quinta-feira, 21 de abril de 2016

Fritz Lang - Leitor de Maquiavel, Cinema & Drama Histórico Moral.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga*

                                                                                             Eu avalio a indústria cinematográfica. E pensar que poderia ter sido uma arte”. Fritz Lang
           
     
           O expressionismo representou um movimento cultural de vanguarda que surgiu na Alemanha no início do século XX, onde as pessoas começaram a produzir obras de arte que refletissem ou expressassem diretamente o mundo interior do artista. Esse movimento atingiu quase todos os campos das artes, desde a arquitetura, artes plásticas, literatura, música, cinema, teatro, etc. No cinema, o expressionismo alemão teve como destaque diversos cineastas como Robert Wiene, Paul Leni e Friedrich Wilhelm Murnau, entre outros, bem como de Fritz Lang, que é um dos cineastas mais lembrados desse período. Ele nasceu como Friedrich Anton Christian Lang, na cidade de Viena, na Áustria, no dia 5 de dezembro de 1890, e fez trabalhos na Alemanha, França e Estados Unidos da América (EUA), sendo ocasionalmente um ator e produtor cinematográfico. Morto tragicamente aos 42 anos, num acidente de carro em 1931, Friedrich Murnau não teve a carreira prolífica de um Fritz Lang. Foram apenas 20 longas, dos quais muitos, do início da carreira, foram perdidos. A retrospectiva no Humberto Mauro exibe, além de um documentário sobre a juventude do alemão até a realização de Nosferatu, os 12 títulos preservados, incluindo seu último trabalho, Tabu.
            Desnecessário dizer que as preleções em torno da obra de Friedrich Nietzsche, que se encontram traduzidas tardiamente, mas pela primeira vez em língua portuguesa, foram realizadas por Heidegger na Universidade de Freiburg, durante os anos “duros como diamantes” entre 1936 e 1940. Decorre daí a possibilidade feliz de um encontro saudável e decisivo entre dois pensadores no epicentro para todos os desdobramentos ulteriores da filosofia contemporânea. O que temos na essencialidade, com isso, é uma abertura ímpar na história da filosofia (e da ciência) de acompanhar um real diálogo entre pensadores decisivos, fundamentais. Ipso facto, seria quase impossível compreender a filosofia deste século XX sem a influência corrosiva e libertadora da postura antidogmática de Nietzsche, como imaginar os avanços e influências desta filosofia, em Jean-Paul Sartre ou Kostas Axelos, por exemplo, sem a luta heideggeriana contra as sedimentações da linguagem e seu empenho pela constituição histórica de novos projetos em torno da mundanidade? E Heidegger, nos oferece  indicação, que veremos adiante quando afirma  – “Nietzsche- o nome do pensador encontra-se como título para a coisa de seu pensamento. A coisa, o caso litigioso, é em si mesma uma confrontação. Deixar o nosso pensamento se inserir na coisa mesma, prepara-lo para ela – isso forja o conteúdo da presente publicação”.

Não por acaso, lembramos que Heidegger descreve nesta passagem o cunho propriamente dito de suas preleções nietzschianas. Isto é, por meio de uma palavra que ele utiliza com alguma frequência e que demonstra sua centralidade no contexto das questões formuladas nesse ínterim: a palavra é Auseinandersetzung: confronto, conflito, polêmica, debate, disputa, que está sendo traduzida pela expressão “confrontação”. Em certo sentido, a riqueza do original alemão, traduzido ao pé-da-letra significa “pôr-se à parte um do outro”, indicando claramente o surgimento de um afastamento necessário entre ambos, mas evidenciando per se uma tomada de posição indispensável para a plena consideração crítica daquilo que se demonstra e para a formação do processo de interpretação. É sempre preciso se afastar de algo para poder vê-lo em sua identidade. Todavia, o afastamento mantém incessante a tensão específica, que é expressa pelo elemento inerente à confrontação, à dissenção, à discussão e à batalha das ideias. Não se trata, pois, de maneira nenhuma da tolice sociológica da “neutralidade científica” e da conquista de um ponto de vista neutro, que permitiria uma visão pura e objetiva de algo dado – isso não existe em ciência e filosofia, mas muito mais de um distanciamento que instaura ao mesmo tempo a questão tópica da proximidade.  

