terça-feira, 8 de agosto de 2017

Machado de Assis - A Periferia é o Brasil?

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga
 
      “Não levante a espada sobre a cabeça de quem te pediu perdão”. Machado de Assis

                                     
            Machado de Assis pôde assistir, no decorrer do século XIX e no começo do século XX, as alterações amplas e decisivas no cenário social e político internacional e nacional, nos costumes, nas ciências da natureza e da sociedade, nas técnicas e em quase tudo o que entende no âmbito do progresso material. Alguns estudiosos supõem, no entanto, erroneamente que as crenças atribuídas a Machado de Assis como um escritor engajado são falsas e que ele não esperava nada ou quase nada da história e da política. Afrodescendente, testemunhou a Abolição da Escravatura e a mudança política no país quando a República substituiu o Reinado, e foi grande comentador e relator dos eventos político-sociais. Suas crônicas estão repletas destes comentários. Em 1868, por exemplo, D. Pedro II demitiu o gabinete liberal de Zacarias de Góis e substitui-o pelo gabinete conservador de Itaboraí. Grêmios e jornais liberais acusaram a atitude do imperador de bonapartista. Machado de Assis testemunhou com simpatia aos liberais. Em 1895 com a morte de Joaquim Saldanha Marinho, liberal, maçom e republicano escreveu: - “Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a sair e a voltar, até que se foram de vez, como os conservadores, e com uns e outros o Império”. Machado de Assis como afrodescendente e liberal não estava só, e era fervorosamente contra a escravidão.
            Sua obra foi de fundamental importância para as escolas literárias brasileiras do século XIX e XX e surge nos dias de hoje como de grande interesse acadêmico e público. Influenciou grandes nomes das letras, como Olavo Bilac, Lima Barreto, Drummond de Andrade, John Barth, Donald Barthelme e outros. Para a as frações da classe dominante o óbice maior não vinha do nosso Estado constitucional, que representava o latifúndio e dele se servia: o obstáculo era interposto pela nova matriz internacional, a Inglaterra. Em seu tempo de vida, alcançou relativa fama e prestígio pelo Brasil, contudo não desfrutou de popularidade no exterior em função da divisão internacional do trabalho. Contudo, na modernidade tendo em vista sua inovação, imaginação e audácia em temas precoces e paradoxais, é frequentemente visto como o escritor brasileiro de produção intelectual sem precedentes, de modo que, recentemente, seu nome e sua obra têm alcançado diversos críticos literários, estudiosos e admiradores do mundo inteiro. Machado de Assis é considerado um dos grandes gênios da história da literatura, ao lado de autores como Dante, Shakespeare e Camões.

             
            Entende-se a reivindicação do mais desenfreado laissez-faire, contrapondo-se no plano das ideias a hostilidade que despertava entre os proprietários o controle da sua nação por um Estado estrangeiro. Mas como o denominador ideológico comum era o liberalismo econômico, que conhece na época a sua fase áurea, só restava à retórica escravista uma saída para o impasse. Demonstrar que as idéias mestras da doutrina clássica, porque justas deveriam aplicar-se com justeza às circunstâncias, tanto quanto às peculiaridades nacionais. A atenção e o respeito ostensivo ao particular, tão insistentes nos escritos conservadores de Edmund Burke, permeiam a ideologia romântico-nacional que vai de Francisco de Varnhagen a José de Alencar, de Vasconcelos a Olinda, de Paraná a Itaboraí. Será o topo maior da argumentação de cunho protelatório: dar tempo ao tempo, já que o Brasil colonizado e periférico não é a Europa, e é preciso respeitar as diferenças, que na interpretação de Bosi (1992: 195) tem como escopo a filtragem ideológica e contemporização. As estratégias do nosso liberalismo intra-oligárquico em todo o período em que se constituía o Estado nacional.
            Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, no centro do Rio de Janeiro, então capital do Império, em pleno Período Regencial. Seu pai  Francisco José de Assis, foi um mulato que pintava paredes, filho de Francisco de Assis e Inácia Maria Rosa, ambos pardos e escravos alforriados. A mãe foi a lavadeira Maria Leopoldina da Câmara Machado, portuguesa e branca, filha de Estevão José Machado e Ana Rosa. Consta que a família Machado de Assis imigrara para o Brasil em 1815, oriunda da Ilha de São Miguel, no arquipélago português dos Açores. Os pais de Joaquim Maria Machado de Assis sabiam ler e escrever, fato quase incomum naquele tempo e estratificação social. Ambos eram agregados da Dona Maria José de Mendonça Barrozo Pereira, esposa do falecido senador Bento Barroso Pereira, que abrigou seus pais permitindo morar com ela. As terras do Livramento eram ocupadas pela chácara da família de Maria José e já em 1818 o terreno começou a ser loteado de tão imenso que era dando origem à Rua Nova do Livramento. Maria José tornou-se madrinha do bebê e Joaquim Alberto de Sousa da Silveira, seu cunhado, tornou-se o padrinho, de modo que os pais de Machado resolveram homenagear os dois nomeando-o com seus nomes.  
            Nascera junto a ele uma irmã, que morreu jovem, em seus 4 anos, em 1845. Iniciou seus estudos numa escola pública da região, mas aparentemente não se mostrou interessado por ela. Ocupava-se também em celebrar missas, o que lhe fez conhecer o Padre Silveira Sarmento, que de acordo com certos biógrafos, se tornou seu mentor de latim e amigo. Os biógrafos notam hic et nunc  que, interessado pela boemia e pela Corte, imiscuiu-se para subir socialmente abastecendo-se de superioridade e domínio intelectual. Para isso, assumiu diversos cargos técnicos públicos, passando pelo Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas, e conseguindo precoce notoriedade em jornais onde publicava suas primeiras poesias e crônicas. Em sua maturidade, reunido a colegas próximos, fundou e foi o primeiro presidente unânime da Academia Brasileira de Letras. Sua extensa obra constitui-se de nove romances e peças teatrais, duzentos contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos, e mais de seiscentas crônicas. Fundou o periódico: “O Jequitinhonha”, com o seu cunhado Josefino Vieira em 1860, por meio do qual teria difundido o ideal republicano. No entanto, a República lhe trouxe muitos desagrados econômicos e políticos, mas como letrado percebeu um mundo em agonia, sendo “uma voz inquietante que fala baixo, mas provoca sempre”.  



Segundo Reinado é um período da história do Brasil que compreende 49 anos, quando se iniciou com o fim do período regencial em 23 de julho de 1840, com a declaração de maioridade de Pedro de Alcântara, e teve o seu término em 15 de novembro de 1889, quando a monarquia constitucional parlamentarista vigente foi derrubada pelo golpe de proclamação da República. Representou uma época de protestos e de significado político para o Brasil, com o crescimento e a consolidação da nação brasileira como um país independente, e como importante membro entre as nações do continente americano. Denota-se nesta época a solidificação do Exército e da Marinha, culminando com o processo de soberania com o etnogenocídio da Guerra do Paraguai (1865-70), e mudanças superficiais, além da gradativa e lenta libertação dos escravos e o incentivo de imigração para se juntar à força de trabalho brasileira. O longo governo de D. Pedro II que durou 49 anos, foi marcado por raras mudanças sociais, política e econômicas no Brasil. No plano partidário na política no Segundo Reinado foi marcada pela disputa insignificante entre o Partido Liberal e o Conservador.
A partir de 1835, começa a ganhar força a ideia de antecipar ascensão do jovem Pedro de Alcântara ao trono imperial. Os grandes proprietários de terras e escravos viam com desconfiança o processo de descentralização político-administrativa iniciado pelas autoridades do período regencial. Ao mesmo tempo, as revoltas sociais que rebentaram em várias províncias exigiam alguma medida que garantisse a ordem e a paz social. Formava-se o consenso político de que somente o restabelecimento da autoridade monárquica poderia conter os excessos dos poderes locais e apaziguar as dissensões. A manobra política aconteceu quando Dom Pedro II não tinha ainda idade suficiente para ascender ao trono. Elaborou-se então uma declaração antecipando a sua maioridade para pôr fim às disputas políticas que estavam em curso nesse período. Os liberais agitaram o “povo”, que pressionou o Senado a declarar o jovem Pedro II maior de idade “antes de completar 15 anos”. Esse ato teve como principal objetivo a transferência de poder para Dom Pedro II para que esse, embora inexperiente, pudesse pôr fim a disputas políticas que abalavam o Brasil mediante sua autoridade. Acreditavam que com a figura do imperador deteriam as revoltas que estavam ocorrendo como: Guerra dos Farrapos, Sabinada, Cabanagem, Revolta dos Malês e Balaiada. Foi instaurado o Ministério da Maioridade, de orientação liberal, também conhecido como o Ministério dos Irmãos, pois era formado, entre outros, pelos irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco de Andrada e os irmãos Cavalcanti, futuros Viscondes de Albuquerque e de Suassuna.
