domingo, 13 de setembro de 2020

João Duns Escoto - Filosofia, Escolástica & Qüididade de Gênero.

 

Ubiracy de Souza Braga

      “Se Deus como as coisas existe, então Deus não existe”. João Duns Scotus

É uma prefeitura da Cúria Romana que processa o complexo trâmite que leva à canonização dos santos, em primeiro lugar passando pela declaração das virtudes heroicas, com o reconhecimento do estatuto de venerável e pela beatificação. Depois de elaborado um processo, incluindo a constatação canônica dos milagres, o caso é apresentado ao papa, que decide se deve proceder ou não à beatificação ou canonização. Seu nome anterior era Sagrada Congregação dos Ritos, fundada pelo Papa Sixto V em 22 de janeiro de 1588 com a bula papal Immensa Æterni Dei, que tratava tanto da regulação do culto divino como das causas dos santos. Em 8 de maio de 1969, o Papa Paulo VI emitiu a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congregatio, dividindo a congregação em duas, uma passando a ser a congregação para o culto divino e outra para as causas dos santos. Com as profundas mudanças politico-religiosas no processo de canonização introduzidas pelo Papa João Paulo II, em 1983, o Colégio de Relatores foi criado para preparar as causas dos declarados servos de Deus. Em 18 de fevereiro de 2008 a Santa Sé torna público a instrução Sanctorum Mater para a Causa dos Santos sobre as normas que regulam as causas de beatificação juntamente com o Index ac status causarum. Está sediada no Palazzo delle Congregazioni, na Piazza Pio XII, em Roma. 

quididade é a responsável pelas coisas serem estabelecidas no próprio gênero  ou espécie por elas mesmas, ou seja, a quididade é algo no qual Sócrates está em homem por ser Sócrates. Ela é derivada de algo que é significado pela definição, a saber, a essência. Um beato (do latim beatum), feliz, bem-aventurado é, no direito canônico da Igreja Católica, um homem ou uma mulher cujo processo de beatificação foi concluído; depois, esse processo prosseguirá em direção à canonização se verificarem as condições requeridas para o efeito; em caso afirmativo, o candidato será reconhecido como santo. Quando alguém é beatificado, essa pessoa passa a ser um exemplo das “virtudes cristãs” mais ou menos como um santo, seja por martírio, ou por outros exemplos, e seu culto passa a ser permitido, mas diferentemente dos santos, o culto só é permitido em sua região de origem, ou onde viveu. Os beatos não podem ser representados com o Halo e os mesmos não podem ter igrejas próprias, a não ser em casos que sejam lhes concedidas especialmente e também não podem se tornar padroeiros. A organização social responsável por analisar eticamente as virtudes, obras e milagres de potenciais beatos é a Congregatio de Causis Sanctorum que pertence à Santa Sé.

O beato João Duns Escoto (1265/6-1308) foi um teólogo e filósofo escocês  nascido no Ulster. Viveu durante muitos anos em Paris, em cuja universidade lecionou. Membro da Ordem Franciscana, filósofo e teólogo da tradição escolástica, chamado  Doutor Sutil, foi mentor de outro grande nome da filosofia medieval: Guilherme de Ockham. Foi beatificado em 20 de março de 1993, durante o pontificado do Papa João Paulo II. Ele é um dos três filósofos-teólogos mais importantes da Europa Ocidental na Alta Idade Média, juntamente com Tomás de Aquino e o próprio Guilherme de Ockham, marcada pela redução populacional em comparação com os tempos de Império Romano e a ruralização da Europa. João Duns Escoto é considerado um continuador da tradição franciscana que adotou categorias e formas de pensar de Aristóteles e seus antecessores medievais não-franciscanos. Escoto foi  um pensador que levou adiante a tradição aristotélica de São Tomás de Aquino mas, ao mesmo tempo, corrigiu Santo Tomás diante do que considerava o conteúdo de sentido da verdade. Ambas foram motivadas pela violência, fome e doenças trazidas com as invasões germânicas. No século VIII é que o povoado hic et nunc na Europa Ocidental começou a recuperar-se.


A ruralização decorre das invasões germânicas,  sendo as cidades os locais mais atacados devido sua visibilidade comercial pelos invasores. Além da desorganização do mundo romano, elas desestruturaram o comércio implicando no desabastecimento das cidades. Os habitantes desses lugares praticados começaram a mudar-se para as zonas rurais e estabelecer-se próximos a grandes propriedades. Em consequência o isolamento dessas grandes propriedades foram dando origem aos seus feudos. Com o processo de feudalização societário o comércio enfraqueceu-se, assim como a circulação de moeda, que perdeu importância para a troca. Mesmo enfraquecidos, ambos, comércio e moeda, nunca deixaram de existir e retomaram sua força econômica a partir do século XI. A cultura começou a modificar-se com a mescla de características latinas e germânicas. Um dos grandes exemplos é encontrado na linguagem, pois dois idiomas modernos, como o francês e o português, começaram a surgir nesse processo. Por fim novos reinos começaram a surgir, com organizações sociais e políticas distintas daquelas que já existiam em Roma. Vale lembrar que a economia agrária durante a Alta Idade Média era majoritariamente dependente do trabalho agrícola e da mão de obra servil.            

Essa relação ocorre na medida em que a feudalização da Europa construiu-se entre os séculos V e X. Isso aconteceu porque, com a ruralização, uma massa de pessoas pobres estabeleceram-se perto de grandes propriedades rurais à procura de trabalho, alimento e proteção. Do século X ao XIII, a Europa também sofreu um aumento na temperatura média. Isso possibilitou melhores colheitas, mas também a ampliação das terras cultivadas. O aumento da produtividade permitiu os feudos a terem excedentes agrícolas, que passou a ser comercializado. Esse renascimento do comércio, que se deu primeiramente a partir desse excedente, expandiu o leque de mercadorias disponíveis, obtendo-se mercadorias de luxo oriundas do Oriente. A princípio itinerante, o comércio consolidou-se e as feiras temporárias tornaram-se fixas nos arredores das cidades, reconhecidos como burgos, locais em que se encontravam os burgueses. Isso reforçou o crescimento das cidades, orientando um processo que já estava em curso. As cidades em crescimento possibilitaram o aumento dos ofícios e novas formas de sobrevivência.

A economia agora se diversificava, e os trabalhadores poderiam sobreviver do comércio e do artesanato, se assim preferissem. Na política, a Europa também sofreu grandes mudanças. No final do século XIII, a relação entre feudalismo e vassalagem perdeu sua força, e a Europa presenciou um processo de fortalecimento da posição do rei e o surgimento de um aparato burocrático que deu origem ao Estado Nacional e o controle crescente da burocracia. Esse fortalecimento aconteceu em alguns locais da Europa Ocidental, e os casos mais pragmáticos e simbólicos deram-se na Inglaterra e, principalmente, na França. No caso francês, os reis da Dinastia Capetíngia firmaram-se no poder a partir do século X e combateram os privilégios da nobreza, tomando-lhes as terras. Após o processo de unificação jurídica com a aplicação de uma lei sobre todo o reino, houve a transformação do poder do rei em lei, na esfera política. Biblioteca Duns Scotus na Universidade de Lourdes.


Além disso, as disputas políticas por terras e poder entre os membros da nobreza suscitaram guerras. A maior guerra do século XIV foi a reconhecida Guerra dos Cem Anos, travada durante 1337 e 1453, entre França e Inglaterra. Do entremeio beligerante, veio a peste. Em 1348, iniciou-se na Europa um surto de peste bubônica, trazida da Ásia Central. A Peste Negra, como ficou reconhecida, atuou de maneira pandêmica no continente europeu e poucas regiões prósperas não foram abrangidas e afetadas por ela. Espalhava-se rapidamente e retornava em ciclos que se estendiam por anos. O resultado final disso foi catastrófico, e 1/3 da população europeia sucumbiu a essa doença. Esses combates destruíram colheitas, empobreceram pessoas e espalharam mortes e doenças pela Europa. Eles ainda contribuíram para o enfraquecimento da nobreza, exaurida pelos gastos econômicos. Por fim, veio a peste. Em 1348, iniciou-se na Europa um surto de peste bubônica, trazida da Ásia Central. A Peste Negra, como ficou conhecida, atuou de maneira pandêmica no continente europeu e poucas regiões não foram afetadas. Espalhava-se rapidamente e retornava em ciclos que se estendiam por anos. O resultado foi catastrófico, e 1/3 da população europeia sucumbiu a maligna doença. 

