quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Emmanuel Lévinas - Shoah, Memória & Emoção do Feminino.

                                     A política se opõe a moralidade como a filosofia se opõe a ingenuidade”. Emmanuel Lévinas 

            Emmanuel Levinas natural de Kovno, em 30 de dezembro de 1905, na Lituânia, judeu, dominava o russo, o alemão e o francês, além do hebraico,  faleceu, em Paris, em 25 de dezembro de 1995. Com a educação de uma família tradicional judaica, tendo o pai profissão de livreiro, Lévinas cedo teve contato com os clássicos da literatura russa, desde Fiódor Dostoiévski muito citado nas suas obras. Em 1928 viajou para Freiburg prosseguindo estudos com Edmund Husserl e Martin Heidegger (cf. Lévinas, 1999). Em 1929, apresenta tese de doutorado: La Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl (1930), obra premiada pelo Institut de France, tornando-se precursor da fenomenologia na França, assim como suas traduções, influenciaram pensadores como J.-P. Sartre e Merleau-Ponty. Promoveu leituras talmúdicas e uma hermenêutica, a qual influenciou Jacques Derrida sobre a diferença. Influenciado pela fenomenologia de Husserl, e comparado pelas obras de Martin Heidegger, Franz Rosenzweig e Monsieur Chouchani, o pensamento de Lévinas parte da ideia de que a representação da Ética, como objeto e não a Ontologia, é a Filosofia Primeira (cf. Lévinas, 1998).  

Segundo Marcondes Filho, pioneiro em estudos da comunicação fora do Brasil, metodologicamente suas tendências oscilaram entre Edmund Husserl e Martin Heidegger, tendo sofrido uma aproximação, em 1937, por Soren Kierkegaard, e mais tarde por  Henri  Bergson.  Inicialmente  husserliano,  criticou posteriormente  o  mestre  com  os sólidos argumentos  de  M. Heidegger;  novamente,  mais adiante irá  criticá-lo usando-se do instrumental analítico de Husserl. Contudo, por  influência  de  Heidegger, substituiu o  conceito  husserliano  de consciência,  quando o  sujeito  deixa  a  consciência  transcendental,  em Immanuel Kant e Edmund Husserl, e torna-se existência voltada para a morte. O frisson filosófico de Heidegger foi o de trazer para a filosofia a distinção entre ser e ente e transportar, no ser, a relação, o movimento e a eficácia simbólica. Mas, para o que nos interessa na análise é que irá manter  conceitos  decisivos,   são os  da primeira fase, como de finitude, estar-aí, ser-para-a-morte. Na prática do diálogo esconde-se o “tu da familiaridade”, aquilo que  Lévinas caracteriza como linguagem silenciosa, entendimento sem palavras, “expressão no segredo”.

Ele diz que aquilo que Buber (1978) havia descoberto na  categoria  de  relação  inter-humana  não  é,  efetivamente,  a  relação  social com  um interlocutor,  mas  com  a  presença da alteridade  feminina,  quer dizer, em  que  o  feminino  revela-se  como  a  origem revela o  conceito  próprio de  alteridade.  Feminino  é esse outrem que me acolhe em casa. Mas, ser acolhido pode transformar-se em apossar-se e isso me impedirá de ver as coisas em si mesmas; não devo fruir, não devo me apossar, só preciso saber dar o que possuo. Convém lembrar que o feminino, para Lévinas, não é a mulher empírica da Antropologia. Mas do gesto de acolhimento e de hospitalidade que atinge radicalidade essencial profunda e “meta-empírica que leva em conta a diferença sexual numa ética emancipada da ontologia”. Quem me proporciona o acolhimento  é  o  ser  feminino,  não  as  mulheres  de fato  concretas.  E, também, que a linguagem, para ele, transcende em muito a noção reduzida do lingüístico. Ela não se limita ao despertar maiêutico dos pensamentos. Ela não acelera a mutação interior de uma razão que é comum a todos. Ela ensina algo de novo no pensamento, a idéia de Infinito. Vai além da dimensão per se do acontecimento, do diálogo em que se contrapõem estranhamentos totais, de uma noção de comunicação que  se  volta  diretamente  aos  sujeitos  em  situação  de  presença, sugere que só se pode analisar as coisas, vivendo-as. É no vis-à-vis humano que se irrompe a complexidade do sentido. Diante do rosto do Outro o indivíduo se descobre responsável com a ideia possível no limite da finitude.

