a Independência política do país em 1822. Inicialmente “independente” como um império, período no qual foi uma monarquia constitucional parlamentarista, o Brasil tornou-se uma República em 1889, em razão de um golpe de Estado, político-militar chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente, embora uma legislatura bicameral, agora chamada de Congresso Nacional, já existisse desde a ratificação da primeira Constituição, em 1824.

Desde o início do período republicano, a governança foi interrompida por longos períodos de regimes autoritários, e particularmente até um governo civil e eleito assumir o poder em 1985, com o fim da ditadura civil-militar (1964-1984). Como potência regional e média, a nação tem reconhecimento e influência internacional, que também é classificada como uma “potência global emergente” e como potencial “superpotência” por vários analistas sociais. O Produto Interno Bruto nominal brasileiro é o nono maior do mundo globalizado e o oitavo por paridade do poder de compra (PPC), sendo, em ambos, o maior da América Latina e do Hemisfério Sul. É um dos principais “celeiros” do planeta, o maior produtor de café dos últimos 150 anos, além de ser classificado como uma “economia de renda média-alta” pelo poderoso Banco Mundial e país recentemente industrializado, que detém a maior parcela de riqueza global da América do Sul. No entanto, o país ainda mantém níveis notáveis de corrupção, criminalidade e desigualdade social. É membro fundador da Organização das Nações Unidas, G20, ou Grupo dos 20, representando um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos das 19 maiores economias mais a União Africana e União Europeia.

Foi criado em 1999, após as sucessivas crises financeiras da década de 1990, BRICS. O agrupamento começou com quatro países sob o nome BRIC, reunindo Brasil, Rússia, Índia e China, até que, em 14 de abril de 2011, o “S” acrescido resultou da admissão da África do Sul ao grupo, um país situado na extremidade sul do continente africano e marcado por vários ecossistemas diferentes. Em 1° de janeiro de 2024, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos aderiram ao bloco como membros plenos, e assim mudando o nome de “BRICS” para “BRICS+”. O grupo “não é um bloco econômico” ou uma associação de comércio formal, como no caso da União Europeia. Diferentemente disso, os quatro países fundadores procuraram formar um “clube político” ou uma “aliança”, e assim converter “seu crescente poder econômico em uma maior influência geopolítica”. Desde 2009, os líderes do grupo realizam cúpulas anuais. Historicamente, a mídia tem classificado os BRICS como uma alternativa geopolítica em relação ao G7, comparativamente, visto que o grupo buscou criar alternativas em relação aos métodos utilizados por algumas nações ocidentais, a exemplo do Novo Banco de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas. As relações bilaterais entre os países dos BRICS têm sido conduzidas principalmente com base nos princípios de não-interferência, igualdade e benefício mútuo. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), União Latina, Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e Mercado Comum do Sul (Mercosul).

                                           
O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso. Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não - afirmava Darcy Ribeiro -, não vou me resignar nunca. Portanto, urge preveni-los do muito que se poderia fazer, com apoio no saber científico, e do descalabro e pequenez do que se está fazendo. Mas as vicissitudes do saber e o testemunho dado pelos autores, dos quais deriva a sua autoridade e que ao mesmo tempo a transmite como tradição de geração em geração, dizem a respeito da causa da visão, que a coisa vista envia em todas as direções  uma exibição, ou aspecto visível, ou um ser visto, cuja recepção nos olhos é a visão. O antropólogo Darcy Ribeiro foi aquele que num projeto ambicioso em seus estudos de antropologia da civilização mais contribuiu, nestes dias para precisar o conceito de “processo civilizatório”, fazendo com que a antropologia brasileira obtenha status de categoria mundial, no âmbito simultaneamente da etnologia & história intervindo na elucidação dos grandes problemas da evolução das sociedades humanas. 
