quinta-feira, 26 de maio de 2016

Luiza Erundina - A Política dos Partidos Políticos Socialistas.



                                                                                                             Ubiracy de Souza Braga*

 “A Marta é jovem, bem vestida e fez várias plásticas, mas nunca administrou nem a casa  dela”. Luiza Erundina

            

                Luiza Erundina de Sousa nasceu em Uiraúna, em 30 de novembro de 1934.  É um município brasileiro no Estado da Paraíba, localizado na microrregião de Cajazeiras. Está distante 476 quilômetros de João Pessoa, a capital do Estado. Sua fundação ocorreu em 2 de dezembro de 1953. Uiraúna polariza 4 municípios: Poço Dantas, Bernardino Batista, Joca Claudino e Poço de José de Moura. É conhecida como a “Terra dos Músicos e Sacerdotes”, devido a forte vocação dos munícipes nessas nobres profissões. Uiraúna é um dos principais municípios do Alto Sertão Paraibano devido seu comércio ativo e sua localização privilegiada, sendo uma das mais importantes rotas de ligação entre diversas microrregiões da Paraíba com o Estado do Rio Grande do Norte e Ceará. Foi reconhecida em 2008, no governo de Bosco Fernandes, como “Paris do Sertão”, devido à iluminação e à pavimentação nas vias da cidade, dando um novo e bonito aspecto comparado com Paris, Cidade Luz. É Assistente Social engajada e Deputada Federal pelo Estado de São Paulo, pertencendo à bancada do PSOL. Foi coordenadora-geral da coligação “Unidos pelo Brasil”. Ganhou notoriedade de 1ª prefeita de São Paulo representando o Partido dos Trabalhadores, em 1988. 

     
            
                “Podemos” em português e “Podem”, em catalão ou “Ahal Dugu”, em basco é um partido político espanhol de esquerda fundado em 2014. Tem como secretário geral o eurodeputado Pablo Iglesias Turrión, analista político e professor de Ciência Política. O partido participou das eleições europeias de 2014, quatro meses depois da sua formação e obteve cinco cadeiras de um total de 54, com 7,98% dos votos, sendo a quarta candidatura mais votada em Espanha. Em menos de uma semana tornou-se o partido político espanhol mais seguido nas redes sociais tradicionais, superando os partidos conservadores, como o PP de direita e PSOE de centro-esquerda, surpreendendo o establishment político espanhol. Representa um partido político de esquerda da Grécia. Foi fundado em 2004 como uma aliança eleitoral de 13 partidos e organizações de esquerda, sendo a componente principal o partido Synaspismós (SYN - Coligação de Movimentos de Esquerda e Ecológicos; em grego “Συνασπισμός της Αριστεράς των Κινημάτων και της Οικολογίας”, Synaspismos tis Aristerás tu Kinīmátōn kai tis Oikologías). Em maio de 2012, o SYRIZA apresentou-se como um único partido. Após a vitória eleitoral em janeiro de 2015 o líder do Syriza, Alexis Tsipras, foi empossado como primeiro-ministro para dirigir o novo governo democrático da Grécia - o Governo Tsipras. Realizou-se assim um governo de coalizão com o partido nacionalista conservador, Gregos Independentes.