Levinas pretendeu uma anterioridade da ética à filosofia. Essa compreensão ética do judaísmo se dá como uma responsabilidade em relação ao Outro, o que se demonstra não como uma mera linguagem, mas antes como uma prioridade do outro em relação a mim. Essa prioridade defendida por Levinas ao olhar a Bíblia, comunica-se de forma cabal na quatríade: estrangeiro, viúva, órfão e pobre que tem background profético. Aqui o pensador caminha entre os profetas bíblicos, tendo-os como referência e também daqui decorre uma exigência ética, visto que a filosofia de Levinas, como um fazer filosófico perpassado pelo patrimônio judaico, utiliza-se da quatríade para elaborar uma exigência ética não só filosófica, mas também religiosa, pois essa experiência não deve antes se ocupar com a definição de Deus, e sim com o Outro que está aí diante de si. É um pensador judeu-lituano-francês. Judeu, porque nascido desse povo. Lituano, porque nasceu em Kaunas, na Lituânia. Francês, porque adotou a cidadania francesa. Diz que tem três solos linguísticos: o hebraico, por sua origem judaica; o russo, falado na colonização da Lituânia, e o francês porque escreve nessa língua. Então diz que pensa nesses três idiomas e oferece um bom desafio adicional na leitura de suas obras.

Emigrou para a França em 1923. Deste ano até 1930 estudou filosofia em Estrasburgo, participando em 1928-1929 de Seminários com Husserl e com Heidegger em Friburgo, na Brisgóvia. Foi dos primeiros introdutores da fenomenologia husserliana na França, tendo traduzido, em coautoria com Mlle. Gabrielle Peiffer, Méditations cartésiennes, de Husserl (1986). Foi prisioneiro em campos de concentração nazistas de 1939 a 1945, na Bretanha e na Alemanha quando então soube que sua família tinha sido exterminada na Lituânia. A partir da base judaica expõe um comportamento religioso distinto do ontológico, que quer abarcar Deus em um conceito, mas ele é transcendência inabarcável. O Deus da Bíblia significa de maneira diversa - isto é, sem analogia com uma ideia submetida a critérios, pois significa além do ser, a transcendência, e por isso, a base religiosa de Levinas o leva a entender que a religião antes de ser um corpo aparente de dogmas e de doutrinas, é um chamamento à ética, ou melhor é próprio à ética, o que também se aplica à filosofia, que para ele deve ser ética antes de ontológica. O ponto de partida deste pensamento é a constatação de que o Eu é o fundamento primeiro da própria identidade, “é porque eu sou imediatamente o mesmo - me ipse - uma ipseidade - que eu posso identificar qualquer objeto, qualquer traço de carácter e qualquer ser”. O que é exterior ao eu, advém ao eu e não põe em causa a questão de sua identidade, justamente por que se oferece a um conhecimento, que arrancando-o ao lugar em que fulgurava na sua luz própria, lhe faz perder a sua alteridade.

            Na vida não habitamos simplesmente, mas construir significa originariamente habitar. E a antiga palavra construir (“bauen”) diz que o homem é à medida que habita. Mais do que isso, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare, estão contidos no sentido próprio de bauen. No sentido de habitar, ou construir, permanece, para a experiência cotidiana do homem. Aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão exclusiva e bela, habitual. Isto esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação. O sentido próprio de construir, a saber, habitar, cai no esquecimento. Em que medida construir pertence ao habitar? Quando construir, e sobretudo pensar, são indispensáveis para habitá-lo. Ambos são insuficientes para habitá-lo se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao Outro. Ipso facto construir e pensar pertence ao habitar. Permanecem em seus limites. Sabem, quando aprendemos a pensar, que tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício incessante de pensar.