Em sua trajetória intelectual transita à vontade tanto pelos “caminhos ocidentais” como pelas veredas do mundo tribal amazônico, onde soma uma experiência e vivência de campo junto a tribos indígenas, que atravessam o difícil caminho do contato e ajustamento com as “frentes de expansão nacional”, em seu processo de avanço e conquista de territórios tribais ou pelos corredores de mais de dois “palácios de governo”. Darcy Ribeiro como antropólogo fora uma “pessoa”, o que deriva de per-sonare, uma voz que “soa através” de uma máscara pública. Irreversível esse caminho tribal e ipso facto acelerado pela abertura de novas estradas como vias de comunicação, como a Transamazônica, a Santarém-Cuiabá, a Perimetral Norte, que atingiram tribos, que até pouco tempo ocupavam os últimos territórios de refúgio, como consta na etnografia em Uirá sai à Procura de Deus - Ensaios de Etnologia e Indigenismo (Ribeiro: 1974), outras no período recente. Seu compromisso é vital, não setorial; produz-se na cátedra, na prolongada e boa convivência com os índios, na criação de universidades, dentro e fora do Brasil, como ministro da Educação ou como chefe da Casa Civil, como preso político, nas peregrinações do exílio, finalmente como romancista, com “Maíra” (Ribeiro, 1975).
No dia 20 de janeiro de 1958, o antropólogo Darcy Ribeiro pronunciou emocionado discurso, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, diante do corpo do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon com as seguintes palavras. O primeiro princípio de Rondon, “morrer, se preciso for, matar nunca”, foi formulado no começo deste século quando, devassando os sertões impenetrados de Mato Grosso ia de encontro às tribos mais aguerridas, com palavras e gestos de paz, negando-se a revidar seus ataques, por entender que ele e sua tropa eram os invasores e, como tal, se fariam criminosos se de sua ação resultasse a morte de um índio. O segundo princípio é o do respeito às tribos indígenas como povos independentes que, apesar de sua rusticidade e por motivo dela mesma, têm o direito de serem eles próprios, de viver suas vidas. O terceiro princípio de Rondon é o do garantir aos índios a posse das terras que habitam e são necessárias à sua sobrevivência. O quarto princípio de Rondon é assegurar aos índios a proteção direta do Estado, não como um ato de caridade ou de favor, mas como um direito que lhes assiste por sua incapacidade de competir com a sociedade dotada de tecnologia infinitamente superior que se instalou sobre seu território.     
Em verdade, um fragmento importante nas páginas da vida latino-americana narradas da década de 1950 até os dias de hoje, pode se documentar seguindo-se o rastro aberto na pena da Antropologia das Civilizações de Darcy Ribeiro.  Traçou o plano de uma obra que incluiu, entre outros aspectos, a chamada “revolução humana”; as experiências junto às “formações pré-agrícolas”; um estudo sobre a “revolução agrícola” e sobre as “aldeias agrícolas indiferenciadas”; as “sociedades pastoris”; a “revolução urbana” e os “Estados rurais artesanais” e principalmente, para ermos breves, o lugar da “revolução do regadio” e os “Impérios teocráticos de regadio”, assim como a “revolução metalúrgica” e os “Impérios mercantil-escravistas” que têm como consequência, grosso modo, a “revolução mercantil”. Metodologicamente examina os efeitos diferenciais das diversas fronteiras de expansão econômica perante os grupos que classifica segundo a intensidade de sua relação com a sociedade nacional. Este modelo de análise do ponto de vista técnico-metodológico será desenvolvido anos depois pelos projetos de investigação e pesquisa mais avançados da antropologia.
        Por volta de 1957 - assinala Darcy Ribeiro - “haviam sido extintos só no Brasil, 87 grupos [indígenas], dos 230 registrados em 1900”. Impávido, admite, o processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever “um livro tão ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema”. Além disso, na medida em que, comparativamente, teve acesso a obras que em sua maioria estavam sendo publicadas quase que imediatamente “sobre o estudo das revoluções tecnológicas e na fixação dos modelos teóricos das formações socioculturais”.  Contou também com suas próprias experiências concretas como antropólogo junto a grupos indígenas como os Guajá e os Xokléng, os índios Kadiuéu (1950) e a Arte Plumária dos Índios Kaapor (1957) e, da mesma forma, sobre os índios Urubus-Kaapor (1957b) e as tribos do Xingu, entre outras pesquisas originalmente realizadas sobre os índios no Brasil.
