Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga
“Arte pra mim
é missão, vocação e festa”. Ariano Suassuna
Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha formam a
região metropolitana, na região do Cariri, sul do Ceará: a distância que separa
as três cidades é de menos de 10 km. Crato e Barbalha são as cidades mais
antigas, fundadas no século XVIII. Juazeiro do Norte foi emancipada no início
do século XX pelo extraordinário Padre
Cícero Romão, que depois de morto “passou a ser considerado um santo pela
maioria absoluta dos católicos nordestinos”. Milhões de pessoas vão a Juazeiro
do Norte todos os anos, por causa do Padre Cícero que na devoção popular, é
conhecido como “Padim Ciço”. Carismático, obteve grande prestígio e influência
sobre a vida social, política e religiosa do Ceará bem como do Nordeste. Em
março de 2001, foi escolhido “O Cearense do Século” em votação promovida pela
TV Verdes Mares em parceria com a Rede Globo de
televisão. Em julho de 2012, foi eleito um dos “100 maiores brasileiros de
todos os tempos” em concurso realizado pelo SBT com a BBC. Juazeiro do Norte
tem quase 250.000 habitantes, e é a maior cidade do interior do Ceará. Crato tem
quase 100.000 e Barbalha, mais de 50.000. As três cidades juntas formam um
complexo urbano de mais de 400.000 habitantes, mas que transcende a região vista
como mero instrumento da ação política como ocorreu nas eleições do governador
Camilo Santana.
A
região do Cariri é marcada simbolicamente por forte religiosidade popular que
remete a acontecimentos do final do século XIX, período em que a Capela de
Nossa Senhora das Dores, localizada em Juazeiro do Norte - CE foi palco do
fenômeno conhecido como “milagre da hóstia”, quando o pão eucarístico teria se
transformado “em sangue na boca da beata Maria de Araújo durante a missa
celebrada pelo Padre Cícero”. Tal acontecimento resultou na atração de devotos
para a referida cidade - tida por sagrada, e, consequentemente, o afluxo de
fiéis favoreceu o crescimento econômico e político da região. Diante do milagre
e dos resultados por ele provocados, o Crato - e posteriormente também à cidade
de Barbalha - desenvolve políticas públicas para se diferenciar e/ou contrapor-se
à Juazeiro e, desta forma, firmar sua suposta primazia intelectual e
tradicional, visto que já tinha perdido para a cidade dos que classificavam “como
fanáticos religiosos do Padre Cícero”, o domínio econômico e político da
região.
Neste
contexto surgiu, em 18 de outubro de 1953, o Instituto Cultural do Cariri - I.C.C., “um espaço privilegiado para
produção da crença no adiantamento cultural do Crato, através do qual esse
grupo de especialistas esmerou-se em valorizar a tradição cultural cratense”. Os
intelectuais do ICC publicam, na década de 1950, na cidade do Crato, textos e
livros que falam sobre as manifestações tidas como folclóricas, além de
incentivarem a apresentação desses grupos na comemoração do centenário do Crato
e no 4º Centenário de São Paulo. O instituto em questão fundou uma cultura
histórica regional que discursava sobre o passado e a preservação do folclore
carirense. Um exemplo de elementos dessa Cultura Histórica a respeito das
práticas populares do Cariri pode ser apreendido na obra O folclore no Cariri, do estudioso cratense J. de Figueiredo Filho.
Nela se pode ver a atuação dos intelectuais como patronos e promotores do
folclore regional. Desde outubro de 1953, por ocasião das empolgantes
festividades, em comemoração ao centenário de elevação do Crato à categoria de
cidade, que o folclore carirense apareceu, com toda a sua pujança. Para figurar
naqueles festejos, foi preciso o reconhecimento do grupo intelectual, que
fundou o Instituto Cultural do Cariri. Ainda existia certa prevenção contra os
folguedos que nasceram da vida anônima do povo simples, dos brejos e
pés-de-serra. Mas, tudo foi contornado e vencido pela gente que lia e escrevia,
na tradicional e religiosa cidade do Crato.