      Nunca é demais repetir que Lévinas estabelecendo-se na França em 1923 estudou Filosofia na Universidade de Estrasburgo,  fato político quando desde 1919 a  universidade tornava-se francesa (de novo) e seus cursos passaram a ser em francês. Neste período manteve contato com Charles Blondel, doutorado em Letras em 1914 com tese notável sobre “A consciência mórbida”, onde recusa a idéia de uma identidade recursiva do patológico e do normal e da possibilidade de interpretar o primeiro pelo segundo. O alienado, como sabemos, é indiferente e sua impossibilidade de adquirir uma conceptualização discursiva normal o torna incapaz de comunicar-se realmente com os indivíduos funcionalmente normais. Com Maurice Halbwachs, onde sua originalidade floresce no contato com a Escola de Strasbourg, onde edifica-se um grupo de estudiosos bem estruturados durante  as conturbadas décadas entreguerras de 1920 e 1930, de diferentes origens, desde posturas intelectuais e idades, assim como a questão tópica da idiossincrasia. Vale lembrar poder de trabalharem juntos, visando uma aproximação intelectual e afetiva interdisciplinar, de métodos teoria e de análise originalmente entre franceses e alemães constituindo-se comparativamente.  

Na França, ensinando na Aliança Israelita Universal, casa-se e nos anos que se seguem teve dois filhos. Conhece o existencialismo religioso de Gabriel Marcel. Surge no meio político o movimento “socialista nacional”, fato que o deixa transtornado, mas o que o entristece é o apoio ideológico que Martin Heidegger deu ao partido nazista (cf. Farias, 1988). Neste momento, Lévinas publica seu primeiro artigo: “Reflexões sobre a Filosofia do Hitlerismo” na Revista Esprit (Paris, 1934). Com a eclosão da 2ª guerra mundial, Lévinas faz parte do exército francês como tradutor, pois tinha fluência nas línguas russa e alemã. No entanto, é capturado por volta de 1940 pelo exército alemão, sendo levado como prisioneiro para um “campo de trabalhos forçados” e não para o campo de concentração por estar de uniforme francês. Sua família em Lituana foi morta ainda nos primeiros anos da guerra. Na França sua esposa e seu primeiro filho foram levados rapidamente para um mosteiro pelo amigo Maurice Blanchot. De l`Existence à l`Existant (1947) é seu primeiro escrito em que o feminino (cf. Lévinas, 1995; 2004; Dubost, 2006; Marcondes Filho, 2007; Sebbah, 2011)  surge como um conceito que progressivamente vai assumindo importância ímpar não apenas em sua obra filosófica. Ele constrói seu pensamento a partir de uma idéia de que a consciência precisa das coisas para conceber-se, e as coisas precisam da consciência para ter sentido. Com o fim da guerra Lévinas tornou-se diretor de um Instituto de Estudos Judaicos e durante quatro anos dedicou-se ao estudo intensivo do Talmude que resultou num escrito volumoso sobre judeidade. Em 1961 apresenta a obra Totalidade e Infinidade. 

Em 1973 ocupou a cátedra de filosofia na Sorbonne, aposentando-se em 1979. Leciona depois na universidade de Paris-Sorbone (1973-1984). Lévinas morreu dia 27 de dezembro de 1995, menos de uma semana para completar seu aniversário de 90 anos. Naquele grupo destaca-se a presença de estudiosos de origem judaico-alemã, entre eles Maurice Halbwachs, que portam a experiência de serem vistos  como “os Outros”, expressando uma dialética trágica: para os alemães, são franceses; para os franceses, são alemães; para os judeus, não são judeus; para os cristãos, são judeus. Este é o significado da defesa, que institucionalizam-se seja por meio de terapia térmica, terapia mecânica, audição, visão, e assim por diante, porque, se não houver fuga da dimensão social que oprime, há pelo distanciamento, previsão da possível dor. Esses significados são específicos na forma que encontramos de percepção do espaço e, portanto, da mente, porque não abrangem cegamente a realidade. Mas, permitem um conhecimento intelectual pela profundidade que estabelecem em nossas relações com os objetos. Ao sermos forçados a diferenciar o espaço social, o ser vivo acede ao mundo da mente, isto é, à inteligência e ao conhecimento. A origem da expressão social judaica Shoah representa a memória do assassinato em massa de cerca de 6 milhões de judeus na 2ª guerra mundial, sendo o maior genocídio do século XX, através de programa sistemático de extermínio étnico patrocinado pela ascensão do Estado nazista.

