Ubiracy de Souza Braga
A classificação tradicional dos
sociólogos e do nascimento da sociologia como ciência, impele-os à sua relação
profissional pelo tipo de sistema social que condiciona seu trabalho e seu
objeto - as relações sociais – em uma tipologia social determinada a que são
mais sensíveis: os sociólogos das organizações, das instituições políticas ou
da historicidade e das classes sociais, e na modernidade, o sociólogo engajado nas universidades. Trata-se da dramatis personæ dos personagens que
estão presentes na realidade, mas que não aparecem no palco em tragédias, pois não são
considerados parte da dramatis personæ. Diz-se
que passou a ser usada nas obras do idioma inglês desde 1730. É evidente, também, que
seu uso na divisão internacional do trabalho intelectual sofreu mudanças na
sociologia, a partir da posterior utilização na etnologia da expressão “ator
social”. É por isso que o domínio mais
difícil de explorar da Sociologia é da eficácia das respostas ao poder. Como compreender academicamente
que o reconhecimento do sentido da ação não é jamais dado inteiramente pela
consciência do ator? A crítica do poder não se faz em função de um contrapoder.
O conhecimento do social não prepara a ordem de amanhã.
O poder reivindica o sentido para
aquele que o detém. Ele só distingue aqueles que participam do poder, por
delegação de autoridade ou simples obediência, daqueles que forjam alijados na
direção de um não-sentido e
utilizados como seres não-sociais. Não há nenhuma sociedade sem o poder, ainda
que existam sistemas políticos sem o Estado. Os antropólogos sabem disso,
melhor, talvez que em sociologia. Toda sociedade destrói assim, para reconstruir
a realidade. Faz um corte nas relações sociais, desfigura o outro e o
dessocializa através do preconceito individual ou coletivo, da hostilidade, da
repressão ou da exploração. Assim, o poder se reveste de positividade, seja a
do Estado no caso das instituições, ou da ideologia, no caso das universidades
públicas. O que nos traz de volta ao ponto de partida, pois o sociólogo
encontra o poder ou a ideologia.
No âmbito temático da Antropologia das Civilizações foi Darcy
Ribeiro quem percebeu a composição predominantemente “índio-espanhola” dos
Povos-Testemunho se diferencia dessas outras variantes explicativas da etnologia
americanista porque “suas populações indígenas originais não haviam alcançado
um nível de desenvolvimento cultural equiparável ao dos mexicanos ou dos Incas”.
É o resultado da seleção de qualidades raciais e culturais das matrizes
formadoras, que melhor se ajustaram às condições que lhes foram impostas de
fora. O papel decisivo em sua formação foi representado pela escravidão que,
operando como força distribalizadora, desgarrava as novas criaturas das
tradições ancestrais. São produto tanto da deculturação
redutora de seus patrimônios tribais indígenas e africanos, quanto da aculturação seletiva desses patrimônios
e da própria criatividade face ao novo meio de reprodução da vida.
A condição de existência é a mesma
que a da liberdade. Pois não há Sociologia possível em uma sociedade sem
liberdade. E a liberdade não é um conjunto de medidas protetoras ou um tipo de
instituições políticas. Ela é o que vincula uma à outra a reivindicação popular
que pode tornar-se ditadura ou terror e a crítica do poder que pode tornar-se
defesa de privilégios. Se o sociólogo duvida da importância de sua obra, que
ele afirme pelo menos que a sua existência é um sinal de liberdade e que ele
deve lutar por ela mesmo que não esteja seguro de merecê-la, pois este é o
paradoxo de consequências não intencionais da sociologia. Pois ela se
desenvolve nas sociedades liberais e mais vagarosamente onde haja certa
defasagem entre o poder econômico, a hegemonia política e o controle cultural.
Se esses três domínios do poder se recobrem, e a análise crítica da sociedade
passa a depender da boa vontade de um rei filósofo, ela perde quase
inteiramente suas condições e possibilidades de existir criticamente.