É lugar-comum dizer que o franciscano João Duns Scotus é, entre os grandes pensadores medievais, aquele a respeito do qual ainda menos se conhece. No decorrer do século XX, segundo De Boni (2008), foram descobertos inúmeros documentos a seu respeito. Nesse mesmo período, maior ainda foi o que se desfez daquilo que se supunha saber sobre ele. As tentativas de reconstruir sua vida fundam-se em algumas poucas datas comprovadas, a partir das quais outras são propostas como prováveis. A primeira data documentalmente comprovada a respeito de Scotus é a de sua ordenação sacerdotal, em 17 de março de 1291. Duns Scotus foi ordenado em Northampton, por Olivier Sutton, Bispo de Lincoln, diocese à qual Oxford pertencia. O mesmo bispo havia feito ordenações em 23 de dezembro do ano anterior, em Wycombe. Segundo o costume social de seu tempo, entre as Ordens Mendicantes, os candidatos recebiam o sacerdócio tão logo fosse possível. Se ele se encontrava em Oxford, em dezembro de 1290, e não foi ordenado, deveu-se ao fato crível de que naquela data ele não possuía certamente os 25 anos de idade requeridos pelo direito canônico para a ordenação.

Quanto à relação factível entre teologia e filosofia, Duns Scotus acredita que a filosofia não é capaz de desenhar sobre o que é o homem é conhecido pela revelação da Encarnação do Verbo eterno, evento único e irrepetível que nos é transmitido por textos sagrados. A revelação é que disponível para humanos após pecado original: é dado diretamente por Deus, que nos faz conhecer que o objetivo final para o homem deve ser reconhecido na Encarnação do Verbo eterno, o que aconteceu principalmente por amor, e não como um efeito causado pela queda original do ser humano. O objetivo da pesquisa teológica em si reside na visão direta de Deus e em desfrutar eternamente do sua felicidade. Como tal, a teologia, cujo escopo diz respeito às verdades aceito pela fé, é conhecimento prático, entendido a partir da linha de afetividade e amor, ao invés de especulação e da ontologia, mas sem negar o aspectos especulativos, que permitem que você conheça as verdades que o próprio Deus tem considerado útil para abordar corretamente o caminho da beatitude de felicidade perfeita, consistindo em gozo de Deus. A Teologia tem estatuto científico que difere de cada outra ciência, seja natural ou metafísica, uma vez que deriva seus princípios de revelação e não das ciências físicas e filosóficas. As duas áreas: filosofia e teologia, são, portanto, autônomas embora não sejam desprovidos de relações entre eles: a razão inclui tudo o que é demonstrável, embora tenha fé em tudo isso que não pode ser provado. Consequentemente, os campos da filosofia, aqueles em que a filosofia pode se mover legitimamente, e os da teologia são bastante distintos. A ciência suprema permanece para Duns Scotus - como para Aristóteles - metafísica: suprema porque tem por objeto o que é conhecido antes de qualquer outro coisa, a partir da qual é possível conhecer as outras. Teria a idade necessária entre 23 de dezembro e 17 de março do ano seguinte, o que significa dizer que o seu nascimento se deu entre o final de 1265 e os inícios de 1266. 

O local de nascimento é o pequeno povoado de Duns, na Escócia, próximo à fronteira com a Inglaterra. Os estudos iniciais aconteceram por volta de 1278, quando Scotus tinha cerca de 12 anos, na localidade de Waddington, onde os frades possuíam uma escola. Frei Elias Duns, seu tio que ocupou cargos importantes na província escocesa, foi provavelmente quem afetivamente o encaminhou à vida religiosa. A ida para Oxford, segundo alguns analistas, foi devida aos estudos de filosofia, que teriam sido concluídos por volta de 1283. Estes estudos, bem como os de teologia realizaram-se no Studium generale da Ordem, anexo à universidade. Em 1284, teria realizado o noviciado, e a profissão religiosa em 1285. Outros, acreditam que por volta de 1280 deve ter feito o noviciado. Os estudos de filosofia, em grande parte, se não totalmente, em Oxford, teriam transcorrido entre os anos de 1280/1-1287/88. Surge, nesse momento, nova cisão entre os pesquisadores: para uns, Scotus teria passado cerca de 4 anos em Paris, entre 1291 e 1300. Outros julgam que ele esteve na França, durante o período de leitorado cerca de 3 anos após a conclusão dos estudos de filosofia.

Outros analistas, são da opinião de que ele jamais esteve em Paris, antes de 1301-1302. Contudo, a estada de Scotus em Colônia foi mais curta do que se esperava. Calcula-se que deve ter chegado à cidade por volta de julho/agosto de 1307. E, em 8 de novembro de 1308, veio a falecer, ao que parece repentinamente. Contava 42 anos de idade. Nos conventos franciscanos, e em alguns até hoje, costumava-se anotar o dia da morte de cada frade e, à noite, antes do jantar, lia-se o Necrologium, isto é, o nome e um pequeno histórico dos frades falecidos naquele dia. Tal documento do convento de Colônia, que se conservava no arquivo histórico da casa, veio a perder-se com as leis de secularização e manumissão do século XIX. Em 1619, ele ainda foi compulsado pelo padre Mateus Ferkic, quando da transladação dos restos mortais de Scotus. Dizia o texto: “Reverendo Padre Frei João Duns Scotus, professor de Sagrada Teologia, conhecido como Doutor Sutil, outrora leitor em Colônia, que faleceu no ano de 1308, no dia 8 de novembro”. Uns poucos dados, semelhantes aos dos demais frades falecidos, indicando, cristã e franciscanamente, a igualdade de todos perante Deus. Os seus restos mortais encontram-se na Igreja dos Frades Menores (Minoritenkirche), em Colônia.

   O método analítico de Escoto é profundamente escolástico, medieval. Enuncia a questão que se propõe investigar, depois são discutidos os “prós e os contras” apoiado em citações da autoridade, bíblica, os Padres da Igreja, Agostinho e Anselmo, que importam sobremaneira, e os filósofos, de modo muito particular o Filósofo, bem como os seus comentadores, designadamente o Comentador Averróis; depois seguem-se outros pensadores cujas posições são tidas em linha de conta, e por fim, a “Resposta” em que dá suas próprias opiniões. Escoto não nos deixou uma Summa à maneira de Tomás. Morreu cedo, demasiado cedo para um filósofo. Faltaria um pouco para que a ave de Minerva pudesse levantar o voo da maturidade em que surgisse uma síntese, no sentido hegeliano, se é que para uma mente irrequieta como a de Escoto pudesse fazer sentido tal trabalho, ou que tivesse essa pretensão.

Traço característico de toda a sua especulação, de todo o seu pensamento, mais do que uma doutrina, ou sistema, é a vontade. Por  honestidade e rigor intelectual, detemo-nos num dos seus escritos. Além de ser uma obra suficientemente extensa, a edição crítica, começada há quase sessenta anos, está longe de conhecer o seu termo. Se o Dominicano de Aquino tinha argumentado que a vontade é um “órgão executivo”, necessário para traduzir em atos a clarividência do intelecto, o Franciscano de Duns, sustenta ser o intelecto a providenciar à vontade os bens num serviço subserviente, pois é ela, a vontade, que direciona e confirma o seu procedimento; sem esta confirmação da vontade o intelecto deixaria de funcionar. Chamando desde já Tomás de Aquino à consideração não nos inscrevemos numa linha ultrapassada da contraposição destes dois maiores do pensamento medieval. Tomás de Aquino, segundo Gomes (2009) não é o adversário, ao que parece  de eleição de João Duns, como nem um é aristotélico e o outro agostiniano, um intelectualista e o outro voluntarista. Ainda que o franciscano permaneça, fiel à sua “escola”, agostiniano, aproveita ao máximo o método e o rigor aristotélico na exposição dos pensamentos e doutrinas, na sua visão metafísica do real.