Raïssa Marguerite Levinas.

A reorganização política da Alemanha após a 1ª grande guerra (1914-18) ficou reconhecida como a República de Weimar, cidade onde foi elaborada a Constituição que deu as novas diretrizes políticas e administrativas ao país. O nazismo articulou-se dentro da República de Weimar  com vários partidos políticos e facções paramilitares que fizeram pressão contra o novo poder instituído. Entre essas outras facções, havia o movimento espartaquista comunista influenciada pela Revolução Russa, de 1917 e liderada por Rosa Luxemburgo. Em 1923, os nazistas articularam um golpe no Estado da Baviera e acabaram sendo presos e condenados. Em 1933, após o parlamento alemão ter sido incendiado e o crime ter sido reportado aos militantes comunistas, os nazistas passaram a pressionar o presidente Hindenburg a lhe dar maiores poderes. A partir desse ano in statu nascendi a ditadura nazista. Com a morte de Hindenburg, em 1934, o líder nazista agregou à sua pessoa os títulos de chanceler,  presidente e führer dos alemães. O regime adota um caráter absolutamente totalitário.

As características principais do nazismo, enquanto ideologia instituída no poder, derivaram-se das ideias desenvolvidas neste período. O controle da população por meio da propaganda era uma de suas principais motivações. O uso do rádio e do cinema foi decisivo para que as ideias nazistas fossem propagadas. O antissemitismo era uma dessas ideias fundamentais. O ódio aos judeus, a quem o líder nazista atribuía a culpa por problemas que a Alemanha enfrentava, sobretudo problemas de ordem econômica, intensificou-se no período de propaganda nazista. Esse fato culminou no Holocausto  com a morte de mais de 6 milhões de pessoas em campos de concentração. Associado ao antissemitismo, estava a noção racista e eugenistas da “superioridade do homem branco germânico”, ou da “raça ariana”, e a construção de um “espaço vital” para que essa raça construísse seu império mundial. Esse espaço vital compreendia vastas regiões do continente europeu, que segundo os planos de mentores nazistas deveriam ser invadidas e conquistadas pelos povos germânicos, já que a raça estava incumbida, por conta de sua pretensa “superioridade”, de se tornar “senhora” sobre os outros povos.

Dos 9 milhões de judeus que residiam na Europa antes do Shoah, cerca de dois terços foram mortos; estatisticamente mais de 1 (hum) milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens judeus morreram durante este período. A força policial foi reforçada através da incorporação de membros de organizações paramilitares nazistas como policiais auxiliares. O genocídio nazista contra os judeus foi parte de um conjunto mais amplo de atos de repressão e de assassinatos em massa agregados, e também cometidos pelos nazistas contra vários grupamentos étnicos e políticos nas guerras na Europa, e particularmente alemã. Entre as principais vítimas não judias estão grupos estritos de ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, prisioneiros de guerra soviéticos, cristãos Testemunhas de Jeová e portadores de deficiência física. Segundo estimativas recentes, baseadas em números obtidos desde a queda da União Soviética em 1991, morreram aproximadamente de 12 milhões de civis. Principalmente eslavos e prisioneiros de guerra foram mortos pelos nazistas que após haverem silenciado a voz de opositores políticos, expandiram o terror a outros povos marginalizados.

  Emmanuel Lévinas testemunha o desastre da Shoah e inúmeras violências, destruições e dores para sempre inconsoláveis, evitando as dualidades dos extremos sem  cair num nihilismo, ou num anti-humanismo, e ainda menos na distração. Num século marcado por tantas perturbações, violações e incertezas, a tarefa de pensar de forma independente, criticamente e fora de dúvida de forma criativa, torna-se ainda mais essencial. O seu percurso singular, segundo Soares (2000), permaneceu fiel à linguagem conceptual e teórica herdada dos gregos, mas como analista social não se limitou a ela. Abrindo a racionalidade filosófica à tradição hebraica, tendo inferido que a razão se pode deixar inspirar sem qualquer tipo de humilhação, quer pelos profetas, quer pelos rabinos. Esta dupla fidelidade será capaz de manter o espírito inquieto e vigilante, na senda do Infinito e da alteridade irredutível do Outro. Sua filosofia ensina-nos sobretudo, que o sentido do pensamento leva-o para além dele, de forma a transcende-lo e nunca será demais, vigiar sobre este excesso, que vive sob uma dupla ameaça: ou cair num saber absoluto, ou numa perfeita adequação da palavra à realidade. O pensamento vive na obediência do que lhe é requerido, e não na dependência que, pretensamente, poderá dominar pela precariedade de conceitos. Essa obediência é requerida em resposta ao apelo do Infinito e da alteridade. A filosofia não responde à questão “como pensar depois de Auschwitz?”, e menos sobre a questão da origem do mal, da “banalidade do mal” que ocupam, mas sobretudo a busca de sentido do ser humano.