Sociologicamente o que está em questão é a ideia de manutenção da proximidade instaurada pelo próprio afastamento; também a conquista mútua de um próprio, em meio ao surgimento da tensa relação. Porquanto os dois se apartam um do outro, cada um aparece para o outro como si mesmo. Em meio a confrontação ocorre a determinação afetiva.  O impessoal precisa ser apreendido em articulação com a compreensão da técnica que se apresenta como instâncias determinantes do modo de abertura do ente na totalidade que vigora em nosso tempo. Com isso, compreensão projeta o campo existencial do poder-ser que cada ser-aí é, mas sempre levando em conta a relação filosófica com o mundo fático que se apresenta de forma tenra constitutiva das possibilidades efetivas de ser. Na Alemanha a carreira do jovem acadêmico que porventura se dedica à ciência começa normalmente com o posto propedêutico de Privatdozent. Após o contato progressivo com os especialistas e deles recebido o assentimento, ele começa a lecionar como residente, à base de um livro que tenha escrito sob a forma de tese e, habitualmente, depois de um exame formal e criterioso perante o corpo docente da universidade.      

Em seguida, profere um curso de preleções sem receber qualquer salário além de taxas pagas pelos alunos que se inscreverem. Cabe-lhe determinar, dentro de sua venia legendi, os tópicos sobre os quais falará. Entre norte-americanos, observava Max Weber, em 1919 que a carreira acadêmica começa quase sempre de forma totalmente diferente, ou seja, pelo cargo de Assistente. Assemelha-se esse processo ao que ocorre nas grandes instituições de Ciências Naturais e Faculdades de Medicina na Alemanha, onde habitualmente apenas uma pequena fração dos Assistentes - por mérito - procura habilitar-se como Privatdozent, e assim mesmo quase sempre no fim de sua carreira. Esse contraste significa que a carreira na Alemanha se baseia, em geral, em exigências plutocráticas, pois é extremamente arriscado para um jovem professor sem recursos econômicos expor-se às condições da carreira acadêmica. Ele terá de suportar tal situação pelo menos alguns anos, sem saber se terá oportunidade de elevar-se a uma posição que encerre uma remuneração suficiente para a sua manutenção. Ele não tem propriamente direitos, mas ali se estabelece sua consciência tácita de que, depois de anos de trabalho, tem uma espécie de direito moral a alguma consideração. O trabalhador-assistente, depende dos implementos que o Estado coloca à sua disposição; portanto, é tão dependente do chefe do Instituto quanto o empregado, comparativamente de uma fábrica depende da direção.

            Martin Heidegger é incisivo: questionaremos a técnica. Isto quer dizer: trabalhar na construção de um caminho. Por isso a tendência é conselheira: considerar sobretudo o caminho e não ficar preso às várias sentenças e aos diversos títulos. O caminho é um caminho do pensamento. Todo caminho de pensamento passa, de maneira mais ou menos perceptível e de modo extraordinário, pela linguagem. Questionando a técnica pretende-se com isto preparar um relacionamento livre com a técnica. Livre é o relacionamento capaz de abrir nossa Pre-sença à essência da técnica. Da resposta à essência é possível fazer a experiência dos limites de tudo que é técnico. Mas adverte: a técnica não é igual à essência da técnica. Assim também a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico. A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica, de acordo com uma lição antiga, é entendermos que a essência de alguma coisa é aquilo que ela é, como aquilo que é afirmativo na dialética hegeliana. Questionar a técnica significa perguntar o que ela é. Pertence à técnica a produção e o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas, como a ela pertencem estes produtos e utensílios em si mesmos e as necessidades a que eles servem. O conjunto de tudo isso é a técnica. A própria técnica é também um instrumento. Enfim, a concepção corrente da técnica de ser ela um meio de trabalho e uma atividade humana pode se chamar, portanto, a determinação instrumental e antropológica da técnica.

