domingo, 13 de setembro de 2020

João Duns Escoto - Filosofia, Escolástica & Qüididade de Gênero.

 

Ubiracy de Souza Braga

      “Se Deus como as coisas existe, então Deus não existe”. João Duns Scotus

É uma prefeitura da Cúria Romana que processa o complexo trâmite que leva à canonização dos santos, em primeiro lugar passando pela declaração das virtudes heroicas, com o reconhecimento do estatuto de venerável e pela beatificação. Depois de elaborado um processo, incluindo a constatação canônica dos milagres, o caso é apresentado ao papa, que decide se deve proceder ou não à beatificação ou canonização. Seu nome anterior era Sagrada Congregação dos Ritos, fundada pelo Papa Sixto V em 22 de janeiro de 1588 com a bula papal Immensa Æterni Dei, que tratava tanto da regulação do culto divino como das causas dos santos. Em 8 de maio de 1969, o Papa Paulo VI emitiu a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congregatio, dividindo a congregação em duas, uma passando a ser a congregação para o culto divino e outra para as causas dos santos. Com as profundas mudanças politico-religiosas no processo de canonização introduzidas pelo Papa João Paulo II, em 1983, o Colégio de Relatores foi criado para preparar as causas dos declarados servos de Deus. Em 18 de fevereiro de 2008 a Santa Sé torna público a instrução Sanctorum Mater para a Causa dos Santos sobre as normas que regulam as causas de beatificação juntamente com o Index ac status causarum. Está sediada no Palazzo delle Congregazioni, na Piazza Pio XII, em Roma. 

quididade é a responsável pelas coisas serem estabelecidas no próprio gênero  ou espécie por elas mesmas, ou seja, a quididade é algo no qual Sócrates está em homem por ser Sócrates. Ela é derivada de algo que é significado pela definição, a saber, a essência. Um beato (do latim beatum), feliz, bem-aventurado é, no direito canônico da Igreja Católica, um homem ou uma mulher cujo processo de beatificação foi concluído; depois, esse processo prosseguirá em direção à canonização se verificarem as condições requeridas para o efeito; em caso afirmativo, o candidato será reconhecido como santo. Quando alguém é beatificado, essa pessoa passa a ser um exemplo das “virtudes cristãs” mais ou menos como um santo, seja por martírio, ou por outros exemplos, e seu culto passa a ser permitido, mas diferentemente dos santos, o culto só é permitido em sua região de origem, ou onde viveu. Os beatos não podem ser representados com o Halo e os mesmos não podem ter igrejas próprias, a não ser em casos que sejam lhes concedidas especialmente e também não podem se tornar padroeiros. A organização social responsável por analisar eticamente as virtudes, obras e milagres de potenciais beatos é a Congregatio de Causis Sanctorum que pertence à Santa Sé.

O beato João Duns Escoto (1265/6-1308) foi um teólogo e filósofo escocês  nascido no Ulster. Viveu durante muitos anos em Paris, em cuja universidade lecionou. Membro da Ordem Franciscana, filósofo e teólogo da tradição escolástica, chamado  Doutor Sutil, foi mentor de outro grande nome da filosofia medieval: Guilherme de Ockham. Foi beatificado em 20 de março de 1993, durante o pontificado do Papa João Paulo II. Ele é um dos três filósofos-teólogos mais importantes da Europa Ocidental na Alta Idade Média, juntamente com Tomás de Aquino e o próprio Guilherme de Ockham, marcada pela redução populacional em comparação com os tempos de Império Romano e a ruralização da Europa. João Duns Escoto é considerado um continuador da tradição franciscana que adotou categorias e formas de pensar de Aristóteles e seus antecessores medievais não-franciscanos. Escoto foi  um pensador que levou adiante a tradição aristotélica de São Tomás de Aquino mas, ao mesmo tempo, corrigiu Santo Tomás diante do que considerava o conteúdo de sentido da verdade. Ambas foram motivadas pela violência, fome e doenças trazidas com as invasões germânicas. No século VIII é que o povoado hic et nunc na Europa Ocidental começou a recuperar-se.