            O “partido-movimento”, como eles se denominam, tem inspiração na ascensão do partido de esquerda Syriza, na Grécia, que elegeu o primeiro-ministro do país, Alexis Tsipras. “O Podemos”, partido surgido na Espanha após a manifestação dos Indignados, em 2011, é outro exemplo para o engajamento de Luíza Erundina na perspectiva do “Raiz Movimento Cidadanista”. É neste sentido o seu engajamento - "Há que mudar a lógica do Sistema. “Os de acima abaixo e os de abaixo acima”, pois em uma democracia real “o povo manda e o governo obedece”. Ou assumimos este objetivo com coragem, clareza e determinação ou jamais mudaremos. E há exemplos de que pode ser assim. Da vitória do Syriza na Grécia ao Podemos da Espanha. Dos zapatistas no México à democracia direta na Islândia. Temos também os nossos vizinhos; a Bolívia, com a organização dos indígenas e pobres e o primeiro presidente indígena das Américas; o processo constituinte no Equador; o Uruguai da revolução tranquila; a cidade de Medellín, na Colômbia, antes conhecida pelo cartel das drogas e hoje reconhecida como a cidade mais inovadora do mundo", diz trecho do manifesto.                                 
A ideia de “partidos” como é concebida na modernidade ocidental nasce originalmente da analogia entre algumas palavras: facções que dividiam as Repúblicas antigas, os clãs que se agrupavam em torno de um condottiere na Itália da Renascença, os clubes onde se reuniam os deputados das assembleias revolucionárias, os comitês que preparavam as eleições censitárias das assembleias revolucionárias, bem como as vastas organizações políticas populares que enquadravam a opinião pública nas democracias modernas. Essa identidade nominal justifica uma relação filosófica de parentesco “em si” e “para si”: conquistar o poder e exercê-lo. Em seu conjunto, o desenvolvimento dos partidos comparativamente parece estar associado ao da democracia, isto é, a extensão do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares nas sociedades contemporâneas.
Quanto mais as assembleias políticas veem desenvolverem-se suas funções e independências, tanto mais os seus membros se ressentem da necessidade de se agruparem por “afinidades eletivas” (“Wahlverwandtschaften”) a fim de agirem de comum acordo; quanto mais o direito de voto se estende e se multiplica, se torna necessário enquadrar os eleitores por comitês capazes de tornar conhecidos os candidatos e de canalizar os sufrágios em sua direção. Seu nascimento encontra-se ligado a formação dos grupos parlamentares e comitês eleitorais. Sua gênese situa-se fora do ciclo eleitoral e parlamentar, formando essa exterioridade quando se afigura doutrinas políticas como motoras. Não se devem confundir com os grupos os designados pelo seu local de reunião como ocorre com as assembleias das igrejas. Os jacobinos representaram a gênese distinguindo-se ideologia e política nacionalista.  
Comparativamente nos Estados Unidos da América, os comitês eleitorais se beneficiaram igualmente de circunstâncias especiais. Grande número de funções públicas era eletivo, o sufrágio popular teria ficado desamparado se não tivesse sido guiado por um organismo de seleção. A eleição presidencial processando-se naquele país pela maioria relativa, a intervenção de comitês bem organizados era indispensável para evitar toda divisão de votos. A irrupção contínua de imigrantes introduzia constantemente no corpo eleitoral uma massa de recém-chegados, absolutamente ignorantes da política norte-americana: era preciso que seus votos fossem canalizados para candidatos sobre os quais ignoravam tudo, ou que fossem recomendados pelo Comitê, para evitar o “sistema de despojos”, que atribuía ao partido vencedor os cargos públicos que poria à disposição dos comitês poderosos meios materiais.  Uma vez nascidas essas duas células-mater, grupos partidários e comitês eleitorais, foi suficiente que se estabelecesse uma coordenação permanente entre estes e que vínculos regulares os unissem àqueles para que se encontre em face de um verdadeiro partido. Geralmente, foi o grupo parlamentar que desempenhou o papel essencial nessa última fase.
Da influência dos sindicatos operários sobre a criação dos partidos, era preciso aproximar a das cooperativas agrícolas e dos agrupamentos profissionais camponeses. Se os partidos agrários demonstraram menos desenvolvimento que os partidos trabalhistas, manifestaram, contudo, grande atividade em certos países, notadamente nas democracias escandinavas, na Europa central, na Suíça, na Austrália, no Canadá e mesmo nos Estados Unidos da América. Trata-se às vezes de simples organismos eleitorais e parlamentares, conforme o primeiro tipo descrito, no caso, a França. Em contrapartida, aliás, há uma aproximação do mecanismo do nascimento do Partido Trabalhista britânico: os sindicatos e os agrupamentos agrícolas resolvem sobre a criação de um organismo eleitoral, ou se transformam diretamente em partido. A ação da Fabian Society no nascimento do Labour Party ilustra, por outro lado, a influência das “sociedades de pensamento”, como se dizia no século XVIII e dos agrupamentos intelectuais sobre a gênese dos partidos políticos.
Os exemplos de criação dum partido político por um cenáculo intelectual seriam igualmente bem numerosos: mas é muito raro que o partido encontre em seguida uma base popular que lhe permita alcançar êxito num regime de sufrágio universal. Esse modo de criação de partidos corresponderia antes a um sufrágio restrito. Ao contrário, a influência das igrejas e das seitas religiosas é sempre grande. Organizações católicas, senão o próprio clero intervém diretamente na criação de partidos cristãos da direita surgidos antes de 1914, e no aparecimento contemporâneo dos partidos democrata-cristãos. Na Bélgica, a intervenção das autoridades foi decisiva no desenvolvimento do Partido conservador católico. Para reagir contra as “leis do infortúnio” de 1879 sobre o ensino leigo e proteger a educação religiosa o clero suscitou a criação de “comitês escolares católicos”, no país provocando a retirada de crianças das escolas e a multiplicação de escolas livres. Da influência das ligas sobre os partidos pode-se fazer uma aproximação conceitual com a das sociedades secretas e de agrupamentos clandestinos.

Trata-se, com efeito, nos dois casos, de organismos com finalidades políticas que não agem no terreno eleitoral e parlamentar, os primeiros porque não querem, os segundos por não podem, estando sob a ação duma interdição legal. O Partido Comunista soviético não tem outra origem, que passou em 1917 da ilegalidade do poder, conservando, aliás, características notáveis de sua organização anterior, introduzidas em seguida nos partidos comunistas do mundo, reorganizados sobre o modelo do primeiro. Mais uma vez, deve-se constatar a influência da gênese dum partido sobre a sua estrutura definitiva. No caso do comunismo, é verdade que a manutenção da organização clandestina se justificava pela possibilidade de retornar à estrutura de um agrupamento secreto se as perseguições governamentais obrigassem a fazê-lo. O presidente não eleito de 2016, Michel Temer é membro de reconhecida seita.

