Ubiracy de Souza Braga*
A Lei Ficha Limpa “parece
ter sido feita por bêbados”. Ministro Gilmar Mendes
O princípio da “presunção da
inocência” ou princípio da “não culpabilidade”, segundo parte da doutrina
jurídica é um princípio jurídico de ordem constitucional. Quando aplicado no
direito penal estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado
da prática de infração penal. Está previsto expressamente pelo artigo 5º,
inciso LVII, da Constituição Federal, que preceitua que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Isso significa dizer que somente após um processo concluído, compreendido como aquele
de cuja decisão condenatória não mais caiba recurso, em que se demonstre a culpabilidade
do réu é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indivíduo condenado.
Em termos jurídicos, esse princípio se desdobra em duas vertentes: como “regra
de tratamento”, no sentido de que o acusado deve ser tratado como inocente
durante todo o decorrer do processo, do início ao trânsito em julgado da
decisão final, e, como “regra probatória”, no sentido de que o encargo de
provar as acusações que pesarem sobre o acusado é inteiramente do acusador, não
se admitindo que recaia sobre o indivíduo acusado o ônus de “provar a sua
inocência”, pois essa é a regra. Trata-se de uma garantia individual
fundamental e inafastável, corolário de princípio lógico do Estado Democrático
de Direito.
“Ficha
Limpa” é a designação mais precisamente e que ficou vulgarizada no Brasil, na
mídia como “capital da notícia”, mas principalmente no meio policial é uma Lei
Complementar nº 135 de 2010 que foi emendada à “Lei das Condições de Inelegibilidade”
ou Lei Complementar nº 64 de 1990, originada de um projeto de lei de iniciativa
popular idealizado pelo juiz Márlon Reis, entre outros juristas, que reuniu
cerca de 1,6 milhão assinaturas com o objetivo de aumentar a idoneidade dos
candidatos. Márlon Jacinto Reis, é juiz de Direito, Titular da 58ª Zona
Eleitoral do Maranhão, conhecido pela defesa da lei “Ficha Limpa”, um dos mais
influentes segundo a revista Veja. Foi o primeiro juiz à impor aos candidatos a
prefeito e a vereador revelar os nomes dos financiadores de suas respectivas
campanhas antes da data da eleição. Marlon Reis é um dos fundadores do “Movimento
de Combate à Corrupção Eleitoral”. Conquistou o prêmio do Instituto Innovare (2004),
na categoria Juiz Individual, “em reconhecimento as suas práticas pela melhoria
da Legislação Eleitoral no Estado do Maranhão”. Publicou o livro: “O Nobre
Deputado - Relato chocante (e verdadeiro) de como nasce, cresce e se perpetua
um corrupto na política brasileira” (2014).
O
juiz Marlon Reis, membro do “Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral” e um
dos articuladores do projeto de autoria popular que resultou na “Lei da Ficha
Limpa”, relata práticas de corrupção em seu livro: "O Nobre Deputado -
Relato chocante (e verdadeiro) de como nasce, cresce e se perpetua um corrupto
na política brasileira". Um caso verídico, demonstrando os terríveis
efeitos da corrupção, é o de Benedito Leite (MA), um carente município de um
dos mais pobres estados brasileiros, um convênio no valor de R$ 970 mil foi
firmado em 2009 com a prefeitura local para a construção de uma pequena escola.
Quatro anos depois, a construção, inacabada, ruiu. O autor relata práticas do
deputado Cândido Peçanha, personagem que é fictício, mas as práticas descritas
por eles são reais. "O trabalho de pesquisa foi enriquecido com a análise
de provas colhidas em processos judiciais". Reis realizou entrevistas em
diversos Estados brasileiros e concluiu que há um padrão na adoção de certas
práticas em todas as regiões do País. Entre suas fontes, cujas identidades ele
preserva, há um senador. O livro apresenta duas partes: a corrupção na
arrecadação de dinheiro para as campanhas, feita por meio de doação não
declarada, desvio de dinheiro de emendas parlamentares e convênios, licitações
viciadas e agiotagem, e as artimanhas para converter os recursos arrecadados em
votos, pela compra de apoio e dos próprios votos.