É Henrique de Gand o seu interlocutor de preferência, veremos como isto é verdade com a nossa Quodlibética XVI. A Agostinho, na linha de António de Lisboa, Alexandre de Hales, Grossatesta, Boaventura, Bacon, Olivi, Gonçalo Hispano e outros, como filho espiritual de Francisco de Assis, vai buscar as intuições primeiras. Mas é em Aristóteles que se apoia para o rigor da sua linguagem e a exatidão do seu raciocínio. A presença da herança do bispo de Hipona é demasiado evidente para escapar a um leitor pouco familiarizado com o texto escotista, mas a sua ligação a Aristóteles é talvez maior do que a de S. Tomás. Esta conjugação denota claramente ser Duns Escoto um pensador do seu tempo, atento ao que se vai produzindo, dialogando com os acontecimentos históricos, a que não fica indiferente, pois é clara a sua meticulosa atenção às opiniões em relação às quais se manteve não comprometido, mas cujo exame e interpretação litúrgica constitui o corpo da sua obra, no desejo de dar um sentido rigoroso e razoável na interpretação dos outros, que a seu modo, contribuem também para o progresso no conhecimento da verdade. Situando-se no ponto de viragem entre uma Idade Média e um Renascimento que se avizinha eminente, herdeiro da melhor tradição medieval do século XIII e no XIV, ele antecipa a confiança na razão conhecedora de todas as coisas, ao mesmo tempo que denuncia as suas limitações. Permanece ainda teólogo num tempo em que a Filosofia se afirma como ciência distinta e autônoma, quebrando com os laços de servidão a que a tinham votado face à Teologia. Ainda que esta afirmação careça de  fundamentação - admite - somos da opinião que a sua filosofia, por via do ensino jesuítico, esteve presente em Descartes e por ele na fenomenologia contemporânea.

Iniciaram-se a partir de fins do século XIX as edições críticas de notáveis pensadores medievais. Quando se tratou de elencar, datar e editar-lhes as obras, talvez nenhum deles tenha apresentado tantas dificuldades como Johannes Duns Scotus. Isso se deveu a vários fatores. Por decisão da Ordem, os escritos dos frades falecidos deveriam ser enviados ao convento de origem deles, isto, no caso de Scotus, para Oxford. Os discípulos defrontaram-se, então, com o legado do mestre na forma como fora deixado. Guilherme de Alnwick, seu último socius, foi quem mais se dedicou a recuperar a obra do referido mestre e a editar-lhes os textos. Ora, desde os seus últimos anos em Oxford, a partir de cerca de 1300, Scotus trabalhava na Ordinatio, isto é, no texto do comentário às Sentenças, que pretendia entregar aos livreiros para publicação, mas a obra ficara infelizmente inconclusa. Desses comentários havia igualmente uma primeira redação, feita ainda em Oxford, e utilizada para a aula, e as anotações dos alunos ouvintes, seus auxiliares e alunos propriamente. Sabe-se também – e a edição crítica do primeiro livro da Ordinatio o demonstra – que Scotus possuía uma espécie de fichário, ao qual remetia seguidamente, para que dele o secretário tomasse algum texto. Nada mais natural que  Alnwick ou outros auxiliares tentassem, de algum modo, completar o que faltava na interpretação da Ordinatio, valendo-se de outros textos do autor e também das próprias notas. A posição defendida por ele consiste em demonstrar que Scotus se equivoca ao restringir a extensão do ente, enquanto predicado in quid, melhor dizendo, de todos os indivíduos que entram na extensão de apropriação do conceito.

A tese do “princípio de individuação”, segundo (Alt, 2018), é o desiderato explícito do “tratado da individuação” de João Duns Scotus, o qual compreende o trecho do seu Ordinatio. Este texto particular se insere na interpretação da problemática da individuação como ela é tratada na Metafísica Escolástica e, por si mesmo, exemplifica uma obra de exegese histórica de teorias prévias aliada à análise conceitual. Duas observações introdutórias estão em ordem. Em primeiro lugar, a questão da representação da individuação é um princípio na acepção genuinamente Aristotélica do termo. A saber, nesta aceitação, um princípio (ἀρχή) é um constituinte formal de algo e, em distinção a uma causa (αἴτια), não precisa ser realmente distinto do seu efeito. Trata-se, essencialmente, do fundamento formal para alguma característica possuída pelo seu sujeito. Em segundo lugar, questões respectivas à individuação são um conjunto particular de questões mais gerais que dizem respeito à teoria da identidade, tais como: 1. O que faz algo ser aquilo que é? 2. O que faz algo ser o tipo de coisa que é? 3. O que faz algo ser o mesmo que outros do mesmo tipo? 4. O que faz algo ser diferente de outros do mesmo tipo? 5. O que faz algo ser diferente de outros de tipos diferentes?

Trata-se da formulação de uma posição cuja popularidade será bem expressiva e que reaparecerá em diversas obras do século XIV, por exemplo, na ampla apresentação, no âmbito da teoria da intellectio, do tema da univocidade em Guilherme de Ockham. E como não se salvaram os textos originais de Duns Scotus, mas se multiplicaram às dezenas as cópias, com todo tipo de alterações, tornou-se complicado, mais tarde, separar a obra de Scotus, dos rearranjos e das interpolações feitas por outros. O mito de explicação da ciência que  explica e que domina, tendo por fundamento uma razão que se considera única e universal, começa a sofrer críticas dentro da própria modernidade. De acordo com Scotus, tal é justamente o comportamento da noção conceptual de ente, que por um lado, compartilha com as noções genéricas o fato dela ser um predicado in quid, essencial das noções que lhe são inferiores, mas que por outro lado, transgrida uma proibição a todo gênero, a de não ser predicado por si no primeiro modo. Mais do que  estar contido na ratio de seu sujeito como um componente de sua definição, de nenhuma diferença. Para o pensador escocês, a extensão predicativa da noção de ente abarca e supera analogamente a de qualquer noção genérica. Pois diz respeito não apenas a gêneros inferiores, mas também a representação das diferenças. O que Scotus põe em evidência é, claro: o fato de que a noção de ente se distingue de toda noção genérica devido à sua predicabilidade com respeito a todas as diferenças.   

Devemos nos voltar para o prólogo da Ordinatio, onde Duns Escoto diz que cabe precisamente à metafísica o estudo do ente em comum e, portanto, das paixões do ente (“passionum entis”), pois a uma dada interpretação cabe justamente o estudo das paixões ou propriedades de seu sujeito primeiro. As paixões do ente a que Escoto se refere são aqueles conceitos ou disjunções exclusivas (também, transcendentes) que se convertem com o ente, por exemplo, “todo bom é ente” e “todo ente é bom” ou ainda “todo ente é ato ou potência” e “todo ato ou potência é ente”. Neste ínterim, o Doutor Sutil distingue seis conceitos  que podem ser expressos pela locução “verdade na coisa” (“veritas in re”). Ressalte-se que essa mesma locução expressa os seis casos equivocamente (“aequivoce”). Em outras palavras, ela significa cada um desses seis casos propriamente, e primeiramente, isto é, sem estabelecer qualquer relação de dependência ou anterioridade entre cada um dos seus significados. O problema não está em estabelecer um uso de “verdade na coisa”, mas em enumerar seus significados para ao fim da questão, demonstrar quais deles dizem respeito ao metafísico. Tese: é possível produzir algo sem o inteligir e, ipso facto inteligir algo sem o ter produzido.   