          Fritz Lang é considerado dentre os mais famosos cineastas contemporâneos vinculado ao expressionismo alemão, cujo auge se deu na década de 1920. É caracterizado pela distorção de cenários e personagens, através da maquiagem, dos recursos de fotografia e de outros mecanismos, com o objetivo de expressar a maneira como os realizadores viam o mundo. Em 1919 estreou na direção com o filme intitulado Halbblut, obtendo o primeiro sucesso com Os Espiões (“Spies/Spione”), do mesmo ano de sua estreia. Baseado no romance de Thea von Harbou, sua parceira e esposa que também assina o roteiro, a história gira em torno do desaparecimento de certos documentos e a iminente assinatura de um tratado internacional. Alemães, russos, franceses e japoneses do ponto de vista da análise comparada têm interesses na correlação de forças sociais e políticas. A montagem inicial é ágil e já nos deixa a par dos fatos políticos e uma antecipação da ação em seu devir. É um filme que não envelhece. Chega com fôlego na história do cinema e da modernidade aos oitenta anos de sua démarche. Seu ritmo extraordinário e o uso da técnica garantem a adrenalina.   

                                   
           Fritz Lang era o segundo filho do arquiteto e gerente de uma empresa de construção civil Anton Lang e de Pauline Lang, católicos romanos praticantes, apesar de sua mãe ter nascido judia ish e depois se convertido ao catolicismo quando Fritz tinha 10 anos de idade. Lang nunca demonstrou interesse pela herança judaica e identificou-se mais com o catolicismo, não sendo um devoto praticante, apesar de ter utilizado regularmente imagens católicas e temas em seus filmes. Fritz começou estudando engenharia civil na Universidade Técnica de Viena, fundada em 1815 como Instituto Politécnico Real e Imperial. O escopo da universidade é o ensino e a pesquisa em engenharia e ciências naturais. mas depois acabou migrando para a arte. Por volta de 1910 resolveu sair de Viena e viajou para conhecer a Europa e também a África, depois foi para a Ásia quando conheceu parte do Pacífico, e em 1913 resolveu ir para a Paris, onde passou a estudar pintura. A efervescência cultural, política e social da Berlim do pós-guerra, se reflete nas suas primeiras obras. Em 1919 estreou na direção cinematrográfica com um filme chamado Halbblut que se encontra perdido, acerca do qual se sabe muito pouco. Alcançou o primeiro sucesso com o filme Os Espiões, do mesmo ano de sua estreia.
      Dirige na sequência Die Nibelungen (1924) – um filme sobre o “fantástico mitológico”, ou, a distopia futurista “Metropolis” (1927) tendo os trabalhadores, que vivem debaixo de terra e põem as máquinas para funcionar, e a classe dirigente, para lembramos de Antônio Gramsci (1975) que vive à superfície – talvez o expoente máximo do cinema dos anos 1920. Nasceu em Viena, na Áustria, filho de um engenheiro civil. Aos 21 anos mudou-se para Munique (1911), onde estudara pintura e escultura diante da efervescência cultural, política e social da Berlim do pós-guerra. Em 1921 casou-se com a roteirista Thea Von Harbou, que escreveu os argumentos de quase todos os filmes desta primeira fase da carreira. Era uma família da base da nobreza, com oficiais no governo, o que lhe deu uma vida com conforto enquanto crescia. Quando criança, foi