Ubiracy de Souza Braga
“Raspar cabelos e chamar calouro de 'bicho' no trote é tradição da era medieval”. Marília Juste (2009)
“Raspar cabelos e chamar calouro de 'bicho' no trote é tradição da era medieval”. Marília Juste (2009)
Apesar
de poucos documentos oficiais e pesquisas acadêmicas tratarem da representação
social dos “trotes”, há indícios concretos de existência destes ritos de
passagem desde o século XIV. Segundo alguns historiadores, para assinalar suas
origens, os cavaleiros se singularizavam através de símbolos, acessórios e
gestos. É nesse momento que podemos sugerir uma resposta sobre a gênese das
saudações. Na Idade Média, quando passava por membro de mesma condição, o
cavaleiro costumava levantar o visor de seu elmo em sinal de respeito e
amizade. Ao olhar para seu próximo, buscava reafirmar a partilha de habilidades
e valores com o outro cavaleiro. Foi o etnólogo Arnold Van Gennep quem fez um
estudo sistemático dos cerimoniais que em diversas sociedades marcam a
transição dos indivíduos de um status
para outro. Concluiu que a maioria dos ritos observava uma sequência que
incluía os processos sociais de “separação”, “transição” e “incorporação”.
Quando indivíduos se encontram
desvinculados da condição anterior,
não incorporados à nova condição, eles constituem um problema para a
sociedade já que se situam fora das áreas habituais de controle normativo. Necessitam assumir novo status social pelos valores do grupo.
Mais
intrigante é a origem do termo “trote”: representa uma alusão à forma pela qual os
cavalos se movimentam entre a marcha lenta e o galope. Se tivesse existido fora
do romance de Machado de Assis, Brás Cubas - personagem que, na infância,
gostava de “trotar” sobre escravos - bem poderia ter trazido o trote da Europa
para o Brasil. Isso porque, assim como na representação do anti-herói de
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, os responsáveis pelo transplante das ideias
da tradição se formaram em Direito, em Coimbra, como era comum entre membros da
elite política cafeeira no século XIX. Historicamente tão antigos quanto à
existência das próprias universidades europeias, os trotes manifestam um código
hierárquico na maioria dos casos. Chamado “brimade”, em francês, “hazing”, em
inglês, ambos carregam o significado de maltratar, judiar. Em alemão,
“fuchsprellen”: “fuchs” de significado “raposa” e “prellen”, em torno de “fazer
joguete de alguém”. A origem do próprio
nome do “trote” demostra socialmente o caráter simbólico que esses ritos de passagens ou
protestos sociais podem assumir do ponto de vista da formação da identidade em diversos países.
Em
Portugal, particularmente na Universidade de Coimbra, vigora o “Código da Praxe
Acadêmica”, que influenciou singularmente a cultura brasileira, pois, em suas
origens, as instituições brasileiras mantinham ligação cultural com as
instituições de ensino lusitanas e estímulos não faltavam para os alunos
abastados irem estudar em Coimbra. A “Praxe Académica” da Universidade de
Coimbra existe há vários séculos, tendo sofrido diversas alterações que se
justificam pela mudança e evolução constantes da sociedade. O primeiro projeto
do “Código da Praxe” surgiu em 1916, pelas mãos de Barbosa de Carvalho,
estudante de Direito da Universidade de Coimbra. Tão antigos quanto à
existência das próprias universidades europeias, os trotes manifestam um código
hierárquico na maioria dos casos. Chamado “brimade”, em francês, “hazing”, em
inglês, ambos com significado de maltratar, judiar. Em alemão, “fuchsprellen”: “fuchs”
de significado “raposa” e “prellen”, em torno de “fazer joguete de alguém”. A
origem do próprio nome do “trote” demostra
o caráter simbólico que esses ritos de passagens ou protestos sociais podem
assumir em diversos países. Em Portugal, particularmente na Universidade de
Coimbra, vigora o Código da Praxe Acadêmica, que influenciou a
cultura brasileira, pois, em suas origens, as instituições brasileiras
mantinham ligação cultural com as instituições de ensino lusitanas e estímulos
não faltavam para os alunos abastados irem estudar em Coimbra.
