sábado, 2 de janeiro de 2016

Reisado - A Questão da Fé & Memórias do Sagrado

     Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

Arte pra mim é missão, vocação e festa”. Ariano Suassuna
 
 
           



            Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha formam a região metropolitana, na região do Cariri, sul do Ceará: a distância que separa as três cidades é de menos de 10 km. Crato e Barbalha são as cidades mais antigas, fundadas no século XVIII. Juazeiro do Norte foi emancipada no início do século XX pelo extraordinário Padre Cícero Romão, que depois de morto “passou a ser considerado um santo pela maioria absoluta dos católicos nordestinos”. Milhões de pessoas vão a Juazeiro do Norte todos os anos, por causa do Padre Cícero que na devoção popular, é conhecido como “Padim Ciço”. Carismático, obteve grande prestígio e influência sobre a vida social, política e religiosa do Ceará bem como do Nordeste. Em março de 2001, foi escolhido “O Cearense do Século” em votação promovida pela TV Verdes Mares em parceria com a Rede Globo de televisão. Em julho de 2012, foi eleito um dos “100 maiores brasileiros de todos os tempos” em concurso realizado pelo SBT com a BBC. Juazeiro do Norte tem quase 250.000 habitantes, e é a maior cidade do interior do Ceará. Crato tem quase 100.000 e Barbalha, mais de 50.000. As três cidades juntas formam um complexo urbano de mais de 400.000 habitantes, mas que transcende a região vista como mero instrumento da ação política como ocorreu nas eleições do governador Camilo Santana.


A região do Cariri é marcada simbolicamente por forte religiosidade popular que remete a acontecimentos do final do século XIX, período em que a Capela de Nossa Senhora das Dores, localizada em Juazeiro do Norte - CE foi palco do fenômeno conhecido como “milagre da hóstia”, quando o pão eucarístico teria se transformado “em sangue na boca da beata Maria de Araújo durante a missa celebrada pelo Padre Cícero”. Tal acontecimento resultou na atração de devotos para a referida cidade - tida por sagrada, e, consequentemente, o afluxo de fiéis favoreceu o crescimento econômico e político da região. Diante do milagre e dos resultados por ele provocados, o Crato - e posteriormente também à cidade de Barbalha - desenvolve políticas públicas para se diferenciar e/ou contrapor-se à Juazeiro e, desta forma, firmar sua suposta primazia intelectual e tradicional, visto que já tinha perdido para a cidade dos que classificavam “como fanáticos religiosos do Padre Cícero”, o domínio econômico e político da região.
Neste contexto surgiu, em 18 de outubro de 1953, o Instituto Cultural do Cariri - I.C.C., “um espaço privilegiado para produção da crença no adiantamento cultural do Crato, através do qual esse grupo de especialistas esmerou-se em valorizar a tradição cultural cratense”. Os intelectuais do ICC publicam, na década de 1950, na cidade do Crato, textos e livros que falam sobre as manifestações tidas como folclóricas, além de incentivarem a apresentação desses grupos na comemoração do centenário do Crato e no 4º Centenário de São Paulo. O instituto em questão fundou uma cultura histórica regional que discursava sobre o passado e a preservação do folclore carirense. Um exemplo de elementos dessa Cultura Histórica a respeito das práticas populares do Cariri pode ser apreendido na obra O folclore no Cariri, do estudioso cratense J. de Figueiredo Filho. Nela se pode ver a atuação dos intelectuais como patronos e promotores do folclore regional. Desde outubro de 1953, por ocasião das empolgantes festividades, em comemoração ao centenário de elevação do Crato à categoria de cidade, que o folclore carirense apareceu, com toda a sua pujança. Para figurar naqueles festejos, foi preciso o reconhecimento do grupo intelectual, que fundou o Instituto Cultural do Cariri. Ainda existia certa prevenção contra os folguedos que nasceram da vida anônima do povo simples, dos brejos e pés-de-serra. Mas, tudo foi contornado e vencido pela gente que lia e escrevia, na tradicional e religiosa cidade do Crato. 

