Ubiracy de Souza Braga*
“Filosofar é passear com um saco e, ao encontrar alguma coisa que sirva, pegar”. Gilles Deleuze
A
história da filosofia determina três momentos principais na elaboração da
univocidade do ser. O primeiro é representado por Duns Scot, no Opus
Oxoniense, o maior livro de ontologia pura, onde o ser é pensado como
unívoco, mas o ser unívoco é pensado como neutro, neuter, indiferente ao
infinito e ao finito, ao singular e ao universal, ao criado e ao incriado. Não
por acaso merece, pois, o nome de “doutor sutil”, porque seu olhar discerne o
ser aquém do entrecruzamento do universal e do singular. Para neutralizar as
forças da analogia do juízo, ele toma a dianteira e neutraliza antes de tudo o
ser num conceito abstrato. Eis por que ele somente pensou o ser unívoco. Vê-se
o inimigo que se esforça por evitar, em conformidade com as exigências do
cristianismo: o panteísmo, em que ele cairia se o ser comum não fosse neutro.
Todavia, ele soube definir dois tipos de distinção que reportavam à diferença
este ser neutro indiferente. A distinção formal, com efeito, é uma distinção
real, pois é fundada no ser, ou na coisa, mas não é necessariamente uma
distinção numérica, porque se estabelece entre essências ou sentidos, entre
“razões formais”, que podem deixar subsistir a unidade do sujeito a que são
atribuídas. Não só a univocidade do ser em relação à Deus e às criaturas se
prolonga na univocidade dos “atributos”, mas, sob a condição de sua infinitude,
Deus pode possuir esses atributos unívocos distintos sem nada
perder de sua unidade.
O outro tipo de “distinção”, a distinção modal, se estabelece entre o ser ou os atributos, por um lado, e, por outro, as variações intensivas de que são capazes. Essas variações, como os graus do branco, são modalidades individuantes das quais o infinito e o finito constituem precisamente as intensidades singulares. Do ponto de vista de sua própria neutralidade, o ser unívoco não implica, pois, somente formas qualitativas ou atributos distintos, eles mesmos unívocos, mas se reporta e os reporta a fatos intensivos ou graus individuantes que variam seu modo sem modificar-lhe a essência enquanto ser. Se é verdade que a distinção em geral reporta o ser à diferença, a distinção formal e a distinção modal sãos os dois tipos sob os quais o ser unívoco, em si mesmo, por si mesmo, se reporta à diferença. É com Espinosa que o ser unívoco deixa de ser neutralizado, tornando-se expressivo, tornando-se uma verdadeira proposição expressiva afirmativa. Todavia, subsiste ainda uma indiferença entre a substância e os modos: a substância espinosista aparece independente dos modos, e os modos dependem da substância, mas de outra coisa. Seria preciso que a substância fosse dita dos modos e somente dos modos.
Tal condição só pode ser preenchida à custa de uma subversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo e assim por diante. Que a identidade não é a primeira, que ela existe como princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que abre à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito geral já posto como idêntico. Com o eterno retorno, Nietzsche não queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o da vontade de potência) em que toda as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Revir é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz o mesmo retornar, mas o revir constitui o único Mesmo do que se torna. Revir é o devir-idêntico do próprio devir. Revir é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como repetição. Do mesmo modo a repetição do eterno retorno consiste em pensar o messo a partir do diferente. Mas esse pensamento já não é de modo algum uma representação teórica: ele opera praticamente uma seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno. A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição.
As cartas de jogar apareceram na Europa cristã por volta de 1367, data da primeira evidência documentada de sua existência - a proibição de seu uso, em Berna, na Suíça. Antes disso, as cartas foram usadas por muitas décadas no Al-Andalus islâmico, nome dado à Península Ibérica com a Septimânia no século VIII, a partir do domínio do Califado Omíada, tendo o nome sido utilizado para se referir à Península independentemente do território politicamente controlado pelas forças de orientação da cultura islâmica. Contudo, utiliza-se o termo para referir os territórios que se diferenciam dos reinos cristãos. As primeiras fontes europeias descrevem um baralho com cinquenta e duas cartas, como o baralho moderno sem curingas. O tarô de setenta e oito cartas resultou da adição de vinte e um trunfos numerados mais um sem número, neste caso, o curinga à variante de cinquenta e seis cartas, com especificamente quatorze cartas cada naipe. Estima-se que tenha sido escrito entre 1418-25, uma vez que o pintor Michelino da Besozzo retornou a Milão em 1418 e o autor faleceu em 1425. Na historiografia de Giordano Berti, o Tarot foi inventado certamente antes do ano 1440, na corte do Duque de Milão Filippo Maria Visconti. Este sistema de crença decorre do baralho desenhado por Marziano da Tortona, que apresentam indícios de que são muitos personagens também presentes no Tarô do século XV. Existem três documentos de Ferrara datado de 1º de janeiro de 1441 a julho de 1442, com o termo trionfi registrado etnograficamente pela primeira vez em fevereiro de 1442.