As
ações dos barbalhenses a respeito de Juazeiro do Norte em muito pareciam com as
dos cratenses. Esta compatibilidade de costumes e visões favorecia a ideia de
que as cidades eram coirmãs e, portanto, dignas de homenagem. O que se percebe
no jornal A Ação, pertencente à
Diocese do Crato, é justamente isso: “O Crato Tênis Clube, pela sua Diretoria,
já decidiu a realização de uma suntuosa festa de “Black tié”, ou seja, do mais
alto nível social, festa que ocorre durante o mês de novembro, quando é
prestada significativa homenagem á sociedade de Barbalha, cidade coirmã do
Crato irmanada nos objetivos de aperfeiçoamento da sociedade caririense. A
festa será eminentemente social, e se exigirá de todas as damas uma toalete e
todos os cavalheiros deverão trajar passeio escuro completo” (cf. A Ação, 16.09.1967, p. 06).
Nota-se, a partir daí que cidades como
Barbalha, passam a inserir os grupos, dentre os quais está o Reisado de Congo -
prática cultural há muito existente na região - nos eventos culturais,
políticos e, sobretudo, religiosos. Até o início da década de 1970, os grupos
folclóricos faziam suas atuações nas práticas costumeiras, no dia do padroeiro
de Barbalha, Santo Antônio, em 13 de junho, a festa se resumia à realização do
cortejo do pau da bandeira e à celebração eucarística, não ocorrendo, desta
forma, nenhum tipo de folguedo. Tais medidas de “recuperação” e “valorização”
geram apropriações e reinvenções por parte dos brincantes do Reisado de Congo
e, por extensão, “(re) significações simbólicas”, na falta de melhor expressão,
em maior ou menor grau. Em outras palavras, a espetacularização das artes
populares produz, em certa medida, uma reinvenção dessas práticas por parte dos
grupos que as constituem provocando, segundo Carvalho (2004), a morte das experiências
sociais e políticas. As invenções ou reformulações promovidas pelos
participantes dos grupos folclóricos se tornam perceptíveis nas músicas,
indumentárias ou na própria atuação teatral. O processo se intensifica com a
atuação da prefeitura local, que fornece novas indumentárias, calçados
padronizados e pagamento em troca da apresentação em comemorações e datas
especiais, especialmente na Festa de Santo Antônio, padroeiro da cidade.
Em
seus estudos sobre a história das crenças e das ideias religiosas, Eliade (2010)
observa que as sociedades arcaicas tinham a tendência de viver o mais possível
no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados.
O autor afirma que o mundo, de certa forma, está impregnado de valores
religiosos. A história das religiões é constituída por um número considerável
de hierofanias, manifestações das realidades sagradas. Por exemplo, a
manifestação do sagrado num objeto, numa pedra ou numa árvore até a hierofania
suprema, que é, para os cristãos, a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Surge
um paradoxo: manifestando o sagrado, um objeto qualquer se torna outra coisa e,
ao mesmo tempo, continua a ser ele mesmo, porque segue participando do meio
cósmico envolvente. O reisado, objeto dessas
notas de leitura, é uma dança popular profano-religiosa, de origem portuguesa,
com que “se festeja a véspera e o Dia de Reis”. A partir dos documentos
religiosos mais arcaicos que nos sejam acessíveis até ao cristianismo e ao
Islã, a imitatio dei, como norma e
linha diretriz da existência humana, jamais foi interrompida; na realidade, não
poderia ter sido de outra forma. Em níveis mais arcaicos de cultura, viver
enquanto ser humano é cm si um ato religioso, pois “a alimentação, a vida
sexual e o trabalho têm um valor sacramental”. Em outros termos, ser, ou
melhor, tornar-se um homem significa “ser religioso”.
No
período de 24 de dezembro a 6 de janeiro, um grupo formado por músicos,
cantores e dançarinos etnograficamente vão de porta em porta “anunciando a
chegada do Messias e fazendo louvações aos donos das casas por onde passam e
dançam”. Reisado também é conhecido como “Folia de Reis”. É de origem
portuguesa e instalou-se em Sergipe no período colonial. Atualmente, é dançado
em qualquer época do ano, os temas de seu enredo, variam de acordo com o local
e a época em que são encenados, podem ser: amor, guerra, religião, entre outros.
Compõe-se de várias partes e tem diversos personagens como o rei, o mestre,
contramestre, figuras e moleques. Os instrumentos que acompanham o grupo são:
violão, sanfona, ganzá, zabumba, triângulo e pandeiro.