As ações dos barbalhenses a respeito de Juazeiro do Norte em muito pareciam com as dos cratenses. Esta compatibilidade de costumes e visões favorecia a ideia de que as cidades eram coirmãs e, portanto, dignas de homenagem. O que se percebe no jornal A Ação, pertencente à Diocese do Crato, é justamente isso: “O Crato Tênis Clube, pela sua Diretoria, já decidiu a realização de uma suntuosa festa de “Black tié”, ou seja, do mais alto nível social, festa que ocorre durante o mês de novembro, quando é prestada significativa homenagem á sociedade de Barbalha, cidade coirmã do Crato irmanada nos objetivos de aperfeiçoamento da sociedade caririense. A festa será eminentemente social, e se exigirá de todas as damas uma toalete e todos os cavalheiros deverão trajar passeio escuro completo” (cf. A Ação, 16.09.1967, p. 06).
            Nota-se, a partir daí que cidades como Barbalha, passam a inserir os grupos, dentre os quais está o Reisado de Congo - prática cultural há muito existente na região - nos eventos culturais, políticos e, sobretudo, religiosos. Até o início da década de 1970, os grupos folclóricos faziam suas atuações nas práticas costumeiras, no dia do padroeiro de Barbalha, Santo Antônio, em 13 de junho, a festa se resumia à realização do cortejo do pau da bandeira e à celebração eucarística, não ocorrendo, desta forma, nenhum tipo de folguedo. Tais medidas de “recuperação” e “valorização” geram apropriações e reinvenções por parte dos brincantes do Reisado de Congo e, por extensão, “(re) significações simbólicas”, na falta de melhor expressão, em maior ou menor grau. Em outras palavras, a espetacularização das artes populares produz, em certa medida, uma reinvenção dessas práticas por parte dos grupos que as constituem provocando, segundo Carvalho (2004), a morte das experiências sociais e políticas. As invenções ou reformulações promovidas pelos participantes dos grupos folclóricos se tornam perceptíveis nas músicas, indumentárias ou na própria atuação teatral. O processo se intensifica com a atuação da prefeitura local, que fornece novas indumentárias, calçados padronizados e pagamento em troca da apresentação em comemorações e datas especiais, especialmente na Festa de Santo Antônio, padroeiro da cidade.
Em seus estudos sobre a história das crenças e das ideias religiosas, Eliade (2010) observa que as sociedades arcaicas tinham a tendência de viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. O autor afirma que o mundo, de certa forma, está impregnado de valores religiosos. A história das religiões é constituída por um número considerável de hierofanias, manifestações das realidades sagradas. Por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto, numa pedra ou numa árvore até a hierofania suprema, que é, para os cristãos, a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Surge um paradoxo: manifestando o sagrado, um objeto qualquer se torna outra coisa e, ao mesmo tempo, continua a ser ele mesmo, porque segue participando do meio cósmico envolvente.  O reisado, objeto dessas notas de leitura, é uma dança popular profano-religiosa, de origem portuguesa, com que “se festeja a véspera e o Dia de Reis”. A partir dos documentos religiosos mais arcaicos que nos sejam acessíveis até ao cristianismo e ao Islã, a imitatio dei, como norma e linha diretriz da existência humana, jamais foi interrompida; na realidade, não poderia ter sido de outra forma. Em níveis mais arcaicos de cultura, viver enquanto ser humano é cm si um ato religioso, pois “a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor sacramental”. Em outros termos, ser, ou melhor, tornar-se um homem significa “ser religioso”.
No período de 24 de dezembro a 6 de janeiro, um grupo formado por músicos, cantores e dançarinos etnograficamente vão de porta em porta “anunciando a chegada do Messias e fazendo louvações aos donos das casas por onde passam e dançam”. Reisado também é conhecido como “Folia de Reis”. É de origem portuguesa e instalou-se em Sergipe no período colonial. Atualmente, é dançado em qualquer época do ano, os temas de seu enredo, variam de acordo com o local e a época em que são encenados, podem ser: amor, guerra, religião, entre outros. Compõe-se de várias partes e tem diversos personagens como o rei, o mestre, contramestre, figuras e moleques. Os instrumentos que acompanham o grupo são: violão, sanfona, ganzá, zabumba, triângulo e pandeiro.