Nesse ponto começa a ficar claro o papel central que Deus possui nessa “verdade na coisa por comparação àquilo que a produziu”. Na explicação desse segundo modo fornecida por Duns Escoto, se afirma que esse segundo modo se encontra no Filho de Deus (isto é, na segunda pessoa da trindade) que é, ele próprio, verdade e “suma similitude do princípio”; esse princípio, aliás, é o próprio Pai, primeira pessoa da trindade una que é Deus. Destarte, a similitude que está em jogo nesse segundo caso é algo como uma similitude por identidade, pois sendo o Filho de Deus consubstancial ao próprio Deus, ele é semelhante a este último ao se pode adequar completamente a ele e, enfim, ao ser o próprio Deus. Analogamente, se o segundo modo de “verdade na coisa por comparação àquilo que a produziu” diz respeito à verdade determinada própria daquilo que se assemelha por adequação ou, por identidade a seu produtor e princípio, o terceiro modo será aquela verdade determinada daquilo que se assemelha não por adequação, mas por imitação (“imitatio”). Esse terceiro modo representa a verdade que a criatura possui em si por comparação ao seu criador, uma vez que analiticamente essa imitação se distancia da forma simples de adequação. De fato, longe de ser uma “suma similitude do princípio” produtor, a imitação é antes uma “assemelhação defeituosa” (“assimilatur; defective tamen”) daquele exemplar donde provém a criatura. Fresco of Virgo Immaculata from St. Isidore’s (Irish) College Rome.


Metodologicamente o problema será compreender de que maneira uma mesma coisa pode ser tomada como verdadeira, ou seja, “por comparação àquele que a interlige”. Assim, a démarche será dada cada vez mais ênfase à consideração da relação entre criaturas, de apropriação mental, isto é, entre coisas criadas e intelectos criados. Além disso, Duns Escoto distingue aqui três modos pelos quais se diz que há “verdade nas coisas”; da mesma maneira, aqui também essa locução significa equivocamente os três modos. E, no entanto, mais uma vez os três casos parecem estar relacionados, embora o próprio Doutor Sutil não seja de maneira alguma explícito sobre uma possível relação entre eles, como vemos na formulação completa desse segundo significado de “verdade na coisa”: ocorrido por comparação ao intelecto, uma coisa é dita verdadeira triplamente. Em primeiro lugar, porque é manifestativa de si (“manifestativa sui”) - quanto a si (“quantum est de se”) - a qualquer intelecto que possa conhecer a manifestação. Em segundo lugar, porque é assemelhativa do intelecto assemelhável (“assimilativa intellectus assimilabilis”), que não é senão um “intelecto criado”. Em terceiro lugar, feita essa manifestação ou assemelhação, a coisa é apropriada no intelecto tal como o conhecido no cognoscente (“sicut cognitum in cognoscente”).

É útil notar que para o Doutor Sutil, uma coisa não é verdadeira desse primeiro modo por se manifestar em ato ao intelecto, mas por poder se manifestar a um intelecto. Uma coisa real é verdadeira não por já ter atualmente se manifestado, mas por ser manifestativa de si (“manifestativa sui”). Essa verdade diz respeito não exatamente a uma relação atual entre uma coisa enquanto objeto de conhecimento e o intelecto, mas à condição e possibilidade que algo possui de se dar a conhecer a um intelecto, isto é, à potência que essa coisa possui de estabelecer uma relação com um intelecto de maneira a que possa ser conhecida por este último. De fato, qualquer coisa real não raro continuaria a ser manifestativa de si, mesmo que não houvesse um intelecto que a pudesse conhecer. E essa é a notícia pela qual uma coisa é dita reconhecida da natureza (“nota naturae”) - não porque a natureza a reconheça, mas porque seria naturalmente apta (“esset nata”) ser conhecida, quanto a si (“quantum est de se”), mais ou menos perfeitamente, por uma manifestação própria, seja ela maior ou menor.

Para compreender como isso ocorre, devemos nos voltar para o “Tratado sobre o primeiro princípio” que é sua prova metafísica da existência de Deus. Ainda no início desse opúsculo, Duns Escoto retorna à noção de “paixão do ente”, que já vimos acima, ao afirmar que uma dessas paixões que acompanham qualquer ente é uma “ordem essencial” (“ordo essentialis”), que não é senão “uma relação de comparação dita do anterior com respeito ao posterior e o contrário, tal que, a saber, o ordenado se divida suficientemente por anterior e posterior”. Em outras palavras, todo ente que, pelo fato mesmo de ser, é posto em uma ordenação que o relaciona aos demais entes, sendo anterior a uns e posterior a outros. Porém, é preciso avançar na distinção, pois há uma “ordem essencial de eminência” (“ordo eminentiae”) e uma “ordem essencial de dependência”. Pela ordem de eminência em que estão implicados todos os entes, é eminente e anterior aquilo que for mais perfeito ou nobre de acordo com sua essência, excedendo aquilo que for menos perfeito ou nobre. Uma hierarquia de perfeição essencial que perpassa tudo o que há, organizando tudo segundo uma maior ou menor perfeição essencial.

Bibliografia geral consultada.                                             

ZAVALLONI, Roberto, Giovanni Duns Scoto - Maestro di Vita e Pensiero. Bologna: Editori Francescane, 1992; AQUINO, Tomás de, O Ente e a Essência. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2005; DE BONI, Luis Alberto, “Sobre a Vida e a Obra de Duns Scotus”. In: Veritas. Porto Alegre, vol. 53, n° 3 jul./set. 2008 pp. 7-31; MEIRINHOS, José Francisco (Coord.), João Duns Escoto (c. 1265 - 1308). Subsídios bibliográficos. 2ª edição. Porto: Tipografia Nunes Ltda, 2008; GILSON, Étienne, Por que São Tomás criticou Santo Agostinho: Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto. São Paulo: Editora Paulus, 2010; COUTO, Antônio Augusto Caldasso, Amor, Desejo e Amizade: Um Estudo sobre a Natureza do Amor na Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Faculdade de Filosofia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012; KOLAKOVSKI, Leszek, Las Preguntas de los Grandes Filósofos. Madrid: Editorial Arcadia, 2013; SILVA, Roberto de Sousa, A Existência de Deus em Duns Scotus. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2014; PAIVA, Gustavo Barreto Vilhena de, “A Intelecção Intuitiva em João Duns Escoto”. In: Seara Filosófica, n° 6, 2013, pp. 43-46; Idem, “Duns Escoto e a Verdade nas Coisas: Um Estudo de Questões sobre a Metafísica VI, Q.3”. In: Kriterion, vol.56 n°131. Belo Horizonte, jan./jun., 2015; FERNANDES, Marco Aurélio, “Heidegger, Scotus e o Indivíduo”. In: Sofia. Vitória (ES), vol. 5, n°2, ago. - dez., 2016, pp. 352-382; ALT, Guido José Rey, “Atos Mentais e Cognição em J. Duns Scotus: Um Estudo de Caso do Quodl XIII”. In: Intuito. Porto Alegre, vol. 10, 2017; Idem, Individuação e Distinções em J. Duns Scotus. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Escola de Humanidades. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2018; entre outros.

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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Emmanuel Lévinas - Shoah, Memória & Emoção do Feminino.

                                     A política se opõe a moralidade como a filosofia se opõe a ingenuidade”. Emmanuel Lévinas 

            Emmanuel Levinas natural de Kovno, em 30 de dezembro de 1905, na Lituânia, judeu, dominava o russo, o alemão e o francês, além do hebraico,  faleceu, em Paris, em 25 de dezembro de 1995. Com a educação de uma família tradicional judaica, tendo o pai profissão de livreiro, Lévinas cedo teve contato com os clássicos da literatura russa, desde Fiódor Dostoiévski muito citado nas suas obras. Em 1928 viajou para Freiburg prosseguindo estudos com Edmund Husserl e Martin Heidegger (cf. Lévinas, 1999). Em 1929, apresenta tese de doutorado: La Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl (1930), obra premiada pelo Institut de France, tornando-se precursor da fenomenologia na França, assim como suas traduções, influenciaram pensadores como J.-P. Sartre e Merleau-Ponty. Promoveu leituras talmúdicas e uma hermenêutica, a qual influenciou Jacques Derrida sobre a diferença. Influenciado pela fenomenologia de Husserl, e comparado pelas obras de Martin Heidegger, Franz Rosenzweig e Monsieur Chouchani, o pensamento de Lévinas parte da ideia de que a representação da Ética, como objeto e não a Ontologia, é a Filosofia Primeira (cf. Lévinas, 1998).  