Quanto mais ele critica o poder,
suas regras e suas asserções, menos considera a sociedade como uma máquina que
funciona “à força de senhas” e mais ainda, por esse movimento, ele aprende a
reconhecer o que é próprio da vida social, a natureza de um sistema que produz
o seu sentido assumindo em relação a si mesmo um distanciamento que é ao mesmo
tempo o da reflexão e o do investimento. Uma sociedade não pode viver senão da
tensão entre o distanciamento que ela assume em relação a si mesma e o domínio
que ela exerce sobre a sua prática - lugar de origem do poder. Fluxo da
inovação, da luta de classes e de relações com a comunidade. Refluxo para a
integração social, a comunidade, o poder e a conquista. E como ele deixaria de ser
atraído frequentemente pelo que lhe é proibido (a ideologia), mas que se
vincula a uma parte de si mesmo, o poder e a conquista para uns, o
companheirismo e a disciplina para outros?
Essa
situação impõe apenas um esforço teórico constante de distanciamento do
sociólogo em relação ao lugar de onde ele fala. Duvido que alguém se possa
tornar sociólogo sem ter adquirido uma experiência direta de sociedades e de
meios sociais distantes daqueles em que vive habitualmente. Além dessa formação
pessoal também é preciso que a situação profissional do sociólogo lhe permita
resistir às pressões culturais e sociais que sobre ele se exercem. O
conhecimento sociológico só pode desenvolver-se em um meio que não reproduza as
desigualdades sociais, mas que procure reduzi-las. Mas o que ocorre é que os
sociólogos estão encerrados em guetos cujo aparente isolamento seria cômodo
demais para a ordem social dominante: o pensamento crítico estaria sendo
enclausurado como se enclausuram os loucos e os delinquentes e pelas mesmas
razões de ordem, para analisar as categorias, normas e discursos da prática.
Contudo, o objeto da sociologia não pode ser definido sem a bidimensionalidade
dos meios. Esse duplo procedimento deve ou deveria levara a definir o método
sociológico. Enfim, é inútil discutir a pertinência relativa da análise
qualitativa ou da análise quantitativa. A sociologia não pretende dominar a
resposta a essa questão.
Para
Ferdinand Tönnies, uma teoria da comunidade teria que aprofundar fundamentalmente
sua raiz nas disposições gregárias estimuladas pelos laços de consanguinidade e
afinidade, se caracterizando pela inclinação emocional recíproca, comum e
unitária; pelo consenso e o mútuo conhecimento íntimo. Postulou, assim, o que seriam
suas “leis principais”: a) parentes, cônjuges, vizinhos e amigos se gostam
reciprocamente; b) entre os que se gostam, há consenso; c) os que se gostam, se
entendem, convivem e permanecem juntos, ordenam sua vida em comum. Partindo
destes princípios registrou a existência de três padrões de sociabilidade comunitária:
os laços de consanguinidade, de coabitação territorial e de afinidade
espiritual, cada qual convergindo para um respectivo ordenamento interativo,
como comunidade de sangue (parentesco), lugar (vizinhança) e espírito
(“amizade”). F. Tönnies por vezes se referia a elas como elementos de um mesmo plano
de desenvolvimento cadenciado, um surgindo como consequência e desdobramento
natural de seu antecessor. Ele ainda classificou as relações comunitárias, em
três tipos, segundo sua forma: a) as “relações autoritárias”, de modo geral
predominantes, repousando na desigualdade de poder e querer, de força e autoridade,
considerando o modelo ideal de relação entre pais e filhos; b) as “relações de
companheirismo”, originada na isonomia geracional na relação entre irmãos; c) e
as “relações mistas”, que combinam as duas formas caracterizadas relação entre
cônjuges.
O
trabalho etnológico do sociólogo é fazer
sociologia, fazer aparecer o objeto
sociológico, para além das normas, das categorias e dos controles da organização
social. O sociólogo há muito deixou de ser um mero observador por trás das
relações. Sua pesquisa se torna necessariamente uma intervenção, mesmo se ela é
recusada ou se os seus efeitos são anulados. Não é mais possível separar ao
nível político o estudo da organização e o dos comportamentos sociais. A
posição dos atores sociais é menos abstrata, não pode ser mais definida em
relação a escalas de estratificação, à distância entre o grupo de pertencimento
e os grupos de referência que se constituem em instâncias de poder etc. Ela
deve ser expressa diretamente em termos de influência do ator sobre a decisão
que o afeta. À observação em uma organização de relações abstratas sucede a
pesquisa-ação sobre mecanismos de decisão. O campo de estudo é menos limitado. As relações estudadas são mais fáceis de identificar, já que o ator se
define diretamente em relação a outros e não em relação a regras ou escalas.
