sábado, 25 de novembro de 2017

Nietzsche & Köselitz - A Formação Real & Integridade da Amizade.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

                                  “Só o que se transforma continua meu amigo”. Friedrich Nietzsche

                       
            A expressão nietzschiana vontade de poder significa, consequentemente: vontade, tal como comumente se compreende. Mas mesmo nessa explicação reside ainda uma incompreensão possível. A expressão “vontade de poder” não diz, em sintonia com a opinião habitual, nas relações sociais em que desenvolve que a expressão é, em verdade, um tipo de desejo, que apenas possui, ao invés da felicidade e do prazer, “o poder como meta”. Sem dúvida alguma, Friedrich Nietzsche mesmo fala em muitas passagens dessa forma, a fim de se fazer provisoriamente compreensível. No entanto, na medida em que estabelece o poder como meta para a vontade, ao invés da felicidade, do prazer ou da supressão da vontade, ele não altera apenas a meta da vontade, mas a determinação essencial da própria vontade como meio de luta. Tomado estritamente no sentido do conceito nietzschiano da vontade, o poder nunca pode ser pressuposto previamente como meta para a vontade, como se o poder fosse algo que pudesse ser estabelecido inicialmente como estando fora da vontade. É neste sentido que se pode afirmar, sem temor à erro, que a vontade é decisão por si mesma de um assenhoramento que se estende para além de si; porquanto a vontade é querer para além de si, a vontade é potencialidade que se potencializa para o poder.   
            Somente quando se tiver apreendido o conceito nietzschiano de vontade segundo esses aspectos gerais, será possível compreender aquelas caracterizações com as quais Nietzsche procura frequentemente indicar o que está presente na simples palavra vontade. Portanto, o termo “poder” nunca visa a um complemento da vontade, mas significa uma elucidação da essência da própria vontade. Ele denomina a vontade e com isso a vontade de poder – um “afeto”; ele diz até mesmo: - Minha teoria seria a seguinte: - a vontade de poder é a forma primitiva de afeto, todos os outros afetos não passam de configurações suas. Nietzsche também denomina a vontade uma “paixão” ou um “sentimento”. Se se compreendem tais descrições como geralmente acontece, ou seja, a partir do campo de visão de nossa psicologia habitual, então se cai facilmente na tentação de dizer que Nietzsche transpõe a essência da vontade para o interior do “elemento emocional”, arrancando-a das más interpretações racionais que foram levadas a termo pelo meio do idealismo, pois para ele, os afetos são formas de vontade; a vontade é afeto. Denomina-se tal procedimento uma definição circular, própria em seu encadeamento. Nietzsche diz com boa razão que a vontade de poder é a forma originária de afeto. Não diz com isto simplesmente que ela é um afeto, apesar de frequentemente encontramos essas formulações em suas apresentações superficiais e defensivas. 



            O poder só se potencializa na medida em que se torna senhor sobre o nível de poder a cada vez alcançado. O poder, então, só é e só permanece sendo poder enquanto permanece elevação do poder e comanda para si o mais no poder. A essência do poder pertence à superpotencialização de si mesmo que emerge do próprio poder, na medida em que é comando e, enquanto comando, apodera-se de si mesmo para a superpotencialização do respectivo nível de poder que se potencializa. O poder está constantemente a caminho “de si” mesmo, não apenas de um próximo nível de poder, mas do apoderamento de sua própria essência. Por isso, ao contrário do que se pensa, a contra-essência em relação à vontade de poder não é a “posse” de poder alcançada em contraposição à mera “aspiração por poder”, mas a “impotência para o poder”. Nesse caso, vontade de poder não significa outra coisa senão “poder para o poder”, o que significa antes: apoderamento para a superpotencialização. Melhor dizendo, da subjetividade incondicionada da vontade de poder/eterno retorno e da composição técnica. Somente o poder para o poder assim compreendido toca a essência plena do poder. Nessa essência do saber e do poder, a essência da vontade enquanto permanece vinculada como comando.