Conceptualmente entendemos que o Reisado é “a denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e nascimento do Menino Jesus”. Em Portugal é conhecido como “Reisada” ou “Reseiro”. No Brasil é uma espécie de revista popular, recheada de histórias folclóricas, mas sua essência continua a mesma, com uma mistura de temas sacros e profanos. É formado por um grupo de músicos, cantores e dançarinos que “percorrem as ruas das cidades e até propriedades rurais, de porta em porta, anunciando a chegada do Messias, pedindo prendas e fazendo louvações aos donos das casas por onde passam”. A denominação de Reisado persiste ainda na maioria dos estados do Nordeste. Em diversas outras regiões o folguedo é chamado de “Bumba-meu-boi”, “Boi de Reis”, “Boi-Bumbá” ou simplesmente, “Boi”. Em São Paulo é conhecido como “Folia de Reis”, onde a festa é composta de apresentações de grupos de músicos e cantores, todos com roupas coloridas, entoando versos sobre o nascimento de Jesus Cristo, liderados por um mestre.
A Tiração de Reis, pelos reisados do Cariri cearense, ou a Folia de Reis, assim chamada em diversas outras regiões brasileiras, pelos grupos de foliões, são tradicionalmente realizadas no período de 25 de dezembro a 6 de janeiro. Têm sua origem primária na Festa do Sol Invencível, comemorada pelos romanos e depois adotada pelos egípcios. A festa romana era comemorada em 25 de dezembro (calendário gregoriano) e a egípcia em 6 de janeiro. No século III ficou estabelecido que dia 25 de dezembro se festejasse o Nascimento de Cristo e 6 de janeiro, Dia dos Reis, homenageando os Reis Magos Gaspar, Melchior e Baltazar, que levaram ouro, incenso e mirra, que representam, segundo a Igreja Católica, as três dimensões de Cristo, que são realeza, divindade e humanidade. Durante 12 dias, a partir do Natal até 6 de janeiro, acontece a Tiração de Reis. Fazem parte do espetáculo os “entremeios” (corruptela de entremezes), pequenas encenações dramáticas que são intercaladas com a execução de peças, embaixadas e batalhas.
Os personagens são tipos humanos ou animais e seres fantásticos humanizados, cheios de energia e determinação. Folguedo do ciclo natalino é comemorado em várias regiões brasileiras, principalmente no Norte e Nordeste, onde ganhou cores, formas e sons regionais. Em Alagoas, constitui-se numa representação dramática, normalmente curta e pobre de enredo, acompanhada e precedida de canto. Em Sergipe, é apresentado em qualquer época do ano e não apenas nas festas de Natal e Reis. Os temas de seu enredo variam de acordo com o lugar e o período em que são encenados: amor, guerra, religião, entre outros. O Reisado apresenta diversas modalidades e é composto de várias partes: a abertura ou abrição de porta; entrada; louvação ao Divino; chamadas do rei; peças de sala; danças; guerra; as sortes; encerramento da função. A música no Reisado está sempre presente. O Mestre é o solista, sendo respondido pelo coro a duas vozes.
Os instrumentos utilizados alternadamente são: a sanfona, o tambor, a zabumba, a viola, a rebeca ou violão, o ganzá, pandeiros, pífanos e os maracás, chocalhos feitos de lata, enfeitados com fitas coloridas. Há uma grande variedade de passos nas danças do Reisado, entre os quais se pode destacar: do Gingá, onde os figurantes de cócoras se balançam e gingam; da Maquila, um pulo pequeno com as pernas cruzadas e balanços alternados do corpo para os lados, passo também exibido pelos caboclinhos; corrupio, movimento de pião com o calcanhar esquerdo; Encruzado, cruzando-se as pernas ora a direita à frente da esquerda, ora ao contrário. Tem como personagens principais o Mestre, o Rei e a Rainha, o Contramestre, os Mateus, a Catirina, figuras e moleques.
O Mestre é o regente do espetáculo. Utilizando apitos, gestos e ordens, comanda a entrada e saída de peças e o andamento das execuções musicais. Usa um chapéu forrado de cetim, de aba dobrada na testa (como o dos cangaceiros), adornado com muitos espelhinhos, bordados dourados e flores artificiais, de onde pendem fitas compridas de várias cores; saiote de cetim ou cetineta de cores vivas, até a altura dos joelhos, enfeitado com gregas e galões, tendo por baixo saia branca, com babados; blusa, peitoral e capa. O traje do Rei deve ser mais bonito e enfeitado. Veste saiote ou calção e blusa de mangas compridas de cores iguais, peitoral, manto de cores diferentes em tecido brilhante (cetim ou laquê);calça sapato tênis (tipo conga), meiões coloridos e na cabeça uma coroa feita nos moldes das dos reis ocidentais, semelhante a das outras figuras, porém encimada por uma cruz; levam nas mãos uma espada e, às vezes, também um cetro. Durante o cortejo os Reis vêm na frente, logo atrás do Mestre e do Contramestre. A Rainha é representada por uma menina, com vestido de festa, branco ou rosa, uma coroa na cabeça e um ramalhete de flores nas mãos. Na música, o forró sobressai como ritmo predominante, destacando-se Alcymar Monteiro, Luiz Fidélis e Santanna, músicos juazeirenses consagrados em todo o Nordeste do Brasil. Em 2001 Alcymar Monteiro, na época secretário de cultura, criou o Juaforró, uma festa junina que hoje está entre as maiores do gênero.  