A ruralização decorre das invasões germânicas,  sendo as cidades os locais mais atacados devido sua visibilidade comercial pelos invasores. Além da desorganização do mundo romano, elas desestruturaram o comércio implicando no desabastecimento das cidades. Os habitantes desses lugares praticados começaram a mudar-se para as zonas rurais e estabelecer-se próximos a grandes propriedades. Em consequência o isolamento dessas grandes propriedades foram dando origem aos seus feudos. Com o processo de feudalização societário o comércio enfraqueceu-se, assim como a circulação de moeda, que perdeu importância para a troca. Mesmo enfraquecidos, ambos, comércio e moeda, nunca deixaram de existir e retomaram sua força econômica a partir do século XI. A cultura começou a modificar-se com a mescla de características latinas e germânicas. Um dos grandes exemplos é encontrado na linguagem, pois dois idiomas modernos, como o francês e o português, começaram a surgir nesse processo. Por fim novos reinos começaram a surgir, com organizações sociais e políticas distintas daquelas que já existiam em Roma. Vale lembrar que a economia agrária durante a Alta Idade Média era majoritariamente dependente do trabalho agrícola e da mão de obra servil.            

Essa relação ocorre na medida em que a feudalização da Europa construiu-se entre os séculos V e X. Isso aconteceu porque, com a ruralização, uma massa de pessoas pobres estabeleceram-se perto de grandes propriedades rurais à procura de trabalho, alimento e proteção. Do século X ao XIII, a Europa também sofreu um aumento na temperatura média. Isso possibilitou melhores colheitas, mas também a ampliação das terras cultivadas. O aumento da produtividade permitiu os feudos a terem excedentes agrícolas, que passou a ser comercializado. Esse renascimento do comércio, que se deu primeiramente a partir desse excedente, expandiu o leque de mercadorias disponíveis, obtendo-se mercadorias de luxo oriundas do Oriente. A princípio itinerante, o comércio consolidou-se e as feiras temporárias tornaram-se fixas nos arredores das cidades, reconhecidos como burgos, locais em que se encontravam os burgueses. Isso reforçou o crescimento das cidades, orientando um processo que já estava em curso. As cidades em crescimento possibilitaram o aumento dos ofícios e novas formas de sobrevivência.

A economia agora se diversificava, e os trabalhadores poderiam sobreviver do comércio e do artesanato, se assim preferissem. Na política, a Europa também sofreu grandes mudanças. No final do século XIII, a relação entre feudalismo e vassalagem perdeu sua força, e a Europa presenciou um processo de fortalecimento da posição do rei e o surgimento de um aparato burocrático que deu origem ao Estado Nacional e o controle crescente da burocracia. Esse fortalecimento aconteceu em alguns locais da Europa Ocidental, e os casos mais pragmáticos e simbólicos deram-se na Inglaterra e, principalmente, na França. No caso francês, os reis da Dinastia Capetíngia firmaram-se no poder a partir do século X e combateram os privilégios da nobreza, tomando-lhes as terras. Após o processo de unificação jurídica com a aplicação de uma lei sobre todo o reino, houve a transformação do poder do rei em lei, na esfera política. Biblioteca Duns Scotus na Universidade de Lourdes.


Além disso, as disputas políticas por terras e poder entre os membros da nobreza suscitaram guerras. A maior guerra do século XIV foi a reconhecida Guerra dos Cem Anos, travada durante 1337 e 1453, entre França e Inglaterra. Do entremeio beligerante, veio a peste. Em 1348, iniciou-se na Europa um surto de peste bubônica, trazida da Ásia Central. A Peste Negra, como ficou reconhecida, atuou de maneira pandêmica no continente europeu e poucas regiões prósperas não foram abrangidas e afetadas por ela. Espalhava-se rapidamente e retornava em ciclos que se estendiam por anos. O resultado final disso foi catastrófico, e 1/3 da população europeia sucumbiu a essa doença. Esses combates destruíram colheitas, empobreceram pessoas e espalharam mortes e doenças pela Europa. Eles ainda contribuíram para o enfraquecimento da nobreza, exaurida pelos gastos econômicos. Por fim, veio a peste. Em 1348, iniciou-se na Europa um surto de peste bubônica, trazida da Ásia Central. A Peste Negra, como ficou conhecida, atuou de maneira pandêmica no continente europeu e poucas regiões não foram afetadas. Espalhava-se rapidamente e retornava em ciclos que se estendiam por anos. O resultado foi catastrófico, e 1/3 da população europeia sucumbiu a maligna doença. 