Conceptualmente
entendemos que o Reisado é “a denominação erudita para os grupos que cantam e
dançam na véspera e nascimento do Menino Jesus”. Em Portugal é conhecido como “Reisada”
ou “Reseiro”. No Brasil é uma espécie de revista popular, recheada de histórias
folclóricas, mas sua essência continua a mesma, com uma mistura de temas sacros
e profanos. É formado por um grupo de músicos, cantores e dançarinos que “percorrem
as ruas das cidades e até propriedades rurais, de porta em porta, anunciando a
chegada do Messias, pedindo prendas e fazendo louvações aos donos das casas por
onde passam”. A denominação de Reisado persiste ainda na maioria dos estados do
Nordeste. Em diversas outras regiões o folguedo é chamado de “Bumba-meu-boi”, “Boi
de Reis”, “Boi-Bumbá” ou simplesmente, “Boi”. Em São Paulo é conhecido como “Folia
de Reis”, onde a festa é composta de apresentações de grupos de músicos e cantores,
todos com roupas coloridas, entoando versos sobre o nascimento de Jesus Cristo,
liderados por um mestre.
A
Tiração de Reis, pelos reisados do
Cariri cearense, ou a Folia de Reis,
assim chamada em diversas outras regiões brasileiras, pelos grupos de foliões,
são tradicionalmente realizadas no período de 25 de dezembro a 6 de janeiro.
Têm sua origem primária na Festa do Sol Invencível, comemorada pelos romanos e
depois adotada pelos egípcios. A festa romana era comemorada em 25 de dezembro
(calendário gregoriano) e a egípcia em 6 de janeiro. No século III ficou
estabelecido que dia 25 de dezembro se festejasse o Nascimento de Cristo e 6 de
janeiro, Dia dos Reis, homenageando os Reis Magos Gaspar, Melchior e Baltazar,
que levaram ouro, incenso e mirra, que representam, segundo a Igreja Católica,
as três dimensões de Cristo, que são realeza, divindade e humanidade. Durante
12 dias, a partir do Natal até 6 de janeiro, acontece a Tiração de Reis. Fazem
parte do espetáculo os “entremeios” (corruptela de entremezes), pequenas
encenações dramáticas que são intercaladas com a execução de peças, embaixadas
e batalhas.
Os
personagens são tipos humanos ou animais e seres fantásticos humanizados,
cheios de energia e determinação. Folguedo do ciclo natalino é comemorado em
várias regiões brasileiras, principalmente no Norte e Nordeste, onde ganhou
cores, formas e sons regionais. Em Alagoas, constitui-se numa representação
dramática, normalmente curta e pobre de enredo, acompanhada e precedida de
canto. Em Sergipe, é apresentado em qualquer época do ano e não apenas nas
festas de Natal e Reis. Os temas de seu enredo variam de acordo com o lugar e o
período em que são encenados: amor, guerra, religião, entre outros. O Reisado
apresenta diversas modalidades e é composto de várias partes: a abertura ou
abrição de porta; entrada; louvação ao Divino; chamadas do rei; peças de sala; danças;
guerra; as sortes; encerramento da função. A música no Reisado está sempre
presente. O Mestre é o solista, sendo respondido pelo coro a duas vozes.
Os
instrumentos utilizados alternadamente são: a sanfona, o tambor, a zabumba, a
viola, a rebeca ou violão, o ganzá, pandeiros, pífanos e os maracás, chocalhos
feitos de lata, enfeitados com fitas coloridas. Há uma grande variedade de
passos nas danças do Reisado, entre os quais se pode destacar: do Gingá, onde
os figurantes de cócoras se balançam e gingam; da Maquila, um pulo pequeno com
as pernas cruzadas e balanços alternados do corpo para os lados, passo também
exibido pelos caboclinhos; corrupio, movimento de pião com o calcanhar
esquerdo; Encruzado, cruzando-se as pernas ora a direita à frente da esquerda,
ora ao contrário. Tem como personagens principais o Mestre, o Rei e a Rainha, o
Contramestre, os Mateus, a Catirina, figuras e moleques.