            A paixão assim compreendida lança novamente uma luz sobre o que Nietzsche denomina vontade de poder. A vontade é de-cisão na qual o que quer se expõe de maneira mais ampla ao ente, a fim de mantê-lo na esfera de seu comportamento. Não o acontecimento e a excitação são agora característicos, mas expansão clarividente do campo de vinculação que é ao mesmo tempo uma reunião da essência que se encontra na paixão. O afeto representa o acontecimento que nos agita cegamente. A paixão representa a expansão clarividente e reunidora do campo de vinculação ao ente. Como a paixão restaura nosso ser, nos libera e nos deixa soltos para os seus fundamentos; como a paixão é, ao mesmo tempo, a expansão do campo de vinculação até a amplitude do ente, por isso pertence à paixão – e o que se tem em vista aqui é a compreensão explicativa da grande paixão que pode ser dispendiosa e engenhosa. Não lhe pertence apenas a “capacidade de potência”, mas mesmo a necessidade de retribuir, e, ao mesmo tempo, aquela despreocupação quanto ao que acontece com o dispêndio com o dispêndio, aquela superioridade que repousa em si mesmo e que caracteriza as grandes vontades. Paixão não tem nada a ver com um mero desejo, não é coisa apenas estimulada dos nervos, da exaltação ou do excesso. Se entendermos que é verdade em Nietzsche que a vontade de poder é o caráter fundamental de todo ente e se determina agora a vontade como um sentimento paralelo  e compatível ao de prazer, as duas concepções não são sem mais compatíveis.   
O mundo para Friedrich Nietzsche não é ordem e racionalidade, mas desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e, por isso, se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade “sem máscaras”, para Nietzsche, é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante. Nietzsche era um crítico: a) das “ideias modernas”, b) da vida social e da cultura moderna, c) do neonacionalismo alemão, e, para sermos breves, d) Para ele, os ideais modernos como democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência de determinado “tipo homem”. Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da concepção de pós-modernidade. A figura de Nietzsche foi particularmente idealizada na Alemanha Nazi, num processo político em que  opta, mas não decide, tendo sua irmã, simpatizante do regime, fomentado esta associação. Como dizia Martin Heidegger, ele próprio um raro nietzschiano, “na Alemanha se era contra ou a favor de Nietzsche”. que em toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, concluindo de que “nascera póstumo”, para os leitores do porvir. 

Em que medida a vontade de poder é a forma originária de afeto, ou seja, em que medida ela é aquilo que constitui absolutamente o ser do afeto? Nietzsche não dá quanto a isso, segundo Heidegger, nenhuma resposta clara e exata, assim como não responde sobre o que é uma paixão e o que é um sentimento. Nem a resposta dada por ele nos leva imediatamente adiante, mas nos coloca diante de uma tarefa: procurar vislumbrar pela primeira vez a partir do que é conhecido como afeto, paixão e sentimento, aquilo que caracteriza a essência da vontade de poder. Por meio daí resultam determinados caracteres que são apropriados para tornar mais clara e mais rica a delimitação do conceito essencial de vontade até aqui. Nós mesmos precisamos levar a cabo esse trabalho. No entanto, as perguntas (o que é afeto, paixão e sentimento?), permanecem sem solução. Com essas três noções, que podem ser indiscriminadamente substituídas umas pelas outras, circunscreve-se o assim chamado lado não racional da vida psíquica. Tal asserção pode ser suficiente para a representação habitual, mas não é certamente suficiente para um saber verdadeiro, nem tampouco para um saber que está empenhado em determinar o ser do ente. Nietzsche está visivelmente pensando nesse momento essencial do afeto aquando pretende buscar caracterizar a vontade a partir daí.