Segundo Marcondes Filho, pioneiro em estudos da comunicação fora do Brasil, metodologicamente suas tendências oscilaram entre Edmund Husserl e Martin Heidegger, tendo sofrido uma aproximação, em 1937, por Soren Kierkegaard, e mais tarde por  Henri  Bergson.  Inicialmente  husserliano,  criticou posteriormente  o  mestre  com  os sólidos argumentos  de  M. Heidegger;  novamente,  mais adiante irá  criticá-lo usando-se do instrumental analítico de Husserl. Contudo, por  influência  de  Heidegger, substituiu o  conceito  husserliano  de consciência,  quando o  sujeito  deixa  a  consciência  transcendental,  em Immanuel Kant e Edmund Husserl, e torna-se existência voltada para a morte. O frisson filosófico de Heidegger foi o de trazer para a filosofia a distinção entre ser e ente e transportar, no ser, a relação, o movimento e a eficácia simbólica. Mas, para o que nos interessa na análise é que irá manter  conceitos  decisivos,   são os  da primeira fase, como de finitude, estar-aí, ser-para-a-morte. Na prática do diálogo esconde-se o “tu da familiaridade”, aquilo que  Lévinas caracteriza como linguagem silenciosa, entendimento sem palavras, “expressão no segredo”.

Ele diz que aquilo que Buber (1978) havia descoberto na  categoria  de  relação  inter-humana  não  é,  efetivamente,  a  relação  social com  um interlocutor,  mas  com  a  presença da alteridade  feminina,  quer dizer, em  que  o  feminino  revela-se  como  a  origem revela o  conceito  próprio de  alteridade.  Feminino  é esse outrem que me acolhe em casa. Mas, ser acolhido pode transformar-se em apossar-se e isso me impedirá de ver as coisas em si mesmas; não devo fruir, não devo me apossar, só preciso saber dar o que possuo. Convém lembrar que o feminino, para Lévinas, não é a mulher empírica da Antropologia. Mas do gesto de acolhimento e de hospitalidade que atinge radicalidade essencial profunda e “meta-empírica que leva em conta a diferença sexual numa ética emancipada da ontologia”. Quem me proporciona o acolhimento  é  o  ser  feminino,  não  as  mulheres  de fato  concretas.  E, também, que a linguagem, para ele, transcende em muito a noção reduzida do lingüístico. Ela não se limita ao despertar maiêutico dos pensamentos. Ela não acelera a mutação interior de uma razão que é comum a todos. Ela ensina algo de novo no pensamento, a idéia de Infinito. Vai além da dimensão per se do acontecimento, do diálogo em que se contrapõem estranhamentos totais, de uma noção de comunicação que  se  volta  diretamente  aos  sujeitos  em  situação  de  presença, sugere que só se pode analisar as coisas, vivendo-as. É no vis-à-vis humano que se irrompe a complexidade do sentido. Diante do rosto do Outro o indivíduo se descobre responsável com a ideia possível no limite da finitude.

Levinas pretendeu uma anterioridade da ética à filosofia. Essa compreensão ética do judaísmo se dá como uma responsabilidade em relação ao Outro, o que se demonstra não como uma mera linguagem, mas antes como uma prioridade do outro em relação a mim. Essa prioridade defendida por Levinas ao olhar a Bíblia, comunica-se de forma cabal na quatríade: estrangeiro, viúva, órfão e pobre que tem background profético. Aqui o pensador caminha entre os profetas bíblicos, tendo-os como referência e também daqui decorre uma exigência ética, visto que a filosofia de Levinas, como um fazer filosófico perpassado pelo patrimônio judaico, utiliza-se da quatríade para elaborar uma exigência ética não só filosófica, mas também religiosa, pois essa experiência não deve antes se ocupar com a definição de Deus, e sim com o Outro que está aí diante de si. É um pensador judeu-lituano-francês. Judeu, porque nascido desse povo. Lituano, porque nasceu em Kaunas, na Lituânia. Francês, porque adotou a cidadania francesa. Diz que tem três solos linguísticos: o hebraico, por sua origem judaica; o russo, falado na colonização da Lituânia, e o francês porque escreve nessa língua. Então diz que pensa nesses três idiomas e oferece um bom desafio adicional na leitura de suas obras.

Emigrou para a França em 1923. Deste ano até 1930 estudou filosofia em Estrasburgo, participando em 1928-1929 de Seminários com Husserl e com Heidegger em Friburgo, na Brisgóvia. Foi dos primeiros introdutores da fenomenologia husserliana na França, tendo traduzido, em coautoria com Mlle. Gabrielle Peiffer, Méditations cartésiennes, de Husserl (1986). Foi prisioneiro em campos de concentração nazistas de 1939 a 1945, na Bretanha e na Alemanha quando então soube que sua família tinha sido exterminada na Lituânia. A partir da base judaica expõe um comportamento religioso distinto do ontológico, que quer abarcar Deus em um conceito, mas ele é transcendência inabarcável. O Deus da Bíblia significa de maneira diversa - isto é, sem analogia com uma ideia submetida a critérios, pois significa além do ser, a transcendência, e por isso, a base religiosa de Levinas o leva a entender que a religião antes de ser um corpo aparente de dogmas e de doutrinas, é um chamamento à ética, ou melhor é próprio à ética, o que também se aplica à filosofia, que para ele deve ser ética antes de ontológica. O ponto de partida deste pensamento é a constatação de que o Eu é o fundamento primeiro da própria identidade, “é porque eu sou imediatamente o mesmo - me ipse - uma ipseidade - que eu posso identificar qualquer objeto, qualquer traço de carácter e qualquer ser”. O que é exterior ao eu, advém ao eu e não põe em causa a questão de sua identidade, justamente por que se oferece a um conhecimento, que arrancando-o ao lugar em que fulgurava na sua luz própria, lhe faz perder a sua alteridade.

            Na vida não habitamos simplesmente, mas construir significa originariamente habitar. E a antiga palavra construir (“bauen”) diz que o homem é à medida que habita. Mais do que isso, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare, estão contidos no sentido próprio de bauen. No sentido de habitar, ou construir, permanece, para a experiência cotidiana do homem. Aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão exclusiva e bela, habitual. Isto esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação. O sentido próprio de construir, a saber, habitar, cai no esquecimento. Em que medida construir pertence ao habitar? Quando construir, e sobretudo pensar, são indispensáveis para habitá-lo. Ambos são insuficientes para habitá-lo se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao Outro. Ipso facto construir e pensar pertence ao habitar. Permanecem em seus limites. Sabem, quando aprendemos a pensar, que tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício incessante de pensar.


      Nunca é demais repetir que Lévinas estabelecendo-se na França em 1923 estudou Filosofia na Universidade de Estrasburgo,  fato político quando desde 1919 a  universidade tornava-se francesa (de novo) e seus cursos passaram a ser em francês. Neste período manteve contato com Charles Blondel, doutorado em Letras em 1914 com tese notável sobre “A consciência mórbida”, onde recusa a idéia de uma identidade recursiva do patológico e do normal e da possibilidade de interpretar o primeiro pelo segundo. O alienado, como sabemos, é indiferente e sua impossibilidade de adquirir uma conceptualização discursiva normal o torna incapaz de comunicar-se realmente com os indivíduos funcionalmente normais. Com Maurice Halbwachs, onde sua originalidade floresce no contato com a Escola de Strasbourg, onde edifica-se um grupo de estudiosos bem estruturados durante  as conturbadas décadas entreguerras de 1920 e 1930, de diferentes origens, desde posturas intelectuais e idades, assim como a questão tópica da idiossincrasia. Vale lembrar poder de trabalharem juntos, visando uma aproximação intelectual e afetiva interdisciplinar, de métodos teoria e de análise originalmente entre franceses e alemães constituindo-se comparativamente.  