 
Mesmo o livro de Stanley J. Stein e Barbara H. Stein, The Colonial Heritage of Latin America, (Oxford University Press, 1970) publicado dois anos depois do clássico Processo Civilizatório (1968) onde inclui fontes bibliográficas importantes sobre a Península Ibérica (1580-1800), sobre as colônias ibero-americanas com a projeção da América Latina em sua fase neocolonial no século XIX, desconhece o “Diagrama do Processo Civilizatório. Principais Focos de Irradiação, suas Interpenetrações e Projeções sobre os Povos contemporâneos” (Ribeiro, 1968:53), considerando a importância do estudo de Darcy Ribeiro sobre antropologia das civilizações. Repetem algumas de suas fontes e referências bibliográficas.    
Darcy Ribeiro (1968) compreendeu que alguns processos civilizatórios brotaram de gestação autóctone, cumpridas passo a passo, como parece ter ocorrido analogamente na Mesopotâmia e nas Américas. Outros podem ter surgido da fecundação de um velho contexto cultural originalmente desenvolvida em diferentes lugares. Mas o fundamental é que todos se configuram como formações socioculturais “tão radicalmente diferenciadas das anteriores e das posteriores” que só podem ser compreendidas “como uma nova etapa da evolução humana ou como fruto amadurecido de uma nova revolução tecnológica, a do regadio”. Isto o levou em “busca de explicações terra-a-terra” (sic) para reconstituir a formação dos povos americanos, com uma profunda reflexão teórica e metodológica para explicar as causas do seu desenvolvimento. - “Salto, assim, da escala de 10 mil anos de história geral para os quinhentos anos da história americana com um novo livro: As Américas e a Civilização”, ou seja, com a referência ao diagrama do processo civilizatório. A abordagem consistiu na metodologia própria e original que permitiu reunir os povos americanos em três categorias gerais explicativas do seu modo de ser e elucidativas de suas perspectivas de desenvolvimento.
         Essa nova tipologia “possibilitou superar o nível de análise meramente histórico, incapaz de generalizações, e focalizar cada povo de forma mais ampla e compreensível do que seria praticável com as categorias antropológicas e sociológicas habituais”. Darcy Ribeiro observa ainda que a análise de cada situação concreta exigisse dos clássicos do marxismo a elaboração de diferentes tipologias que, retratando para cada momento histórico as configurações discerníveis da estratificação social, permitisse diagnosticar as oposições e complementaridades de interesses que nela se apresentavam. O que estes e outros esquemas marxistas têm de comum é a noção de componentes contrapostos dentro das classes dominantes e classes subordinadas bem como a divisão de umas e outras em diversos segmentos; e a existência de uma classe oprimida, cuja libertação pressupõe uma revolução social. Em qualquer caso trazem implícita a necessidade, metodologicamente falando, de “um estudo fatual das estratificações de classe que se cristalizam historicamente em cada situação concreta”. A tipologia utilizada por Darcy Ribeiro foi elaborada, como ele dizia, “com esse espírito”.                       

CIEPs criados por Darcy Ribeiro.
O que nos faz depreender em sua etnologia o seguinte: - Em lugar de transpor à América Latina esquemas desenvolvidos pela análise de distintas situações históricas, procuramos elaborar uma tipologia fundada na observação da realidade presente e na análise da formação das classes da América Latina, a partir da estratificação social registrada nas metrópoles ibéricas e do estudo de suas transformações posteriores. Nossa tipologia aqui apresentada de forma sumária nada mais é, na verdade, do que um esquema de posições correntes, e também mais fiel ao verdadeiro significado da teoria marxista de classes sociais. Esta tipologia é de caráter étnico-nacional e enquanto povos extra-europeus do mundo moderno podem ser classificados em quatro grandes configurações, sendo que cada uma delas engloba populações muito diferenciadas, mas também suficientemente homogêneas quanto às suas características básicas e quanto aos problemas de desenvolvimento com que se defrontam, para serem legitimamente tratadas como categorias distintas. Tais são os “Povos-Testemunho”, os meso-americanos que integram o México Asteca-Náhuatl os “Povos-Novos”, os brasileiros, os grã-colombianos, os antilhanos, os chilenos; os “Povos-Transplantados”, os anglo-americanos, os rio-platenses, e os “Povos-Emergentes”, africanos e asiáticos.                       