educada em um convento, com tutores particulares, onde aprendeu a falar diversos idiomas, a tocar piano e violino, sendo considerada uma criança prodígio. Seus primeiros trabalhos foram contos publicados em uma revista e um livro de poemas publicado por conta, focado em suas percepções a respeito da arte, algo incomum para uma criança de 13 anos. Apesar de levar uma vida privilegiada, Thea queria ganhar seu próprio dinheiro, tornando-se atriz, apesar dos protestos conservadores de sua pródiga família.
               Após sua estreia em 1906, Thea conheceu Rudolf Klein-Rogge, com quem se casou durante a guerra mundial. Em 1917, o casal se mudou para Berlim, onde Thea se dedicou a construir uma carreira de escritora. Começou a escrever sobre mitos épicos e lenda, em geral com um tom ultranacionalista. Segundo historiadores, seus livros começaram a se tornar patrióticos e com a intenção de levantar a moral do povo alemão, pedindo que as mulheres se dedicassem e se sacrificassem a promover a "glória eterna da pátria". Sua primeira interação com o cinema ocorreu através do diretor alemão Joe May, que decidiu adaptar um dos livros de Thea, Die heilige Simplizia. Sua produção de ficção começou a cair, conforme ela se tornavam uma das maiores roteiristas alemãs, não apenas por sua parceria com Fritz Lang, mas por seus roteiros escritos para F. W. Murnau, Carl Dreyer e E. A. Dupont, considerados os luminares alemães. Seu irmão, Horst von Harbou, foi trabalhar para a UFA como fotógrafo e começou a trabalhar com Thea e Fritz em várias de suas produções. Em verdade são películas do extraordinário “cinema mudo”, que entrariam para a história dentre os maiores expoentes do expressionismo. O cineasta deixou a marca estética na história social do cinema. Influenciou diretores tão distintos em termos de formação e influência mundial como Alfred Hitchcock, Luís Buñuel e Orson Welles.
             Neste aspecto social vale lembrar as poderosas personagens femininas do cinema de Fritz Lang. Aparecem desde os filmes silenciosos e a heroína de A Morte Cansada (Der Müde Tod) é provavelmente a primeira da numerosa linhagem, que se firma a partir da “amizade desejante” com a roteirista Thea von Harbou, esposa do diretor, mas que ainda se desdobra e se enriquece nas décadas seguintes, depois da separação do casal. Com seus três episódios de aventura, A Morte Cansada compartilha com os seriados dos anos 10 a presença de mulheres que tomam a iniciativa da ação, protagonizando peripécias e lances sensacionais, no estilo Pearl White em Os perigos de Pauline e também Musidora em Les Vampyres, essa última até inspiração direta no figurino adotado pela aristocrata do episódio italiano, apropriadamente vestida de malha preta e colante para um duelo de esgrima. O gosto de Lang pelas narrativas de aventura já vinha se aprimorando desde os roteiros escritos para Joe May nos anos 1910 e nas duas partes de As Aranhas (1919-20), um de seus primeiros trabalhos de direção, previsto inicialmente como um seriado em quatro episódios. Dois anos depois de estrear como diretor, Lang realiza A Morte Cansada, em que, sem descuidar do cinema de gênero, radicaliza o mais grave, transcendente e inescapável, encontro entre vida e morte.  