Na França, ensinando na Aliança Israelita Universal, casa-se e nos anos que se seguem teve dois filhos. Conhece o existencialismo religioso de Gabriel Marcel. Surge no meio político o movimento “socialista nacional”, fato que o deixa transtornado, mas o que o entristece é o apoio ideológico que Martin Heidegger deu ao partido nazista (cf. Farias, 1988). Neste momento, Lévinas publica seu primeiro artigo: “Reflexões sobre a Filosofia do Hitlerismo” na Revista Esprit (Paris, 1934). Com a eclosão da 2ª guerra mundial, Lévinas faz parte do exército francês como tradutor, pois tinha fluência nas línguas russa e alemã. No entanto, é capturado por volta de 1940 pelo exército alemão, sendo levado como prisioneiro para um “campo de trabalhos forçados” e não para o campo de concentração por estar de uniforme francês. Sua família em Lituana foi morta ainda nos primeiros anos da guerra. Na França sua esposa e seu primeiro filho foram levados rapidamente para um mosteiro pelo amigo Maurice Blanchot. De l`Existence à l`Existant (1947) é seu primeiro escrito em que o feminino (cf. Lévinas, 1995; 2004; Dubost, 2006; Marcondes Filho, 2007; Sebbah, 2011)  surge como um conceito que progressivamente vai assumindo importância ímpar não apenas em sua obra filosófica. Ele constrói seu pensamento a partir de uma idéia de que a consciência precisa das coisas para conceber-se, e as coisas precisam da consciência para ter sentido. Com o fim da guerra Lévinas tornou-se diretor de um Instituto de Estudos Judaicos e durante quatro anos dedicou-se ao estudo intensivo do Talmude que resultou num escrito volumoso sobre judeidade. Em 1961 apresenta a obra Totalidade e Infinidade. 

Em 1973 ocupou a cátedra de filosofia na Sorbonne, aposentando-se em 1979. Leciona depois na universidade de Paris-Sorbone (1973-1984). Lévinas morreu dia 27 de dezembro de 1995, menos de uma semana para completar seu aniversário de 90 anos. Naquele grupo destaca-se a presença de estudiosos de origem judaico-alemã, entre eles Maurice Halbwachs, que portam a experiência de serem vistos  como “os Outros”, expressando uma dialética trágica: para os alemães, são franceses; para os franceses, são alemães; para os judeus, não são judeus; para os cristãos, são judeus. Este é o significado da defesa, que institucionalizam-se seja por meio de terapia térmica, terapia mecânica, audição, visão, e assim por diante, porque, se não houver fuga da dimensão social que oprime, há pelo distanciamento, previsão da possível dor. Esses significados são específicos na forma que encontramos de percepção do espaço e, portanto, da mente, porque não abrangem cegamente a realidade. Mas, permitem um conhecimento intelectual pela profundidade que estabelecem em nossas relações com os objetos. Ao sermos forçados a diferenciar o espaço social, o ser vivo acede ao mundo da mente, isto é, à inteligência e ao conhecimento. A origem da expressão social judaica Shoah representa a memória do assassinato em massa de cerca de 6 milhões de judeus na 2ª guerra mundial, sendo o maior genocídio do século XX, através de programa sistemático de extermínio étnico patrocinado pela ascensão do Estado nazista.

Raïssa Marguerite Levinas.

A reorganização política da Alemanha após a 1ª grande guerra (1914-18) ficou reconhecida como a República de Weimar, cidade onde foi elaborada a Constituição que deu as novas diretrizes políticas e administrativas ao país. O nazismo articulou-se dentro da República de Weimar  com vários partidos políticos e facções paramilitares que fizeram pressão contra o novo poder instituído. Entre essas outras facções, havia o movimento espartaquista comunista influenciada pela Revolução Russa, de 1917 e liderada por Rosa Luxemburgo. Em 1923, os nazistas articularam um golpe no Estado da Baviera e acabaram sendo presos e condenados. Em 1933, após o parlamento alemão ter sido incendiado e o crime ter sido reportado aos militantes comunistas, os nazistas passaram a pressionar o presidente Hindenburg a lhe dar maiores poderes. A partir desse ano in statu nascendi a ditadura nazista. Com a morte de Hindenburg, em 1934, o líder nazista agregou à sua pessoa os títulos de chanceler,  presidente e führer dos alemães. O regime adota um caráter absolutamente totalitário.

As características principais do nazismo, enquanto ideologia instituída no poder, derivaram-se das ideias desenvolvidas neste período. O controle da população por meio da propaganda era uma de suas principais motivações. O uso do rádio e do cinema foi decisivo para que as ideias nazistas fossem propagadas. O antissemitismo era uma dessas ideias fundamentais. O ódio aos judeus, a quem o líder nazista atribuía a culpa por problemas que a Alemanha enfrentava, sobretudo problemas de ordem econômica, intensificou-se no período de propaganda nazista. Esse fato culminou no Holocausto  com a morte de mais de 6 milhões de pessoas em campos de concentração. Associado ao antissemitismo, estava a noção racista e eugenistas da “superioridade do homem branco germânico”, ou da “raça ariana”, e a construção de um “espaço vital” para que essa raça construísse seu império mundial. Esse espaço vital compreendia vastas regiões do continente europeu, que segundo os planos de mentores nazistas deveriam ser invadidas e conquistadas pelos povos germânicos, já que a raça estava incumbida, por conta de sua pretensa “superioridade”, de se tornar “senhora” sobre os outros povos.

Dos 9 milhões de judeus que residiam na Europa antes do Shoah, cerca de dois terços foram mortos; estatisticamente mais de 1 (hum) milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens judeus morreram durante este período. A força policial foi reforçada através da incorporação de membros de organizações paramilitares nazistas como policiais auxiliares. O genocídio nazista contra os judeus foi parte de um conjunto mais amplo de atos de repressão e de assassinatos em massa agregados, e também cometidos pelos nazistas contra vários grupamentos étnicos e políticos nas guerras na Europa, e particularmente alemã. Entre as principais vítimas não judias estão grupos estritos de ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, prisioneiros de guerra soviéticos, cristãos Testemunhas de Jeová e portadores de deficiência física. Segundo estimativas recentes, baseadas em números obtidos desde a queda da União Soviética em 1991, morreram aproximadamente de 12 milhões de civis. Principalmente eslavos e prisioneiros de guerra foram mortos pelos nazistas que após haverem silenciado a voz de opositores políticos, expandiram o terror a outros povos marginalizados.

  Emmanuel Lévinas testemunha o desastre da Shoah e inúmeras violências, destruições e dores para sempre inconsoláveis, evitando as dualidades dos extremos sem  cair num nihilismo, ou num anti-humanismo, e ainda menos na distração. Num século marcado por tantas perturbações, violações e incertezas, a tarefa de pensar de forma independente, criticamente e fora de dúvida de forma criativa, torna-se ainda mais essencial. O seu percurso singular, segundo Soares (2000), permaneceu fiel à linguagem conceptual e teórica herdada dos gregos, mas como analista social não se limitou a ela. Abrindo a racionalidade filosófica à tradição hebraica, tendo inferido que a razão se pode deixar inspirar sem qualquer tipo de humilhação, quer pelos profetas, quer pelos rabinos. Esta dupla fidelidade será capaz de manter o espírito inquieto e vigilante, na senda do Infinito e da alteridade irredutível do Outro. Sua filosofia ensina-nos sobretudo, que o sentido do pensamento leva-o para além dele, de forma a transcende-lo e nunca será demais, vigiar sobre este excesso, que vive sob uma dupla ameaça: ou cair num saber absoluto, ou numa perfeita adequação da palavra à realidade. O pensamento vive na obediência do que lhe é requerido, e não na dependência que, pretensamente, poderá dominar pela precariedade de conceitos. Essa obediência é requerida em resposta ao apelo do Infinito e da alteridade. A filosofia não responde à questão “como pensar depois de Auschwitz?”, e menos sobre a questão da origem do mal, da “banalidade do mal” que ocupam, mas sobretudo a busca de sentido do ser humano.

