Ubiracy de Souza Braga
“O bairro é uma
porta de entrada e de saída entre espaços qualificados e o espaço quantificado”.
Henri Lefebvre
O
bairro se define como uma organização
coletiva de trajetórias individuais. A organização da vida cotidiana se
articula ao menos segundo dois registros: 1. Os comportamentos, cujo sistema se
torna visível no espaço social da rua e que se traduz pelo vestuário, pela
aplicação mais ou menos estrita dos códigos de cortesia, o ritmo de andar, o
modo como se evita ou ao contrário se valoriza este ou aquele espaço público. 2.
Os benefícios simbólicos que se espera obter pela maneira de “se portar” no
espaço do bairro aparecem como o lugar onde se manifesta um “engajamento”
social: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão
ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da
repetição. Existe uma regulação articulando um ao outro esses dois sistemas com
o auxílio do conceito de conveniência,
que surge no nível dos comportamentos, representando um compromisso pelo qual
cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui para a
vida coletiva, retirando daí benefícios
simbólicos necessariamente protelados. Pela relação “saber comportar-se”, o usuário
se obriga a respeitar para que seja possível a vida cotidiana.
A contrapartida desse tipo de imposição é para
o usuário a certeza de ser reconhecido e, portanto, considerado afetivamente por
seus pares, e fundar assim em benefício próprio uma relação de forças nas
diversas trajetórias que percorre. O bairro é por definição, um domínio do
ambiente social, pois constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço
urbano na qual positiva ou negativamente ele se sente reconhecido. Pode-se,
portanto apreender o bairro, simplificadamente, como esta porção do espaço
público em geral em que se insinua um “espaço privado particularizado” pelo
fato do uso quase cotidiano desse espaço social integrado. A fixidez do habitat
dos usuários, o costume recíproco do fato da vizinhança, os processos de
reconhecimento que se estabelecem graças á coexistência concreta em um mesmo
território urbano, todos esses elementos práticos se nos oferecem como imensos
campos de exploração em vista de compreender um pouco melhor esta grande
desconhecida que é a nossa vida cotidiana.
A
história social do bairro Benfica origina-se no período compreendido entre o
final do século XIX até o início da década de 1950. A “Planta da Cidade de
Fortaleza e Subúrbios”, projetada por Adolfho Herbster em 1875, a área espacial
do futuro bairro já tinha sido anexada à área urbana (cf. Vasconcelos, 2015:
42). Portanto, a parte do bairro denominada Gentilândia, surgiu nos últimos
anos do século XIX, quando o coronel e banqueiro José Gentil Alves de Carvalho,
nascido em Sobral em 11 de setembro de 1866, transferiu-se para Fortaleza em
1893 onde com outros parentes, fundou a firma Frota e Gentil. Dedicando-se principalmente
ao ramo de tecidos a firma prosperou com muitas representações. Casou-se em
1866 com Maria Amélia Tome da Silva Frota, também de Sobral com quem teve 15
filhos. Adquiriu de João Antonio Garcia a área onde é a Reitoria da
Universidade Federal do Ceará. A Chácara Garcia passava a ser Chácara Gentil e,
remodelada em 1918, perdeu as feições rurais para virar palacete.
Na
década de 1920 o destaque era a presença das chácaras de duas famílias
ilustres. Os Manços Valente com residência nas proximidades das caixas d’água
de ferro que possuíam como casa principal uma mansão de três andares de frente
para a Avenida Visconde do Cauípe, atual avenida da universidade, e duas casas
menores direcionadas para a Rua Tristão Gonçalves pertencentes aos herdeiros da
família. E a família Gentil que possuía a chácara de maior dimensão na qual se
localizava quatro mansões cuja principal era residência do patriarca, o Cel.
José Gentil Alves de Carvalho, localizada de frente para a Av. Treze de Maio onde
adentrava o bonde vindo do Centro que ia para o Prado. Vizinhas a essa, na direção
da estrada de Arroches, estava a residência de sua filha Beatriz Gentil Campos,
um bangalô de aluguel onde residiu Aziz Kalil e próximo ao final da linha de
bondes do Benfica estava a residência de seu filho João Gentil, considerada a
mansão mais moderna da cidade, tanto que o presidente Getúlio Dornelles Vargas
hospedou-se nela em sua visita ao Ceará em 1935. O empresário dos Bancos Frota
e Gentil, do Centro de Fortaleza construíram “uma cidade dentro do bairro em
formação”. Ipso facto, a história de
José Gentil se confunde com a do bairro Benfica. A maior parte da Chácara
Gentil foi desmembrada durante sua vida, para compor os quarteirões, as ruas e
as praças do pequeno bairro da Gentilândia implantado na década de 1930. Da
área construída parte foi reservada para a família Gentil e o
restante foi alugado para famílias da emergente classe média.