O
Mestre é o regente do espetáculo. Utilizando apitos, gestos e ordens, comanda a
entrada e saída de peças e o andamento das execuções musicais. Usa um chapéu
forrado de cetim, de aba dobrada na testa (como o dos cangaceiros), adornado
com muitos espelhinhos, bordados dourados e flores artificiais, de onde pendem
fitas compridas de várias cores; saiote de cetim ou cetineta de cores vivas,
até a altura dos joelhos, enfeitado com gregas e galões, tendo por baixo saia
branca, com babados; blusa, peitoral e capa. O traje do Rei deve ser mais
bonito e enfeitado. Veste saiote ou calção e blusa de mangas compridas de cores
iguais, peitoral, manto de cores diferentes em tecido brilhante (cetim ou
laquê);calça sapato tênis (tipo conga), meiões coloridos e na cabeça uma coroa
feita nos moldes das dos reis ocidentais, semelhante a das outras figuras,
porém encimada por uma cruz; levam nas mãos uma espada e, às vezes, também um
cetro. Durante o cortejo os Reis vêm na frente, logo atrás do Mestre e do
Contramestre. A Rainha é representada por uma menina, com vestido de festa,
branco ou rosa, uma coroa na cabeça e um ramalhete de flores nas mãos. Na música, o forró sobressai como ritmo predominante, destacando-se Alcymar Monteiro, Luiz Fidélis e Santanna, músicos juazeirenses consagrados em todo o Nordeste do Brasil. Em 2001 Alcymar Monteiro, na época secretário de cultura, criou o Juaforró, uma festa junina que hoje está entre as maiores do gênero.
O repente é muito popular,
especialmente em época de romaria, ocasião em que os violeiros saem pelas ruas
fazendo versos e desafios de rimas. Outros ritmos conquistaram espaço em Juazeiro,
como é o caso do rock, axé e Música eletrônica, existindo várias bandas
independentes. As escolas públicas de Juazeiro mantêm a tradição das fanfarras,
sendo que nas comemorações da Independência do Brasil elas desfilam pela
cidade. Outra tradição mantida é a da rabeca, instrumento arcaico semelhante ao
violino, havendo inclusive uma orquestra de rabecas em Juazeiro. Enfim, a Orquestra
Armorial do Cariri seguiu viagem para Istambul a partir dos primeiros dias de
maio de 2012. O grupo fez duas apresentações na Turquia, por meio de uma
parceria com a Universidade Técnica do Oriente Médio. A orquestra vem de uma
formação de mais de dez anos, com jovens músicos da região, tendo à frente o
artista Di Freitas. Os shows tem obtido um interesse maior das instituições
acadêmicas, que desejam conhecer o som que é produzido a partir da própria
identidade cultural do povo do Cariri e sua ancestralidade. Di Freitas dá mais
vida a rabeca. Leva o som do violoncelo, das cabaças estilizadas, promovendo um
resgate aos instrumentos rústicos.
Bibliografia geral consultada.
Bibliografia geral consultada.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues, Memória do Sagrado. Estudos de Religião e
Ritual. São Paulo: Edições Paulinas, 1985; CARVALHO, Maria Michol Pinto de, Matracas que Desafiam o Tempo: É o Bumba-Boi
do Maranhão: Um Estudo da Tradição/Modernidade na Cultura Popular. São
Luís. Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, 1995; GROTOWSKI, Jerzy,
“Tu es le fils de quelqu`un”. In: EUROPE.
Revue Littéraire Mensuelle. Le théâtre
ailleurs autrement. Paris, outubro: (13-25), 1989; AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto, Festa à Brasileira. Significados do Festejar, no País que “Nâo é Sério”. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998; MENDES, Eloísa Brantes, Do Canto do Corpo aos Cantos da Casa. Performance e Espetacularidade através
do Reisado do Mulungu. Chapada Diamantina. Tese de Doutorado em Artes Cênicas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2005; CARNEIRO, Sarah Roberta de Oliveira, O Reisado Senhor do Bonfim sob a Ótica do Espetáculo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006; BARROSO, Raimundo Oswald Cavalcante, Teatro como
Encantamento: Bois e Reisados de Caretas no Ceará. Tese de Doutorado em
Sociologia. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2007; CORRÊA, Julina Aparecida Garcia, De Reinados e de Reisados: Festa, Vida Social e Experiência Coletiva em Justinópolis/MG. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2009; SILVA, João (Org.); CUNHA
JUNIOR, Henrique (Org.); NUNES, Cicera (Org.) , Artefatos
da Cultura Negra no Ceará. 1ª edição. Fortaleza: Edições da Universidade Federal
do Ceará, 2011; PAULINO, Rogerio Lopes da Silva, O Ator e o Folião no Jogo das Máscaras da Folia de Reis. Tese de Doutorado. Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2011; MARINHO, Neide Aparecida, As Folias de Reis. Uma Leitura da Cultura Mineira Mediada pela Comunicação. Tese de doutorado em Comunicação. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012; entre outros.
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