segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A Contemporaneidade da Ética.

Felipe Augusto Ferreira Feijão[1]


            No mundo atual, a ética se torna uma necessidade imprescindível para quem ainda acredita no futuro da humanidade. Necessidade no sentido de depositar crédito na visualização de uma nova configuração estrutural do mundo, mediante a efetivação da ética enquanto postura a ser adotada, aprimorada e revista nos mais diversos setores sociais. Tal postura tem seu respaldo teórico e prático (teórico porque a ética é teoria e prático porque se volta diretamente para a prática) numa perspectiva que se pretenda filosófica. Nos gregos antigos e, posteriormente, assim como o percurso da filosofia, nos medievais, nos modernos e felizmente tem despontado generosamente nos teóricos contemporâneos.
A adoção do discurso teórico-ético na contemporaneidade é, numa palavra, uma reação às necessidades que quotidianamente se apresentam em forma de desafios que aguardam o discernimento adequado para que caminhem sob o rumo do bem e do melhor, enquanto direcionamento das escolhas humanas como já pensavam os filósofos antigos no despontar da ética. Com as crises naturais e os gritantes alertas ambientais, a formulação de uma ética socioambiental, isto é, de um saber que versa acerca do social-ambiental se manifesta como sendo uma questão de sobrevivência do homem no mundo. Uma vez que, o que se encontra em jogo diante de tantas agressões científicas, progressistas e “desenvolvimentistas”, refere-se à preservação da casa em que tudo isso está inserido e do causador de tal colapso em curso.


Os significativos avanços que desenvolveram a civilização técnico-científica, ou seja, a civilização marcada pela ciência e pela técnica enquanto agentes fundamentais da geração de lucro e de uma saciedade desmedida se configuram agora, como grandes preocupações. Se for levada em conta a ganância do homem, que é espectador de uma situação naturalizada, caminhamos para dar respostas as constantes agressões intervencionistas, mas tudo isso se volta para o próprio homem como contradição necessária da sua intervenção. Daí a importância de uma ética capaz de fornecer contribuições num primeiro momento teóricas e posteriormente, ao mesmo tempo, práticas para as mais diversas realidades desafiadoras.
O agir como ação de um ser racional e dotado de capacidades humanas próprias, é o que norteia a reflexão filosófica da ética e que permanece sendo objeto de concepção, de fato, do processo acional humano e, consequentemente do que advém de tal processo. Muitos desafios aguardam por reações que pelo menos, consigam minorar as condições gritantes que essencialmente compõem a natureza de problemáticas, como por exemplo, a questão ambiental. Indubitavelmente, a ação do homem pode ser direcionada, não pura e simplesmente de acordo com interesses econômicos cegos, mas, uma vez sabendo da necessidade de uma conscientização global, o agir humano pode e deve se deslocar para o eixo de contribuição no processo de efetivação da ética numa civilização tecnocrata sedenta de valores regentes de uma conduta pautada no diálogo do homem com o mundo.  
Neste sentido, utilizamos como texto-base e de respaldo o artigo Os desafios da Ética contemporânea[2], do filósofo Manfredo Oliveira, posto que ao mesmo tempo em que rememora a ética tradicional faz generosas conexões necessárias com as urgências éticas do mundo atual. O artigo parte do pressuposto de compreensão do momento histórico atual, como sendo uma condição de concepção necessária, para o melhor entendimento do problema ético. A história enquanto observadora incansável das ações humanas é o terreno certo e propício para que o homem realize a tarefa de construir o seu ser, isto é, a si mesmo. Nessa construção do homem de si mesmo emerge a pergunta socrática de como devemos viver?[3] Tal impulso socrático tem importante papel, posto que, como diz Lima Vaz nos Escritos de Filosofia IV: “é deste que procede a grande corrente da Ética ocidental” [4].
Numa explanação conceitual geral: a ética, enquanto pretensão filosófica, investiga o ethos (derivação etimológica que resulta na palavra ética), o agir humano em sua constituição dual como considera Lima Vaz, isto é, individual e social. Em outras palavras, a ética se preocupa com o ato específico humano enquanto operação de um ser inteligente e racional, com suas implicações. De início, vale considerar que para Manfredo há uma alteração estabelecida pela civilização técnico-científica em relação à tradição ética, ou seja, como era o panorama antigo da ética e como se encontra na situação de hoje. De fato, devido ao advento da ciência e da técnica, se modelaram novas perspectivas, embasadas fundamentalmente na perca de identificação relacional “entre ser humano e natureza, entre homem e mundo” [5].
Nesse novo cenário civilizatório, o sintomático descompasso entre o poder dominante da ciência e da técnica, não dialoga com “os critérios morais capazes de reger a nova civilização daí decorrente” [6]. Os acontecimentos do século XX servem de eco para entender que esse abismo entre avanços e ética, se manifesta em guerras, na perca de sentido da vida e aqui cabe fazer referência ao sociólogo Zygmunt Bauman quando enxerga na sociedade uma “modernidade líquida”[7], ou seja, desprovida de solidez nas relações. Em meio a tantos avanços tecnológicos, inclusive de controle da vida humana, numa palavra, no alto nível laboratorial de manipulação dos processos genéticos, estágio em que parece ter o homem tomado a direção de criação das coisas e de orientação do seu destino, capaz de dominar com esse gesto de presunção, a natureza e tudo o mais, esse mecanismo técnico de progresso, como evidencia Manfredo, “de meio se transformou no fim fundamental da vida humana” [8].