O bairro surge como o domínio onde a relação
espaço/tempo é a mais favorável para um usuário ordinário que deseja
deslocar-se por ele a pé saindo de sua
casa. Por conseguinte, é o pedaço da cidade atravessado por um limite
distinguindo o espaço privado do espaço público: é o que resulta de uma
caminhada, da sucessão de passos numa calçada, pouco a pouco significada pelo
seu vínculo orgânico com a residência. Diante do conjunto da cidade,
atravancado por códigos que o usuário
não domina, mas que deve assimilar para poder viver aí, em face de uma
configuração dos lugares impostos pelo urbanismo, diante dos desníveis sociais
internos ao espaço urbano, o usuário sempre consegue criar para si algum lugar
de aconchego, itinerários para o seu uso ou seu prazer, que são as marcas que
ele soube, por si mesmo, impor ao espaço urbano. Metodologicamente o bairro é
uma noção dinâmica, que necessita de progressiva aprendizagem. Vai progredindo
mediante a repetição do engajamento do corpo do usuário no espaço público até
exercer uma apropriação. A trivialidade desse processo, partilhado por
cidadãos, torna inaparente a sua complexidade enquanto prática cultural e a sua
urgência para satisfazer o desejo urbano dos usuários da cidade.
A
expansão da Vila Gentil foi planejada por seu proprietário praticamente em
todos os detalhes. As residências projetadas por ele para as famílias de maior
poder aquisitivo não possuíam garagem porque havia um quarteirão destinado a
elas na própria Gentilândia para que a entrada de carros na frente das
residências não prejudicasse a beleza arquitetônica do conjunto. A preservação
das frondosas mangueiras que compunham sua chácara quando da construção da vila
é outro fator apontado como diferencial desse espaço no Benfica. O periódico O Povo, na capital ao noticiar o
falecimento do comerciante, em 12 de março de 1941 destaca a Vila
Gentil e as preocupações urbanísticas de seu idealizador: - “Amigo de Fortaleza
construiu dentro da capital uma cidade moderna, higiênica e aprazível, aquela
que lhe tem o nome. Encantado pela paisagem, perdia horas noturnas diante de
uma planta de construção, dedicado a estudar o meio de poupar as árvores” (cf.
Pereira, 2008: 67).
Pelo
fato do seu uso habitual, o bairro pode ser considerado como a privatização progressiva
do espaço público. O bairro constitui o termo médio de uma dialética
existencial entre o dentro e o fora. E é na tensão entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro,
que se efetua a apropriação do espaço. Um bairro poder-se-ia dizer, é assim uma
ampliação do habitáculo; pelo usuário, ele se resume á soma das trajetórias individuais
inauguradas a partir do seu local conscrito na origem de sua habitação. Não é
propriamente uma superfície urbana transparente para todos ou estatisticamente
mensurável, mas antes as condições e possibilidades oferecidas a cada um de inscrever
na cidade um sem-número de trajetórias cujo núcleo irredutível continua sendo
sempre a esfera do privado. Existe,
além disso, a elucidação de uma analogia formal entre o bairro e a moradia:
cada um deles tem, com os limites que lhe são próprios, a mais alta taxa de
controle pessoal possível, pois tanto
aqueles como esta são os únicos lugares vazios onde, de maneira diferente, se
pode fazer aquilo que se quiser. O
limite público/privado, que parece ser a estrutura fundadora do bairro para a
prática de um usuário, não é apenas uma separação, mas dialeticamente constitui
uma separação que une.
A relação entrada/saída, dentro/fora se imiscui dentre
outras relações sociais como casa/trabalho, conhecido/desconhecido e assim por
diante, mas representa sempre uma relação social entre uma pessoa e o mundo
material e social, condicionado por uma dialética constitutiva da
autoconsciência que vai haurir, nesse movimento de ir e vir, de mistura social
e de recolhimento íntimo, a certeza de si mesma enquanto imediatamente social. Essa diferença entre a essência e o
exemplo, entre a imediatez e a mediação, quem faz não somos nós apenas, mas a
encontramos na própria certeza sensível; e deve ser tomada na forma em que nela
se encontra, e não como nós acabamos de determina-la. Na certeza sensível, por
exemplo, um momento é oposto como o essente simples e imediato, ou como a
essência: o objeto. O outro momento, porém, é posto como o inessencial e o
mediatizado, momento que nisso não é “em-si”, mas por meio do Outro: o Eu, um
saber, que sabe o objeto só porque ele é; saber que pode ser ou não. Mas o
objeto é o verdadeiro e a essência: ele é, tanto faz que seja conhecido ou não.