Agora a concepção de Nietzsche contamina a reflexão crítica na filosofia e inevitavelmente na chamada 7ª Arte. O trágico  será afirmativo e não reativo. O reativo, dialético, é simplesmente conservação de força frente ao inesperado. Que precisa do controle e da submissão daquele que é atingido pelo inusitado. O trágico afirma-se na consciência plena do acaso como constituinte da própria realidade e o “cosmiza” ativamente e não reativamente. O trágico não só afirma a necessidade a partir do acaso, como afirma o próprio acaso. Não só afirma a ordem a partir da desordem, como afirma a própria desordem. Não só afirma o cosmos a partir do caos, como afirma o próprio caos. Reitera, sobretudo, o próprio devir. Essa é a grande inversão que potencializa a vontade de Nietzsche. Que tira do pensamento qualquer pressuposição de sentido e valor, para construí-los no “jogo de forças” visando expansão de potência. A tese de Nietzsche em relação ao pensamento ocidental pressupõe que o sentido e valor já uma é Der Wille zur Macht, se afirmando como força e moldando os agentes a reagirem contra aquilo que constitui a realidade: a falta de valor em si e de sentido próprio.            
Nos últimos anos de sua atividade intelectual criadora, Nietzsche gostava de caracterizar seu modo de pensar como “filosofar com o martelo”. Na sua própria opinião esse termo é plurívoco: o que menos lhe cabe é o significado de despedaçar  grosseiramente como um pedreiro com o martelo de demolir. Ele significa muito mais: arrancar o conteúdo e a essência, arrancar a figura da pedra; ele significa, antes de tudo: auscultar e ouvir todas as coisas como o martelo, para ver se elas dão ou não aquele conhecido som oco - perguntar se ainda há alguma gravidade e algum peso nas coisas ou se todos os fiéis da balança foram apagados das coisas. É para essa direção do entendimento que se encaminha a vontade nietzschiana de pensar: dar uma vez mais um peso às coisas. O que em Nietzsche é uma necessidade, é, por isso mesmo, um direito, nunca vale para os outros; pois Nietzsche é quem ele é, e ele é único. Entretanto, essa unicidade ganha em determinação e só se torna frutífera se for vista no interior do movimento fundamental constituído de pensar através da herança de matriz ocidental.
    Nietzsche:  new book to Heinrich Köselitz.
Peter Gast, pseudônimo de Johann Heinrich Köselitz (cf. Oliveira, 2011; Peterlevitz, 2015; Astor, 2017) foi um compositor alemão, mais conhecido por ter sido, durante muitos anos, amigo de Friedrich Nietzsche, que lhe deu o pseudônimo Peter Gast. É preciso desde já atentar para algumas problemáticas levantadas pela análise de Wagner e seu recurso à noção de “melodia absoluta”. Essa questão é tão velha quanto a invenção da monodia acompanhada da qual surgirá a ópera no início do século XVII, em torno das atividades teóricas e práticas da Carmerata Fiorentina. Houve um intenso embate entre os que visavam tomar como princípio a máxima “prima le parole, e poi la musica” e os que defendiam a proposição contrária. Ao curso de uma década de reflexões sobre a ópera, Nietzsche e Gast perceberam a transformação das querelas nacionais e estilísticas do século XVIII em oposições metafísicas como sintoma de uma superinvestida idealista, niilista e reativa do problema filosófico. Este século cantou derradeiramente, representando o século do entusiasmo, dos ideais e sentimentos partidos e da felicidade fugaz, pois até basicamente o fim do século a música possuía uma função social mais prática que estética e artística.                              
Em Basileia, desenvolveu-se a amizade entre Köselitz e Nietzsche. Na literatura nas ciências sociais sobre o tema, a amizade é vista em geral como uma relação afetiva e voluntária, que envolve práticas de sociabilidade, trocas íntimas e ajuda mútua, e necessita de algum grau de equivalência ou igualdade entre amigos. Nessa discussão, a amizade é alocada estritamente no domínio privado da vida social. Ipso facto alguns estudos mais recentes demonstram como os significados da amizade em contextos históricos distintos, mas em análise comparada, vão realçar esses termos, que, por sua vez, se demonstram entrelaçados, socialmente, com uma forma especificamente ocidental e moderna de pensar a pessoa e sua relação com os outros, problematizando, sobretudo sua localização na esfera privada. Subjacente a essa regra de interpretação estava a ideia de que a espontaneidade e a falta de autocontrole, poderiam ser vistas como uma imposição em termos de tempo e espaço pessoal. Em relações nas quais não havia confiança na aceitação desse tipo de comportamento social.