Os primeiros etnograficamente são constituídos pelos representantes modernos das velhas civilizações autônomas sob as quais se abateu a expansão europeia. O segundo bloco é representado pelos povos americanos plasmados nos últimos séculos como um subproduto da expansão europeia pela fusão e aculturação de matrizes indígenas, negras e europeias. O terceiro é integrado pelas nações constituídas pela implantação de populações europeias no ultramar com a preservação do perfil étnico, da língua e da cultura originais. Finalmente, os últimos, representam as nações novas da África e da Ásia cujas populações ascendem de um nível tribal, onde a constatação poética ou, mais tarde, psicológica da pluralidade da pessoa (“eu é um outro”), pode ser interpretada, de um ponto de vista antropológico como expressão de um continuun intangível, ou da constatação da condição de meras “feitorias coloniais” para a de “etnias nacionais”. A Antropologia reconhece o valor no fato de pertencermos ao grupo.
A primeira destas configurações designada como “Povos-Testemunho” é integrada pelos sobreviventes de altas civilizações autônomas que sofreram o impacto da expansão europeia. São resultantes da ação violenta e traumatizadora daquela expansão e dos seus esforços de reconstituição étnica como sociedades nacionais modernas. Reintegradas em sua independência, não voltam a ser o que eram antes, porque se haviam transfigurado profundamente. Mais do que povos considerados atrasados na história, eles são os povos espoliados da história. Contando originalmente com enormes riquezas acumuladas, que poderiam ser agora utilizadas, para custear sua integração nos sistemas industriais de produção, as viram saqueadas pelo europeu. Séculos de subjugação ou de dominação direta ou indireta impuseram-lhes profundas deformações que não só depauperaram seus povos como também traumatizaram toda a sua vida cultural. Como problema básico, enfrenta a integração dentro de si mesmo das duas tradições culturais de que se fizeram herdeiros, não apenas diversas, mas, em muitos aspectos, contrapostas.  Atraídos ainda simultaneamente pelas duas tradições, mas incapazes de fundi-las numa síntese cultural e política significativa para toda a população, conduzem dentro de si o conflito do processo civilizatório imanente entre a cultura original e a civilização europeia.
Neste bloco, encontram-se a Índia, a China, o Japão, a então Coréia unificada, a Indochina, os países islâmicos e alguns outros. Nas Américas, são representados pelo México, pela Guatemala, bem como pelos povos do Altiplano Andino, sobreviventes das populações Asteca e Maia, os primeiros, e da civilização Incaica, os últimos. Dentre estes povos apenas o Japão e, mais recentemente a China conseguiram incorporar às respectivas economias a tecnologia industrial moderna e reestruturar suas próprias sociedades em novas bases. Os dois núcleos de povos das Américas, como povos conquistados e subjugados, sofreram um processo de compulsão europeizadora muito mais violento do que resultou sua complexa transfiguração étnica. Seus perfis étnicos nacionais conformam perfis neo-hispânicos metidos nos descendentes da antiga sociedade, mestiçados com europeus e negros. Enquanto que os demais povos extra-europeus apenas coloriram sua figura étnico-cultural original com influências européias, nas Américas, “a etnia neo-européia é que se tinge com as cores das antigas tradições culturais, tirando delas características que as singularizam”(Ribeiro, 1983: 91).
A segunda configuração, os “Povos-Novos” constituíram-se pela confluência de contingentes díspares em suas características raciais, culturais e linguísticas. Reunindo negros, brancos e índios para abrir grandes plantações de produtos tropicais ou para a exploração mineira, visando tão-somente atender aos mercados europeus e gerar lucros, as nações colonizadoras acabaram por plasmar povos profundamente diferenciados de si mesmas e de todas as outras matrizes formadoras. Estes contingentes básicos, embora exercendo papéis distintos, entraram a mesclar-se e a fundir-se culturalmente com maior intensidade do que em qualquer outro tipo de conjunção. Assim, ao lado do branco, “chamado a exercer os papéis de chefia na empresa”, por força das condições de dominação impostas aos demais; do negro, nela “engajado como escravo”; do índio, “também escravizado ou tratado como mero obstáculo a erradicar”, foi surgindo uma população mestiça que fundia aquelas matrizes nas mais variadas proporções.  

