sábado, 20 de agosto de 2016

Ficha Limpa – Utopia & Presunção de Inocência

                                                                                                              Ubiracy de Souza Braga*

                    A Lei Ficha Limpa “parece ter sido feita por bêbados”. Ministro Gilmar Mendes

                     

            O princípio da “presunção da inocência” ou princípio da “não culpabilidade”, segundo parte da doutrina jurídica é um princípio jurídico de ordem constitucional. Quando aplicado no direito penal estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infração penal. Está previsto expressamente pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isso significa dizer que somente após um processo concluído, compreendido como aquele de cuja decisão condenatória não mais caiba recurso, em que se demonstre a culpabilidade do réu é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indivíduo condenado. Em termos jurídicos, esse princípio se desdobra em duas vertentes: como “regra de tratamento”, no sentido de que o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o decorrer do processo, do início ao trânsito em julgado da decisão final, e, como “regra probatória”, no sentido de que o encargo de provar as acusações que pesarem sobre o acusado é inteiramente do acusador, não se admitindo que recaia sobre o indivíduo acusado o ônus de “provar a sua inocência”, pois essa é a regra. Trata-se de uma garantia individual fundamental e inafastável, corolário de princípio lógico do Estado Democrático de Direito.
“Ficha Limpa” é a designação mais precisamente e que ficou vulgarizada no Brasil, na mídia como “capital da notícia”, mas principalmente no meio policial é uma Lei Complementar nº 135 de 2010 que foi emendada à “Lei das Condições de Inelegibilidade” ou Lei Complementar nº 64 de 1990, originada de um projeto de lei de iniciativa popular idealizado pelo juiz Márlon Reis, entre outros juristas, que reuniu cerca de 1,6 milhão assinaturas com o objetivo de aumentar a idoneidade dos candidatos. Márlon Jacinto Reis, é juiz de Direito, Titular da 58ª Zona Eleitoral do Maranhão, conhecido pela defesa da lei “Ficha Limpa”, um dos mais influentes segundo a revista Veja. Foi o primeiro juiz à impor aos candidatos a prefeito e a vereador revelar os nomes dos financiadores de suas respectivas campanhas antes da data da eleição. Marlon Reis é um dos fundadores do “Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral”. Conquistou o prêmio do Instituto Innovare (2004), na categoria Juiz Individual, “em reconhecimento as suas práticas pela melhoria da Legislação Eleitoral no Estado do Maranhão”. Publicou o livro: “O Nobre Deputado - Relato chocante (e verdadeiro) de como nasce, cresce e se perpetua um corrupto na política brasileira” (2014).

   
O juiz Marlon Reis, membro do “Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral” e um dos articuladores do projeto de autoria popular que resultou na “Lei da Ficha Limpa”, relata práticas de corrupção em seu livro: "O Nobre Deputado - Relato chocante (e verdadeiro) de como nasce, cresce e se perpetua um corrupto na política brasileira". Um caso verídico, demonstrando os terríveis efeitos da corrupção, é o de Benedito Leite (MA), um carente município de um dos mais pobres estados brasileiros, um convênio no valor de R$ 970 mil foi firmado em 2009 com a prefeitura local para a construção de uma pequena escola. Quatro anos depois, a construção, inacabada, ruiu. O autor relata práticas do deputado Cândido Peçanha, personagem que é fictício, mas as práticas descritas por eles são reais. "O trabalho de pesquisa foi enriquecido com a análise de provas colhidas em processos judiciais". Reis realizou entrevistas em diversos Estados brasileiros e concluiu que há um padrão na adoção de certas práticas em todas as regiões do País. Entre suas fontes, cujas identidades ele preserva, há um senador.  O  livro apresenta duas partes: a corrupção na arrecadação de dinheiro para as campanhas, feita por meio de doação não declarada, desvio de dinheiro de emendas parlamentares e convênios, licitações viciadas e agiotagem, e as artimanhas para converter os recursos arrecadados em votos, pela compra de apoio e dos próprios votos.
A lei tem como objetivo tornar inelegível por 8 (oito) anos: a) um candidato que tiver o mandato cassado, b) ,renunciar para evitar a cassação, ou, c) for condenado por decisão de órgão colegiado com mais de um juiz, mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos. O Projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em maio de 2010 e também foi aprovado no Senado Federal em maio de 2010 por votação unânime. Foi sancionado pelo Presidente da República, transformando-se na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Esta lei proíbe que políticos condenados em decisões colegiadas de “2ª Instância” possam se candidatar. Em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a lei constitucional válida para as eleições subsequentes que foram realizadas em 2010, para a compreensão da posição política defendida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).            
Após a decisão do TSE que confirmou a validade para as Eleições de 2010, por conta de críticas feitas por integrantes do STF contrários à aplicação da lei, como o Ministro Gilmar Mendes e Marco Aurélio, vários candidatos barrados pela lei da Ficha Limpa entraram na justiça, rumo ao Supremo, para terem o direito de se candidatar alegando que lei seria inconstitucional ou que ela não poderia valer para aquele ano já que existe uma outra lei contrária a alterações no processo eleitoral no mesmo ano das eleições. Os que estavam a favor da aplicação da lei naquele mesmo ano alegaram, entre outros motivos, que a lei não alteraria o processo eleitoral, mas apenas as regras para inscrição dos candidatos. No dia 22 de setembro, a menos de um mês das eleições, os ministros do STF começaram o julgamento de Joaquim Roriz, ex-senador que renunciou ao seu mandato em 2007 para escapar de um processo por quebra de decoro parlamentar e tentava disputar o governo do Distrito Federal pela quarta vez, teve seu registro impugnado por tribunais inferiores. O resultado deste julgamento seria importante, pois iria definir todos os outros casos naquela eleição.