Johann Köselitz colaborou na preparação de todos os trabalhos de Nietzsche depois de 1876, revendo os manuscritos para enviá-los à tipografia, e, por vezes, também interferindo na formatação do texto final. O rompimento de Friedrich Nietzsche com Richard Wagner e a sua procura por uma estética do sul, que o imunizasse contra o melancólico norte alemão, fizeram-no superestimar Köselitz como músico: -“Eu não sei como poderia passar sem Rossini; muito menos, sem o meu próprio sul na música, a música do meu maestro veneziano 'Pietro Gasti'”. Como secretário, Köselitz foi de uma dedicação absoluta; a propósito de seu ensaio: “Humano, Demasiadamente Humano”, Nietzsche dizia que Peter Gast o escrevera e corrigira: “fundamentalmente, foi ele o verdadeiro escritor, enquanto eu fui apenas o autor”. Köselitz adorava seu professor, envolvendo-se com ele ao ponto da autonegação. Gast teria corrigido seus escritos, mesmo após o reconhecido “colapso do filósofo” vítima de um distúrbio, provavelmente causado pela sífilis, em seus últimos anos de vida e cuja evolução pode ser percebida em suas obras e sem a sua aprovação - o que é duramente criticado, com razão, pelos inúmeros estudiosos.
A evolução da doença se divide esquematicamente em três fases: na primeira a infecção fica restrita aos órgãos genitais; na segunda, alastra-se pelo organismo; na terceira causa paralisia progressiva, apresentando sinais de demência. Nietzsche adoeceu em 1873, mas só se afastou da atividade docente na Universidade da Basiléia em 1879 − quando sua voz era quase inaudível para os alunos. Os sintomas da demência só se tornaram perceptíveis dez anos depois, mas os primeiros sinais de deterioração intelectual já aparecem nos manuscritos de 1887. O que se observa, a partir de A Gênese da Moral, é a passagem do pensador que escreve com força e determinação, de forma densa e ao mesmo tempo sintética, para outro atípico parecendo incapaz de afrontamentos habituais, que se perde entre notas e apontamentos publicados postumamente e cuja organização lógica, com razão, ainda é alvo de críticas. Nessa mesma época, o filósofo alemão redige quatro panfletos pouco concisos, contraditórios e difusos, que parecem manuscritos sob alguma forma de pressão, e com a irradiação social de seus prediletos leitores já esperavam encontrar em volumes de filosofia. 

Na Primavera de 1881, durante uma visita a Recoaro, comuna italiana da região do Vêneto, província de Vicenza, Nietzsche criou o pseudônimo de Peter Gast para Köselitz, que “assim passou a assinar suas composições musicais”. Dentre essas, a mais ambiciosa foi a ópera cômica em três atos “O leão de Veneza” (“Der Lowe von Veneza”). Em 1880, Gast e Nietzsche tentaram por várias vezes encená-la, em vão. A estreia ocorreu apenas em fevereiro de 1891, em Gdansk, com a direção de Carl Fuchs, mas sob o título original “Die Ehe heimliche” (“O casamento secreto”). Tardiamente em 1930, foi reintroduzido o título sugerido por Nietzsche. Mas quando Nietzsche retorna a Gioachino  Rossini, dez anos mais tarde, para evocá-lo em “Opiniões e Sentenças dDversas”, ele ainda não conhece o compositor pessoalmente. É somente em 1881 que Nietzsche afirma ter assistido, sem dúvida pela primeira vez a ópera de Gioachino Rossini, intitulada: Semiramide. Trata-se de uma breve menção em um cartão postal endereçado a Peter Gast, pseudônimo inventado de Heinrich Köselitz, enviado de Gênova: - “Eu estive - e digo isso com muita seriedade, por culpa sua - no teatro, onde eu assisti a Semiramide de Rossini e “Giulietta e Romeo” de Bellini (esta quatro vezes)”.