Maurice Blanchot,  canto superior direito,
Lévinas (ao meio) e amigas (1925).

Metodologicamente Lévinas foi abertamente partidário da reintrodução da transcendência na filosofia. Foi árduo crítico do estruturalismo, do marxismo vulgar, da psicanálise dos anos 1960 e 1970 e atuou contra o cientificismo. A originalidade de sua proposta está na consideração do Outro como um mistério e do rosto como nudez. O Outro é aquele que tem uma liberdade exterior à minha, que está fora do meu sistema, com o qual não é possível nenhuma fusão. A prioridade do Outro e a emergência de uma responsabilidade não escolhida, pois é pela assunção da ética que nos tornamos nós próprios. A experiência fundamental é, deste modo, a experiência do Outro na sua singularidade, como na tópica da alteridade. Esta experiência coloca-nos na condição de desenvolvermos uma postura mental distinta de trabalho sociológico normalizado,  quando precisamos exatamente o significado da representação de ser “o Outro”. Da origem da Escola de Strasbourg emergem a sociologia historicizada de Maurice Halbwachs, a história sociologizada de Lucien Febvre, Marc Bloch e da chamada Nova História. A perspectiva psicológica não ficou à parte do contexto interdisciplinar. A revolução da psicologia que os métodos e processos psíquicos, distanciando-se das entidades abstratas, ou mecanismos puramente fisiológicos, teve parcela de influência desses notáveis pesquisadores.                       

Não queremos perder vista que a categoria do feminino na filosofia de Levinas é uma categoria ontológica, isto é, não se trata aqui de uma diferença de gênero entre o feminino e o masculino ou mesmo de uma contradição dialética. Menos ainda se deve a idéia rememorada de complementariedade ou de fusão. Levinas vê no feminino e no masculino uma diferença pura que lhe permite abordar uma primeira forma de alteridade concreta. A figura do masculino parece muito associada à economia, ao trabalho e à razão enquanto o feminino, na tradição bíblica em que o autor se inspira, aparece quase sempre associado ao espaço interior do lar. O feminino se oferece então em Levinas como a interrupção da fruição diferentemente do dever kantiano, frio e insensível, posto pela razão sobre a sensibilidade. Para poder interromper a fruição, o feminino se apresenta como portador de um excesso mais forte que a própria fruição. O feminino em Levinas surge como uma modalidade do acolhimento, no eu-tu de uma linguagem silenciosa, da escuta sem palavras, da expressão no segredo. O feminino é o contrário do Rosto que se apresenta numa dimensão de altura, na verticalidade do ensino, reclamando a justiça do terceiro. Trata-se de uma linguagem sem ensinamento como no caso da altura do Rosto, mas, contudo, a forma de uma linguagem humana.

O calor humano, a amizade, a familiaridade e a intimidade que o feminino representa são produzidos como uma doçura que se espalha sobre a face das coisas, “doçura proveniente de uma amizade em relação a este eu”. O feminino permite destacar-se dos elementos do mundo, recolher-se. Ao contrário do ser que é luz e manifestação, o feminino é discrição, pudor, acolhimento silencioso. Daí demonstrar sua qualidade de presente e ausente. E o Outro porque acolhe e cuja presença é simultaneamente uma ausência é a mulher que é quem porta o feminino. O tipo de alteridade que a mulher representa aqui é a alteridade que cria o espaço interior. Diz Levinas: “a mulher é a condição do recolhimento da interioridade da casa e da habitação”. A discrição da presença feminina inclui possibilidades da relação que é transcendente com outrem. Na morada como recolhimento, como vinda a si numa casa, a linguagem que se cala continua a ser uma possibilidade essencial. O feminino se torna  a primeira figura da alteridade e significa as vivências no nível da interioridade da casa.