A série é uma produção da Grifa
Filmes, com direção, roteiro, entrevistas e montagem do cineasta Daniel
Augusto, direção de fotografia de Rodrigo Menck, produção executiva de Fernando
Dias e Maurício Dias e produção de Kênya Zanatta. No ar semanalmente, em 13
programas, Incertezas Críticas tem o
objetivo de apresentar questões contemporâneas relevantes sobre arte, política,
literatura, economia, relações internacionais, sociedade e história e permitir
ao telespectador entrar em contato com o trabalho dos principais pensadores entrevistados
da atualidade. É uma série documental com intelectuais de renome internacional.
O objetivo é apresentar debates relevantes, e portanto, conjunturais, além de
permitir ao espectador no processo de interação social entrar em contato com o
trabalho dos principais pensadores da atualidade.
De
acordo com A. Touraine, nenhum comportamento coletivo é um movimento social;
pode ser um sinal dele, mas também se explica, ao mesmo tempo, como pressão
política ou como reivindicação organizacional. As relações entre os figurantes
e sua comum relação com o móvel de sua interação são muito diferentes conforme
tenhamos em contra os comportamentos organizacionais, os comportamentos
políticos ou os comportamentos de historicidade. Podemos definir em cada
caso as relações entre essas espécies bem distintas de comportamentos
coletivos. São outras as dificuldades principais: em primeiro lugar um
comportamento de classe é ao mesmo tempo portador de um conflito social e
definido por uma relação positiva ou negativa com o poder. As relações de
classe incluem ao mesmo tempo conflitos e contradições. Seria contraditório
querer aproximar-se de um movimento social como de uma organização
profissional, definindo em primeiro lugar seus objetivos e depois seus meios.
Quem se satisfaria com a análise da vida religiosa que não passasse da organização e da ação de uma igreja, conforme seu conceito desde Thomas Hobbes?
No
Novo Testamento, uma igreja é
simplesmente um grupo de cristãos que seguem a Cristo. A palavra pode ser usada
para falar de todos aqueles que servem ao Senhor, não importa onde estejam. É
neste ambiente de igrejas locais que encontramos homens escolhidos para
supervisionar e guiar. Os sistemas comuns de superestruturas de denominações,
de ligas internacionais de igrejas e de hierarquias que ligam e até governam
milhares de igrejas locais, são invenções do homem. Não há modelo bíblico de
tais arranjos. No Novo Testamento, os cristãos serviam juntos em congregações
locais. Eles eram gratos pelos seus irmãos em outros lugares. Mas não tentavam
criar algum laço de organização onde os cristãos de um lugar pudessem dirigir
ou governar o trabalho de discípulos de outro lugar. Este modelo mais
claramente se espraia se considerado o ensinamento específico sobre a organização
de uma igreja local.
Nesse
último sentido, de acordo com Hobbes (2014: 360) é que a Igreja pode ser
entendida como uma pessoa, isto é, que ela tenha o poder de querer, de
pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer
espécie de ação. Se não existir a autoridade de uma congregação legítima,
qualquer ato praticado por um conjunto de pessoas é um ato individual de cada
um dos presentes que contribuíram para a prática desse ato. Não um ato
conjunto, como se fosse de um só corpo. Não é um ato dos ausentes ou daqueles
que, estando presentes, eram contra a sua prática. Uma Igreja pode ser definida
“como um conjunto de pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa
de um soberano, que ordena a reunião e que determina quando não deverá haver
reunião. Tendo em vista que em todos os Estados semelhantes assembleias são
ilegítimas, se não são autorizadas pelo soberano civil, constitui também uma
assembleia ilegítima a reunião da Igreja em qualquer Estado em que tiver sido
proibida”. É neste sentido que não há no planeta Terra, portanto, qualquer Igreja
universal à qual todos os cristãos devam obedecer, uma vez que não há nenhum
poder aos quais todos os outros Estados estejam sujeitos, a não ser à nós próprios de forma ogranizada. Nos domínios dos
diversos príncipes e Estados, mas cada um deles se sujeita ao
Estado do qual é membro, não podendo, por conseguinte, sujeitar-se às ordens de
qualquer outra pessoa.