            Não que os filmes de Fritz Lang, em si, sejam alegres ou festivos. Muito pelo contrário. O que unifica essa angústia ao drama moral representa uma visão sombria do mundo, fundada maquiavelicamente na convicção de que “o mal está em toda parte” (cf. Caristia, 1951; Raboni, 1994). Ou, nas palavras do crítico norte-americano Andrew Sarris, “uma visão soturna do universo em que o ser humano luta em filmografia tão variada, que vai da saga mitológica à ficção científica, do policial ao faroeste, da aventura exótica com seu destino pessoal e, inevitavelmente, perde”. Desde seu incontestável, “A morte cansada” (1921), uma parábola sobre a vida, o amor e a morte – o filme que fez Luís Buñuel decidir fazer cinema – , a noção de destino, seja em Maquiavel (cf. Abrahão, 2009), ou, na leitura de Max Weber da ética protestante, como força inexorável contra a qual o homem se debate em vão é a engrenagem de Lang. Intimamente articulado à noção de destino: a) emerge o sentimento de vingança; b) move personagens para reparar danos e injustiças sociais; c) como representação do destino encarnando vilões, grupos, instituições.
            Metropolis foi o filme mais caro de seu tempo, e um marco do expressionismo alemão. Do ponto de vista técnico-metodológico durou quase um ano e meio para ser realizado, envolvendo cerca de 37 mil extras. Escrito por sua companheira Thea von Harbou, antevia a voga do futuro distópico que influenciou geações de escritores e cineastas, sobretudo hoje, e gerou primícias de filmes, jogos e livros como 1984, Blase Runner, Robocop, Final Fantasy 7, Bioshock, Bastardos Inglórios, o movimento Steampunk, o cinema Noir, entre tantos outros. O filme estreou em grande estilo, em 1927, em Berlim. Também dirigiu o filme “Harakiri”, produzido por Erich Pommer, com roteiro de Mas Jugk, a partir de uma peça teatral de David Belasco e John Luther Long, que se baseava na ópera Madame Butterfly. Comparativamente esse foi um dos primeiros filmes ocidentais com temas alusivos a cultura japonesa. Lang fez uma adaptação da ópera Madame Butterfly, deixando a maior parte do enredo intacto, fazendo algumas poucas alterações nos nomes dos personagens principais.
            Estreou no Teatro alla Scala de Milão a 17 de fevereiro de 1904, uma das mais famosas casas de ópera do mundo. O Teatro alla Scala foi construído por determinação da imperatriz Maria Teresa da Áustria, para substituir o Teatro Regio Ducale, destruído por um incêndio em 1776, devendo seu nome à igreja de Santa Maria alla Scala que antes se erguia no local.  É sobre um tenente da marinha que se apaixona por uma gueixa. Madame Butterfly estreou-se no Teatro Nacional de São Carlos, ópera de Lisboa a 10 de Março de 1908. A trama da ópera recebeu, mais tarde, uma citação na peça teatral, depois adaptada para o cinema, M. Butterfly, de David Henry Hwang (1988), inspirada no relacionamento entre um diplomata francês, Bernard Boursicot, e um cantor da ópera de Pequim, Shi Pei Pu. O nome Butterfly faz a ligação entre as duas histórias. Os personagens de Lang foram interpretados por atores europeus, e o melhor, sem criar estereótipos, tendo muito cuidado nos detalhes e figurinos. O elenco contou com Lil Dagove, Paul Biensfeldt, Georg John, Meinhart Maur e Rudolf Lettinger, e estreou em 18 de dezembro de 1919, com exemplares 80 minutos de duração.