Não pode ser por acaso, portanto, que historicamente o movimento da Nova História desemboca no estudo da formação das mentalidades, ou quando o próprio Maurice Halbwachs leciona a disciplina psicologia social no Collège de France. Objetos típicos da história das mentalidades são: as sensibilidades do Homem diante da morte,  a história dos grandes medos dos seres humanos nos diversos períodos, e tantas outras que à época em que começa aflorar a história das mentalidades, que pareciam constituir temáticas exóticas para os historiadores que se dedicavam a temas historiográficos mais tradicionais. – “Não temos história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria”. A queixa de Lucien Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da disciplina que se convencionou “história das mentalidades”. Uma das lacunas que o fundador da Escola dos Annales deplorava foi preenchida pela História do medo no Ocidente, de Jean Delumeau. Ao tomar como objeto de estudo o medo,  ele parte da ideia de que não apenas os indivíduos, mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas.    

Emmanuel Lévinas e J.-P Sartre.

Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII - o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes: o judeu, a mulher, o muçulmano, o grande pensador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente. Alguns autores postulam que a história das mentalidades apresentou como seus principais precursores dois grandes historiadores ligados à escola dos Annales: Marc Bloch, que publicou em 1922, Os Reis Taumaturgos, uma obra comparativa que examinava a relação entre a crença no poder curativo dos reis e a autoridade das grandes dinastias francesas e inglesas, e Lucien Febvre, que publicou O Problema do Ateísmo no Século XVI: A Religião de Rabelais, obra na qual já defendia do ponto de vista historiográfico a tese da História como estudo interdisciplinar. A história das mentalidades é considerada uma análise de tipo ideal mais profundo de análise da História, pois visa perscrutar e compreender as grandes alterações nas formas de pensar e agir do Homem ao longo dos tempos. Inscreve-se no chamado “tempo longo”, ou “la longue durée”, de teor essencialmente estrutural e que atua nos mais diversos fatores de uma sociedade.

O movimento societário da evolução histórica e pontual define-se pelo confronto histórico-social e colaboração com a alteridade que constitui um princípio de análise  realidade. Inicialmente, a pessoa com tendência egoísta gosta aparentemente de si mesma. Mas, para perdurar na vida ele deve procurar e encontrar meios de se preservar. Consequentemente, ela não terá outra escolha a não ser confrontar-se com o mundo. Esse contato social com a exterioridade é capital: é o que permitirá a distinção psicológica entre alma e mente. A sensorialidade possibilita o sentido da necessidade e defesa. Mas, não é mais nem menos afetivo. A afetividade que é difusa e vaga não pode ser dividida em graus, a sensorialidade é mais ou menos representativa. Se a afetividade não se caracteriza pelo prazer ou dor, é entre esses dois extremos que a sensorialidade poderá se manifestar. Nesse ponto, a sensação torna-se uma percepção, ou o que se poderia chamar de forma paradoxal de “sensação insensível”. O que pode ser feito com esse aparente paradoxo não intencional? O espaço é o que se constitui na sensorialidade: como percebemos o que não somos conforme a nossa adaptação social à realidade.

 A questão fundamental da sua filosofia não é porque é que existe “o ser e não o nada”, como em Heidegger, mas sim, a interrogação ética: tenho eu direito ao ser? A questão do “sentido do ser” coincide, deste modo, com o “direito ao ser”, abrindo-nos a um outro modo de significar que não se reduz a um sistema da diferença, mas a relações de “não-indiferença na diferença”. Esta filosofia começa com a epifania do rosto: desde toda a eternidade o homem responde por Outro. Que ele me olhe ou não, ele diz-me respeito; tenho a ver com ele. Chamo rosto, o que no outro diz respeito a mim - me diz respeito. Esta ética do rosto, Lévinas descreve-a a partir de três aspectos: proximidade, responsabilidade, substituição. A ética é para Emmanuel Lévinas, a filosofia primeira que se articula em torno de uma prioridade fundamental, a possibilidade de dar ao Outro o primeiro lugar em detrimento do Mesmo. Os direitos inalienáveis de Outrem, face aos direitos individuais e à condição própria de sua reinvindicação, são prioritários; à dimensão de responsabilidade junta-se a de justiça, moderadora do privilégio do Outro. Não esperemos encontrar em Lévinas qualquer lição de facilidade. No entanto, não serão libertadoras a ruptura do egoísmo e a abertura ã transcendência do Rosto? E a proximidade, não será ela a paz entre os homens, fonte de alegria e de contentamento?