O documento de janeiro de 1441, que usa o termo trionfi, não é considerado confiável; contudo, o fato de o mesmo pintor, Jacomo Sagramoro, ter sido comissionado pelo mesmo patrão, Leonello d`Este - como no documento de fevereiro de 1442 - indica que é ao menos plausível um exemplo do mesmo tipo. Depois de 1442 há uns sete anos sem quaisquer exemplos de material semelhante, o jogo parece ter ganhado importância no ano de 1450, um ano de jubileu na Itália, que presenciou muitas festividades e um grande movimento de peregrinos. A palavra tarô não possui uma tradução específica. Acredita-se que ele possa vir da palavra árabe turuq, que significa quatro caminhos, ou talvez do árabe tarach, que significa rejeito. Segundo a etimologia francesa, tarot é um empréstimo do italiano tarocco, derivado de tara, perda de valor que sofre uma mercadoria, significando ainda dedução, ação de deduzir. O tarô tradicional possui 78 cartas; quando usado para fins divinatórios, cada qual é denominada de arcano, palavra que significa: mistérios ou segredos a serem desvendados e foi incorporada pelos ocultistas do século XIX. Mas não há documentos que atestem o uso divinatório do tarô anteriores ao século XVIII, embora se saiba que o uso comparativamente de cartas semelhantes para tal uso era evidente por volta de 1540.
À primeira vista, O Cavaleiro de Copas apresenta uma sequência de imagens de grande potência estética (cf. Pasquino 1978; Brehier, 1980; Ulpiano, 1996) acompanhada por diálogos e narrações sussurradas e desconexas. Estes fragmentos serão, ao mesmo tempo, o recurso fílmico desafiador de Malick e o mote explicativo da narrativa e dos significados capitais da obra. O caminho percorrido por Rick (Christian Bale), personagem principal do filme, revela, por meio de um roteiro não cronológico, os gozos e as dores vividas por um homem que chega à meia idade. Memórias de luxo, sucesso, mulheres, festas e fama intercalam-se com dramas e rupturas familiares, relacionamentos fracassados, dor e arrependimento. Tudo isto se apresenta na narrativa do filme, que se afunila e se concentra no problema principal: a angústia, o remorso e a dúvida de um homem que se encontra desconcertado com estas memórias e desesperado em relação ao real entendimento do presente e as escolhas a serem realizadas para o futuro. Malick oferece caminhos explicativos para Rick – possibilidades completamente distintas, contudo, possíveis na experiência humana. Uma vida liberta, solitária e nômade; uma vida familiar focada na concepção e no cuidado com os filhos que darão sequência à nossa jornada; ou simplesmente, a opção de não acreditar no devir como um espiral de crescimento inexorável até a almejada redenção, conforme apresentado pelo pai de Rick, um senhor desgostoso que se decepcionou ao não encontrar o sentido final no crepúsculo da existência. É nesta opção que talvez resida a grande potência do filme. Ela revelará, em última instância, a junção da concepção fílmica e semântica da obra.