É, portanto, por conta dos conselhos de Peter Gast que Nietzsche, que provavelmente não tomaria a iniciativa por si própria, vai escutar esses compositores. Nietzsche preferiu assistir a quatro representações sucessivas de Bellini, uma música mais elegíaca, marcada, portanto pelo sofrimento, se comparada aos fastos solenes de Semiramide, última obra de Rossini para a Itália, na qual brilhava o último fogo do gênero, agora apagado, da ópera considerada séria. Mas, é ainda por estímulo de Gast que Nietzsche, entre 1881 e 1888, aprenderá a conhecer a obra lírica de Gioachino Rossini. Não queremos perder de vista sua popularidade no início do século XIX, o compositor erudito italiano Gioachino Rossini escreveu 39 óperas, além de vários trabalhos para música sacra e música de câmara. O músico era célebre pela velocidade com que compunha suas obras. Em poucos dias, o artista criava composições que se tornaram clássicos da música erudita, como “O Barbeiro de Sevilha”, composta em apenas três semanas. Além desta ópera, “Sinfonia Fina” resgata a memória de outras produções importantes e conhecidas da obra de Rossini como “Guilherme Tell” e “La Gazza Ladra”. As composições do músico erudito foram interpretadas pela Orquestra Sinfônica de São José dos Campos em grande estilo. Diferentemente da parcela significativa dos compositores românticos, Gioachino Rossini obteve êxito financeiro e conseguiu ganhar dinheiro com suas composições de música erudita. O autor escrevia óperas profissionalmente de encomenda e trabalhou para companhias europeias em seu tempo. Nesse período, Gioachino Rossini chegou a compor até vinte obras líricas. Era comum atribuir à sua genialidade que havia uma “febre rossiniana” no continente.  



É Nietzsche que, por uma troca de gentilezas, recomenda a Gast a leitura de Vida de Rossini, de Stendhal e envia-lhe um exemplar em 21 de março de 1881. Gast fica entusiasmado: - “Pela extrema alegria que Stendhal me proporcionou, eu devo dizer-te ainda uma palavra repleta de reconhecimento (...). Eu estou impressionado com a acuidade de seu olhar sobre o horizonte histórico no seu livro sobre Rossini” . Alguns dias mais tarde, ele decide até mesmo tomar, a partir de agora, Stendhal como guia, a fim de “dissipar as névoas propagadas há 50 anos por sobre a música”. Quando, confrontado com as dificuldades de concepção de seu Leão de Veneza, ele sonha, em dezembro de 1881, com uma criação futura no Fenice de Veneza, a ideia que o emociona é que tanto Tancredi quanto Sigismondo de Rossini tinham sido criados nesse teatro 70 anos antes. Até 1888, Gast é um dos raros interlocutores de Nietzsche acerca da ópera e o único com o qual Nietzsche, em suas cartas, trata sobre Rossini. Durante um século, e até a tomada de consciência da necessidade de uma arte nacional no final do século XVIII, a Alemanha assistiu a esse conflito franco-italiano como uma espectadora idealizadora ou como uma espécie de epígono no plano dessa disputa.
O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra: “Così Parlò Zarathustra” (cf. Nietzsche, 1968) e, então, tratou de difundi- la, em 1888. Em 3 de janeiro de 1889, como vimos, Nietzsche sofreu um colapso mental. Teria testemunhado “o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto”. Então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão. Nos dias seguintes, Nietzsche enviou escrito breve conhecido como: “Wahnbriefe” em português: “Cartas da loucura” – para um número de amigos, entre eles, Cosima Wagner, filha do pianista húngaro Franz Liszt com a Condessa Marie d`Agout e Jacob Burckhardt, filósofo da história e da cultura suíça, autor de obras sobre a cultura e história da arte. Muitas destas cartas foram curiosamente assinadas “Dionísio”. Embora a maioria dos analistas considere “seu colapso como alheios à sua filosofia”, Georges Bataille (1967) chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido e a psicanálise “post-mortem”, de René Girard, postula uma “rivalidade de adoração” com Wagner. 