A Praxe Académica da Universidade de Coimbra existe há vários séculos, tendo
sofrido diversas alterações que se justificam pela mudança e evolução
constantes da sociedade. O primeiro projeto do Código da Praxe surgiu em 1916,
pelas mãos de Barbosa de Carvalho, estudante de Direito da Universidade de
Coimbra. Coimbra é uma destas cidades que parecem ter parado no tempo. Como boa
cidade portuguesa, foi construída às margens de um rio e em cima de uma
montanha que separa a cidade alta da cidade baixa. A baixa guarda preciosas
construções medievais em ruelas labirínticas onde, ainda hoje, se concentra o
comércio. A alta, coroada pela universidade no seu ponto mais elevado, é
território de grande parte das repúblicas de estudantes, pontos turísticos como
a Sé Velha e a Biblioteca Joanina e é, também, palco dos principais
acontecimentos da vida acadêmica de Coimbra.
O início do semestre letivo, em setembro, aproveita os últimos dias do
quente verão português para receber os “caloiros” com atividades ao ar livre. A
“praxe” não deixa nada a desejar aos trotes mais controversos das universidades
brasileiras. Em nome da integração, muitas vezes a brincadeira vira humilhação.
Os novatos não podem comer com talheres nos refeitórios, mas apenas com as mãos.
Na
Universidade de Coimbra, a “praxe” é levada a sério e conta com um código
escrito em 54 páginas que determinam as regras do jogo. Durante o dia, meninas
só podem ser “praxadas” por meninas e meninos por outros rapazes. À noite todos
os gatos são pardos: o calouro que for encontrado após meia noite na rua por
uma “trupe ordinária”, um grupo de mais de três veteranos, pode ser
punido com pancadas de colher de pau nas unhas das mãos. Safam-se das praxes
noturnas apenas os calouros que levarem um instrumento musical e os que
estiverem embriagados, que ganham a proteção do “deus Baco” previstos pelo
“Código da Praxe”. Este primeiro projeto, que continha 43 artigos
iniciou-se com a publicação das “Leis Extravagantes da Academia de Coimbra”,
conhecidas por “Código das Muitas Partidas”. Várias
tentativas se lhe seguiram, nomeadamente na década de 1925, 1927 e posteriormente em 1940.
Apenas em 1956,
outros dois estudantes, Mário Saraiva de Andrade e Victor Dias Barros,
elaboraram um projeto apresentado ao Conselho de Veteranos, posteriormente
aprovado e lançado no ano seguinte, que se aproxima do que hoje conhecemos - afirmam - como
o “Código da Praxe da Universidade de Coimbra”. Este código teve curta vigência
devido à crise académica de 1969 e consequente suspensão da Praxe, retomada no
final da década de 1970, todavia distinto da forma como era vivida nas décadas
de 1940 e 1950. A revisão e atualizações da Praxe foram feitas então através de
“Decretus”, mas à medida que ordinariamente estes se avolumavam e as diferenças
sociais e contradições em relação ao Código de 1957 se acentuavam, evidentemente que, ipso facto foi
necessária uma nova revisão laboriosa que culminou com a atualização da edição
do chamado “Código da Praxe”, de 1993.
Em
2001 surge uma nova revisão motivada pela necessidade de atualizar aspectos do
Código de 1993 derivados da expansão da Universidade. É, no entanto, importante
realçar que tanto a revisão de 1993 como a de 2001 têm como base o Código de
1957, cujas raízes remontam ao “Palito Métrico de 1746”. O Código de 2007
apresentou-se como um desafio completamente diferente. Não se tratou de uma
mera atualização ou evolução da Praxe, mas sim de uma completa reestruturação
da mesma, devida ao “Processo de Bolonha” que transforma as atuais
licenciaturas em dois ciclos distintos, não tendo estes de ser obtidos
necessariamente no mesmo estabelecimento de ensino superior. Esta revisão de
2013 introduz alterações e adendas a determinados artigos, de modo a que a “Praxe”
sirva o seu propósito primordial que é a integração de todos os estudantes num
espírito de convivência únicos no mundo ocidental.
A
Universidade de Coimbra (UC) é uma universidade pública localizada na cidade de
Coimbra, em Portugal. É uma das universidades em operação mais antigas do
mundo, a mais antiga e uma das maiores universidades do país. A sua história social
remonta ao século seguinte ao da fundação da nação portuguesa, dado que foi
criada a 1° de março de 1290, quando o rei D. Dinis I assinou em Leiria o
documento “Scientiae thesaurus mirabilis”, criando institucionalmente a
universidade, intermediada e confirmada pela bula do Papa Nicolau IV, datada de
9 de agosto de 1290, reconheceu o Estudo Geral, com as faculdades de Artes,
Direito Canônico, Direito Civil e Medicina, reservando-se a Teologia aos
conventos Dominicanos e Franciscanos. A universidade, inicialmente instalada na
zona do atual Largo. Fixada definitivamente em Coimbra em 1537, sete anos
depois as suas faculdades se instalam no antigo Paço Real da Alcáçova, denominado
Paço das Escolas após a aquisição pela Universidade de Coimbra em 1597.