Existe uma evidente contradição na civilização técnico-científica: o homem parece ser incapaz de frear a eminente bancarrota de si mesmo, provocada pela magnitude de progresso inconsequente e desmedida. Dessa forma, há então, uma gritante desproporcionalidade entre o conhecimento ético e o imenso poderio tecnológico. Tal descompasso se configura hoje como “desafio de toda a humanidade”[9]. Oferecer respostas e, sobretudo, reações comprometidas e inquietas com o cenário aqui demonstrado se manifesta como sendo um desafio necessário na contramão da contemporaneidade tecnocrata-contraditória e antiética.
Ainda na formulação do diagnóstico da situação atual como problema ético, a próxima questão abordada por Manfredo Oliveira é a nova configuração das relações internacionais. Como consequência direta da forma de vida que vem sendo adotada e organizada pela sociedade tecnocrata, já descrita por nós, a dimensão econômica ocupa patamar primordial. Para Manfredo, os condicionamentos constatados na atualidade apontam para:

“a articulação de um sistema econômico em nível mundial através da inclusão de todas as sociedades no mercado, sobretudo nos mercados financeiros, que assumem a condução de todo o processo econômico, e de uma teoria econômica que defende o mercado como a forma exclusiva de coordenação de uma sociedade moderna” [10].

O desenvolvimento processual e tecnocrata das sociedades descambaram numa transformação econômica, ou seja, “um processo de autonomização cada vez mais acentuado da economia que se tornou fim em si mesma e de predominância de uma liberdade privada sem referências éticas. e sem responsabilidade coletiva”[11]. Tais desdobramentos foram gestados dentro de um cenário político que possibilitou o desencadeamento de novas medidas através da nova revolução tecnológica. Aqui concebida mediante dois fatores relevantes para o ser humano: 1) houve, sem dúvida, a transformação da forma de trabalho, posto que a tecnologia da informação enquanto “novo paradigma de produção” [12], acarretou um significativo aumento da produção de trabalho, gerando assim, desemprego em massa, uma vez que o trabalho, numa palavra, manual e braçal desaparece e entram em cena nas empresas a tecnologia de ponta; 2) essas novas características estabelecidas são propícias para a cultivação de “uma competitividade exacerbada em nível internacional”[13].
Diante disso, consequências advindas do novo processo de produção e de trabalho, e do sistema de emprego, são sentidas diretamente na questão social. Por um lado, os generosos frutos das experiências tecnológicas podem ser colhidos e acumulados em forma de riqueza, por outro lado, a miséria e a fome, insistem em estabelecer uma desagregação social cada vez mais cruel e desumana. Além dessas preocupações, aqui também é espaço de mencionar o que já foi citado na primeira parte destes estudos, a questão da progressiva destruição da própria humanidade e também a questão da exploração inconsequente dos recursos naturais. Para Manfredo, “uma das características fundamentais do novo contexto societário é a substituição da política pela economia, ou seja, pelo mercado, sobretudo financeiro, na condução dos processos sociais”.[14]
Em outras palavras, a economia dita as regras do jogo, e suplanta as relações políticas. Esse novo paradigma econômico é o responsável majoritário pelas grandes crises que assolam o contexto civilizatório. A vida social mercantilizada, tendo o lucro como mediador fundamental de todas as relações sociais, conduz a economia a um estágio de responsável pelos fins da vida humana. Aqui emerge a pergunta pelo sentido de tudo isso e pelos critérios que impulsionam toda essa estrutura. Assim se considera que se a racionalidade dominante, por vezes, nega e desconhece tais perguntas e, além disso, torna impossível o debate racional de cunho ético, uma transformação só pode acontecer mediante uma mudança cultural que se manifeste efetivamente numa transição de paradigma econômico para paradigma ecológico. O que resultaria numa nova configuração dos três pontos de relevo entrelaçados aqui: da ética, da economia e da política.   
Após as colações que diagnosticam o mundo contemporâneo enquanto civilização técnico-científica, enquadrando as dimensões de avanços laboratoriais, a questão econômica, a mudança no sistema de produção e de trabalho e, sobretudo a questão da sobrevivência humana que se encontra imersa nisso em jogo, Manfredo assinala a necessidade de uma ética capaz de ser inserida no atual contexto sócio histórico, e obviamente de manter diálogos com tal momento. Felizmente, a tentativa de articulação ética que se intenta na contemporaneidade, se manifesta como uma reação à questão da intervenção das ciências e do progresso tecnológico na natureza. Tal programa é extremamente necessário, para que seja estancada em níveis de minoração, as avançadas respostas da natureza.