Permanece mesmo não sendo conhecido – enquanto o saber não é, se o objeto não
souber que pode ser. Trata-se assim da singularidade imediata de apreensão do
objeto.
O
outro momento, porém, é posto como o inessencial e o mediatizado, momento que
nisso não é “em-si”, mas por meio de Outro: o Eu, um saber, que sabe o objeto
só porque ele é; saber que pode ser ou não. Mas o objeto é o verdadeiro e a
essência: ele é, tanto que seja conhecido ou não. Permanece mesmo não sendo
conhecido – enquanto o saber não é, se o objeto não é. O objeto, portanto deve
ser examinado, para vermos se é de fato, na certeza sensível mesma, aquela
essência que ela lhe atribui; e se esse seu conceito – de ser uma essência –
corresponde ao modo imediato como se encontra na certeza sensível. Enfim, nós
não temos, para esse fim, de refletir sobre o objeto, nem indagar o que possa
ser em verdade; mas apenas no âmbito da filosofia de Hegel através da ideia de
formação em “considerá-lo como a certeza sensível o tem nela”.
Para
sermos breves, pensamento social e particularmente a Antropologia tem por
tradição hic et nunc desvalorizar
ontologicamente a imaginação, e sociologicamente sua função fomentadora de
erros e falsidades. No limite, a “imaginação sociológica”, para lembrarmo-nos
de Wright Mills, é reduzida pelos clássicos e contemporâneos àquela concepção
de sensação de uma imagem remanescente ou repetida e consecutiva do imaginário
individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos).
Desvalorizado para explicar “conexões imaginativas”, capaz de estimular a
criatividade no âmbito da teoria social, sem perder a conexão de sentido com o imaginário
social, que pode cometer o erro de reduzir a imaginação a um puzzle técnico-metodológico. A teoria
produz significados reflexivamente de um ponto de vista sobre um ponto de
vista.
Assim,
a análise reproduz um “recorte” empírico a meio caminho entre a solidez da
sensação e a pureza da ideia correlata ao associacionismo psicológico ao abrir
dimensões novas no continuum de
elucidação da consciência. Associar a questão da consciência à formação e significado
nas relações de poder oligárquico, tolda as organizações populares que
enquadram a chamada “opinião pública” inexistente. As comissões oficiais
funcionam segundo uma lógica para criar um grupo com todos os elementos
exteriores necessários para formar uma opinião digna de ser expressa. De acordo
com determinados padrões nas democracias modernas porque representam conquistar
o poder, mas, sobretudo saber exercê-lo através das mediações da autoridade na
sociedade contemporânea. Temos assim a formação publicitária da informação.
Enfim,
a prática do bairro introduz um pouco de gratuidade no lugar da necessidade;
ela favorece uma utilização do espaço urbano não finalizado pelo seu uso
somente funcional. No limite, visa conceder o
máximo de tempo a um mínimo de espaço para liberar possibilidades de
deambulação. A cidade é, em seu sentido característico, “poetizada” pelo
sujeito: este a “refabricou” para o seu uso próprio desmontando as correntes do
aparelho urbano: ele impõe à ordem externa da cidade a sua lei de consumo do espaço. O bairro é, por conseguinte, no sentido
econômico do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no modo
da privatização do espaço público. Aí se acham reunidas todas as condições para
favorecer esse exercício: conhecimento dos lugares, trajetos cotidianos,
relações de vizinhança (política), relações como os comerciantes (economia),
sentimentos difusos de estar no próprio território (etologia), tudo isso como
indícios cuja acumulação e combinação produzem, e mais tarde organizam o
dispositivo social e cultural segundo o qual o espaço urbano se torna não somente
o objeto de um conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento.