Assim,
uma Igreja capaz de mandar, julgar, absolver, condenar ou praticar qualquer
outro ato é o mesmo que um Estado civil formado por homens cristãos; o Estado
civil tem esse nome por serem seus súditos os homens, enquanto a Igreja é assim
denominada pelo fato de seus súditos serem
os cristãos. Governo espiritual e temporal são apenas palavras trazidas ao
mundo ocidental para confundir os homens, enganando-os quanto a seu soberano
legítimo. É preciso haver um único governante, do contrário se origina a facção
e a guerra civil, entre a Igreja e o Estado, entre os espiritualistas e os
temporalistas, entre a espada da justiça e o escudo da fé, e, o que é pior
ainda, no próprio coração de cada cristão, entre o cristão e o homem. Chamam-se
pastores os doutores da igreja, bem como os soberanos civis. Entretanto, se
entre os pastores não houver alguma subordinação, de forma que haja apenas um
chefe dos pastores, serão ministrados aos homens as doutrinas contrárias que
poderão ser falsas, e uma delas necessariamente o serão. O soberano civil é o
chefe dos pastores, segundo a lei natural. Embora o Estado e a religião
estivessem nas mãos dos reis, nenhum deles deixou de ser fiscalizado quando
eram bem quistos por suas capacidades naturais ou por sua fortuna.
O
padrão define uma maneira de organização da sociedade, os mecanismos pelos
quais se atualiza a sociedade no momento; os dilemas definem as condições
geradas pela dinâmica interna dessa forma de organização e que conduzem a
obstáculos e direções. Os padrões são as estruturas sociais que limitam a ação
dos sujeitos sociais, que os impedem de implantar na realidade a sua vontade e
os seus sonhos. A realidade social não é o que se deseja que ela deva ser, e
não pode ser mudada apenas com uma vontade moral – exige conhecimento,
pesquisa, investigação. Assim, a teoria social correta ofereceria aos sujeitos
sociais as possibilidades objetivas das suas ações, conforme a pragmática
weberiana, em que as opções que os levariam ao sucesso, à eficácia histórica.
Errar na análise histórico-social significa equivocar-se na ação. Por isso, “a
análise deve ser sóbria, serena, bem informada, particularizada e objetiva”. Na
modernidade da qual falamos, a perda de parâmetros define sem dúvida o mundo
moderno em sua facticidade e não pode ser revertida por qualquer espécie de
retorno aos bons tempos nem pela promulgação arbitrária de novos parâmetros e
valores só e, por conseguinte, uma catástrofe social no mundo moral se se supõe que as
pessoas são efetivamente incapazes de julgar todas as coisas per se, que sua
faculdade de julgar é inadequada para formar juízos originais e que o máximo que
podemos exigir delas é a correta aplicação de regras conhecidas e derivadas de
parâmetros já estabelecidos.
O
socialismo cristão é uma tendência dentro do cristianismo que interpreta
por meio das Escrituras, tanto no Antigo
Testamento quanto no Novo Testamento, que o modelo de sociedade socialista é o
que mais se aproxima do modelo de sociedade que preze pelo amor, caridade e
demais ensinamentos de Jesus, ao passo que o modelo de organização capitalista
valoriza princípios opostos ao cristianismo como acumulação de capital e meios
de produção, de modo que a fé demanda uma opção consciente pelo socialismo. Em
termos políticos, os socialistas cristãos formam um grupo extremamente
heterogêneo que se insere desde a esquerda à centro-esquerda, com a compreensão
de que toda a Cristandade não pode deixar de buscar o sentido social do
ensinamento. O socialismo religioso é uma compreensão da representação do
socialismo que se coloca como uma opção de organização social que permite aos
cristãos viverem em comunhão.
Historicamente
o movimento religioso-socialista dentro da igreja representa um movimento
minoritário de grande importância, principalmente para o desenvolvimento da
social democracia, no combate aos grupos fascistas e na redemocratização em
países como Portugal e Brasil, além de trazer à tona a discussão da relação
entre a Igreja e os trabalhadores e da igreja e o socialismo. A base do que
representa hoje o “socialismo cristão”, foi iniciado no século XIX,
fundamentado pela reflexão das ideias comunistas de Marx como uma tentativa de
resposta às desigualdades que surgiram a partir de uma exploração desumana
provocada pela quebra da livre concorrência a partir do desaparecimento de leis
institucionais conservadoras, que permitiram o crescimento do truste e o
surgimento dos grandes monopólios; além de um Estado despreparado para
respostas sociais em prol dos mais desfavorecidos. Seus adeptos consideram que
o cristianismo é naturalmente uma forma de socialismo. A fé cristã o vê como um
sistema injusto e de consequências funestas. O que se entende por socialismo influenciado pelas ideias de Marx, representava a vontade de se criar
um Estado laico.