Bibliografia geral consultada. 
TOCQUEVILLE, Alexis, De la Democratie en Amerique. Paris: Éditions Gallimard, 1951; WEBER, Max, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. New York: Charles Scribner’s Sons, 1958; Idem, Economia y Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992; MITZMAN, Arthur, La Jaula de Hierro. Una Interpretación Histórica de Max Weber. Madrid: Alianza Universidad, 1976; DUVERGER, Maurice, Os Partidos Políticos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores; Universidade de Brasília, 1980; NAUDON, Paul, Histoire Générale de la Franc-Maçonnerie, Paris: Presses Universitaires de France, 1981; PEREIRA, Marcia Aparecida Accorsi, A População de Rua, as Políticas Assistenciais Públicas e os Direitos de Cidadania: Uma Equação Possível?. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997; PERLMAN, Janice, O Mito da Marginalidade. Favelas e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002; ALBUQUERQUE, Maria José de, Verticalização de Favelas em São Paulo: Balanço de uma Experiência (1989 a 2004). Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006; GOMES, Rita Helena, A desobediência em Hobbes. Tese de Doutorado em Filosofia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007; SILVA, Rodrigo Freire de Carvalho, O Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e o Partido Socialista (PSCh) no Chile: A Transformação da Esquerda Latino-americana. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Brasília: Universidade de Brasília, 2011; LÖWY, Michael, “O Golpe de Estado de 2016 no Brasil”. In: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/17;  entre outros. 
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Rembrandt – Autorretratos, Técnica & Melancolia.



                                                                                                               Ubiracy de Souza Braga* 

     A sinceridade é o eventual engano de todos os grandes homens”. Rembrandt van Rijn


                                      
Historicamente Rembrandt é uma modificação do primeiro nome do artista, que começou a usá-lo em 1633 quando adicionou um d, e manteve a assinatura constante, apenas com uma pequena alteração puramente visual, sem alterações de pronúncia. Curiosamente, apesar de suas pinturas e gravuras apresentarem vários formatos de assinatura neste período inicial, seus documentos sempre mantiveram o original Rembrant. Esta prática de assinar com apenas o primeiro nome foi seguida por Vincent van Gogh, e provavelmente inspirada por Rafael, Leonardo da Vinci e Michelangelo, que são considerados os primeiros a adotar esta prática. Na infância frequentou aulas de Latim e foi matriculado na Universidade de Leida. Registros demonstram que ele tinha grande inclinação para pintura, tornando-se sem demora aprendiz do pintor, Jacob van Swanenburgh, com quem conviveu por três anos.
Após um breve, mas importante aprendizado de seis meses com o famoso pintor Pieter Lastman em Amsterdã, Rembrandt abriu um estúdio em Leida em 1624 ou 1625, compartilhando-o com seu amigo e colega de profissão Jan Lievens. Mas foi somente após a parceria com Jan Lievens, com quem dividiu um estúdio, que Rembrandt começou a criar sua reputação de artista talentoso e promissor. Com 21 anos já era professor de pintura e, aos 25, realizou seu primeiro trabalho por encomenda: o retrato de Nicolaes Ruts. Em 1627, Rembrandt começou a aceitar alunos, entre eles Gerrit Dou. Em 1629, foi descoberto pelo estadista Constantijn Huygens, pai do matemático e físico Christiaan Huygens, que conseguiu para o pintor importantes encomendas na corte de Haia. Como resultado desta relação social, o príncipe Frederik Hendrik continuou a adquirir as obras de Rembrandt até 1646. 


 