Historicamente um livro intitulado Os Oráculos de Francesco Marcolino da Forli apresenta um método divinatório simples usando o naipe de ouros de um baralho comum. Manuscritos de 1735, representando O Quadrado dos Setes, e de 1750, representando a Cartomancia Pratesi, documentam o significado rudimentar divinatório das cartas de tarô, bem como um sistema de tirada de cartas. Em 1765, Giacomo Casanova escreveu em seu Diário que “sua criada russa frequentemente usava um baralho de jogar para ler a sorte”. Durante a fase de produção artesanal das cartas, desenvolveram-se muitas variedades regionais com diferentes sistemas de naipes e também na ordem dos trunfos. Com a expansão do jogo do tarô pela Europa - originalmente um jogo italiano, espalhou-se pelo sul da França, Suíça, Bélgica, sul da Alemanha e auspicioso Império Austro-Húngaro - e com a mudança da produção de sentido artesanal das cartas para uma produção em grande escala, a produção das cartas passou por um processo secular de padronização. Antes do século XVIII os fabricantes de cartas italianos já haviam padronizado as figuras, mesmo que elas fossem desenhadas de diferentes formas, pelos variados fabricantes regionais nas regras do jogo no que diz respeito à ordem dos trunfos. Segundo Deleuze, o sentido aparece em três momentos diversos: primeiro entre os estoicos no século III a. C.; uma segunda descoberta no século XIV por Gregório de Rimini1 e Nicolas d’Autrecourt; e uma terceira vez, como objektiv, no século XIX, com o filósofo alemão Alexius Von Meinong cuja notoriedade se deve, em parte, a formulação de uma teoria de objetos não-existentes, duramente criticada pela perspectiva de Bertrand Russell não obstante o seu profundo respeito pela obra de Meinong.
De início, pode soar um pouco estranho o fato de Deleuze ter escrito um livro apoiado em Meinong, mesmo após Bertrand Russell (1973) ter atacado a posição do lógico alemão acerca do objektiv. Desse modo, Deleuze rompe com toda a tradição inaugurada por Frege e se estende por Bertrand Russell. Qual a importância da questão do sentido para Deleuze? O que pode ser construído, em filosofia, a partir dessa abordagem? É espantoso como Deleuze tende mais para Meinong do que para Frege, o que de imediato nos leva a consideração do sentido como entidade não existente, melhor dizendo, à tese capital do livro. No desenvolvimento teórico dos conceitos de sua filosofia, contida no livro: Lógica do Sentido, iremos compreender a afirmação natural de que a filosofia é uma disciplina que trata da criação/e invenção de conceitos. A tese filosófica de Gilles Deleuze, esquematicamente, isto é, explica a representação que o conceito remete ao acontecimento. Devemos distinguir e compreender como se dá esta passagem do livro Lógica do Sentido para o livro O que é a Filosofia? No primeiro, a questão do sentido está diretamente relacionada a proposição; mas no segundo, o sentido dá uma passo mais adiante no entendimento remetendo ao conceito.
Historicamente a ideia de acontecimento dá ao conceito um aspecto diferente daquele pensado por
Aristóteles. Desta maneira, o pensamento filosófico contemporâneo de Gilles Deleuze procura indicar novas
saídas para a filosofia. É neste sentido que nossa apreensão do mundo, dando-se através da
superfície das coisas, nos faria apreender além das coisas e suas imagens, os
acontecimentos que as envolvem. Deleuze quer tornar relevante a ideia praticada de que a
linguagem e a superfície estão relacionadas. O que pensamos e falamos sobre as
coisas passa pela superfície. O estatuto da ideia é superficial. A linguagem,
somente atinge a significação quando se dá na superfície. A significação
somente é possível pelo sentido que a envolve. O acontecimento sinaliza para o
sentido como a proposição para a linguagem. O que deve ser esclarecido é que
Deleuze particularmente aposta no conceito filosófico como incorporal. Por outro
lado, há também um fascínio de consciência do autor da Lógica do Sentido pela
obra de Lewis Carroll; diante desta, procura demonstrar que a obra lógica de
Carroll difere de sua obra fantástica
exatamente pelo tratamento dado ao sentido.
A
obra de Lewis Carroll representa um jogo do sentido, do não senso, um
caos-cosmos. O sentido é uma entidade não existente, ele com o “não-senso” têm
relações particulares. Lewis Carroll promoveu encenações do paradoxo, o que se
aproxima dos estoicos na constituição paradoxal com o sentido. “Alice e do
outro lado do espelho” tratam dos acontecimentos, dos acontecimentos puros.