É lugar-comum dizer que o franciscano João Duns Scotus é, entre os grandes pensadores medievais, aquele a respeito do qual ainda menos se conhece. No decorrer do século XX, segundo De Boni (2008), foram descobertos inúmeros documentos a seu respeito. Nesse mesmo período, maior ainda foi o que se desfez daquilo que se supunha saber sobre ele. As tentativas de reconstruir sua vida fundam-se em algumas poucas datas comprovadas, a partir das quais outras são propostas como prováveis. A primeira data documentalmente comprovada a respeito de Scotus é a de sua ordenação sacerdotal, em 17 de março de 1291. Duns Scotus foi ordenado em Northampton, por Olivier Sutton, Bispo de Lincoln, diocese à qual Oxford pertencia. O mesmo bispo havia feito ordenações em 23 de dezembro do ano anterior, em Wycombe. Segundo o costume social de seu tempo, entre as Ordens Mendicantes, os candidatos recebiam o sacerdócio tão logo fosse possível. Se ele se encontrava em Oxford, em dezembro de 1290, e não foi ordenado, deveu-se ao fato crível de que naquela data ele não possuía certamente os 25 anos de idade requeridos pelo direito canônico para a ordenação.

Quanto à relação factível entre teologia e filosofia, Duns Scotus acredita que a filosofia não é capaz de desenhar sobre o que é o homem é conhecido pela revelação da Encarnação do Verbo eterno, evento único e irrepetível que nos é transmitido por textos sagrados. A revelação é que disponível para humanos após pecado original: é dado diretamente por Deus, que nos faz conhecer que o objetivo final para o homem deve ser reconhecido na Encarnação do Verbo eterno, o que aconteceu principalmente por amor, e não como um efeito causado pela queda original do ser humano. O objetivo da pesquisa teológica em si reside na visão direta de Deus e em desfrutar eternamente do sua felicidade. Como tal, a teologia, cujo escopo diz respeito às verdades aceito pela fé, é conhecimento prático, entendido a partir da linha de afetividade e amor, ao invés de especulação e da ontologia, mas sem negar o aspectos especulativos, que permitem que você conheça as verdades que o próprio Deus tem considerado útil para abordar corretamente o caminho da beatitude de felicidade perfeita, consistindo em gozo de Deus. A Teologia tem estatuto científico que difere de cada outra ciência, seja natural ou metafísica, uma vez que deriva seus princípios de revelação e não das ciências físicas e filosóficas. As duas áreas: filosofia e teologia, são, portanto, autônomas embora não sejam desprovidos de relações entre eles: a razão inclui tudo o que é demonstrável, embora tenha fé em tudo isso que não pode ser provado. Consequentemente, os campos da filosofia, aqueles em que a filosofia pode se mover legitimamente, e os da teologia são bastante distintos. A ciência suprema permanece para Duns Scotus - como para Aristóteles - metafísica: suprema porque tem por objeto o que é conhecido antes de qualquer outro coisa, a partir da qual é possível conhecer as outras. Teria a idade necessária entre 23 de dezembro e 17 de março do ano seguinte, o que significa dizer que o seu nascimento se deu entre o final de 1265 e os inícios de 1266. 

O local de nascimento é o pequeno povoado de Duns, na Escócia, próximo à fronteira com a Inglaterra. Os estudos iniciais aconteceram por volta de 1278, quando Scotus tinha cerca de 12 anos, na localidade de Waddington, onde os frades possuíam uma escola. Frei Elias Duns, seu tio que ocupou cargos importantes na província escocesa, foi provavelmente quem afetivamente o encaminhou à vida religiosa. A ida para Oxford, segundo alguns analistas, foi devida aos estudos de filosofia, que teriam sido concluídos por volta de 1283. Estes estudos, bem como os de teologia realizaram-se no Studium generale da Ordem, anexo à universidade. Em 1284, teria realizado o noviciado, e a profissão religiosa em 1285. Outros, acreditam que por volta de 1280 deve ter feito o noviciado. Os estudos de filosofia, em grande parte, se não totalmente, em Oxford, teriam transcorrido entre os anos de 1280/1-1287/88. Surge, nesse momento, nova cisão entre os pesquisadores: para uns, Scotus teria passado cerca de 4 anos em Paris, entre 1291 e 1300. Outros julgam que ele esteve na França, durante o período de leitorado cerca de 3 anos após a conclusão dos estudos de filosofia.