Rembrandt mudou-se para Amsterdã (1631), então em rápida expansão como centro comercial dos Países Baixos. Começou a praticar como retratista profissional, obtendo grande êxito, permanecendo com o marchand, Hendrick van Uylenburg, e em 1634 casou-se com sua sobrinha, Saskia van Uylenburg, advinda de uma família respeitável: seu pai fora advogado e prefeito (“burgemeester”) de Leeuwarden. Quando Saskia, a filha caçula, ficou órfã, passou a morar com sua irmã mais velha em Het Bildt. Rembrandt e Saskia casaram-se na igreja local de Sint Annaparochie, sem a presença de seus parentes. Assim, no mesmo ano, tornou-se cidadão de Amsterdã e membro da guilda local de pintores. Ele também conquistou diversos alunos, entre eles Ferdinand Bol e Govert Flinck.  Em 1639, passaram a viver em um casarão na Rua Jodenbreestraat. A hipoteca para financiar a aquisição da propriedade seria mais tarde a razão principal de graves dificuldades financeiras. 
      Foi neste local que recorreu com frequência aos vizinhos judeus para pintar cenas do Velho Testamento. Embora abastado, o casal enfrentou diversos problemas pessoais; seu filho Rumbartus morreu com dois meses de idade em 1635, e sua filha Cornelia apenas três semanas após o parto em 1638. Em 1640 tiveram mais uma filha, também chamada Cornelia, que morreu com um mês de idade. Somente seu quarto filho, Titus, nascido em 1641, é que sobreviveu até a maioridade. Saskia morreu em 1642, pouco depois do nascimento de Titus, provavelmente em decorrência de uma tuberculose. Os desenhos de Rembrandt, dela em seu leito de morte, estão entre seus trabalhos mais intimistas e comoventes. Durante a enfermidade de Saskia, Geertje Dircx foi contratada como enfermeira e babá de Titus, tornando-se durante a mesma época amante de Rembrandt.                       
As gravuras consistiam de uma técnica aperfeiçoada e simplificada pelo próprio pintor, por volta de 1630, onde ele gravava placas de metal com um buril e depois, com a utilização de alguns ácidos, corava estas ranhuras feitas nas placas, marcando-as. Com o auxílio de uma prensa ele transpunha esta imagem gravada na placa de metal para o papel, resultando em lindas gravuras. O nome desta técnica é “água-forte”. Rembrandt usava das mais variadas temáticas nas suas gravuras como cenas bíblicas, mitologia, paisagens, nus, retratos e outras mais, como também nas suas pinturas; embora os autorretratos sejam mais comuns neste tipo de arte. A fase onde realizou a maior quantidade de gravuras iniciou-se em 1636 e durou cerca de 20 anos. Muitas delas permanecem, algumas encontradas no Museu Rembrandt, em Amsterdã. Gravuras no mundo em exposições temporárias, a fim de que outros possam apreciar as obras do grande mestre.



No final da década de 1640, Rembrandt deu início a um relacionamento com sua empregada Hendrickje Stoffels. Em 1654 tiveram uma filha, Cornelia, o que provocou a intimação de Hendrickje pela protestante Igreja Reformada Holandesa para responder a acusação de que cometera "atos de uma prostituta com Rembrandt o pintor". Ela confessou a verdade, sendo excomungada. Rembrandt por sua vez não foi convocado ou excomungado, pois, como ateu não fazia parte de nenhuma igreja. Os dois foram considerados legalmente casados sob a lei comum do Direito, apesar do pintor não ter se casado oficialmente para não perder acesso aos recursos financeiros destinados a Titus no testamento de sua mãe. Rembrandt vivia socialmente além do que obtinha de suas rendas, comprando obras de arte, impressões e raridades, o que supostamente provocou em 1656 um acordo nos tribunais para evitar sua falência, que resultou na venda da maioria de seus quadros e sua imensa coleção de antiguidades. A lista de itens vendidos sobreviveu ao tempo.
Relaciona entre outros objetos os bustos de vários imperadores romanos, armaduras japonesas e um acervo de história natural e mineral. Os valores obtidos com as vendas em 1657 e 1658, contudo, foram irrisórios. Em 1660 ele foi forçado a vender sua casa e máquina impressora e mudar-se para uma habitação modesta em Rozengracht. As autoridades e credores eram em geral compreensivos com sua situação, com exceção da guilda de pintores de Amsterdã, que introduziu uma nova regra proibindo a qualquer um nas circunstâncias de Rembrandt de trabalhar como pintor. Para contornar a proibição, Hendrickje e Titus iniciaram um empreendimento para agenciar obras de arte, com Rembrandt como seu funcionário. Em 1661, ele foi contratado para completar os trabalhos do recém-construído paço municipal - a contratação só ocorreu, no entanto, após a morte de Govert Flinck, que fora designado originalmente para o trabalho. A obra resultante, A Conspiração de Claudius Civilis, foi rejeitada e devolvida ao pintor; apenas um fragmento dela acabaria conservado, quando na mesma época Rembrandt admitiu seu último aprendiz, Aert de Gelder.
     Em 1662 ele continuava a executar grandes encomendas de retratos e outras obras. Quando Cosme III da Toscana viajou a Amsterdã em 1667, visitou,  a casa de Rembrandt que nessa altura pintava em camadas de tintas, construindo a cena da região mais afastada até a sua frente, com o uso de vernizes entre estas camadas de tinta, que eram bem espessas, o que permitia uma ilusão de ótica graças à qualidade tátil da própria tinta. A manipulação tátil da tinta se aproximava de técnicas medievais, quando alguns efeitos de mimetismo transformavam a superfície da pintura. O resultado final varia muito no manuseio da tinta, sugerindo espaço de uma maneira particularmente singular e intimista. Rembrandt pintou basicamente três temas distintos: as pinturas sacras, os autorretratos e os retratos de grupos. As pinturas sacras foram realizadas por toda a vida do pintor, principalmente de cenas retratadas na Bíblia. Temos como bons exemplos desta fase "O retorno do filho pródigo" em exposição no Museu Hermitage de São Petersburgo e “Jacó abençoa os filhos de José” no Museu Staatliche Kunstsammlungen Kassel. Muito elogiado por seus contemporâneos, que sempre o reverenciaram como um mestre intérprete das histórias bíblicas graças à sua habilidade em representar emoções e atenção aos detalhes. Além disso, ficou muito famoso pela quantidade de autorretratos que realizou, sendo mais de 100 no total, por 40 anos. Estes autorretratos, que representavam “leituras psicológicas do autor”, foram comparados sociologicamente somente aos autorretratos que Vincent Van Gogh fez de si mesmo, mais de 200 anos depois.
Notadamente Rembrandt sempre foi fiel ao rosto que encontrava no espelho, tanto nos momentos felizes quanto nos de desespero, onde encarava as agruras da vida. Os retratos de grupos estavam em moda na Holanda na época de Remdrandt, onde grupos procuravam os pintores para terem seu retrato imortalizado em uma tela, e ainda podiam dividir os custos da produção entre si. Apesar de ter pintado apenas quatro retratos em grupo, dois dos mais famosos quadros de Rembrandt encontram-se nesta temática, A Aula de Anatomia do Dr. Tulp, em exposição no Museu Mauritshuis, em Haia e A Ronda Noturna, no Rijksmuseum, em Amsterdã. Em muitas pinturas bíblicas, como A Subida da Cruz, José Contando Seus Sonhos e A Stoning de São Estevão, Rembrandt pintou-se misturado como personagem na multidão, tal como Alfred Hitchcock no cinema. Acredita-se que Rembrandt fez isto, pois, para ele, a Bíblia era um tipo de diário, uma narrativa sobre os momentos de sua própria vida. O acabamento é cuidadoso, com técnica refinada. Os grupos de figuras são construídos segundo o receituário barroco, com gestos dramáticos e expressivos, de ação intensa.
Em 1642, o pintor Rembrandt entregou uma obra que pintara sob encomenda. Era a chamada A Ronda Noturna. O cliente a rejeitou, acusando o artista de "não ter pintado seu retrato", de ter representado "o cenário de uma ópera bufa" e de ter cobrado um preço "muito alto". Nos debates que se seguiram, o pintor foi enfim acusado de "pintar só o que queria". Um bom exemplo, neste sentido, refere-se O Juramento de Julius Civilis (1661) pintado a serviço do prefeito de Amsterdã. A encomenda havia sido recusada por diversos pintores e Rembrandt, passando por enormes dificuldades, aceitou o trabalho. O resultado, porém, desagradou aos governantes e ficou menos de um ano pendurado nas paredes da sede da prefeitura. Incumbido de retratar o episódio em que Julius Civilis reúne líderes batavos e combater os invasores romanos, Rembrandt apresentou uma tela realista, com um bando de bárbaros em volta do rei caolho. Não gostaram do realismo fiel do pintor. 