A interdição de matar não provém de alguma coisa estranha ao Rosto, mas de si próprio. É a alteridade do Outro que, por si mesmo, conduz à vontade de matar e a inibe; no entanto, a inibição é anterior ao desejo de matar. A proximidade com o Rosto impede-me de matar, mas o recuo e a “posse de mim” posteriores ao encontro inicial originam o desejo de matar. É possível matar outrem, mas fazê-lo não é indiferente, nem “natural”; ao fazê-lo somos confrontados com uma resistência, que não é poder, mas imprevisibilidade, resistência ética. Insiste-se no caráter vulnerável do Rosto, como sendo a parte do corpo exposta e mais nua. É um desnudamento que permanentemente tentamos mascarar, mas o olhar, esse, permanece quase sempre nu. A nudez é a expressão empregue por Lévinas para designar a “invisibilidade essencial”. Olhar o rosto supõe conversão do olhar e inversão da intencionalidade objetivante, deixando que o outro me ponha em questão. O constrangimento que a proximidade provoca acontece porque, antes de ver, já estou sendo visto, observado e questionado. No contato social imediato com o Rosto, a própria consciência é posta em questão e torna-se quase impossível a pergunta por quem nos interpela: “Aquele a quem a questão é posta já se apresentou, sem ser um conteúdo. Apresentou-se como Rosto”. Nesta medida o rosto tem sentido, não pelas suas relações, mas a partir de si como uma forma de expressão.

Um leitor atento percebe que a comunicação social ocupa um lugar conspícuo dentre os temas na reflexão de Lévinas. O assunto aparece de maneira subliminar em textos que têm como escopo o diálogo e a relação dialógica. Embora em uma entrevista, temática sobre “alteridade e transcendência” (1995) defina sua noção de comunicação social como representando uma “filosofia do diálogo”, equiparando-a com a “filosofia primeira”: o aspecto a ser sublinhado é o relacional do qual o diálogo é parte constituinte, não um meio ou processo para se chegar à alteridade. Mas, nessa aproximação, sua filosofia não parece ser uma filosofia do diálogo. Seus escritos sobre linguagem ou sobre a questão do sentido também não parecem se direcionar para a configuração de uma teoria analítica, ou conceito específico. E não acreditamos haver tentativa de esboçar apenas um conceito de comunicação, menos ainda uma teoria da de recepção da comunicação. Embora a temática da linguagem e do discurso apareçam em seus livros, seria difícil propor mesmo uma “teoria” a respeito desses assuntos que permitisse uma aproximação, mesmo transversal com a comunicação social.

 

O estabelecimento de uma responsabilidade para com o Outro, fundamental no processo social de comunicação, se desdobra como um respeito inicial pelo Outro em sua condição de alteridade, que deve ser mantida e preservada como condição social da comunicação num processo de trabalho e comunicação, seja diante de Deus, a morte e o tempo.  A partir desses dois gestos, a responsabilidade e o respeito, indica-se a resposta à alteridade. O ato de se tornar responsável tem início nessa resposta à interpelação do rosto e a resposta para com o outro, dentro de uma relação de identidade e diferença, que define o aspecto do processo comunicacional envolvido na relação, e mesmo, de sua maneira e de sua existência. É perfeitamente possível trocar informações com uma pessoa sem se comunicar com ela: trata-se, no entanto, na violência da redução do outro, conforme sugere Lévinas (2014), que não se constitui no outro – simplesmente porque não há espaço para a comunicação. Cria-se um “espaço de silêncio”, no qual a alteridade do outro é registrada como simples presença, ou dado, e a comunicação se torna impossível porque indesejada na ausência de responsabilidade para com o outro. Os judeus, disse Léon Poliakov (2000), são franceses que, ao invés de não irem mais à igreja, não vão mais à sinagoga. Na tradução humorística de Hagadah, essa piada designava crenças no passado que deixaram de organizar práticasAs convicções políticas parecem, hoje, seguir o mesmo caminho. Alguém seria socialista por que foi, sem ir às manifestações, sem reunião, sem palavra e contribuição financeira, em suma, sem pagar. Mas reverencial que identificatória, a pertença só se marcaria por aquilo que se chama uma voz. Este resto de palavra, como o voto de quatro em quatro anos. 