A
lei tem como objetivo tornar inelegível por 8 (oito) anos: a) um candidato que
tiver o mandato cassado, b) ,renunciar para evitar a cassação, ou, c) for
condenado por decisão de órgão colegiado com mais de um juiz, mesmo que ainda
exista a possibilidade de recursos. O Projeto foi aprovado na Câmara dos
Deputados em maio de 2010 e também foi aprovado no Senado Federal em maio de
2010 por votação unânime. Foi sancionado pelo Presidente da República,
transformando-se na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Esta lei
proíbe que políticos condenados em decisões colegiadas de “2ª Instância” possam
se candidatar. Em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou
a lei constitucional válida para as eleições subsequentes que foram realizadas
em 2010, para a compreensão da posição política defendida pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
Após
a decisão do TSE que confirmou a validade para as Eleições de 2010, por conta
de críticas feitas por integrantes do STF contrários à aplicação da lei, como o
Ministro Gilmar Mendes e Marco Aurélio, vários candidatos barrados pela lei da
Ficha Limpa entraram na justiça, rumo ao Supremo, para terem o direito de se
candidatar alegando que lei seria inconstitucional ou que ela não poderia valer
para aquele ano já que existe uma outra lei contrária a alterações no processo
eleitoral no mesmo ano das eleições. Os que estavam a favor da aplicação da lei
naquele mesmo ano alegaram, entre outros motivos, que a lei não alteraria o
processo eleitoral, mas apenas as regras para inscrição dos candidatos. No dia
22 de setembro, a menos de um mês das eleições, os ministros do STF começaram o
julgamento de Joaquim Roriz, ex-senador que renunciou ao seu mandato em 2007
para escapar de um processo por quebra de decoro parlamentar e tentava disputar
o governo do Distrito Federal pela quarta vez, teve seu registro impugnado por
tribunais inferiores. O resultado deste julgamento seria importante, pois iria
definir todos os outros casos naquela eleição.
Após
o ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, ter votado a favor da lei da
Ficha Limpa ser aplicada a Roriz, o presidente Cezar Peluso interrompeu o
processo para questionar um fato que não foi suscitado: a possível
inconstitucionalidade formal da lei. Isso causou surpresa nos outros
magistrados e, após um impasse, o ministro Dias Toffoli pediu vista do recurso.
O julgamento foi retomado já no dia seguinte, 23. E o resultado da votação dos
magistrados ficou empatado com cinco ministros votando a favor e cinco contra: A
favor: Carlos Ayres Britto, Carmem Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski,
Ellen Gracie Northfleet. Contra: Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Marco Aurélio
Mello, Celso de Mello, Cezar Peluso. O STF contava no momento do julgamento com
apenas dez ministros, pois o Ministro Eros Roberto Grau aposentou-se
voluntariamente em 2 de agosto de 2010 [13] e o cargo ainda não havia sido
preenchido. Estando o pleno do tribunal com um número par de ministros e tendo a
votação empatada em 5 a 5, surgiu a dúvida de qual resultado declarar.
Depois
de intensa argumentação dos ministros, Cezar Peluso, o presidente do STF, optou
por suspender o julgamento sem a proclamação do resultado. Não foi dada pelo
pleno do tribunal uma previsão para a retomada do julgamento, mas, segundo
especulação do jornal “O Globo”, a “expectativa é de que os ministros voltem à
questão na próxima quarta-feira, a quatro dias da eleição”. Segundo essa
reportagem, nota-se que as possíveis soluções para o julgamento estão alinhadas
ao próprio voto de cada ministro: Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia, Joaquim
Barbosa, Ellen Gracie e Carlos Ayres Britto (relator do caso) propõem que seja
mantida a decisão do TSE, que se aplique a Lei Ficha Limpa já neste ano,
Contudo, Antônio Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio sugerem que o
tribunal aguarde a nomeação de um novo ministro, para que então o tribunal
decida usando o voto do recém-nomeado como “voto de minerva”; ou que tal voto
seja dado pelo presidente do Supremo. Quanto a esta hipótese, o presidente Cezar Peluso, apesar de
ter integrado um dos cinco votos contra a aplicabilidade da lei, rechaça-a
argumentando não ter “vocação para déspota”.
No
dia 23 de março de 2011, a validade da lei nas eleições 2010 foi derrubada por
6 votos a 5 no Supremo Tribunal Federal. O voto do ministro Luiz Fux — que
havia chegado à corte há um mês, após a aposentadoria de Eros Grau — decidiu
pela invalidade da lei. A Constituição a esse respeito diz textualmente que
qualquer lei que altere o processo eleitoral “não valerá para as eleições até
um ano da data de sua vigência”. A decisão da não-aplicação da lei beneficiou
diretamente vários candidatos cuja elegibilidade havia sido barrada por causa
de processos na Justiça, como Jader Barbalho, Joaquim Roriz e João Capiberibe.
A Lei da Ficha Limpa passa a valer apenas a partir das eleições municipais de
2012, e será de fato aplicada apenas se passar em uma nova votação para decidir
sobre sua constitucionalidade. Apesar do fundamento constitucional para a
aplicação da lei, houve protestos por parte da sociedade e de alguns políticos,
como as senadoras Marinor Brito e Heloísa Helena e o senador Pedro Simon, que se
lembrou da mobilização popular e das entidades da sociedade civil para a
construção da democracia no Brasil, e que a “Lei da Ficha Limpa” foi de
iniciativa popular e contou estatisticamente com mais de 1,6 milhões de
assinaturas.