Talvez por isso, Rembrandt tornou-se um dos mais importantes nomes da história da arte ocidental. Enfim, existem vinte e sete autorretratos, 64 paisagens, a maioria pequena com um detalhamento impressionante. Um terço de suas gravuras era de tema religioso, muitas tratadas de forma bastante simplista, enquanto outras são impressões monumentais. Algumas eróticas, ou aparentemente obscenas também são encontradas, embora não haja paralelo a este tema em suas pinturas. Possuía uma série de gravuras de outros artistas e muitos esboços e influências que podem ser traçadas daí. Entre estes podemos destacar: Mantegna, Rafael Sanzio, Hercules Segers, e Giovanni Benedetto Castiglione. Assim como na pintura, comparativamente Rembrandt também passou por duas fases distintas no processo criativo na execução de gravuras, restando somente as impressões finais e esboços. Na segunda fase, mais madura (1650) uma quantidade de placas ainda restaram. Começa a experimentar diferentes tipos de papel para impressão, incluindo papel de arroz e veludo. Utiliza um tom de superfície, deixando a fina camada de tinta em partes da placa, ao invés de deixá-la completamente imersa em tinta em cada impressão.
     Outro detalhe encontrado nas gravuras da segunda fase é a quantidade de áreas brancas, o que sugeria espaço e outras áreas de linhas extremamente complexas, a fim de produzir tons escuros ricos em detalhes. Enfim, Rembrandt era requisitado pelos burgueses enriquecidos que desejavam se ver eternizados nas paredes de suas casas. Talvez por pura inaptidão para as contas viveu grande parte de sua vida endividado, motivo pelo qual foi à falência em 1656, aos 50 anos de idade. Depois de ter perdido a esposa e três filhos, teve ainda que vender sua enorme casa em Amsterdã, além de praticamente toda sua coleção de móveis, tapeçarias, joias e porcelanas. Até seus autorretratos, nunca antes postos à venda, tiveram que sair das mãos do autor. Além de usar a mãe, a esposa e o filho como modelos, Rembrandt realizou um grande número de autorretratos ao longo da vida. É interessante e talvez imprescindível no processo de análise, comparar as mudanças operadas na feição do artista com o passar dos anos. Diferentes estados psicológicos são demonstrados: o jovem bem-sucedido e inteligente, o homem imponente, o velho sereno e resignado. Este era Rembrandt Harmenszoon van Rijn, o maior pintor que a Holanda já teve, mas que só seria reconhecido como tal duzentos anos após a sua morte, aos 63 anos, na solidão e na quase absoluta miséria. 
Bibliografia geral consultada.