O repente é muito popular, especialmente em época de romaria, ocasião em que os violeiros saem pelas ruas fazendo versos e desafios de rimas. Outros ritmos conquistaram espaço em Juazeiro, como é o caso do rock, axé e Música eletrônica, existindo várias bandas independentes. As escolas públicas de Juazeiro mantêm a tradição das fanfarras, sendo que nas comemorações da Independência do Brasil elas desfilam pela cidade. Outra tradição mantida é a da rabeca, instrumento arcaico semelhante ao violino, havendo inclusive uma orquestra de rabecas em Juazeiro. Enfim, a Orquestra Armorial do Cariri seguiu viagem para Istambul a partir dos primeiros dias de maio de 2012. O grupo fez duas apresentações na Turquia, por meio de uma parceria com a Universidade Técnica do Oriente Médio. A orquestra vem de uma formação de mais de dez anos, com jovens músicos da região, tendo à frente o artista Di Freitas. Os shows tem obtido um interesse maior das instituições acadêmicas, que desejam conhecer o som que é produzido a partir da própria identidade cultural do povo do Cariri e sua ancestralidade. Di Freitas dá mais vida a rabeca. Leva o som do violoncelo, das cabaças estilizadas, promovendo um resgate aos instrumentos rústicos. 

Bibliografia geral consultada.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues, Memória do Sagrado. Estudos de Religião e Ritual. São Paulo: Edições Paulinas, 1985; CARVALHO, Maria Michol Pinto de, Matracas que Desafiam o Tempo: É o Bumba-Boi do Maranhão: Um Estudo da Tradição/Modernidade na Cultura Popular. São Luís. Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, 1995; GROTOWSKI, Jerzy, “Tu es le fils de quelqu`un”. In: EUROPE. Revue Littéraire Mensuelle. Le théâtre ailleurs autrement. Paris, outubro: (13-25), 1989; AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto, Festa à Brasileira. Significados do Festejar, no País que Nâo é Sério. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998; MENDES, Eloísa Brantes, Do Canto do Corpo aos Cantos da Casa. Performance e Espetacularidade através do Reisado do Mulungu. Chapada Diamantina. Tese de Doutorado em Artes Cênicas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2005; CARNEIRO, Sarah Roberta de Oliveira, O Reisado Senhor do Bonfim sob a Ótica do Espetáculo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006; BARROSO, Raimundo Oswald Cavalcante, Teatro como Encantamento: Bois e Reisados de Caretas no Ceará. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2007; CORRÊA, Julina Aparecida Garcia, De Reinados e de Reisados: Festa, Vida Social e Experiência Coletiva em Justinópolis/MG. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2009; SILVA, João (Org.); CUNHA JUNIOR, Henrique (Org.); NUNES, Cicera (Org.) , Artefatos da Cultura Negra no Ceará. 1ª edição. Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, 2011; PAULINO, Rogerio Lopes da Silva, O Ator e o Folião no Jogo das Máscaras da Folia de Reis. Tese de Doutorado. Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2011; MARINHO, Neide Aparecida, As Folias de Reis. Uma Leitura da Cultura Mineira Mediada  pela Comunicação. Tese de doutorado em Comunicação. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012; entre outros. 

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