Neste período o parco jornalismo começou a dar mais atenção às notícias econômicas sobre companhias, aos bancos e à Bolsa de Valores do que à aridez política parlamentar. É por estas quadras que o capitalismo brasileiro, mediado pela intervenção do Estado, “ensaiava temerariamente os primeiros passos no regime nascente”, como escreveu o jurista Raymundo Faoro. Desenvolvendo seu raciocínio, conclui que o que se teve no Brasil foi o desenvolvimento de um capitalismo “politicamente orientado”, conceito este baseado na formulação ideal típica weberiana. Negando-se em atribuir um papel hipostasiado à economia com relação à política, compreende o Brasil enquanto uma forma pré-capitalista de sociedade. Esta característica, no entanto, ainda será entendida no interior do pensamento weberiano em que capitalismo é definido como uma aquisição racional de lucros burocraticamente organizada, diferente do capitalismo politicamente orientado em que tal aquisição será direcionada por interesses dos Estados e da sua concorrência com outros Estados. O capitalismo “politicamente orientado” atribui ao Estado patrimonial e seus funcionários características sociais de um “estamento burocrático”, como entrave da consolidação de uma ordem burguesa propriamente dita no país. Em seu antológico livro: “Os Donos do Poder”, realiza um diagnóstico preciso da origem do patrimonialismo brasileiro: a Casa de Aviz portuguesa no século XIV. Os reis de Portugal se consideravam proprietários do país e da nação.                 
Essa cultura atravessou mares e séculos e se enraizou com toda a força social e política no Brasil e na concepção de Estado soberano. Hoje já não há a Casa de Aviz. Outros são os tempos e outros são os donos do poder.  O Estado brasileiro é um paquiderme na luta pelos cargos e a serviço desses donos do poder. Inicialmente foram os próprios reis portugueses, depois os imperadores, depois os militares positivistas da chamada República Velha. Agora os coronéis oriundos das oligarquias. Nada parecido com o atual, altamente sofisticado e requintado. São funcionários da “superestrutura” muitas vezes com reconhecidos títulos de PhD e que andam acompanhados, nestes dias em jatinhos executivos, de poderosos empreiteiros e subempreiteiros de gigantescas obras públicas. Alguns destes com reconhecido mandatos populares nas Câmaras, Assembleias Legislativas ou no que Raymundo Faoro, figura central nesse debate, vem argumentando que o patriarcado brasileiro cedeu lugar a um Estado Patrimonialista, observando ainda que, ao contrário de vários países de origem anglo-saxã e sistema liberal de governo, o modelo de organização política, seguido pelo Brasil, se pauta pela dominação da esfera de ação pública sobre a esfera de ação privada de forma singular. Testemunhou a Abolição da escravatura e a mudança política no país quando a República substituiu o Reinado, além das diversas reviravoltas pelo mundo em finais do século XIX e início do XX, tendo sido grande comentador e relator dos eventos político-sociais de seu tempo.

Edifício da Rua Camões onde ocorreram as primeiras sessões solenes da ABL, sob a presidência de M. de Assis.
Sabe-se que Machado de Assis detestava o vale-tudo do dinheiro especulativo. Em crônica n` O Cruzeiro (18/08/1878), sob o pseudônimo de Eleazar, narra as lutas políticas em Macaúbas entre os conservadores e os liberais. Em crônica ao jornal Canção de Piratas (22/07/1894), refere-se ao período histórico da Guerra de Canudos, apoiando Antonio Conselheiro, por seus legionários se indignarem com a realidade: - “Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século”.
Não é por acaso que do ponto de vista político a noção de crise é privilegiada nos discursos contrarrevolucionários, em geral oligárquicos, funcionando em dois registros, mas complementares: por um lado, serve de explicação (saber) para a emergência do irracional no coração da racionalidade (isto é, serve para ocultar a crise verdadeira), por outro lado, mobiliza os agentes sociais acenando-lhes o risco da perda da identidade, suscitando-lhe o medo da desagregação social, isto é, da revolução e oferece-lhes a oportunidade de restaurar uma ordem não crítica graças à ação de alguns ditos salvadores da ordem social ameaçada. Eis porque a crise, no discurso contrarrevolucionário, é posta como crise de autoridade. A imagem da “crise” serve para reforçar a submissão a um poder miraculoso que emana dos chefes esperados e que encarna em suas pessoas a identidade possível da sociedade consigo mesma. Na filosofia de Walter Benjamin, para sermos breves, a questão tópica da identidade é  concebida com a forma originária da ideologia. E esta representa a relação imaginária do homem com as suas condições reais de existência no âmbito da imaginação.