GARDINER, Muriel, El Hombre de los Lobos por el Hombre de los Lobos. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1983; CABANNE, Pierre, Rembrandt. Paris: Éditions du Chêne; Hachette Livre, 1991; ARTOLA, Juan Plazaola, História de Arte Cristiano. Madrid: Autores Cristianos, 1999; GOMBRICH, Ernest Hans Josef, A História da Arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1999;  BOCKEMUHL, Michael, Rembrandt. Lisboa: Editora Taschen, 2001; GENET, Jean, Rembrandt. Tradução de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio Editor, 2002;  PANOFSKY, Erwin, Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002; EUSÉBIO, Maria de Fátima, "A Apropriação Cristã da Iconografia Greco-Latina: o tema do Bom Pastor". In: Máthesis. Viseu. Universidade Católica de Petrópolis, 2005;  NOVAES, Joana de Vilhena, Auto-Retrato Falado: Construções e Desconstruções de Si. São Paulo, Volume 4, n° 2, novembro de 2007; QUERIDO, Alessandra Matias, “Autobiografia e Autorretrato: Cores e Dores de Carolina Maria de Jesus e de Frida Kahlo”. In: Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n° 3, dez. 2012; entre outros.  
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

domingo, 22 de maio de 2016

Stephen King - Merleau-Ponty e a Lógica Espiritual de Misery.

Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

  “A ilusão nos engana justamente fazendo-nos passar por uma percepção autêntica”. Maurice Merleau-Ponty

          O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty exercitou em sua teoria reflexões sobre a fenomenologia, movimento filosófico segundo o qual, assim que algo se revela frente à consciência humana, o Homem inicialmente o observa e o percebe em completa conformidade com sua forma, do ponto de vista da sua capacidade perceptiva. Na conclusão deste processo, a matéria externa é inserida em seu campo consciencial, convertendo-se, assim, em um fenômeno. O filósofo tem consciência de que as teorias sociais convencionalmente conhecidas sobre a percepção e a psicologia, contrariando Jean-Paul Sartre, percebe  em que instante a consciência é integrada no mundo.  As críticas analíticas de Merleau-Ponty ao modelo representacional da percepção e da consciência se constituem ao longo de sua démarche no âmbito filosófico. Todavia em O Visível e o Invisível (1996; 2007), praticamente abandona a preocupação com a crítica a estas questões. Aprofunda cada vez mais suas concepções sobre o corpo, sobre o Ser, inaugurando a concepção de “carne”. Escreve que a carne (“Chair”) não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso para designá-la, o termo “elemento” (“élément”) “em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo. Isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espaço-temporal e a ideia”.   
         Essa teoria circunscreve três impulsos filosóficos que serão afastados pelo trabalho merleau-pontyano: o teológico, que coloca o Absoluto como ponto de partida; o humanista, presente tanto nas filosofias da consciência quanto nas antropologias filosóficas, que faz da subjetividade o ponto de partida. Enfim, o naturalismo cientificista e o de um certo materialismo que, desejoso de corrigir as tendências anteriores, toma o homem e o mundo como processos objetivos impessoais. Esta é a tônica do filme Misery em que a miséria humana não é determinista, pois acaso, do latim: “a casu”, significa “sem causa”. Acaso é uma palavra que pode ser usada em três sentidos diferentes, dependendo do significado que se dê à palavra causa. A base do conhecimento está, portanto, na capacidade de perceber o que nos cerca. Implica também o processo de dar significado ao que foi captado pelos sentidos, para que se possam realizar as necessárias conexões entre os objetos perceptíveis, o que torna possível vê-los como um todo expresso na dinâmica de seu movimento.