Simultaneidade do devir – maiores do que éramos e menores do que nos tornamos,
na medida em que se furta o presente: o devir não suporta a cisão nem a
diferença do antes (passado) e do depois (futuro). A essência do devir é “puxar”
nos dois sentidos ao mesmo tempo. O bom senso é uma afirmação de um sentido
determinável em todas as coisas – o paradoxo, que afirma os dois sentidos ao
mesmo tempo. O puro devir é o ilimitado, matéria do simulacro, quando se furta
a ação da ideia, quando contesta ao mesmo tempo o modelo e a cópia: as coisas
medidas se acham nas ideias. O paradoxo desse puro devir quando é capaz de
furtar-se ao presente é a identidade do infinito de dois sentidos simultâneos: a) Alice - contestação da identidade de pessoal, na aventura da perda do
nome próprio, que é garantido por um saber; b) o “eu” pessoal tem necessidade
de Deus e do mundo.
Os substantivos e os adjetivos estão fundidos, paradas e
repousos arrastados pelos verbos de puro devir, que desliza na linguagem dos
acontecimentos, em que a identidade se perde para o eu, o mundo e Deus; c) o
paradoxo destrói o bom senso como único sentido, destrói o senso comum como
designação das identidades fixas. Enfim,
o estatuto do sentido, a partir da filosofia estoica, tem no exprimível, no “lekton”,
seu ponto de partida. Deleuze, na “Lógica do sentido”, procura demonstrar os filósofos
que tratam o sentido de modo direto, fazendo-o aparecer na fronteira entre as
proposições e as coisas. Pela via dos “incorporais”, ele acredita que temos um novo modo de pensar a lógica,
sobretudo pelo fato do princípio de “não contradição” não atingir os
incorporais. Desde Aristóteles, este princípio fundamenta e garante a verdade
das premissas. Consequentemente permite observar se, de premissas verdadeiras,
seguem-se necessariamente conclusões verdadeiras: a prova da validade dos
argumentos. Deleuze seguindo esta tradição também estabelece uma relação entre o sentido e o tempo, destacando o presente – que pertence aos corpos,
o reino de Cronos -, e o tempo dos incorporais, denominado Aion, quer dizer através da compreensão da
linguagem, o substantivo e os verbos apareceriam relacionados as dimensões
de apreensão do tempo.
Knight
of Cups é um filme norte-americano escrito e dirigido por Terrence Malick e
estrelado por Christian Bale, Cate Blanchett, Natalie Portman, Antonio
Bandeiras, Brian Dennehy, Freida Pinto, Imogen Poots, Isabel Lucas, Teresa
Palmer e Wes Bentley. O filme estreou no Festival de Berlim em fevereiro de
2015, e foi lançado nos Estados Unidos da América em 4 de março de 2016. O filme delimita a nova experiência de Terrence
Malick através de um tipo muito especial de metafísica estética, que tenta
atribuir o caos na vida dos personagens ao caos nas imagens: Christian Bale
interpreta um “homem qualquer”, praticamente sem “vontades manifestadas”, que
se relaciona sucessivamente com uma porção adequada de beldades de Hollywood. Fica
a impressão que, ao invés de criar um contexto, Knight of Cups privilegia a
ideia de descontextualização, a aleatoriedade: esta história poderia ter durado
20 minutos, ou talvez cinco horas, já que o desfile de imagens de festa, de
brigas e de corridas ao mar se sucede com um corte/separação com a imagem anterior.
Há a proposição inovadora de um fluxo inconsciente, difuso no tempo, desprovido
de razão ou de alguma intenção racionalizadora para além do próprio dispositivo, isto é,
suas imagens, retóricas.
Esta
erosão e derrisão do singular, ou, do extraordinário, já vinham anunciada em O Homem sem Qualidade: talvez seja precisamente
o pequeno-burguês a pressentir a autora de um novo heroísmo, enorme e coletivo,
a exemplo das formigas. Na verdade, a chegada dessa sociedade de formigas
começou com a massificação da sociedade, as primeiras a serem submetidas ao
enquadramento das racionalidades niveladoras. O fluxo se expandiu. A seguir, atingiu
os quadros possuidores do aparelho, quadros e técnicos absorvidos no sistema socio-técnico que geravam; invadiu enfim as profissões liberais que se acreditavam protegidas
contra ele, e as “belas almas” literárias, artísticas e estéticas. Em suas
águas, ele rola e dispersa as obras, antigamente insulares, hoje mundanas em
gotas d`água no mar, ou em metáforas de uma disseminação da língua que não tem
mais autor, de acordo com Michel de Certeau, “mas se torna o discurso ou a
citação indefinida do outro”. Existem antecedentes, mas organizados por uma
comunidade na loucura e na morte “comuns”, e não ainda pelo nivelamento da
racionalidade técnica. Na aurora da modernidade, no século XVI, o homem
ordinário aparece com as insígnias de uma desventura geral que ele transmuda em
derrisão.