A
sociologia não teria podido existir antes que as sociedades pudessem ser
pensadas como o produto de sua ação. Sua formação põe fim à subordinação dos
fatos sociais a outras esferas sociais de análise, a saber: religiosa, jurídica
ou econômica. A Sociologia, explicação dos sistemas sociais globais e das
relações sociais substitui assim as intepretações que as sociedades anteriores
davam de sua organização e de sua evolução. Ipso
facto é com razão que Marx (2011) afirma a este respeito: - a conclusão
geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus
estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social de sua
existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias,
independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a
base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e á
qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
objeto da humanidade - o modo de produção da vida material - , diz Marx, condiciona o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual em geral.
Não é a consciência dos homens
que determina o seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua consciência. É por isso que a
humanidade só levanta os problemas que são capazes de resolver e assim, numa
observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as
condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam, pelos menos, em via
de aparecer. Assim, a abstração mais simples, metodologicamente falando, que a
economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação
muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, só aparece, no entanto
sob esta forma abstrata como verdade prática enquanto categoria da sociedade
mais moderna. Poder-se-ia dizer que esta indiferença em relação a uma forma
determinada de trabalho, que se apresenta nos Estados Unidos como produto
histórico, se manifesta na Rússia, por exemplo, como uma disposição natural. Este
exemplo do trabalho mostra com toda a evidência que até as categorias mais
abstratas, ainda que válidas – precisamente por causa da sua natureza abstrata
– para todas as épocas, não são menos, sob a forma determinada desta mesma
abstração, o produto de condições históricas e só se conservam plenamente
válidas nestas condições e no quadro destas. Como, além disso, a sociedade
burguesa é apenas uma forma antitética do desenvolvimento histórico, há
relações que pertencem a formas de sociedades superiores anteriores que só
poderemos encontrar nela completamente debilitadas ou até disfarçadas. Por
exemplo, a tópica da propriedade comunal.
O
que se chama desenvolvimento histórico baseia-se, ao fim e ao cabo, sobre o
fato de a última forma considerar as formas passadas, como jornadas que levam
ao seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de
fazer a sua própria crítica, e isto em condições bem determinadas – não estão
naturalmente em questão os períodos históricos que consideram a si próprios
como épocas de decadência -, concebe-as sempre sob um aspecto unilateral.
Enfim, a religião cristã só pode ajudar a compreender objetivamente as
mitologias anteriores, depois de ter feito, até certo grau, por assim dizer dünámei, a sua própria crítica. Igualmente, afirma Marx, a economia política
burguesa só conseguiu compreender as sociedades feudais, antigas e orientais,
no dia em que compreendeu a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que
a economia política burguesa, criando uma nova mitologia, não se identificou
pura e simplesmente com o passado, a crítica que fez às sociedades anteriores,
em particular à sociedade feudal contra a qual tinha ainda que lutar
diretamente, assemelha-se à crítica do paganismo feita pelo cristianismo, ou a
do catolicismo feita pela religião protestante.
Pensadores
católicos modernos apoiaram-se tanto nos textos de Max Weber no que diz
respeito ao aspecto de influência protestante quanto nos de Bernard Groethuysen
para afirmar que “o ethos católico é anticapitalista”.
Essa afirmação se encontra no livro de Amintore Fanfani, Catholicism, Protestantism and Capitalism, publicado em 1935. Como
exemplo de Weber, o autor – na época um jovem intelectual católico que depois
se tornaria um dos líderes do Partido Democrata Cristão e primeiro ministro da
Itália – define o capitalismo como um sistema de racionalização econômica à
prova de influências externas. Para Fanfani, se o protestantismo favorece a
supremacia do espírito capitalista, ou melhor, legitima-o e santifica-o – tese
de Weber, revista e corrigida por Hector Menteith Robertson -, “existe um
abismo intransponível entre as concepções da vida católica e capitalista”. Por
causa desse abismo, o catolicismo mostra uma “repugnância muito marcada” pelo
capitalismo – não por um ou outro de seus aspectos, pois quase todos são
acidentais, mas pela própria essência do sistema. Evidentemente,
nem todos os intelectuais católicos concordam com uma concepção tão radical, e
o próprio Amintore Fanfani, quando foi primeiro-ministro depois da guerra,
comportou-se como um administrador típico da economia capitalista.