  
             Leitora ardente e fã número 1 dos livros dele, Annie o prende na própria casa e o submete a uma série de torturas inimagináveis. Uma adaptação elegante, fiel e recheada de humor mórbido. Escritor de best-sellers, Paul Sheldon (James Caan) é salvo de um acidente por uma fã que resolve “guardá-lo para ela”. Ela se chama Annie Wilkes (Kathy Bates), enfermeira fanática pela personagem Misery Chastain. Paul, com as duas pernas quebradas e preso à cama, sente o alívio de não ter morrido tornar-se horror quando Annie descobre que a personagem Misery morre no último romance da série. Ele é obrigado a queimar o manuscrito com que esperava conquistar respeitabilidade literária. Annie exige que ele resgate Misery dentre os mortos e, diante do trágico e o inusitado, escrever essa história dramática, pois será sua única garantia de vida. Vale lembrar que num curso sobre o conceito de Natureza, ministrado em 1956/57, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma que o problema ontológico é aquele ao qual se subordinam todos os outros e por isso mesmo a ontologia não pode ser um teísmo, um naturalismo ou um humanismo, ou seja, não pode identificar o Ser com um dos seres - Deus, o homem ou a Natureza. Essa posição é reafirmada na última nota de trabalho de seu livro inacabado, O Visível e o Invisível (2007), quando apresenta o plano de seu escrito, escrevendo:  - “Trata-se precisamente de mostrar que a filosofia não pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas”. 
         Neste aspecto filosófico e metodológico, Marx, depois de Hegel, é quem melhor precisa, a ideia segundo a qual “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seios da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo existiam ou estavam, ao menos em via de aparecer. Narra que existe a “carne do mundo” e a “carne do corpo” e se imbricam na relação de percepção mútua. - “A carne é fenômeno de espelho e o espelho é extensão da minha relação com meu corpo”. É a possibilidade de corpo e mundo terem carne que os faz reconhecíveis para o outro, que nos faz capazes de, percebendo o mundo, refletirmos sobre este e sobre nós mesmos.
              Merleau-Ponty foi, ao lado de Jean-Paulo Sartre, a figura mais representativa do pensamento filosófico francês após a 2ª guerra mundial, e que se celebrizou por uma de suas manifestações reconhecidas: o existencialismo. Ele procura persuadir o leitor de que os conceitos fundamentais da filosofia - sujeito e objeto, fato e essência, ser e nada, consciência, imagem, coisa, palavra - já representam determinada interpretação singular do mundo. Sua obra foi profundamente inspirada pelos trabalhos de Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia, apesar de negar sua doutrina do conhecimento intencional, preferindo basear sua construção teórica na maneira de se portar do corpo e na captação de impressões dos sentidos.  No exame minucioso da percepção, Merleau-Ponty converte o processo fenomenológico em uma modalidade existencial, resumindo no logos a estrutura do mundo. Segundo sua concepção, a filosofia permite um novo aprendizado do olhar sobre o universo que o envolve, um retorno ao âmago do objeto. A base do conhecimento está, portanto, na capacidade suscetível de perceber o que nos cerca, o que implica também o processo sociológico de dar significado ao que foi captado pelos sentidos, para que se possam realizar as necessárias conexões entre os objetos perceptíveis, o que torna possível vê-los como um todo.         
        O trabalho parece ser uma categoria muito simples. A ideia de trabalho nesta universalidade, como  trabalho em geral, é também das mais antigas. No entanto, concebido do ponto de vista econômico nesta forma simples, o trabalho é uma categoria tão moderna como as relações que esta abstração simples engendra. Assim, apesar de historicamente a categoria mais simples poder ter existido antes da mais concreta, pode pertencer, no seu completo desenvolvimento - em compreensão e em extensão -, precisamente a uma forma de sociedade complexa, enquanto a categoria mais concreta se achava já completamente desenvolvida numa forma de sociedade mais atrasada. Assim, a abstração mais simples, que a economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, só aparece no entanto sob esta forma abstrata como verdade prática enquanto categoria da sociedade mais moderna. Isto é importante, na medida em que para Marx, o todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, ou seja, analiticamente, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático, antes como depois, o objeto real conserva a sua independência fora do espírito; e isso na duração em que tiver uma atividade meramente especulativa, meramente teórica. No emprego do método teórico é necessário que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro.   
        No filme, a máquina de escrever de Paul tem como representação uma tecla “N” defeituosa, o que alude assim como uma das primeiras máquinas históricas de escrever de Stephen King. Antes de James Caan assumir o papel de Paul Sheldon, ele foi oferecido para o genial Jack Nicholson. O ator recusou porque tinha feito O Iluminado em 1980, e não queria fazer outra adaptação de um livro de King. Curiosamente James Caan apareceu uma vez no set de ressaca, e todas as cenas que ele filmou naquele dia obviamente não ficaram boas para exibição. O diretor Rob Reiner disse a James Caan que ele teria que fazer as cenas novamente porque havia “um problema no laboratório”. Quando Caan descobriu que não tinha nada de errado com o laboratório, ele se ofereceu para cobrir o dinheiro que o estúdio perdeu com a gravação extra. Annie Wilkes é a personagem favorita na literatura ficcionista de King, porque ela sempre foi surpreendente para escrever, com profundidade e simpatia inesperadas. Segundo Merleau-Ponty, a esfera humana é uma espécie de “intermundo”, o qual pode ser explicado como o contexto histórico, a simbologia, ou a verdade a ser construída.