O
traje acadêmico representa um dos maiores símbolos da tradição acadêmica de
Coimbra. Desde o século XV o uniforme universitário era usado para distinguir
os acadêmicos das demais pessoas. Durante os séculos, a roupa sofreu diversas
alterações, mas, ainda hoje, vestir a capa e batina acadêmica é sinônimo de
prestígio. A roupa é acompanhada por uma pasta onde é preso o grelo das fitas,
uma espécie de novelo feito com fitas da cor do curso do aluno. A cor da
Faculdade de Letras, por exemplo, é o azul escuro, a de Medicina é o amarelo, a
de Direito é o vermelho e assim por diante. Quanto maior o grelo de fitas, mais
perto do final do curso está o aluno. O momento mais esperado pelos estudantes
de Coimbra é quando, literalmente, “queimam as fitas que os acompanharam
durante o curso”. A “Queima das Fitas” é a maior festa acadêmica de Portugal. A
formatura dos alunos de Coimbra é comemorada durante 10 dias no início do mês
de maio. Os festejos começam à meia-noite de uma quinta-feira nas escadarias da
Sé Velha, a igreja mais antiga da cidade, quando milhares de estudantes se
reúnem para cantar e ouvir o fado de Coimbra. A “Serenata Monumental” é
carregada de simbolismos. Nesta noite, os formandos queimam o “grelo” em
homenagem à conclusão do curso e, para os calouros, a “Serenata Monumental”
representa o batismo na vida universitária, quando podem vestir o traje acadêmico
pela primeira vez.
Da
sexta-feira seguinte ao outro final de semana todos os dias são de festa, os
alunos são liberados das aulas e os hotéis de Coimbra ficam abarrotados de
turistas e curiosos. Estas adendas, muitas delas esclarecedoras de situações
que poderiam ter uma interpretação dúbia das tradições e costumes dos
estudantes da Universidade de Coimbra (UC), foram feitas, essencialmente, em
duas vertentes. Uma, no sentido de
regulamentar e limitar a chamada “Praxe de Gozo do Caloiro”; outra, reestruturando
o modo de funcionamento do Senatus Praxis, de modo a possibilitar uma maior e
efetiva fiscalização do exercício da referida “Praxe”. As alterações mais
relevantes desta atualização são a proibição expressa nos seguintes termos: -
Realização de qualquer tipo de pintura sobre os Caloiros e os Novatos
mobilizados ou gozados; - Qualquer forma de extorsão ou usurpação exercida
sobre bens cuja propriedade seja do Caloiro ou do Novato, mobilizado ou gozado;
- Mobilização de Caloiros ou Novatos dentro do seu horário letivo, desde que
devidamente comprovado; - Desenvolvimento de atividades que lesem física ou
psicologicamente outrem; - Perturbar o normal funcionamento das atividades da
UC; - Perturbar os eventos e cerimónias desenvolvidos pela UC; - Perturbar ou
desrespeitar eventos inseridos na tradição e atividade da Academia de Coimbra; -
Desenvolvimento de atividades que lesem bens de terceiros.
Os
primeiros registros de trote são encontrados em quase todas as primeiras
universidades da Europa, como Paris, na França; Coimbra, em Portugal; e
Heidelberg, na Alemanha. Em Heidelberg são encontrados também os primeiros
relatos de violência na recepção aos calouros, em um livro chamado: “Manuale
Scholarium”, de 1481 de autoria coletiva desconhecida. A obra era usada para
ensinar latim e, como exemplos de conversação na língua, eram usados diálogos
sobre a vida estudantil na universidade entre os personagens fictícios do
calouro Joannes e dos veteranos Camillus e Bartoldus. Em um dos episódios
etnográficos descritos, os veteranos entram no quarto do calouro fingindo nojo do “terrível
fedor” do local. Sociologicamente os estudantes procuram a causa do cheiro e encontram-se metaforicamente diante do calouro,
“um bicho do mato, um monstro de horrendo aspecto, com enormes chifres e
dentes, nariz recurvo como um bico de coruja, olhar feroz e boca ameaçadora”.