Uma técnica bastante simples manteria o teatro de operações desse crédito. Basta que as sondagens abordem outro ponto que não aquilo que liga diretamente os adeptos ao partido, mas aquilo que não os engaja alhures, não a energia das convicções, mas a sua inércia. Os resultados políticos da operação contam então com restos da adesão. Fazem cálculos até mesmo com o desgaste de toda convicção. Pois esses restos, “esses cacos”, como insinua Leonardo Boff, indicam ao mesmo tempo o refluxo daquilo em que os interrogados creram na ausência de uma credibilidade mais forte que os leva para outro lugar. Ora, a capacidade de crer parece estar em recessão em todo o campo político. A tática é a arte do fraco. O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Mas a vontade de “fazer crer”, de que vive a instituição, fornecia nos dois casos um fiador a uma busca de amor e/ou de identidade. Importa então interrogar-se sobre os avatares do crer em nossas sociedades e sobre as práticas originadas a partir desses deslocamentos. Durante séculos, supunha-se que fossem indefinidas as reservas de crença. Aos poucos a crença se poluiu, como o ar e a água. Percebe-se ao mesmo tempo não se saber o que ela é. Tantas polêmicas e reflexões sobre os conteúdos ideológicos em torno do voto e os enquadramentos institucionais para lhe fornecer não foram acompanhadas de uma elucidação acerca da natureza do ato de crer. Os poderes antigos, políticos ou religiosos, geriam habilmente a autoridade. Hoje são os sistemas administrativos, sem autoridade, que dispõem de mais força em seus “aparelhos” e menos de autoridade legislativa.

Bibliografia geral consultada.

LÉVINAS, Emmanuel, El Tiempo y el Otro. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993;  Idem, Alterité et Transcendence. Paris: Editeur Fata Morgana, 1995; Idem, Éthique comme Philosophie Première. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1998; Idem, Difícil Libertad: Ensayos sobre el Judaísmo. Madrid: Caparrós Editores, 2004; Idem, A Violência do Rosto. São Paulo: Editora Loyola, 2014; POLIAKOV, Léon, Do Anti-sionismo ao Anti-semitismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000; KORELC, Martina, O Problema do Ser na Obra de E. Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006; PASSOS, Helder Machado, Relação entre Ética e Política no Pensamento de Emmanuel Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012; MAIDA, Bruno, La Shoah dei bambini. La persecuzione dell’infanzia hebraica in Italia, 1938-1945. Torino: Einaudi Editore, 2013; DIAS, Rosangela dos Santos Figueiredo, Judaísmo, Alteridade e Educação em Emmanuel Lévinas. Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Estadual da Bahia, 2016; CAMPOS, Fabiano Victor de Oliveira, O Ser e o Outro do Ser: A Questão de Deus em Emmanuel Levinas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Instituto de Ciências da Religião. Instituto de Ciências Humanas. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2016; DIEKMANN, Leonardo Envall; MASLOWSKI, Adriano André, “A Influência Judaica no Pensamento Filosófico de Emmanuel Lévinas a partir da Ética da Alteridade como Filosofia Primeira”. In:  Revista Missioneira. Santo Ângelo (RS), vol. 21, n° 1, pp. 106-120, jul./dez. 2019; ALMEIDA, Rosemiro Ferreira de, A Ética da Alteridade de Emmanuel Lévinas: Interfaces do Outro na Experiência do Ensino de Filosofia no Ensino Médio na Escola EREM – Vicente Monteiro – Caruaru - PE. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2020; entre outros.

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