No
dia 16 de fevereiro de 2012, o STF decidiu que a lei da “Ficha Limpa” não
desrespeitava a Constituição e que, portanto, é válida para as eleições de 2012
e para os próximos pleitos eleitorais que estão por vir. Dos ministros do STF,
sete votaram a favor da lei e quatro foram contrários. Os votos favoráveis
basearam-se no “princípio da moralidade”, que consta no parágrafo nono do
artigo 14 da Constituição Federal do Brasil e diz que “lei complementar
estabelecerá casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade
administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida
pregressa do candidato”. Os quatro votos contrários foram argumentados com base
no chamado princípio de “presunção da inocência”, previsto no inciso 57 do
artigo 5º (cláusula pétrea) da Constituição, que diz que ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Como a Lei da Ficha Limpa diz que quem for condenado por órgão colegiado, mesmo
que ainda haja possibilidade de recursos, irá se tornar inelegível, os
ministros contrários à constitucionalidade da lei julgaram esse trecho da
legislação como inconstitucional. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a
presunção da inocência é válida para casos penais, não sendo amplo o suficiente
para atingir o texto da Ficha Limpa.
A
lei prevê a inegibilidade de candidatos que tenham sido julgados culpados por
tribunais de conta, entidades de classe entre outras, sem que, no entanto, a
condenação ter sido transitada em julgado. Com isso, argui-se que a lei vai de
encontro com o inciso LVII do artigo 5º da Constituição brasileira, o inciso
que diz respeito a presunção de inocência. E, além disso, como esses tribunais
e entidades não detém a última palavra na justiça brasileira, o ministro Gilmar
Mendes e o colunista Reinaldo Azevedo acreditam que uma condenação “viciada”
barraria candidatos que não seriam necessariamente condenados na justiça. Assim
poderiam criar-se diversos tribunais com amplo poder de decisão fora da
estrutura jurídica. Por exemplo, tribunais de contas que podem não aprovar a
conta de prefeitos, que ficariam assim inelegíveis. Como a nomeação de juízes
dos tribunais de conta é feita pelos governadores estaduais, teme-se o uso
político dos tribunais de conta estaduais, tornando inelegíveis prefeitos opositores
ao governo estadual. Teme-se que a legislação fira o princípio de “presunção da
inocência”, tornando inelegíveis as candidaturas de pessoas inocentes.
Na
primeira vez que a regra foi aplicada na disputa para prefeito e vereador, em
2012, o TSE recebeu quase oito (8) mil recursos referentes a impugnação de
candidatura, sendo que aproximadamente três mil foram baseadas na Lei da Ficha
Limpa. Os quase cinco (5) mil casos neste ano foram identificados após
cruzamento do CPF dos candidatos registrados com bases de dados de tribunais de
Justiça, tribunais de contas e outros órgãos de controle. Um sistema do
Ministério Público Federal (MPF) fez o cruzamento e os dados foram enviados aos
cerca de três mil promotores eleitorais, que devem verificar se a ocorrência
apontada vai ou não barrar o candidato. O sistema pode encontrar, por exemplo,
uma decisão judicial desfavorável ao político, mas que já está suspensa por uma
liminar. No STF, Gilmar Mendes causou polêmica em julgamento de um caso
envolvendo a rejeição das contas de candidatos. O número detectado até agora
pode estar subestimado, acredita o Ministério Público Eleitoral. Além do TSE
não ter validado todos os registros de candidaturas até o momento, há diversos
casos de “falso negativo” – quando o sistema não verifica pendências do
político pelo CPF, mas ele é inelegível. Ana Paula Mantovani, procuradora da
República e coordenadora nacional do Grupo Executivo Nacional da Função
Eleitoral estima que ao menos 10 mil recursos questionando registros de candidatura
cheguem ao TSE. Mesmo com prazos curtos para impugnação de registro, segundo
previsão, nem todos os casos sejam solucionados antes do primeiro turno, que
ocorre no dia 2 de outubro. – “Podemos ter muitos candidatos concorrendo sem a
definição com relação ao registro. Se ao final a decisão (do TSE) for pela
improcedência do recurso todos os votos são anulados”, afirmou a procuradora da
República.
Bibliografia
geral consultada:
Artigo: “Eleições 2014: Brasil precisa
se livrar do PMDB, diz Cid Gomes”. Disponível em: http: diariodonordeste.verdesmares.com.br/27.10.2014;
Artigo: “TRE julga improcedente ação de abuso de poder contra Cid e Camilo”. In:
http://g1.globo.com/ceara/2016/02/15;
FAORO, Raymundo, Os Donos do Poder -
formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editor Globo,
1958; Idem, Machado de Assis - a pirâmide
e o trapézio. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1974; Idem, Assembleia Constituinte - A Legitimidade
Recuperada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981; Idem, Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Editora Ática,
1994; Idem, “A aventura liberal numa ordem patrimonialista”. In: Revista USP. São Paulo, n°17, 1998, pp.
14-29; SOUZA, Jessé, “A Terapia Weberiana da Modernidade”. In: Sociedade e Estado, v. 5, n°1, pp.
93-104, 1990; Idem, “Homem, Cidadão: Ética e Modernidade em Weber”. In: Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 33, n° 32, pp. 135-143, 1994;
Idem (org.), O malandro e o protestante:
a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora
UnB, 1999; BERRIEL, Carlos E. O, “Utopie, distopie et histoire”. In: Morus – Utopia Renascimento, n°
3, 2006; CARROL, Lewis, Aventuras de
Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por
lá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009; entre outros.
_________________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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