Após o ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, ter votado a favor da lei da Ficha Limpa ser aplicada a Roriz, o presidente Cezar Peluso interrompeu o processo para questionar um fato que não foi suscitado: a possível inconstitucionalidade formal da lei. Isso causou surpresa nos outros magistrados e, após um impasse, o ministro Dias Toffoli pediu vista do recurso. O julgamento foi retomado já no dia seguinte, 23. E o resultado da votação dos magistrados ficou empatado com cinco ministros votando a favor e cinco contra: A favor: Carlos Ayres Britto, Carmem Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie Northfleet. Contra: Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Cezar Peluso. O STF contava no momento do julgamento com apenas dez ministros, pois o Ministro Eros Roberto Grau aposentou-se voluntariamente em 2 de agosto de 2010 [13] e o cargo ainda não havia sido preenchido. Estando o pleno do tribunal com um número par de ministros e tendo a votação empatada em 5 a 5, surgiu a dúvida de qual resultado declarar.           
Depois de intensa argumentação dos ministros, Cezar Peluso, o presidente do STF, optou por suspender o julgamento sem a proclamação do resultado. Não foi dada pelo pleno do tribunal uma previsão para a retomada do julgamento, mas, segundo especulação do jornal “O Globo”, a “expectativa é de que os ministros voltem à questão na próxima quarta-feira, a quatro dias da eleição”. Segundo essa reportagem, nota-se que as possíveis soluções para o julgamento estão alinhadas ao próprio voto de cada ministro: Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Carlos Ayres Britto (relator do caso) propõem que seja mantida a decisão do TSE, que se aplique a Lei Ficha Limpa já neste ano, Contudo, Antônio Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio sugerem que o tribunal aguarde a nomeação de um novo ministro, para que então o tribunal decida usando o voto do recém-nomeado como “voto de minerva”; ou que tal voto seja dado pelo presidente do Supremo. Quanto a esta  hipótese, o presidente Cezar Peluso, apesar de ter integrado um dos cinco votos contra a aplicabilidade da lei, rechaça-a argumentando não ter “vocação para déspota”.
No dia 23 de março de 2011, a validade da lei nas eleições 2010 foi derrubada por 6 votos a 5 no Supremo Tribunal Federal. O voto do ministro Luiz Fux — que havia chegado à corte há um mês, após a aposentadoria de Eros Grau — decidiu pela invalidade da lei. A Constituição a esse respeito diz textualmente que qualquer lei que altere o processo eleitoral “não valerá para as eleições até um ano da data de sua vigência”. A decisão da não-aplicação da lei beneficiou diretamente vários candidatos cuja elegibilidade havia sido barrada por causa de processos na Justiça, como Jader Barbalho, Joaquim Roriz e João Capiberibe. A Lei da Ficha Limpa passa a valer apenas a partir das eleições municipais de 2012, e será de fato aplicada apenas se passar em uma nova votação para decidir sobre sua constitucionalidade. Apesar do fundamento constitucional para a aplicação da lei, houve protestos por parte da sociedade e de alguns políticos, como as senadoras Marinor Brito e Heloísa Helena e o senador Pedro Simon, que se lembrou da mobilização popular e das entidades da sociedade civil para a construção da democracia no Brasil, e que a “Lei da Ficha Limpa” foi de iniciativa popular e contou estatisticamente com mais de 1,6 milhões de assinaturas.
No dia 16 de fevereiro de 2012, o STF decidiu que a lei da “Ficha Limpa” não desrespeitava a Constituição e que, portanto, é válida para as eleições de 2012 e para os próximos pleitos eleitorais que estão por vir. Dos ministros do STF, sete votaram a favor da lei e quatro foram contrários. Os votos favoráveis basearam-se no “princípio da moralidade”, que consta no parágrafo nono do artigo 14 da Constituição Federal do Brasil e diz que “lei complementar estabelecerá casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”. Os quatro votos contrários foram argumentados com base no chamado princípio de “presunção da inocência”, previsto no inciso 57 do artigo 5º (cláusula pétrea) da Constituição, que diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Como a Lei da Ficha Limpa diz que quem for condenado por órgão colegiado, mesmo que ainda haja possibilidade de recursos, irá se tornar inelegível, os ministros contrários à constitucionalidade da lei julgaram esse trecho da legislação como inconstitucional. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a presunção da inocência é válida para casos penais, não sendo amplo o suficiente para atingir o texto da Ficha Limpa.
A lei prevê a inegibilidade de candidatos que tenham sido julgados culpados por tribunais de conta, entidades de classe entre outras, sem que, no entanto, a condenação ter sido transitada em julgado. Com isso, argui-se que a lei vai de encontro com o inciso LVII do artigo 5º da Constituição brasileira, o inciso que diz respeito a presunção de inocência. E, além disso, como esses tribunais e entidades não detém a última palavra na justiça brasileira, o ministro Gilmar Mendes e o colunista Reinaldo Azevedo acreditam que uma condenação “viciada” barraria candidatos que não seriam necessariamente condenados na justiça. Assim poderiam criar-se diversos tribunais com amplo poder de decisão fora da estrutura jurídica. Por exemplo, tribunais de contas que podem não aprovar a conta de prefeitos, que ficariam assim inelegíveis. Como a nomeação de juízes dos tribunais de conta é feita pelos governadores estaduais, teme-se o uso político dos tribunais de conta estaduais, tornando inelegíveis prefeitos opositores ao governo estadual. Teme-se que a legislação fira o princípio de “presunção da inocência”, tornando inelegíveis as candidaturas de pessoas inocentes.  