As composições de Wagner, particularmente do fim do período, são notáveis por sua complexidade, harmonias ricas e orquestração, e o elaborado uso de Leitmotiv: temas musicais associados com caráter individual, lugares, ideias ou outros elementos. Inicialmente estabeleceu sua reputação como um compositor de trabalhos como Der fliegende Holländer e Tannhäuser, transformando assim as tradições românticas de Carl Maria von Weber e Giacomo Meyerbeer em um pensamento operístico de seu conceito de Gesamtkunstwerk. Isso permitiu atingir a síntese de todas as artes poéticas, visuais, musicais e dramáticas, sendo anunciada numa série de ensaios entre 1849 e 1852. Entretanto, seus pensamentos sobre a relativa importância da música e o drama mudaram novamente e ele reintroduziu algumas formas tradicionais da ópera em seu último estágio, incluindo Die Meistersinger von Nürnberg. Wagner foi o pioneiro em avanços da linguagem musical e no desenvolvimento da música erudita europeia. Sua ópera Tristan und Isolde é inúmeras vezes descrita como marco de desenvolvimento da música moderna. A influência de Wagner vai além da música.
É também sentida na filosofia, literatura, artes visuais e teatro. Ele teve sua própria casa de ópera, o Bayreuth Festspielhaus. Foi nessa casa que Ring e Parsifal tiveram suas premières mundiais e onde suas obras mais importantes continuam a ser produzidas e irradiadas até hoje, em um festival anual dirigido por seus descendentes. Se quisesse, Richard Wagner em Desdren poderia levar uma vida tranquila e livre de preocupações financeiras, totalmente dedicadas à sua arte. E seria isso que teria acontecido se ele não tivesse se metido em política. Tudo começou quando Wagner tentou introduzir uma série de reformas na orquestra do teatro, cujo principal objetivo era “melhorar o desempenho dos músicos a um nível que lhe satisfizesse”. Os salários eram baixos, e os músicos forçados a trabalhar demais, com prejuízo à saúde e queda no nível de qualidade. Uma das primeiras coisas que Wagner notou no meio artístico e musical foi a discrepância enorme entre os salários irrisórios dos músicos da orquestra e as somas exorbitantes angariadas por certos cantores solistas com muito menos talento musical. Essa degradação do processo de trabalho ele estava disposto a corrigir. Músicos velhos deveriam ser aposentados, e instrumentos velhos substituídos por  novos. O sistema de promoção deveria ser baseado no talento musical, não no tempo de serviço. Ao insistir nas reformas Wagner passou a ser mal visto pelos seus superiores.
Em fevereiro de 1848, no mesmo mês em que Marx & Engels publicaram o Manifesto do Partido Comunista, inscrevendo no plano teórico, histórico e ideológico a importância dos comunistas organizados num partido único, repercutiu na França a revolução que depôs Luís Filipe, o rei burguês. Ele foi declarado rei em 1830 depois de Carlos X ter sido forçado a abdicar. Seu reino, reconhecido como a Monarquia de Julho, foi dominada por ricos burgueses e vários ex-oficiais napoleônicos. Ele seguiu políticas conservadoras a partir de 1840, especialmente sob a influência de François Guizot, promoveu uma amizade com o Reino Unido e apoiou uma expansão colonial, notavelmente a conquista da Argélia. Sua popularidade diminuiu sendo forçado a abdicar em fevereiro de 1848, vivendo o resto da vida em exílio no Reino Unido. Levou vida precária no estrangeiro e, para manter-se, trabalhou como professor num colégio de Reichenau. Quando o pai foi executado (1793), herdou o título de duque de Orléans o que fortaleceu suas aspirações conservantistas dinásticas. Viveu dois anos nos Estados Unidos e no Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte). Durante o período napoleônico (1804-14), conseguiu reconciliar os Orléans com o rei francês exilado Luís XVIII. Em 1809 foi para a Sicília e casou-se com Maria Amélia de Bourbon, princesa das Duas Sicílias, filha do rei Fernando I das Duas Sicílias.