  Uma Mulher na Lua (1929). Foi porque Nicolau Maquiavel percebeu que qualquer conselho positivo para lidar com problemas políticos era suscetível de ser contrariado por uma alusão pessimista à fortuna, que ele resolveu dedicar a esse tema o penúltimo capítulo de Il Principe, livro escrito por Nicolau Maquiavel em 10 de dezembro de 1513, cuja 1ª edição foi publicada postumamente, em 1532. Ele próprio aceitou que a “Fortuna” era o árbitro de metade das ações dos homens, mas sublinhou que isso não deveria levar ao derrotismo. Em duas memoráveis imagens, comparou a fortuna a um rio cujas águas caudalosas podem ser inofensivamente desviadas por diques e canais de drenagem precavidos, e a uma mulher que, sendo mulher, pode ser domada pelo ardor e a violência: “sou de parecer de que é melhor ser ousado do que prudente, pois a fortuna (oportunidade) é mulher e, para conservá-la submissa, é necessário (…) contrariá-la. Vê-se, que prefere, não raramente, deixar-se vender pelos ousados do que pelos que agem friamente. Por isso é sempre amiga dos jovens, visto terem eles menos respeito e mais ferocidade e subjugarem-na com mais audácia” (cf. Maquiavel, 2006).
        Maquiavel viveu em um período de total falta de estabilidade política. A Itália, tal como a concebemos política e geograficamente nos dias de hoje, não existia, encontrando-se fragmentada em principados e repúblicas onde cada um possuía sua própria milícia, o que gerava constantes disputas internas e a hostilidades. Nessa época, Maquiavel ocupava burocraticamente a segunda chancelaria do governo, cargo que o permitiu adquirir grande experiência política, observando as práticas de seus contemporâneos, pois essa função o obrigava a desempenhar inúmeras missões diplomáticas na França, Alemanha e nos diversos Estados italianos. Maquiavel tem então a oportunidade de entrar em contato direto com reis, papas e nobres, e também com César Bórgia, quem ele considera o modelo de príncipe que a Itália precisava para ser unificada. Como resultado dessa experiência, duas obras foram concebidas, O Princípe, e os seus Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio. A primeira tratando da política militante, ao passo que a segunda aborda a teoria política.
        Ipso facto na reflexão histórica e cinematográfica de Fritz Lang ele recusa o maniqueísmo. Para ele, só havia duas espécies de indivíduos: “os maus e os muito maus”. Não há mocinhos ou heróis imaculados em seus filmes, e frequentemente sua simpatia vai para os malditos, os abominados, os monstros, os excluídos da convivência humana. Seja qual for o crime cometido, Lang sempre está contra a corja linchadora. Se há duas cenas capazes de sintetizar esplendidamente essa moral são estas duas, uma de “M” (1931) e a outra de Fúria (1936). Mas, ao contrário da vingança catártica freudiana, como em “Desejo de Matar”, em Lang ela raramente é apaziguadora. É onipresença do mal, vingança tardia ou inútil, como em: A Morte Cansada. Ela consiste na retaliação contra uma pessoa ou grupo reacionário em resposta a algo que foi percebido ou sentido como prejudicial. Embora muitos aspectos da vingança possam lembrar o conceito de igualar as coisas, na verdade a vingança em geral tem um objetivo mais destrutivo do que construtivo.Em outros filmes, a ênfase recai sobre a perspectiva política da vingança: Os Nibelungos, um filme mudo alemão de fantasia, que na mitologia nórdica, um povo formado por anões, Fúria, é um filme norte-americano de 1936, do gênero policial. É o primeiro filme estadunidense de Lang, que foi criticado por ter aceito a imposição do estúdio e inocentado o protagonista, Os Carrascos também Morrem.   
            Numa época em que Charles Chaplin em The Great Dictator e Ernst Lubitsch em To Be or Not to Be tratavam os nazistas singularmente como meros palhaços, Os Carrascos Também Morrem os retrata como cruéis e perigosos. O roteiro assinala a única parceria entre Fritz Lang e o amigo Bertolt Brecht, autores da história. Brecht, entretanto, repudiou o resultado, que suavizou suas ideias radicais em favor de um produto comercial. Além das indicações ao Oscar, o filme recebeu uma menção especial da crítica estrangeira no Festival de Veneza, edição de 1946, O Diabo feito Mulher, o filme narra a história de uma criminosa que mantém uma espécie de hotel nas montanhas para os fora-da-lei. Um cowboy em busca de vingança pela morte de sua amada, segue a pista do assassino até o esconderijo, onde se infiltra entre os bandoleiros. Ameaçado pelos inúmeros bandidos e seduzido pela criminosa, ele terá que resolver se leva a sua vingança até ao fim, ou se desiste da empreitada, Os Corruptos, o filme narra a luta de um policial honesto contra o chamado crime organizado, que domina uma cidade. O suicídio de um colega coloca o sargento Bannion num caso de corrupção que ameaça sua carreira, a segurança de sua família: sua esposa e uma filha pequena. 
           