             

Os “Povos-Novos” surgem hierarquizados, como os “Povos-Testemunho”, pela distância social que separa a sua camada senhorial de fazendeiros, mineradores, comerciantes, funcionários coloniais e clérigos da massa escrava engajada na produção. Constituíam-se de rudes empresários, senhores de suas terras e de seus escravos, forçados a viver junto a seu negócio e a dirigi-lo pessoalmente com a ajuda de uma pequena camada intermédia, de técnicos, capatazes e sacerdotes. Onde a empresa prosperou muito, como nas zonas açucareiras e mineradoras do Brasil e das Antilhas, puderam dar-se ao luxo de residências senhoriais e tiveram de alargar a camada intermédia, tanto dos engenhos como das vilas costeiras, incumbidas do comércio exterior. Vale lembrar que nenhum dos povos deste bloco constitui uma nacionalidade multiétnica. Em todos os casos, seu processo de formação foi suficientemente violento para compelir a fusão das matrizes originais em novas unidades homogêneas. Somente o Chile, por sua formação peculiar, guarda no contingente Araucano, uma micro-etnia diferenciada da nacional, historicamente reivindicante do direito de ser ela própria, ao menos como modo diferenciado de participação na sociedade nacional.
Os chilenos e os paraguaios contrastam também com os outros Povos-Novos pela ascendência principalmente indígena de sua população e pela ausência do contingente negro escravo, bem como do sistema de plantation, que tiveram papel tão saliente na formação dos brasileiros, dos antilhanos, dos colombianos e dos venezuelanos. Ambos conformam, por isto, juntamente com a matriz étnica original dos rio-platenses, uma variante dos “Povos-Novos”. A composição predominantemente “índio-espanhola” dos Povos-Testemunho se diferencia dessa variante porque suas populações indígenas originais não haviam alcançado um nível de desenvolvimento cultural equiparável ao dos mexicanos ou dos Incas. É o resultado da seleção de qualidades raciais e culturais das matrizes formadoras, que melhor se ajustaram às condições que lhes foram impostas. O papel decisivo em sua formação foi representado pela escravidão que, operando como força distribalizadora, desgarrava as novas criaturas das tradições ancestrais. São produto tanto da deculturação redutora de seus patrimônios tribais indígenas e africanos, quanto da aculturação seletiva desses patrimônios e da própria criatividade face ao novo meio de reprodução da vida.
A terceira configuração histórico-cultural é representada pelos chamados “Povos-Transplantados”, correspondentes às nações modernas criadas pela migração de populações européias para novos espaços mundiais, onde procuram reconstituir formas de vida essencialmente idênticas às de origem. Cada um deles estruturou-se segundo modelos de vida econômica e social da nação de que provinha, levando adiante, nas terras adotivas, processos de renovação que já operavam nos velhos contextos europeus. Suas características referem-se à homogeneidade cultural que mantiveram pela origem comum de sua população, ou que plasmaram pela assimilação dos novos contingentes. A maioria destes contingentes veio ter à América como trabalhadores rurais aliciados mediante contr@tos, que os submetiam a anos de trabalho servil, embora em sua grande parte tenha conseguido, mais tarde, ingressar na categoria de granjeiros livres e de artesãos também independentes. Integram o bloco de “Povos-Transplantados” a Austrália e a Nova Zelândia, formadores dos bolsões neo-europeus de Israel, da União Sul-Africana e da devastada Rodésia.