A
conveniência se impõe em primeiro à
análise pelo seu papel negativo. Ela se encontra no lugar da lei, aquela que
torna heterogêneo o campo social proibindo que aí se distribua em qualquer
ordem e a qualquer momento não importa que comportamento social. Isto quer
dizer que a conveniência mantém
relações muito estreitas com os processos de educação implícitos a todo grupo
social: ela se encarrega de promulgar as “regras” do uso social, enquanto o
social é o espaço do outro, e o ponto médio da posição da pessoa enquanto ser
público. A conveniência é o gerenciamento simbólico da face pública de cada um
de nós desde que nos achamos na rua. A conveniência é simultaneamente o modo
pelo qual se é percebido e o meio obrigatório de se permanecer submisso a ela.
No fundo, ela exige que se evite toda dissonância no jogo dos comportamentos, e
toda ruptura qualitativa na percepção do meio social. Por isso é que produz
comportamentos estereotipados, “prêt-à-porter”
sociais, que têm por função possibilitar o reconhecimento “de não importa quem
em não importa que lugar”.
O
bairro representa um universo social que não aprecia muito a transgressão; esta é
incompatível com a suposta transparência da vida cotidiana, com sua imediata
legibilidade. Esta se deve efetuar, aliás, esconder-se nas trevas dos “lugares
reprováveis”, fugir para os refolhos privados do domicílio. O bairro é um palco
“diurno” cujos personagens são, a cada instante, identificáveis no papel que a
conveniência lhes atribui: a criança, o pequeno comerciante, a mãe de família,
o jovem, o aposentado, o padre, o médico, máscaras e máscaras por trás das
quais o usuário do bairro é “obrigado” a se refugiar para continuar usufruindo
dos benefícios simbólicos com os quais pode contar. A conveniência tende sempre
a elucidar os bolsões noturnos do bairro, o incansável trabalho de curiosidade
que, como um inseto de imensas antenas, explora com paciência todos os
cantinhos do espaço público, sonda os comportamentos, interpreta os
acontecimentos e produz sem cessar um rumor questionante incoercível: Quem é
quem e faz o quê? De onde vem este novo freguês?
Quem
é o novo locatário? A tagarelice e a curiosidade são as pulsões interiores
absolutamente fundamentais na prática cotidiana do bairro que procura uma “razão
para tudo”, mede tudo pela régua da conveniência. Enfim, se é possível dizer
que todo rito é a assunção ordenada de uma desordem pulsional inicial, o seu “trancafiamento”
simbólico no campo social, então a conveniência é o rito do bairro. A conveniência
subtrai à troca social os ruídos que poderiam alterar a imagem do
reconhecimento; é ela que filtra tudo o que não visa a clareza. Mas, e esta é a
sua face positiva, se ela impõe a sua coerção, o faz em vista de um benefício
simbólico que se há de adquirir ou preservar. O conceito de conveniência ganha
particular pertinência no registro do consumo. Como relação cotidiana com a
busca dos alimentos e dos serviços. Comprar não é trocar dinheiro
por alimentos (mercadoria), mas, além disso, ser bem
servido quando se é bom freguês. O ato da compra vem “aureolado” por uma “motivação”
que, poder-se-ia dizer, o precede antes de sua efetividade: a fidelidade. Esse
algo mais, não contabilizável na lógica estrita da troca de bens e serviços, é diretamente
simbólico: é o efeito do consenso, de um acordo tácito. É o fruto de um longo costume recíproco pelo qual um sabe o
que pode pedir ou dar ao outro, em vista de melhorar a relação com os objetos
desejantes da troca.
Bibliografia
geral consultada.
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Geografia. Universidade Federal
do Ceará, 2008; CAMPOS, Ricardo Marnoto de Oliveira, Pintando a Cidade: Uma Abordagem Antropológica ao Graffiti Urbano. Tese de Doutorado em Antropologia Visual.
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Editoras Vozes, 2013; pp. 46 e ss.; DEJOURS, Christophe, Le Choix - Souffrir au Travail n`est pas une Fatalité. Paris: Bayard Éditions, 2015; RODOLFO, Renato Mesquita, A Universidade (Federal) do Ceará entre o
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Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em História. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará. 2015; CHAGAS, Juliana Almeida, Pixação e as Linguagens Visuais no Bairro
Benfica: Uma Análise dos Modos de Ocupação de Pixos e Graffiti e de
Suas Relações Entre Si. Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Departamento de Ciências Sociais. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2015; VASCONCELOS,
Monica Monteiro da Costa, A Cidade em Movimento:
Práticas Educativas do Morar e Conviver no Bairro Benfica. Dissertação de
Mestrado. Fortaleza: Programa de
Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Ceará. Faculdade de
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