Na primeira vez que a regra foi aplicada na disputa para prefeito e vereador, em 2012, o TSE recebeu quase oito (8) mil recursos referentes a impugnação de candidatura, sendo que aproximadamente três mil foram baseadas na Lei da Ficha Limpa. Os quase cinco (5) mil casos neste ano foram identificados após cruzamento do CPF dos candidatos registrados com bases de dados de tribunais de Justiça, tribunais de contas e outros órgãos de controle. Um sistema do Ministério Público Federal (MPF) fez o cruzamento e os dados foram enviados aos cerca de três mil promotores eleitorais, que devem verificar se a ocorrência apontada vai ou não barrar o candidato. O sistema pode encontrar, por exemplo, uma decisão judicial desfavorável ao político, mas que já está suspensa por uma liminar. No STF, Gilmar Mendes causou polêmica em julgamento de um caso envolvendo a rejeição das contas de candidatos. O número detectado até agora pode estar subestimado, acredita o Ministério Público Eleitoral. Além do TSE não ter validado todos os registros de candidaturas até o momento, há diversos casos de “falso negativo” – quando o sistema não verifica pendências do político pelo CPF, mas ele é inelegível. Ana Paula Mantovani, procuradora da República e coordenadora nacional do Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral estima que ao menos 10 mil recursos questionando registros de candidatura cheguem ao TSE. Mesmo com prazos curtos para impugnação de registro, segundo previsão, nem todos os casos sejam solucionados antes do primeiro turno, que ocorre no dia 2 de outubro. – “Podemos ter muitos candidatos concorrendo sem a definição com relação ao registro. Se ao final a decisão (do TSE) for pela improcedência do recurso todos os votos são anulados”, afirmou a procuradora da República.

Bibliografia geral consultada:

Artigo: “Eleições 2014: Brasil precisa se livrar do PMDB, diz Cid Gomes”. Disponível em:  http: diariodonordeste.verdesmares.com.br/27.10.2014; Artigo: “TRE julga improcedente ação de abuso de poder contra Cid e Camilo”. In: http://g1.globo.com/ceara/2016/02/15; FAORO, Raymundo, Os Donos do Poder - formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editor Globo, 1958; Idem, Machado de Assis - a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1974; Idem, Assembleia Constituinte - A Legitimidade Recuperada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981; Idem, Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Editora Ática, 1994; Idem, “A aventura liberal numa ordem patrimonialista”. In: Revista USP. São Paulo, n°17, 1998, pp. 14-29; SOUZA, Jessé, “A Terapia Weberiana da Modernidade”. In: Sociedade e Estado, v. 5, n°1, pp. 93-104, 1990; Idem, “Homem, Cidadão: Ética e Modernidade em Weber”. In: Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 33, n° 32, pp. 135-143, 1994; Idem (org.), O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora UnB, 1999; BERRIEL, Carlos E. O, “Utopie, distopie et histoire”. In: MorusUtopia Renascimento, n° 3, 2006; CARROL, Lewis, Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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