            Vale lembrar que o maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística fundada e propagada por Maniqueu, filósofo cristão do século III, que divide o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal. Quando o gnosticismo primitivo já perdia a sua influência no mundo greco-romano, surgiu na Babilônia e na Pérsia, no século III, uma nova vertente, o maniqueísmo. O seu fundador foi o profeta persa Mani e as suas ideias sincretizavam elementos do zoroastrismo, do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo. Mani considerava Zoroastro, Buda e Jesus como “pais da Justiça”, como lembra Frei Betto, não deixaram nada escrito e formaram seus discípulos através de sentenças e parábolas emblemáticas. Os dois não fundaram religiões; propuseram uma via espiritual centrada no amor, na compaixão e na justiça, capaz de nos conduzir ao que todo ser humano mais almeja: a felicidade e através de uma revelação divina, purificar e superar as mensagens individuais de cada um deles, anunciando uma verdade completa.

          O fato de ser vienense fez Fritz Lang ter interrompido sua esplendorosa carreira alemã por conta da ascensão do autoritarismo – o que o levou, como outros, sobretudo a chamada Escola de Frankfurt (1923) a começar uma nova vida na América do Norte – certamente acentuou sua amarga visão de mundo e deu outra consistência as suas obsessões. No final da década de 1950, retornou para Alemanha e ainda realizou três filmes antes de se aposentar. Dois deles retomavam a temática do exotismo. O último o retorno de Mabuse – Os Mil Olhos do Dr. Mabuse -, um filme policial franco-ítalo-alemão de 1960, dirigido por Fritz Lang, com roteiro de Heinz Oskar Wuttig e do próprio Lang baseado no romance de Jan Fethke Mr. Tot Aĉetas Mil Okulojn, originalmente escrito em esperanto, com o qual encerrou a sua carreira. Atuou no filme O Desprezo (1963) de Jean-Luc Godard, com roteiro inspirado na novela Il Disprezzo, do escritor Alberto Moravia e estrelado por Brigitte Bardot. 
        O filme é constantemente lembrado como um dos melhores já realizados em todos os tempos. Aclamado pela crítica e considerado um dos melhores filmes de Godard e da chamada Nouvelle Vague, o filme foi produzido por Carlo Ponti. O lendário cineasta alemão Lang tem uma participação especial como ele mesmo. Logo, quando voltaria para os Estados Unidos da América, aonde veio a falecer quase cego. A morte que se ressente do cansaço tão humano, amaldiçoada na terra por cumprir os desígnios divinos, se afigura como uma das personagens mais solitárias da história social do cinema. Três cidades brasileiras exibiram em 2014, vasta mostra do diretor vienense que cultivava visão sombria do mundo. Ele anteviu, ao fim da carreira, tal e qual Foucault na filosofia, determinada concepção de controle social e, principalmente, vigilância e punição. Passadas décadas quando em voga no cinema e televisão por assinatura consolidadas com o emprego das tecnologias de ponta na indústria globalizada.

Bibliografia geral consultada.

LEFORT, Claude, Le Travail de l`Ouvre Machiavel. Paris, 1986; BATH, Sérgio, Maquiavelismo: A Prática Política segundo Nicolau Maquiavel. São Paulo: Editora Ática, 1992; MANZANO, Luíz Adelmo Fernandes, A Relação Som-imagem no Cinema: A Experiência Alemã de Fritz Lang. Dissertação de Mestrado. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999; CORTINA, Arnaldo, O Príncipe de Maquiavel e seus Leitores: Uma Investigação sobre o Processo de Leitura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000; ACCIOLY, Godiva, Os Nibelungos: Estudo a partir do Drama de Richard Wagner e do Filme de Fritz Lang. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001; VIROLI, Maurizio, O Sorriso de Nicolau. São Paulo: Estação Liberdade, 2002; RIBEIRO, Renato Janine, “Um Pensador da Ética”. In: Revista Cult, dezembro de 2004; KANGUSSU, Imaculada, Theoria Asthetica em Comemoração ao Centenário de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Escritos Editora, 2005; BIZARRO, Maristela Sanches, A Relação Humano-Máquina no Imaginário Cinematográfico. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005; THOMSON, Alex, Compreender Adorno. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2010; LEZO, Denise, Arquitetura, Cidade e Cinema: Vanguardas e Imaginário. Dissertação de Mestrado. Escola de Engenharia de São Carlos. Universidade de São Paulo, 2010; RODRIGUES, Ana Paula Alves, A Criação do Espaço Arquitectónico no Cinema Alemão dos Anos 20: O Gabinete do Doutor Caligari e Metropolis. Dissertação de Mestrado em Arquitetura. Faculdade de Engenharia. Universidade da Beira Interior, 2012; ASSUNÇÃO, Diego Paleólogo, A Máquina de Fabricar Vampiros: Tecnologia da Morte, do Sangue e do Sexo. Tese de Doutorado em Comunicação. Escola de Comunicação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015; SANTANA, Fábio de Amorim, Quase Humanos, Quase Máquinas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Comunicação. São Paulo: Universidade Anhembi Morumbi, 2016; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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