Nas Américas são representados pelos Estados Unidos, pelo Canadá e também pelo Uruguai e a Argentina. Nos primeiros casos tais povos nascem de projetos de colonização implantados sobre territórios, cujas populações tribais foram dizimadas ou confinadas em reservations para que uma nova sociedade neles se instalasse. No caso dos países rio-platenses, encontramos a resultante de um empreendimento peculiaríssimo de uma “elite crioula” – inteiramente alienada e hostil à sua própria etnia de Povo-Novo – que adota como projeto nacional a substituição de seu próprio povo por europeus brancos e morenos, concebidos como gente com mais peremptória vocação para o progresso. A Argentina e o Uruguai resultam, de um processo de sucessão ecológica deliberadamente desencadeada pelas oligarquias nacionais, através do qual uma configuração de Povo-Novo se transforma em Povo-Transplantado. Neste processo, a população ladina e a gaúcha, originária da boa mestiçagem dos povoadores ibéricos com o indígena, foi tragicamente esmagada e substituída, como contingente básico da nação, por um alude de imigrantes europeus em busca de terra e trabalho. 
O quarto bloco de povos extra-europeus do mundo moderno é constituído pelos “Povos-Emergentes”. São integrados pelas populações africanas que ascendem no processo civilizatório da condição tribal à nacional. Na Ásia encontram-se também alguns casos de “Povos-Emergentes” que transitam da condição tribal à nacional. Esta categoria não surgiu na América, apesar do avultado número de populações tribais que, ao tempo da conquista, contavam com centenas de milhares e com mais de um milhão de habitantes. Este fator, tanto de deculturação como de aculturação, mais do que qualquer outro, exprime a violência da dominação, primeiro europeia que se prolongou por quase quatro séculos, depois nacional, a que estiveram submetidos os povos tribais americanos. Dizimados prontamente alguns deles, outros mais lentamente, somente sobreviveram uns poucos que foram anulados como etnias e como base de novas nacionalidades, enquanto seus equivalentes africanos e asiáticos, apesar da violência do impacto que sofreram, ascendem hoje para a vida nacional. A consciência étnica percorre todo o mundo. Nunca as chamadas “minorias nacionais”, foram tão combativas como hic et nunc. Isto se pode constatar pela luta dos povos Bascos, Catalães, Galegos, Bretões, Flamengos e de outras nacionalidades fanaticamente apegadas a tudo que afirme seu caráter de etnias autônomas imersas em entidades multiétnicas.
Bibliografia geral consultada.

RIBEIRO, Darcy, O Processo Civilizatório. Etapas da Evolução Sociocultural. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968; Idem, Os Índios e a Civilização. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970; STAVENHAGEN, Rodolfo, “Siete Tesis Equivocadas sobre a América Latina”. Disponível em: Desarrollo Indoamericano, 1 (1966); STEIN, Stanley, The Colonial Heritage of Latin America. Essays on Economic Dependence in Perspective. Oxford University Press, 1970; MARIÁTEGUI, José Carlos, Defensa del Marxismo. 6ª edicíon. Lima: Biblioteca Amauta, 1974; MASCARO, Alysson Leandro Barbate, “O sentido jurídico brasileiro - Reflexões para uma teoria política e jurídica a partir de O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro”. In: Revista da Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, vol. 95, pp. 405-414, 2000; SABATO, Ernesto, España en los Diarios de mi Vejez. Barcelona: Editorial Seix Barral, 2004; MATTOS, Andre Luis Lopes Borges de, Darcy Ribeiro: Uma Trajetória (1944-1982).  Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.  Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007; SOARES, Antonio Aroldo Lins, Avaliação Institucional: O Caso da Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2010; BOMENY, Helena, Darcy Ribeiro: A Sociologia de um Indisciplinado. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2001; Idem, “Em boa Companhia. Relações com Anísio Teixeira e Leonel Brizola fizeram de Darcy Ribeiro um dos Expoentes das Reformas Educacionais no País”. Disponível em: Revista de História. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. 10, p. 3639; 2015; DORIGÃO, Antonio Marcos, Darcy Ribeiro e a Reforma da Universidade: Autonomia, Intencionalidade e Desenvolvimento. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual de Maringá. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2015; MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia, “Darcy Ribeiro e UnB: Intelectuais, Projeto e Missão”. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 96, pp. 585-608, jul./set 2017; BRITO, Carolina Arouca Gomes de, Antropologia de um Jovem Disciplinado: A trajetória de Darcy Ribeiro no Serviço de Proteção aos Índios (1947-1956). Tese Doutorado em História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz. Fundação Oswaldo Cruz, 2017; entre outros.   

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