Assim
como é desenhado em uma literatura irônica, aliás, típica dos países do Norte e
de inspiração já democrática, “embarca” na apertada nau humana dos insensatos e
dos mortais, inversão da Arca de Noé, pois leva ao extravio e à perda. Fica aí
encurralado na sorte comum. Chamado “Cada
um”, nome que trai a ausência de nome, este anti-herói é também Ninguém, Nemo,
da mesma forma que o Everyman inglês
se torna o Nobody ou o Jedermann alemão se torna o Niemand. É sempre o outro, sem
responsabilidades próprias, pois, pensando bem, “a culpa não é minha, mas do outro: o destino”, e
de propriedades particulares que limitam o lugar próprio, pois a morte apaga todas
as diferenças. No entanto, mesmo neste teatro humanista, ele ainda ri. E nisto
é sábio e louco ao mesmo tempo, lúcido e ridículo, no destino que se impõe a
todos e reduz a nada a isenção que cada um almeja. O extravio da escrita fora
do seu lugar próprio é traçado por este homem ordinário, metáfora e deriva da
dúvida que a habita, fantasma de sua “vaidade”, figura enigmática da relação
social que ela mantém com todo o mundo, com a perda de sua isenção e finalmente
com sua morte.
Se me permitem uma digressão...
François Truffaut costumava faltar às aulas para assistir a muitos filmes secretamente,
muitas vezes com o colega de classe Robert Lachenay, seu grande amigo na
infância. Aos 14 anos, abandonou a escola definitivamente e passou a viver de
pequenos trabalhos e alguns furtos. A paixão pelo cinema fez o jovem Truffaut
fundar, em 1947, um cineclube, chamado Cercle
Cinémane. Aquela era uma época de enorme efervescência cultural na França
do pós-Segunda Guerra, e os cineclubes, lotados, eram o local para se assistir
às projeções e discuti-las depois. Mas o Cercle
não teria vida longa, já que ele concorria com o Travail et Culture, cineclube do escritor e crítico de cinema André
Bazin. Quando este soube que o Cercle
estava à beira da falência, foi conhecer o jovem Truffaut e, sensibilizado com
o menino cinéfilo, passou a ser uma espécie de tutor para François. A influência de Bazin na vida de François
Truffaut foi decisiva, que se tornou autodidata
– quando “esforçava-se para ver três filmes por dia e ler três livros por
semana”. Ele até chegou a fazer um acordo com o pai adotivo, que lhe custearia
despesas derivadas de sua vida cinéfila. Em troca, Roland Truffaut exigiu que
François arrumasse um emprego estável e abandonasse o seu cineclube
definitivamente. Mas o garoto descumpriu o acordo, e Roland Truffaut o internou
em um reformatório juvenil de Villejuif, uma comuna francesa na região
administrativa da Ilha-de-França, no departamento de Val-de-Marne, e assim passou
sua custódia para a polícia. Os psicólogos do reformatório contataram André
Bazin, que prometeu dar um emprego a François no Travail et Culture. Sob liberdade condicional, Truffaut foi
internado em um lar religioso de Versailles, cidade
artificial, criada a partir do zero por vontade do rei Luís XIV, Versalhes foi
a sede do poder político durante um século, entre 1682 e 1789, antes de se
tornar o berço da Revolução. Depois de perder o seu estatuto como “cidade real”,
torna-se a capital de um departamento, o Sena e Oise, em 1790, depois o
Yvelines em 1968 e um bispado, mas, no caso da trama cinematográfica, felizmente seis meses depois,
foi expulso por mau comportamento.