Maurice Blanchot,  canto superior direito,
Lévinas (ao meio) e amigas (1925).

Metodologicamente Lévinas foi abertamente partidário da reintrodução da transcendência na filosofia. Foi árduo crítico do estruturalismo, do marxismo vulgar, da psicanálise dos anos 1960 e 1970 e atuou contra o cientificismo. A originalidade de sua proposta está na consideração do Outro como um mistério e do rosto como nudez. O Outro é aquele que tem uma liberdade exterior à minha, que está fora do meu sistema, com o qual não é possível nenhuma fusão. A prioridade do Outro e a emergência de uma responsabilidade não escolhida, pois é pela assunção da ética que nos tornamos nós próprios. A experiência fundamental é, deste modo, a experiência do Outro na sua singularidade, como na tópica da alteridade. Esta experiência coloca-nos na condição de desenvolvermos uma postura mental distinta de trabalho sociológico normalizado,  quando precisamos exatamente o significado da representação de ser “o Outro”. Da origem da Escola de Strasbourg emergem a sociologia historicizada de Maurice Halbwachs, a história sociologizada de Lucien Febvre, Marc Bloch e da chamada Nova História. A perspectiva psicológica não ficou à parte do contexto interdisciplinar. A revolução da psicologia que os métodos e processos psíquicos, distanciando-se das entidades abstratas, ou mecanismos puramente fisiológicos, teve parcela de influência desses notáveis pesquisadores.                       

Não queremos perder vista que a categoria do feminino na filosofia de Levinas é uma categoria ontológica, isto é, não se trata aqui de uma diferença de gênero entre o feminino e o masculino ou mesmo de uma contradição dialética. Menos ainda se deve a idéia rememorada de complementariedade ou de fusão. Levinas vê no feminino e no masculino uma diferença pura que lhe permite abordar uma primeira forma de alteridade concreta. A figura do masculino parece muito associada à economia, ao trabalho e à razão enquanto o feminino, na tradição bíblica em que o autor se inspira, aparece quase sempre associado ao espaço interior do lar. O feminino se oferece então em Levinas como a interrupção da fruição diferentemente do dever kantiano, frio e insensível, posto pela razão sobre a sensibilidade. Para poder interromper a fruição, o feminino se apresenta como portador de um excesso mais forte que a própria fruição. O feminino em Levinas surge como uma modalidade do acolhimento, no eu-tu de uma linguagem silenciosa, da escuta sem palavras, da expressão no segredo. O feminino é o contrário do Rosto que se apresenta numa dimensão de altura, na verticalidade do ensino, reclamando a justiça do terceiro. Trata-se de uma linguagem sem ensinamento como no caso da altura do Rosto, mas, contudo, a forma de uma linguagem humana.

O calor humano, a amizade, a familiaridade e a intimidade que o feminino representa são produzidos como uma doçura que se espalha sobre a face das coisas, “doçura proveniente de uma amizade em relação a este eu”. O feminino permite destacar-se dos elementos do mundo, recolher-se. Ao contrário do ser que é luz e manifestação, o feminino é discrição, pudor, acolhimento silencioso. Daí demonstrar sua qualidade de presente e ausente. E o Outro porque acolhe e cuja presença é simultaneamente uma ausência é a mulher que é quem porta o feminino. O tipo de alteridade que a mulher representa aqui é a alteridade que cria o espaço interior. Diz Levinas: “a mulher é a condição do recolhimento da interioridade da casa e da habitação”. A discrição da presença feminina inclui possibilidades da relação que é transcendente com outrem. Na morada como recolhimento, como vinda a si numa casa, a linguagem que se cala continua a ser uma possibilidade essencial. O feminino se torna  a primeira figura da alteridade e significa as vivências no nível da interioridade da casa.

Não pode ser por acaso, portanto, que historicamente o movimento da Nova História desemboca no estudo da formação das mentalidades, ou quando o próprio Maurice Halbwachs leciona a disciplina psicologia social no Collège de France. Objetos típicos da história das mentalidades são: as sensibilidades do Homem diante da morte,  a história dos grandes medos dos seres humanos nos diversos períodos, e tantas outras que à época em que começa aflorar a história das mentalidades, que pareciam constituir temáticas exóticas para os historiadores que se dedicavam a temas historiográficos mais tradicionais. – “Não temos história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria”. A queixa de Lucien Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da disciplina que se convencionou “história das mentalidades”. Uma das lacunas que o fundador da Escola dos Annales deplorava foi preenchida pela História do medo no Ocidente, de Jean Delumeau. Ao tomar como objeto de estudo o medo,  ele parte da ideia de que não apenas os indivíduos, mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas.    

Emmanuel Lévinas e J.-P Sartre.

Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII - o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes: o judeu, a mulher, o muçulmano, o grande pensador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente. Alguns autores postulam que a história das mentalidades apresentou como seus principais precursores dois grandes historiadores ligados à escola dos Annales: Marc Bloch, que publicou em 1922, Os Reis Taumaturgos, uma obra comparativa que examinava a relação entre a crença no poder curativo dos reis e a autoridade das grandes dinastias francesas e inglesas, e Lucien Febvre, que publicou O Problema do Ateísmo no Século XVI: A Religião de Rabelais, obra na qual já defendia do ponto de vista historiográfico a tese da História como estudo interdisciplinar. A história das mentalidades é considerada uma análise de tipo ideal mais profundo de análise da História, pois visa perscrutar e compreender as grandes alterações nas formas de pensar e agir do Homem ao longo dos tempos. Inscreve-se no chamado “tempo longo”, ou “la longue durée”, de teor essencialmente estrutural e que atua nos mais diversos fatores de uma sociedade.

O movimento societário da evolução histórica e pontual define-se pelo confronto histórico-social e colaboração com a alteridade que constitui um princípio de análise  realidade. Inicialmente, a pessoa com tendência egoísta gosta aparentemente de si mesma. Mas, para perdurar na vida ele deve procurar e encontrar meios de se preservar. Consequentemente, ela não terá outra escolha a não ser confrontar-se com o mundo. Esse contato social com a exterioridade é capital: é o que permitirá a distinção psicológica entre alma e mente. A sensorialidade possibilita o sentido da necessidade e defesa. Mas, não é mais nem menos afetivo. A afetividade que é difusa e vaga não pode ser dividida em graus, a sensorialidade é mais ou menos representativa. Se a afetividade não se caracteriza pelo prazer ou dor, é entre esses dois extremos que a sensorialidade poderá se manifestar. Nesse ponto, a sensação torna-se uma percepção, ou o que se poderia chamar de forma paradoxal de “sensação insensível”. O que pode ser feito com esse aparente paradoxo não intencional? O espaço é o que se constitui na sensorialidade: como percebemos o que não somos conforme a nossa adaptação social à realidade.

 A questão fundamental da sua filosofia não é porque é que existe “o ser e não o nada”, como em Heidegger, mas sim, a interrogação ética: tenho eu direito ao ser? A questão do “sentido do ser” coincide, deste modo, com o “direito ao ser”, abrindo-nos a um outro modo de significar que não se reduz a um sistema da diferença, mas a relações de “não-indiferença na diferença”. Esta filosofia começa com a epifania do rosto: desde toda a eternidade o homem responde por Outro. Que ele me olhe ou não, ele diz-me respeito; tenho a ver com ele. Chamo rosto, o que no outro diz respeito a mim - me diz respeito. Esta ética do rosto, Lévinas descreve-a a partir de três aspectos: proximidade, responsabilidade, substituição. A ética é para Emmanuel Lévinas, a filosofia primeira que se articula em torno de uma prioridade fundamental, a possibilidade de dar ao Outro o primeiro lugar em detrimento do Mesmo. Os direitos inalienáveis de Outrem, face aos direitos individuais e à condição própria de sua reinvindicação, são prioritários; à dimensão de responsabilidade junta-se a de justiça, moderadora do privilégio do Outro. Não esperemos encontrar em Lévinas qualquer lição de facilidade. No entanto, não serão libertadoras a ruptura do egoísmo e a abertura ã transcendência do Rosto? E a proximidade, não será ela a paz entre os homens, fonte de alegria e de contentamento?