“Esta situação mesma põe a humanidade frente ao problema da corresponsabilidade planetária, uma responsabilidade ética global o que exige uma ‘macroética da solidariedade histórica’ em nível mundial que seja capaz de fomentar uma consciência cosmopolita da solidariedade e recupere a primazia do político no contexto de um mundo globalizado e ameaçado por um colapso ecológico e social, portanto, uma ética capaz de legitimar os fundamentos normativos básicos das estruturas necessárias para uma civilização global”[15].  
Indubitavelmente, a legitimação dos fundamentos normativos, que ponderam e que dissipam o progressivo colapso em marcha, precisa emergir urgentemente, mediante a formação da consciência global capaz de compreender, de fato, a profundidade e a seriedade do que está em jogo. Noutros termos: os evidentes e relevantes avanços produzidos pelo agora homo faber [16], ou seja, homem que altera, manipula e transforma a natureza naquilo que o pode servir e enriquecer, como fala Pelizzoli nas suas Correntes da ética ambiental, se voltam para o próprio homem em forma de consequências que estão sendo e que serão colhidas amargamente como fruto de uma ganância cega e desmedida que coloca em ameaça a vida na Terra. Vale considerar, que Manfredo apresenta diferentes visões filosóficas da ética. Ou seja, como os filósofos pensam uma ética hoje diante do momento difícil pelo qual passa a humanidade.
Com efeito, a ótica filosófica de uma ética que se pretenda contemporânea, precisa atender efetivamente as realidades gritantes que se apresentam constantemente como problemas enraizados num contexto social, político e econômico e que infelizmente, parecem se aperfeiçoar e criar raízes profundas e de difícil acesso à ética. Um exemplo disso, dado por Habermas é o fato de, segundo ele, haver um pluralismo na visão de mundo das sociedades, isto é, diferentes interpretações no modo em que as pessoas enxergam o mundo. Essa diversificação descambou na derrocada em ascensão das religiões e da ética, uma vez que, a religião é espaço da legitimação da ética enquanto validade pública moral através da qual todos se regem. Quais as consequências desse novo cenário? Não há mais uma concordância que se apresente como modelo normativo enquanto guia de valores e de melhor forma de vida para o ser humano num nível social. Basta olhar em nossa volta para sentir o eminente relativismo-individualista produzindo fiéis adeptos dessa conjuntura.

Referências

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética, Direito e Democracia, 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2010; LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética filosófica I. São Paulo: Loyola, 2002; BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001e PELIZZOLI, M.L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.



[1] Aluno do Curso de Bacharelado em Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza.
[2] OLIVEIRA, M. A. de. Os desafios da ética contemporânea, in: Ética, Direito e Democracia, 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2010.
[3] LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética filosófica I. São Paulo: Loyola, 2002, p. 96.
[4]Ib. p. 94.
[5] OLIVEIRA, M. A. de, op. cit. p. 10.
[6] Ib. p. 10.
[7] BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 9. 
[8] OLIVEIRA, M. A. de. Os desafios da ética contemporânea, in: Ética, Direito e Democracia, 2ª edição. São Paulo: Editora Paulus, 2010, p. 11.
[9] Ib. p. 11.
[10] OLIVEIRA, M. A. de. Os desafios da ética contemporânea, in: Ética, Direito e Democracia, 2ª edição. São Paulo: Editora Paulus, 2010, p. 12.
[11] Ib. p. 12.
[12] Ib. p. 12.
[13]. Ib. p.13.
[14] Ib. p. 13
[15] OLIVEIRA, M. A. de. Os desafios da ética contemporânea, in: Ética, Direito e Democracia, 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2010, p. 17.
[16] PELIZZOLI, M.L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 17. 

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