Outros analistas, são da opinião de que ele jamais esteve em Paris, antes de 1301-1302. Contudo, a estada de Scotus em Colônia foi mais curta do que se esperava. Calcula-se que deve ter chegado à cidade por volta de julho/agosto de 1307. E, em 8 de novembro de 1308, veio a falecer, ao que parece repentinamente. Contava 42 anos de idade. Nos conventos franciscanos, e em alguns até hoje, costumava-se anotar o dia da morte de cada frade e, à noite, antes do jantar, lia-se o Necrologium, isto é, o nome e um pequeno histórico dos frades falecidos naquele dia. Tal documento do convento de Colônia, que se conservava no arquivo histórico da casa, veio a perder-se com as leis de secularização e manumissão do século XIX. Em 1619, ele ainda foi compulsado pelo padre Mateus Ferkic, quando da transladação dos restos mortais de Scotus. Dizia o texto: “Reverendo Padre Frei João Duns Scotus, professor de Sagrada Teologia, conhecido como Doutor Sutil, outrora leitor em Colônia, que faleceu no ano de 1308, no dia 8 de novembro”. Uns poucos dados, semelhantes aos dos demais frades falecidos, indicando, cristã e franciscanamente, a igualdade de todos perante Deus. Os seus restos mortais encontram-se na Igreja dos Frades Menores (Minoritenkirche), em Colônia.

   O método analítico de Escoto é profundamente escolástico, medieval. Enuncia a questão que se propõe investigar, depois são discutidos os “prós e os contras” apoiado em citações da autoridade, bíblica, os Padres da Igreja, Agostinho e Anselmo, que importam sobremaneira, e os filósofos, de modo muito particular o Filósofo, bem como os seus comentadores, designadamente o Comentador Averróis; depois seguem-se outros pensadores cujas posições são tidas em linha de conta, e por fim, a “Resposta” em que dá suas próprias opiniões. Escoto não nos deixou uma Summa à maneira de Tomás. Morreu cedo, demasiado cedo para um filósofo. Faltaria um pouco para que a ave de Minerva pudesse levantar o voo da maturidade em que surgisse uma síntese, no sentido hegeliano, se é que para uma mente irrequieta como a de Escoto pudesse fazer sentido tal trabalho, ou que tivesse essa pretensão.

Traço característico de toda a sua especulação, de todo o seu pensamento, mais do que uma doutrina, ou sistema, é a vontade. Por  honestidade e rigor intelectual, detemo-nos num dos seus escritos. Além de ser uma obra suficientemente extensa, a edição crítica, começada há quase sessenta anos, está longe de conhecer o seu termo. Se o Dominicano de Aquino tinha argumentado que a vontade é um “órgão executivo”, necessário para traduzir em atos a clarividência do intelecto, o Franciscano de Duns, sustenta ser o intelecto a providenciar à vontade os bens num serviço subserviente, pois é ela, a vontade, que direciona e confirma o seu procedimento; sem esta confirmação da vontade o intelecto deixaria de funcionar. Chamando desde já Tomás de Aquino à consideração não nos inscrevemos numa linha ultrapassada da contraposição destes dois maiores do pensamento medieval. Tomás de Aquino, segundo Gomes (2009) não é o adversário, ao que parece  de eleição de João Duns, como nem um é aristotélico e o outro agostiniano, um intelectualista e o outro voluntarista. Ainda que o franciscano permaneça, fiel à sua “escola”, agostiniano, aproveita ao máximo o método e o rigor aristotélico na exposição dos pensamentos e doutrinas, na sua visão metafísica do real.

É Henrique de Gand o seu interlocutor de preferência, veremos como isto é verdade com a nossa Quodlibética XVI. A Agostinho, na linha de António de Lisboa, Alexandre de Hales, Grossatesta, Boaventura, Bacon, Olivi, Gonçalo Hispano e outros, como filho espiritual de Francisco de Assis, vai buscar as intuições primeiras. Mas é em Aristóteles que se apoia para o rigor da sua linguagem e a exatidão do seu raciocínio. A presença da herança do bispo de Hipona é demasiado evidente para escapar a um leitor pouco familiarizado com o texto escotista, mas a sua ligação a Aristóteles é talvez maior do que a de S. Tomás. Esta conjugação denota claramente ser Duns Escoto um pensador do seu tempo, atento ao que se vai produzindo, dialogando com os acontecimentos históricos, a que não fica indiferente, pois é clara a sua meticulosa atenção às opiniões em relação às quais se manteve não comprometido, mas cujo exame e interpretação litúrgica constitui o corpo da sua obra, no desejo de dar um sentido rigoroso e razoável na interpretação dos outros, que a seu modo, contribuem também para o progresso no conhecimento da verdade. Situando-se no ponto de viragem entre uma Idade Média e um Renascimento que se avizinha eminente, herdeiro da melhor tradição medieval do século XIII e no XIV, ele antecipa a confiança na razão conhecedora de todas as coisas, ao mesmo tempo que denuncia as suas limitações. Permanece ainda teólogo num tempo em que a Filosofia se afirma como ciência distinta e autônoma, quebrando com os laços de servidão a que a tinham votado face à Teologia. Ainda que esta afirmação careça de  fundamentação - admite - somos da opinião que a sua filosofia, por via do ensino jesuítico, esteve presente em Descartes e por ele na fenomenologia contemporânea.