Apesar
disso, seu livro se tornou como diz Michael Novak num novo prefácio escrito em
1984, um “locus classicus do
sentimento anticapitalista entre os intelectuais católicos”. Michael Novak,
eminente neoconservador religioso norte-americano, é um bom exemplo do
pensamento católico pró-capitalista. E, no entanto, segundo Löwy (2014: 86 e
ss.), as numerosas queixa que ele faz contra o que chama de “preconceito
anticapitalista do catolicismo” e a desaprovação explícita do que considera uma
falha grave de sua própria tradição religiosa é uma prova, ainda que
involuntária, da existência de uma espécie de “afinidade negativa” ou antipatia
cultural entre a ética católica e o espírito do capitalismo. Novak acusa a
igreja católica de ser excessivamente conservadora. E não há dúvida de que esse
preconceito anticapitalista do catolicismo e essa hostilidade contra a
sociedade burguesa moderna tiveram, desde o princípio, uma orientação
poderosamente conservadora, restauradora, retrógrada – em suma, reacionária.
Além disso, ela tomou frequentemente a forma sinistra do antissemitismo, o judeu servindo de bode expiatório pelos males
resultantes da usura, do poder corruptor do dinheiro e da ascensão do
capitalismo. Paralelamente a essa tendência dominante, existia outra
sensibilidade católica, motivada, por certa simpatia pelos sofrimentos dos
pobres e atraídas também em certa medida pelas utopias socialistas e comunistas.
Aliás,
é interessante notar que vários desses autores utopistas, dentre eles Ernest
Bloch, Eric Fromm, serviram-se da obra de Max Weber para denunciar o
protestantismo e celebrar a civilização católica moderna – o que é
absolutamente contrário á intenção do autor de A ética protestante e o espírito do capitalismo. Contudo, poucos
escritores socialistas elaboraram uma crítica mais profunda, radical e
corrosiva da sociedade burguesa moderna, do espírito de acumulação capitalista
e da lógica impessoal do dinheiro do que Charles Péguy. Ele fundou uma tradição
especificamente francesa de anticapitalismo progressista cristão
(principalmente católico, mas, ás vezes, ecumênico) que perdurou no século XX
por meio de figuras tão diversas quanto Emmanuel Mounier e seu grupo reunido em
torno da revista Esprit, o pequeno
movimento de cristãos socialistas na época da Frente Popular e a rede de
resistência antifascista Testemunho Cristão durante a 2ª guerra mundial (1941-45). Sem
contar com os padres operários engajados através dos anos 1940 e 1950, os diversos movimentos e
redes cristãos, além de boa parte da juventude católica, que nos anos 1960 e
1970 simpatizou ativamente com diversos movimentos socialistas, comunistas ou
revolucionários, que desde o fim da guerra manifestaram grande interesse pelo
marxismo e pelo socialismo: Henri Desroche, Jean-Yves Calvez, Marie-Dominique
Chenu, Jean Cardonnel, Paul Blanquart e muitos outros.
Embora
haja cristãos socialistas ligados à Igreja católica em muitos países, não
encontramos em nenhum outro – fora da América Latina – uma tradição religiosa
anticapitalista de esquerda tão ampla e considerável como na cultura católica
francesa. Não é à toa que nas primeiras manifestações de cristianismo progressista na América Latina – a esquerda cristã
brasileira de 1960-1962, cujo protagonista principal foi a Juventude
Universitária Católica (JUC) – estivessem diretamente ligadas a essa cultura
francesa. A chamada “Igreja dos pobres”
da América Latina é herdeira da rejeição ética do capitalismo pelo catolicismo
– a “afinidade negativa” – e, sobretudo dessa tradição francesa e europeia de
socialismo cristão. Herbert de Souza, o Betinho, um dos principais dirigentes
da JUC brasileira, prestou homenagem ao ethos
anticapitalista católico tradicional num artigo publicado em 1962. O
cristianismo da libertação na América Latina, na realidade, não é simplesmente
um prolongamento do anticapitalismo tradicional da Igreja. É essencialmente
criação de uma nova cultura religiosa, que exprime as condições específicas da
América Latina: capitalismo dependente, pobreza em massa, violência
institucionalizada, religiosidade popular, de consequências político-religiosas
consideráveis, com sua profunda aversão ao cosmo capitalista.
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