Carolina Augusta Xavier de Novaes Machado de Assis (Porto, 1835 - Rio de Janeiro, 1904) foi a esposa de Machado de Assis. Portuguesa mudou-se para o Rio de Janeiro em 1866 a fim de cuidar de seu irmão enfermo Faustino Xavier de Novaes (1820-1869). Carolina e Machado se casaram em 12 de novembro de 1869 e viveram uma longa vida conjugal de 35 anos sem grandes perturbações. Culta, os biógrafos escrevem que apresentou a Machado de Assis livros da literatura portuguesa e da literatura inglesa e outros clássicos, redefinindo o seu estilo literário para a maturidade. Além disso, teria revisado, retificado e passado a limpo seus textos, ajudando-o a escrever. Recentes análises de correspondências pessoais revelam que Machado e Carolina eram apaixonados um pelo outro e que, ao longo do casamento, o escritor temia que a esposa morresse antes e ele sofresse com a perda. Carolina não conseguiu engravidar, e pela falta de filhos o casal decidiu adotar uma cadelinha, a quem batizaram de Graziela, a quem tratavam afetivamente como filha. Machado de Assis cuidou do animal de estimação até seu falecimento. Seu casamento durou até a morte de Carolina em 1904. O viúvo Machado de Assis entrou em profunda depressão, encontrando consolo em sua solidão com sua cadelinha, sua única companhia. Com muitas saudades escreveu um soneto em homenagem à esposa, amplamente considerado a melhor peça de sua obra poética. Manuel Bandeira afirmaria, anos mais tarde, que é uma das peças mais comoventes da literatura brasileira. Chama-se “A Carolina”:
Carolina em 1870. Há 1 ano já casada com Machado de Assis.
Querida! Ao pé do leito derradeiro,/em que descansas desta longa vida,//aqui venho e virei, pobre querida,/trazer-te o coração de companheiro./Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro que,/a despeito de toda a humana lida,/fez a nossa existência apetecida/e num recanto pôs um mundo inteiro.../Trago-te flores - restos arrancados/da terra que nos viu passar unidos/e ora mortos nos deixa e separados;/que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,/pensamentos de vida formulados/ são pensamentos idos e vividos” (cf. Assis, 1959).  


A crise no Brasil é usada para fazer com que surja diante dos agentes sociais o sentimento de um terror hobbesiano que ameaça igualmente a todos. Dá-lhes o sentimento de uma comunidade de interesses e de destino e leva-nos a aceitar a bandeira da salvação da sociedade supostamente homogênea e integrada. Nessa medida, a imagem da crise pode funcionar como válvula de escape de um discurso e de uma prática contrarrevolucionários porque visa a impedir que as frações das classes sejam assumidas como tais. Vale lembrar que os integralistas não se cansaram de afirmar que a “crise brasileira” só poderia ser superada se fossem abandonados os interesses classistas do capital e do trabalho e se uma classe, não comprometida com as duas, pudesse conduzir os destinos da nação propondo a integração entre contrários.  Por outro lado, embora a imagem da crise seja inseparável do contexto onde possa haver a figuração empírica de “salvadores” ou “chefes”, o tipo de poder atribuído a eles irradia-se para a sociedade inteira, através de aparelhos de Estado que exerçam a mesma e única autoridade de sorte que o projeto de uma organização burocrática, corporativa e militarizada não será, desde esta forma de pensamento e prática autoritária, senão a consequência lógica da análise da realidade brasileira como idealidade patrimonialista.