Como
tem sido recorrente nos filmes de Malick, os diálogos são mais em off, como
sucede neste caso com o acompanhamento do timbre sempre pomposo Sir John
Gielgud. Já a câmara etérea de Emmanuel Lubezki que começou sua carreira no cinema mexicano e em produções televisivas do final dos anos 1980, como a série cult de terror, La Hora Marcada (1986), desliza e contempla as
personagens, raramente nelas se fixando, mas que frequentemente infere apenas em planos
cortados. Apesar de Malick conseguir em Knight of Cups alguns momentos de
suprema elevação, como uma espécie de consciência velada de uma indústria hollywoodiana corrompida que,transforma pessoas em “personagens midiáticos” para atender a uma demanda fetichista de uma sociedade com valores cada vez mais mecanicistas, pragmática e, claro,
vazia de ideias. Onde a subsunção do lucro condiciona e acaba de alguma
forma sentida e vazia. Parece até um Malick mais impressionado em formular esboços de
personagens com o habitual distanciamento. Empenha-se ao acentuar
o peso visual da comunidade corporativa e materialista. Mas acaba
vítima do mesmo vírus ao não evitar que o seu filme fique também,
inevitavelmente, esvaziado de parte do seu interesse. O filme não difere muito de A Árvore da Vida, outra obra de Malick,
construída a partir do mesmo estilo de representação de imagens. Mesma narração
sussurrante, mesmo tom de autoajuda. Mas enquanto A Árvore da Vida se parecia
com uma grande missa, citando de maneira explícita a Bíblia, Knight of Cups é
mundano. É contemporâneo, e lembra uma grande propaganda para marcas de roupas
chiques, com Christian Bale desfilando seus ternos e camisas por festas caras,
pelas ruas da cidade e pelo deserto. De qualquer maneira, persiste a
sensação de uma obra cristã. Construída a partir do “sentimento de culpa”
inerente ao ser humano: façam o que fizerem, os personagens de Malick são
sempre vazios, tristes, em busca da reconciliação com o mundo transcendental. A beleza é sempre uma construção estética, determinada por sua historicidade, não uma
apreensão técnica e direta da objetividade consumista da realidade. Por essa razão, defender belezas
absolutas e automáticas em Knight of Cups parece ser um argumento interessante
e só aparentemente de difícil sustentação na concepção própria de direção. O que o filme revela, acima de tudo, no
âmbito do processo de trabalho é o insustentável do cinema autoral. Muitos
não assistiram a um filme qualquer, mas ao “novo Malick”, a nova
assinatura do diretor. A paixão pelo cinema transforma-se em culto à
personalidade. Em apreciação acrítica que não distingue uma obra da outra: “quanto
mais Malick, melhor”. A lógica da autoria é retórica, e esgota-se “em si”, talvez como
fundamento da lógica científica.
Bibliografia
geral consultada.
RUSSELL, Bertrand,
Significação e Verdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973;
PASQUINO, Pascale, “Le Statut Ontologique des Incorporels dans l’Ancien
Stoïcisme”. In: Les Stoïciens et leur Logique. Paris:
Editions Vrin, 1978; BRÉHIER, Émile, La Théorie des Incorporels dans
l’Ancien Stoïcisme. Paris:
Editions Vrin, 1980; ULPIANO, Cláudio, “Afetos: Um Sorriso, Um Gesto”. In: Pontos
de Fuga: Visão, Tato e Outros Pedaços. Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1996; DECKER, Ronald & DUMMETT,
Michael, History of the Occult Tarot - 1870-1970. Londres: Editor
Duckworth, 2002; LOPES, Luiz Manoel, “Teoria do Sentido em Deleuze”. In: An.
Filos. São João
del-Rei, n°10, pp. 203-220, jul. 2003; BOUANICHE, Arnaud, Gilles Deleuze –
Une Introduction. Paris: Les Editions Pocket, 2007; BERTI, Giordano, Storia
dei Tarocchi: Verità e Leggende sulle Carte più Misteriose del Mondo.
Milano: Edizione Mondadori, 2007; STHEPAN, Cassiana Lopes, Michel Foucault e
Pierre Hadot: Um Diálogo Contemporâneo sobre a Concepção Estóica de Si Mesmo.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Setor de
ciências Humanas. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2015; GIMBO,
Fernando Sepe, Foucault, o Ethos e o Pathos de um Pensamento.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento
de Filosofia e Metodologia das Ciências. São Carlos: Universidade Federal de
São Carlos, 2015; NIQUETTI, Ricardo, Deleuze e Velhice: Uma Política de
Encontro. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015;
ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo de, A Criatividade da Decisão Judicial e
Imunização da Comunidade: Uma Investigação a partir da Filosofia de Gilles
Deleuze. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade
de Direito de Recife. Universidade Federal de Pernambuco, 2016; entre outros.
__________________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político
(UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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