    Algo que acena com a possibilidade de uma significação das coisas, apesar de todos os paradoxos existenciais. Neste sentido, ser é visto pelo outro como uma fração de mundo, a interação social entre as consciências e a ligação dialética entre o senhor e o escravo no sentido hegeliano. Contudo, as obras mais significativas de Merleau-Ponty são as de natureza psicológica, para o que nos interessa, estão entre elas: A Estrutura do Comportamento, de 1942, e Fenomenologia da Percepção, de 1945. Na sua fase de inferência política elaborou uma série de outros ensaios de teor marxista como: Humanismo e Terror, de 1947, uma apologia do comunismo soviético de fins da década de 1940. Em 1955 ele passa por uma modificação na sua weltanschauung sobre este regime, no ensaio: As Aventuras da Dialética, de 1955, no qual o marxismo é visto comparativamente mais como um método de análise do que representando uma práxis revolucionária para se avançar politicamente sobre o debate da questão tópica da verdade no âmbito histórico da fenomenologia. Ao distanciar-se de suas primeiras obras e buscar a ontologia, Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se na nota de O Visível e o Invisível, na medida em que para ele: “o Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”.
               Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: “filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações”. Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do pensador. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que  abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser. Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto. Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis, que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim “eu quero”, “eu posso”, mas que “não saberia como concretizar isto que ele quer e pode senão querendo e podendo”. Isto é, agindo, realizando uma experiência e sendo essa própria experiência na existência.
              O que torna possível a experiência criadora é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito da ação como intenção de significar alguma coisa muito precisa e determinada no campo da ação social. Em A Estrutura do Comportamento, obra dedicada ao tema da relação entre corpo e espírito, Merleau-Ponty confronta as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia, e afirma que o interesse pela noção de comportamento advém de suas possibilidades para uma compreensão do mundo humano que escape tanto da redução mecanicista dos acontecimentos psíquicos quanto da assimilação do psiquismo à consciência pura. Graças a essa noção, pensada como estrutura, o filósofo pode distinguir entre a ordem física, a biológica e a humana, ordens que não podem ser reduzidas umas às outras, por nenhum tipo de mentalidade, mas dotadas de especificidade e diferença intrínseca. A elaboração da idéia de ordem humana como instituição da ordem simbólica da cultura efetuada pela percepção, pela linguagem e pelo trabalho, ou como relação com o possível e com o ausente,  assegura a  irredutibilidade dessa ordem à ordem física e à biológica, mas nem por isso a concebe como uma construção intelectual específica posta pela consciência reflexiva: o comportamento humano não é uma coisa nem é uma ideia.
              O referencial teórico de Merleau-Ponty ainda conserva ressonâncias da tradição esquecida da antropologia filosófica, pois o papel central é conferido à consciência perceptiva e não à percepção. Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber, a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem são dissimuladas? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevôo é um “projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento”. A crítica analítica do possessivo é, simultaneamente, afirmação de que a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um ponto de partida absoluto, Deus, o homem, a Natureza, mas um solo originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados: o que está ligado de forma inseparável ao ser. É aquilo que está intimamente unido e que diz respeito ao próprio ser. A miséria humana é inerente e faz parte da pessoa ou coisa e que lhe é inseparável por natureza. É o que é intrínseco, específico e que pode servir para caracterizar algo ou alguém para o bem ou o mal.  
Bibliografia geral consultada. 
MERLEAU-PONTY, Maurice, La Structure du Comportement. Paris: Presses Universitaires de France, 1942; Idem,  Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo: Editor Saraiva, 1973; Idem, “Textos Selecionados”. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980; Idem, Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996; Idem, Le Primat de la Perception et ses Conséquences Philosophiques, Précédé de, Projet de Travail sur la Nature de la Perception. Lagrasse: Éditios Verdier, 1996; Idem, Le Visible et le Invisible. Paris: Éditions Gallimard, 1996; Idem, O Visível e o Invisível. 4ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007; MOUTINHO, Luiz Damon Santos, “O Invisível como Negativo do Visível: A Grandeza Negativa em Merleau-Ponty”. In: Trans/Form/Ação. Vol.27 n° 1 Marília, 2004; SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da, A Carnalidade da Reflexão: Ipseidade e Alteridade em Merleau-Ponty. Tese de Doutorado em Ciências Humanas. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2007; CHAUÍ, Marilena, “Merleau-Ponty: A Obra Fecunda”. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/; GRESS, Thibaut, “Maurice Merleau-Ponty: Oeuvres”. In: Actu-Philosophia, 6 février 2011; KING, Stephen, Misery: Louca Obsessão. Rio de Janeiro: Editor Francisco Alves, 1991; Idem, Misery: Louca Obsessão. São Paulo: Editora Suma de Letras, 2014; DIAS, João Carlos Neves de Souza e Nunes, O Corpo como Expressão e Carne: Texturas do Corpo na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017; entre outros.