No
ritual depois de o insultarem, eles têm pena do “pobre bicho, que afinal é um
futuro colega”. Oferecem um “vinho”, que na verdade, é urina. Joannes, o
calouro, se recusa a beber e é forçado. A partir daí, os veteranos decidem
“curar” o “monstro” para que seja aceito na comunidade universitária. É aí que
começa o “trote”. O calouro sofre intensas agressões físicas, é forçado a se
alimentar de comida com fezes e obrigado a admitir diversos “pecados”,
principalmente de origem sexual. Ele fica sob o comando de um “mestre”, a quem
tem que vestir, calçar, servir à mesa e até, em alguns casos, masturbar. Se o
novato se rebelasse, seria espancado pelos veteranos: prática que muitas vezes
levava à morte. Se sobrevivesse, o calouro então jurava que iria repetir com os
próximos novatos tudo o que lhe foi imposto. Assim, tornando-se um rito de
passagem, o aluno trotado, passava a
ser aceito na vida universitária de Heidelberg como veterano.
Enfim,
a modernidade é inerentemente
globalizante. Ela tanto germina a integração como a fragmentação. Nela
desenvolvem-se as diversidades como também as disparidades. A dinâmica das
forças produtivas e das relações de produção, em escala local, nacional,
regional e mundial, produz interdependências e descontinuidades, evoluções e
retrocessos, integrações e distorções, afluências e carências, tensões e
contradições. É altíssimo o custo social, econômico, político e cultural da
globalização do capitalismo, para muitos indivíduos e coletividades ou grupos e
classes sociais subalternos. Em todo o mundo, ainda que em diferentes
gradações, a grande maioria é atingida pelas mais diversas formas de
fragmentação. A realidade é que a globalização do capitalismo implica na
globalização de tensões e contradições sociais, nas quais se envolvem grupos e
classes sociais, partidos políticos e sindicatos, movimentos sociais e
correntes de opinião pública, em todo o mundo. Enquanto totalidade
histórico-social em movimento, o globalismo tende a subsumir histórica e
logicamente não só o nacionalismo e o tribalismo, mas também o imperialismo e o
colonialismo. Relações sociais entre formações sociais capitalistas distantes
se tornam correspondentemente “alongadas”, para lembramos de Anthony Giddens,
mas que não trataremos agora.
Bibliografia
geral consultada.
VAN GENNEP, Arnold, Os
Ritos de Passagem. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1978; LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Acadêmicos. 2ª edição. Lisboa: Editor Rei dos Livros, 1990; GIDDENS, Anthony, As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991; CRUZEIRO, Maria Eduarda, “A Universidade Sitiada: A Universidade de Coimbra entre dois Liberalismos (1820-1834)”. In: Análise Social, vol. XXIX (125-126), 1994 (1ª e 2ª), 385-415; FRIAS, Aníbal, “Praxe Acadêmica e Culturas Universitárias em Coimbra. Lógicas da Tradição e Dinâmicas Identitárias”. In: Revista de Ciências Sociais, (66) 81-116; 2003; CRUZEIRO, Manuela & BEBIANO, Rui, Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974). Porto: Editora Afrontamento, 2006; CARVALHO, Flávio
Rey de, Um Iluminismo Português? A Reforma
da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Editora Annablume, 2008; CARDINA, Miguel, Memórias Incómodas e Rasura do Tempo: Movimentos Estudantis e Praxe Acadêmica no Declínio do Estado Novo. In: Revista de Ciências Sociais, (81) 111-131; 2008; AGANTE, Diana Marisa Carvalho, Comportamentos Relacionados com o Consumo de Bebidas Alcoólicas durante as Festas Académicas nos Estudantes do Ensino Superior. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública. Faculdade de Medicina. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2009; JUSTE, Marília,
“Raspar Cabelos e Chamar Calouro de Bicho no Trote é Tradição da Era Medieval”. In: http://g1.globo.com/13/02/2009; RIOS,
Renata Lerina Ferreira, Quando a
Universidade é uma Festa: Trote e Formatura. Dissertação de Mestrado em
Educação. Programa de Estudos Pós-Graduados da Faculdade de Educação. Porto Alegre: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2010; SANTOS, Boaventura Sousa,
Portugal. Ensaio contra a Autoflagelação. Coimbra: Editor Almedina, 2012; MARTINS, Carlos Miguel Jorge, Coimbra 1969-1970/80: Luto Académico, Tradição e Mudança Política. Dissertação de Mestrado em História. Departamento de História, Arqueologia e Artes. Faculdade de Letras. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013; ESTANQUE, Elísio, Praxe e Tradições Acadêmicas. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016; FREIRE E ALMEIDA, Verônica Scriptore, A Implementação do Instituto dos
Trusts no Direito Brasileiro. Tese de Doutorado. Universidade de Coimbra,
2016; entre outros.
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