Sua obra foi de fundamental importância para as escolas literárias brasileiras do século XIX e do século XX e surge nos dias de hoje como de grande interesse acadêmico e público. O estilo de Machado de Assis assume uma originalidade despreocupada com as modas literárias dominantes de seu tempo. Os realistas que seguiam Flaubert se esqueciam do narrador por detrás da objetividade narrativa, e os naturalistas, a exemplo de Zola, narravam todos os detalhes do enredo - Machado de Assis optou por abster-se de ambos os métodos para cultivar o fragmentário e interferir na narrativa com o objetivo de dialogar com o leitor, comentando seu próprio romance com filosofias, metalinguagens, intertextualidade. Influenciou grandes nomes da literatura, como Olavo Bilac, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, John Barth, Donald Barthelme e outros. Em seu tempo de vida, alcançou relativa fama e prestígio social pelo Brasil, contudo não desfrutou de popularidade internacional na sua época. Por sua inovação literária e audácia dialética em temas precoces, minudentes e contraditórios é frequentemente visto como o escritor de produção literária e política sem precedentes. Seu nome e sua obra têm alcançado diversos críticos, estudiosos e pesquisadores do mundo inteiro.  Machado de Assis é considerado um dos grandes gênios da história da literatura, comparativamente ao lado de autores como Dante, Shakespeare e Camões.
Machado de Assis, como exímio intelectual e leitor, atribui a sua obra caráteres de arquétipos, numa época em que na literatura tínhamos os marcantes José de Alencar, Joaquim Nabuco, o próprio Euclides da Cunha, para citar apenas alguns. Os irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, por exemplo, remontam ao arquétipo bíblico da rivalidade entre Caim e Abel, enquanto a psicose do ciúme de Bentinho em Dom Casmurro aproxima-se do drama Otelo, de William Shakespeare. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, surge Pandora, a primeira mulher mandada à Terra para vingar-se dos homens com sua famosa caixa, que dialoga com o narrador-personagem Brás Cubas e diz que ele pode chamá-la também de Natureza. Sua preocupação com o psicologismo das personagens obrigava-o a escrever numa narrativa lenta que não prejudicasse o menor detalhe para que este não comprometesse o quadro psicológico do enredo. Os críticos em geral notam que a ironia é uma das características mais atraentes e refinadas na obra machadiana. Em certas situações, sua ironia alcança o humor, mas na maioria das vezes, por ser intelectual arguto, só é percebida a leitores que reconheçam alguns temas com que ele perfaz a intertextualidade. Sua ironia é a arma mais corrosiva da crítica dos comportamentos, dos costumes e das estruturas sociais.  
Para o que nos interessa, socialmente, no conto Teoria do Medalhão Machado de Assis, propugna uma análise do comportamento de alguns membros da sociedade. Descreve-os de maneira extremamente clara, precisa, com um humor recatado, ironizando-os usando como background uma conversa aparentemente inocente de um pai com um filho. Ora, a tese freudiana de que se os pais soubessem educar os filhos, os filhos não precisariam de pais ao que parece não se repete. Esse conto, um dos mais deliciosos libelos do escritor contra a mediocridade intelectual e política, é satírico por excelência, lembrando a ironia filosófica dos relatos curtos de Voltaire. Praticamente sem ação, seu núcleo temático gira em torno de uma exposição de ideias cínicas, através do diálogo entre pai & filho. Comparativamente, em Teoria do Medalhão desenvolve com muita ironia as mesmas questões levantadas pelo conto O Espelho, onde o narrador cede seu hábito de falar à reprodução das falas das duas únicas personagens: pai & filho. O tom terrivelmente irônico da fala do pai revela, obviamente, a denúncia feita pelo Autor por trás da arte do conto que identifica e precisa em relação a uma sociedade burguesa medíocre e arrogante, que prega o sucesso a qualquer preço, mesmo à custa do empobrecimento da vida interior e das relações sociais e políticas. A atualidade da análise política é medonha se forem comparados aos discursos paternalistas do Senado brasileiro principalmente na conjuntura que culmina com o golpe de Estado de 17 de abril de 2016.
O diálogo familiar ocorre perante uma noite exatamente às onze horas após um jantar comemorativo dos 21 anos do filho. Quando pai & filho ficam a sós na sala, este aconselha o filho a se tornar um Medalhão: “um homem que ao chegar à velhice, tenha adquirido respeito e fama na sociedade do Rio de Janeiro do século XIX”. Para tanto, será necessário que ele mude seus hábitos e costumes e passe a conviver “sob uma máscara, anulando os seus gostos pessoais e suas atitudes”. E nisso disserta sobre a necessidade do filho “de sempre manter-se neutro, usar e abusar de palavras sem sentido, conhecer pouco, ter vocabulário limitado” e assim por diante. Ao final, é a ironia machadiana fina e velada, é recorrente em seus livros e contos em momentos em que infere sobre como se encontram os valores ensejados através da sociedade novecentista, e porque analogamente tão atual e coerente nos dias de hoje. Portanto, o “medalhão”, formulação realística criada pelo escritor neste conto, se caracteriza em política por “aparentar ser o que não é”. Caracteriza-se, sobretudo, por ter, como nos medalhões, “uma face oculta e sem atrativos, voltada apenas para o corpo do dono, e outra, vistosa, virada para o exterior, para ser vista e admirada, respeitada”.