A interdição de matar não provém de alguma coisa estranha ao Rosto, mas de si próprio. É a alteridade do Outro que, por si mesmo, conduz à vontade de matar e a inibe; no entanto, a inibição é anterior ao desejo de matar. A proximidade com o Rosto impede-me de matar, mas o recuo e a “posse de mim” posteriores ao encontro inicial originam o desejo de matar. É possível matar outrem, mas fazê-lo não é indiferente, nem “natural”; ao fazê-lo somos confrontados com uma resistência, que não é poder, mas imprevisibilidade, resistência ética. Insiste-se no caráter vulnerável do Rosto, como sendo a parte do corpo exposta e mais nua. É um desnudamento que permanentemente tentamos mascarar, mas o olhar, esse, permanece quase sempre nu. A nudez é a expressão empregue por Lévinas para designar a “invisibilidade essencial”. Olhar o rosto supõe conversão do olhar e inversão da intencionalidade objetivante, deixando que o outro me ponha em questão. O constrangimento que a proximidade provoca acontece porque, antes de ver, já estou sendo visto, observado e questionado. No contato social imediato com o Rosto, a própria consciência é posta em questão e torna-se quase impossível a pergunta por quem nos interpela: “Aquele a quem a questão é posta já se apresentou, sem ser um conteúdo. Apresentou-se como Rosto”. Nesta medida o rosto tem sentido, não pelas suas relações, mas a partir de si como uma forma de expressão.

Um leitor atento percebe que a comunicação social ocupa um lugar conspícuo dentre os temas na reflexão de Lévinas. O assunto aparece de maneira subliminar em textos que têm como escopo o diálogo e a relação dialógica. Embora em uma entrevista, temática sobre “alteridade e transcendência” (1995) defina sua noção de comunicação social como representando uma “filosofia do diálogo”, equiparando-a com a “filosofia primeira”: o aspecto a ser sublinhado é o relacional do qual o diálogo é parte constituinte, não um meio ou processo para se chegar à alteridade. Mas, nessa aproximação, sua filosofia não parece ser uma filosofia do diálogo. Seus escritos sobre linguagem ou sobre a questão do sentido também não parecem se direcionar para a configuração de uma teoria analítica, ou conceito específico. E não acreditamos haver tentativa de esboçar apenas um conceito de comunicação, menos ainda uma teoria da de recepção da comunicação. Embora a temática da linguagem e do discurso apareçam em seus livros, seria difícil propor mesmo uma “teoria” a respeito desses assuntos que permitisse uma aproximação, mesmo transversal com a comunicação social.

 

O estabelecimento de uma responsabilidade para com o Outro, fundamental no processo social de comunicação, se desdobra como um respeito inicial pelo Outro em sua condição de alteridade, que deve ser mantida e preservada como condição social da comunicação num processo de trabalho e comunicação, seja diante de Deus, a morte e o tempo.  A partir desses dois gestos, a responsabilidade e o respeito, indica-se a resposta à alteridade. O ato de se tornar responsável tem início nessa resposta à interpelação do rosto e a resposta para com o outro, dentro de uma relação de identidade e diferença, que define o aspecto do processo comunicacional envolvido na relação, e mesmo, de sua maneira e de sua existência. É perfeitamente possível trocar informações com uma pessoa sem se comunicar com ela: trata-se, no entanto, na violência da redução do outro, conforme sugere Lévinas (2014), que não se constitui no outro – simplesmente porque não há espaço para a comunicação. Cria-se um “espaço de silêncio”, no qual a alteridade do outro é registrada como simples presença, ou dado, e a comunicação se torna impossível porque indesejada na ausência de responsabilidade para com o outro. Os judeus, disse Léon Poliakov (2000), são franceses que, ao invés de não irem mais à igreja, não vão mais à sinagoga. Na tradução humorística de Hagadah, essa piada designava crenças no passado que deixaram de organizar práticasAs convicções políticas parecem, hoje, seguir o mesmo caminho. Alguém seria socialista por que foi, sem ir às manifestações, sem reunião, sem palavra e contribuição financeira, em suma, sem pagar. Mas reverencial que identificatória, a pertença só se marcaria por aquilo que se chama uma voz. Este resto de palavra, como o voto de quatro em quatro anos. 

Uma técnica bastante simples manteria o teatro de operações desse crédito. Basta que as sondagens abordem outro ponto que não aquilo que liga diretamente os adeptos ao partido, mas aquilo que não os engaja alhures, não a energia das convicções, mas a sua inércia. Os resultados políticos da operação contam então com restos da adesão. Fazem cálculos até mesmo com o desgaste de toda convicção. Pois esses restos, “esses cacos”, como insinua Leonardo Boff, indicam ao mesmo tempo o refluxo daquilo em que os interrogados creram na ausência de uma credibilidade mais forte que os leva para outro lugar. Ora, a capacidade de crer parece estar em recessão em todo o campo político. A tática é a arte do fraco. O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Mas a vontade de “fazer crer”, de que vive a instituição, fornecia nos dois casos um fiador a uma busca de amor e/ou de identidade. Importa então interrogar-se sobre os avatares do crer em nossas sociedades e sobre as práticas originadas a partir desses deslocamentos. Durante séculos, supunha-se que fossem indefinidas as reservas de crença. Aos poucos a crença se poluiu, como o ar e a água. Percebe-se ao mesmo tempo não se saber o que ela é. Tantas polêmicas e reflexões sobre os conteúdos ideológicos em torno do voto e os enquadramentos institucionais para lhe fornecer não foram acompanhadas de uma elucidação acerca da natureza do ato de crer. Os poderes antigos, políticos ou religiosos, geriam habilmente a autoridade. Hoje são os sistemas administrativos, sem autoridade, que dispõem de mais força em seus “aparelhos” e menos de autoridade legislativa.

Bibliografia geral consultada.

LÉVINAS, Emmanuel, El Tiempo y el Otro. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993;  Idem, Alterité et Transcendence. Paris: Editeur Fata Morgana, 1995; Idem, Éthique comme Philosophie Première. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1998; Idem, Difícil Libertad: Ensayos sobre el Judaísmo. Madrid: Caparrós Editores, 2004; Idem, A Violência do Rosto. São Paulo: Editora Loyola, 2014; POLIAKOV, Léon, Do Anti-sionismo ao Anti-semitismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000; UCHIDA, Tatsuru, Emmanuel Lévinas et la Phénoménologie de l’Amour. Tokyo: Editora  Serika Syobô, 2001; KORELC, Martina, O Problema do Ser na Obra de E. Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006; PASSOS, Helder Machado, Relação entre Ética e Política no Pensamento de Emmanuel Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012; MAIDA, Bruno, La Shoah dei bambini. La persecuzione dell’infanzia hebraica in Italia, 1938-1945. Torino: Einaudi Editore, 2013; DIAS, Rosangela dos Santos Figueiredo, Judaísmo, Alteridade e Educação em Emmanuel Lévinas. Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Estadual da Bahia, 2016; CAMPOS, Fabiano Victor de Oliveira, O Ser e o Outro do Ser: A Questão de Deus em Emmanuel Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Instituto de Ciências da Religião. Instituto de Ciências Humanas. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2016; DIEKMANN, Leonardo Envall; MASLOWSKI, Adriano André, “A Influência Judaica no Pensamento Filosófico de Emmanuel Lévinas a partir da Ética da Alteridade como Filosofia Primeira”. In:  Revista Missioneira. Santo Ângelo (RS), vol. 21, n° 1, pp. 106-120, jul./dez. 2019; ALMEIDA, Rosemiro Ferreira de, A Ética da Alteridade de Emmanuel Lévinas: Interfaces do Outro na Experiência do Ensino de Filosofia no Ensino Médio na Escola EREM – Vicente Monteiro – Caruaru - PE. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2020; entre outros.