Aos gritos de Liberté, l'Égalité ou la Mort, sublevações vingaram pela Europa contra as monarquias absolutas. Na Itália e na Alemanha os revolucionários tinham por objetivo a unificação destes países. Wagner também ficou entusiasmado pelos ideais revolucionários. De repente, a música passou para segundo plano nas suas preocupações imediatas e a política para o primeiro. No mesmo ano, o militante anarquista russo Mikhail Bakunin se refugiou em Dresden, e com Richard Wagner se uniram em amizade. Somente numa sociedade alemã radicalmente transformada Wagner podia ver a possibilidade de realização de sei idealismo radical que, nessa época eram fortemente anarquistas, posto que ele odiasse a pomposidade e a perversidade da corte de Dresden. Ele sonhava com a criação de uma nova sociedade alemã, na qual o Volk encontraria expressão numa nova cultura alemã universal. Movido por esses ideais, Wagner entrou para o Vaterlandsverein, partido político fundado em março de 1848 para lutar pela  democracia. Wagner, Bakunin e outros revolucionários debatiam a revolução, o republicanismo, o socialismo, o comunismo e anarquismo (cf. Woodcock, 1962).
Sua mãe faleceu em 9 de janeiro de 1848. Em junho, Wagner juntou-se à Guarda Comunal Revolucionária e publicou dois poemas revolucionários e um artigo. Para William Ashton Ellis, a forte impressão causada em Wagner teve um contributo em Leipzig: ele pôde acompanhar de perto a revolta da população contra a justiça e a polícia criminais da cidade, com a incidência de tumultos em que houve a destruição da iluminação pública, agressões a policiais e a quebra das janelas de casas de magistrados. O primeiro poema, Gruss aus Sachsen an die Wiener (“Saudações Saxãs aos Vienenses”) parabenizava os austríacos por terem forçado o imperador a fugir e incitava os saxões ao exemplo. O segundo, Die alte Kampf ist's gegen Osten (“A Velha Luta é contra o Leste”) conclamava uma cruzada contra a Rússia reacionária. No artigo intitulado: “Que relação existe entre a empreitada republicana e a monarquia?”, Wagner descreve a utopia que surgiria após a queda da monarquia, com sufrágio universal, um exército do povo, congresso unicameral e economia burguesa.

Nietzsche e Richard Wagner.
A 8 de maio de 1849 Wagner publicou um artigo anônimo no Volksblätter, intitulado “A Revolução”. Era um novo texto de expressão política, “glorificando a deusa Revolução”. Apesar de anônimo, ninguém parecia ter dúvidas a respeito da autoria. A 1° de abril Wagner regeu uma apresentação pública da Nona Sinfonia de Beethoven (Sinfonia n° 9 em ré menor, op. 125, Coral), predecessora da música romântica, e reconhecidamente uma das grandes obras-primas de Beethoven. No final da apresentação o revolucionário anarquista russo Mikhail Bakunin (cf. Woodcock, 1962) se levantou do meio da plateia, e de forma inusitada apertou a mão de Wagner e disse bem alto para que todos ouvissem que, se toda música que já foi escrita fosse se perder na conflagração mundial que estava para acontecer, “esta sinfonia pelo menos teria que ser salva”. A 3 de maio de 1849 o rei da Saxônia recusou as exigências dos democratas e ordenou à Guarda Comunal se dissolvesse. Na reunião exaltada daquela tarde, os membros do Vaterladsverein decidiram oferecer resistência armada às autoridades, que contou com a participação de Wagner.
Ele correu à casa do tenor Tichatschek e persuadiu a aturdida esposa do tenor a entregar as armas que seu marido guardava em casa; a seguir foi inspecionar as barricadas. Tropas prussianas estavam a caminho da cidade, a fim de esmagar a revolução. Wagner tomou posse das impressoras do Volksblätter e mandou imprimir panfletos revolucionários ao mesmo tempo em que mandava seu amigo Semper inspecionar as barricadas e comprar granadas. Wagner passou a sexta-feira 4 de maio junto com Mikhail Bakunin. No dia seguinte as primeiras tropas prussianas entraram em Dresden, havia lutas em torno de toda a cidade. Ele subiu à torre da Kreuzkirche, utilizada pelos rebeldes como um belvedere e um excelente ponto de observação. De lá, ele lançou mensagens atadas a pedras a Heubner e Bakunin sobre os movimentos de guerra das tropas inimigas. Wagner passou a noite na torre, em bombardeio contínuo e intenso das tropas prussianas. No dia seguinte ele escapou, foi até sua casa e fugiu com Minna para a cidade de Chemnitz, antes uma cidade conhecida como Karl-Marx-Stadt, para deixá-la em lugar provavelmente mais seguro fora do front da rebelião. Mas para horror dela, ele resolveu voltar para o centro popular da revolta. Seu envolvimento com as forças políticas rebeldes lhe custou 11 anos de exílio, pois ele voltou à Alemanha apenas em 1864.