A Teoria do medalhão é um dos contos que demonstra Machado de Assis como um analista político afiado da sociedade brasileira no que ela tem de mais profundo: a mediocridade condecorada, a troca de favores como “um elo quase universal”, motor básico das relações sociais, em que borrifa-se a junta oculta da hipocrisia, e tudo aquilo que perduraria para além da mudança de regime. O conto é representativo porque esboça uma lição a todo homem que almeja ter honra e prestígio social. Ser reconhecido em vida pela sociedade e que elimina qualquer expressão da subjetividade em nome da absorção referida ao senso comum, “uma reflexão sem juízo” para Hans-Georg Gadamer, à opinião da unanimidade no sentido político do termo. Os papéis sociais para fazermos referência ao norte-americano Talcott Parsons, e outros, no conto machadiano, pertencem, à família como base de tudo e grupo restrito: pai & filho. As personagens não possuem nomes e são caracterizadas somente pela posição que ocupam no grupo familiar. Num segundo momento, no decorrer da narrativa, há a construção de um terceiro papel social, este pertencente a um grupo mais amplo: o Medalhão.
No diálogo estabelecido no conto, há a presença das formas de tratamento. O pai dirige-se ao filho sempre utilizando a 2ª pessoa pronominal: tu, te, contigo, teu etc.; o filho, por sua vez, utiliza-se a 3ª pessoa, com valor de 2ª pessoa: vosmecê, lhe, o senhor etc. No primeiro caso, a presença da 2ª pessoa dá um valor de proximidade ao discurso (ou tentativa de), dando um maior sentimento de intimidade. No segundo caso, o uso da 3ª pessoa, demonstra uma aceitação do discurso paterno, e, portanto o que remete ao paternalismo político, como se não houvesse outro meio de discussão. É a aceitação pacífica do papel social que cabe ao filho no final do século XIX. Daí a atualidade sempre marcante de Machado de Assis, quando precipita como um balão de ensaio na estufa, a mediocridade condecorada na política destes nossos dias. Um conto criado pelo escritor realista, originalmente publicado na Gazeta de Notícias, no ano de 1881, e posteriormente integrado ao livro Papéis Avulsos. Neste texto o autor, por meio de um discurso ambivalente, apresenta conselhos inescrupulosos de um pai para um filho visando a alcançar prestígio em uma sociedade que vive de aparências. Edificado sobre as bases da ironia, a obra tem como representação social a valorização do parecer acima do ser, analisando o comportamento medíocre por meio do qual se pode ascender socialmente numa sociedade de bases escravocratas sem grandes esforços. Ela é condecorada pela troca de favores com o governo federal, como tem sido sobejamente acalentada, tendo como elemento das relações políticas, a hipocrisia. O que perduraria além da troca de regime em que se configura crise de hegemonia na sociedade política (Estado) e particularmente na corte ancorada no Rio de Janeiro.
Bibliografia geral consultada:
MASSA, Jean-Michel, Bibliografie Descriptive, Analytique et Critique de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editor: S. José, 1965; Idem, A Juventude de Machado de Assis (1839-1870): Ensaio de Biografia Intelectual. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971; PEREIRA, Lúcia Miguel, Machado de Assis: Estudo Crítico e Biográfico. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1988; SCHWARZ, Roberto, Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editoras Duas Cidades, 1990; IZOLAN, Maurício Lemos, A Letra e os Vermes. O Jogo Irônico de Ficção e Realidade em Machado de Assis. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006; PERROT, Andrea Czarnobay, Machado de Assis e a Ironia: Estilo e Visão de Mundo.  Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006; BOSI, Alfredo, Machado de Assis: O Enigma do Olhar. 4ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007; SOUZA, Jessé, Die Soziale Konstruktion der Peripheren Ungleicheit. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2008; SILVA, Flávia Cristina Aparecida, A Construção da Identidade em Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa. Departamento de Letras Orientais. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2014; SILVA, Carolina Rangel, Memórias Póstumas de Brás Cubas: Aproximações entre a Crítica e a Ficção. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas. Universidade de São Paulo, 2015; entre outros.  

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