            Em carta a Carl August Röckel, provavelmente entre maio de 1851 e setembro de 1852, o compositor narra que após maio de 1849 (cf. Janz, 1978) teve uma breve estadia em Paris, seguindo para Zurique, utilizando, para tanto, um passaporte falso providenciado por Franz Liszt. Durante o tempo que passou distante da Alemanha, houve um pedido de anistia dirigido ao rei da Saxônia, em 1856, mas a autorização para retornar ao solo alemão somente seria dada a Wagner se ele admitisse ter praticado atos criminosos contra a nação – uma condição que o compositor não aceitou, sob a justificativa de que ele não acreditava ter praticado nenhum crime. Em Dresden havia lutas casa a casa, e na prefeitura ocupada pelos revolucionários, os homens estavam desanimados e exaustos após seis noites sem dormir na arena dentre violentos embates. Richard Wagner foi despachado para Freiberg para chamar reforços. Antes que Wagner pudesse retornar a Dresden com reforços de tropas para combater, a revolução social em curso já havia sido esmagada. Wagner juntou-se a Heubner e Bakunin a caminho de Freiberg e sugeriu que eles montassem um governo provisório em Chemnitz. Naquela noite, Wagner e Bakunin dormiram no mesmo sofá. Quando Wagner acordou, Bakunin e Heubner tinham fugido. Wagner correu para onde se encontrava Minna, e os dois rapidamente, sem temor a erro, para evitar a onda de terror abandonaram o país.
Bibliografia geral consultada.

WOODCOCK, George, Anarchism. A History of Libertarian Ideas and Movements. Londres: World Publishing, 1962; BATAILLE, Georges, Sur Nietzsche: Volonté de Chance. Paris: Éditions Gallimard, 1967; JANZ, Curt Paul, Friedrich Nietzsche: Infancia y Juventud. Vol. 1. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid: Alianza Editorial, 1978; ROGNONI, Luigi, Gioacchino Rossini. Torino: Einaudi Editore, 1981; CHESNAUX, Jean, La Modernité-Monde. Paris: La Découvert, 1989; VELOSO, Caetano, “Peter Gast”. In: Álbum Uns (1983); MARTON, Scarlett, Nietzsche - Uma Filosofia a Marteladas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992; COLLI, Giorgio, Scritti su Nietzsche. 4ª edizione. Milano: Adelphi Editore, 1995; SAFRANSKI, Rüdiger, Nietzsche, Biografia de su Pensamiento. Madrid: Tusquets Editores, 2002; REZENDE, Claudia Barcellos, “Mágoas de Amizade: Um Ensaio em Antropologia das Emoções”. In: Mana. Vol.8 n°2. Rio de Janeiro, outubro de 2002; MARTON, Scarlett, Nietzsche. A Transvaloração dos Valores. Rio de Janeiro: Editora Moderna, 2006; HEIDEGGER, Martin, Nietzsche I. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007; RUBIRA, Luís Eduardo Xavier, Do Eterno Retorno do Mesmo à Transvaloração de Todos os Valores. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008; OLIVEIRA, Jelson Roberto de, Para uma Ética da Amizade em Friedrich Nietzsche. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008; NIETZSCHE, Friedrich, Così Parlò Zarathustra. A cura di Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Milano: Adelphi Editore, 1968; Idem, A Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; PETERLEVITZ, Mayra Rafaela Closs Bragotto Barros, Nietzsche e Wagner: Estações de um Encontro. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Guarulhos: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Paulo, 2015; ASTOR, Dorian, “Rossini, Músico do Futuro. Nietzsche e Peter Gast na Descoberta da Grande Saúde Rossiniana”. In: Cad. Nietzsche vol.38 n°1. São Paulo, jan./abr. 2017; entre outros.

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