Iniciaram-se a partir de fins do século XIX as edições críticas de notáveis pensadores medievais. Quando se tratou de elencar, datar e editar-lhes as obras, talvez nenhum deles tenha apresentado tantas dificuldades como Johannes Duns Scotus. Isso se deveu a vários fatores. Por decisão da Ordem, os escritos dos frades falecidos deveriam ser enviados ao convento de origem deles, isto, no caso de Scotus, para Oxford. Os discípulos defrontaram-se, então, com o legado do mestre na forma como fora deixado. Guilherme de Alnwick, seu último socius, foi quem mais se dedicou a recuperar a obra do referido mestre e a editar-lhes os textos. Ora, desde os seus últimos anos em Oxford, a partir de cerca de 1300, Scotus trabalhava na Ordinatio, isto é, no texto do comentário às Sentenças, que pretendia entregar aos livreiros para publicação, mas a obra ficara infelizmente inconclusa. Desses comentários havia igualmente uma primeira redação, feita ainda em Oxford, e utilizada para a aula, e as anotações dos alunos ouvintes, seus auxiliares e alunos propriamente. Sabe-se também – e a edição crítica do primeiro livro da Ordinatio o demonstra – que Scotus possuía uma espécie de fichário, ao qual remetia seguidamente, para que dele o secretário tomasse algum texto. Nada mais natural que  Alnwick ou outros auxiliares tentassem, de algum modo, completar o que faltava na interpretação da Ordinatio, valendo-se de outros textos do autor e também das próprias notas. A posição defendida por ele consiste em demonstrar que Scotus se equivoca ao restringir a extensão do ente, enquanto predicado in quid, melhor dizendo, de todos os indivíduos que entram na extensão de apropriação do conceito.

A tese do “princípio de individuação”, segundo (Alt, 2018), é o desiderato explícito do “tratado da individuação” de João Duns Scotus, o qual compreende o trecho do seu Ordinatio. Este texto particular se insere na interpretação da problemática da individuação como ela é tratada na Metafísica Escolástica e, por si mesmo, exemplifica uma obra de exegese histórica de teorias prévias aliada à análise conceitual. Duas observações introdutórias estão em ordem. Em primeiro lugar, a questão da representação da individuação é um princípio na acepção genuinamente Aristotélica do termo. A saber, nesta aceitação, um princípio (ἀρχή) é um constituinte formal de algo e, em distinção a uma causa (αἴτια), não precisa ser realmente distinto do seu efeito. Trata-se, essencialmente, do fundamento formal para alguma característica possuída pelo seu sujeito. Em segundo lugar, questões respectivas à individuação são um conjunto particular de questões mais gerais que dizem respeito à teoria da identidade, tais como: 1. O que faz algo ser aquilo que é? 2. O que faz algo ser o tipo de coisa que é? 3. O que faz algo ser o mesmo que outros do mesmo tipo? 4. O que faz algo ser diferente de outros do mesmo tipo? 5. O que faz algo ser diferente de outros de tipos diferentes?

Trata-se da formulação de uma posição cuja popularidade será bem expressiva e que reaparecerá em diversas obras do século XIV, por exemplo, na ampla apresentação, no âmbito da teoria da intellectio, do tema da univocidade em Guilherme de Ockham. E como não se salvaram os textos originais de Duns Scotus, mas se multiplicaram às dezenas as cópias, com todo tipo de alterações, tornou-se complicado, mais tarde, separar a obra de Scotus, dos rearranjos e das interpolações feitas por outros. O mito de explicação da ciência que  explica e que domina, tendo por fundamento uma razão que se considera única e universal, começa a sofrer críticas dentro da própria modernidade. De acordo com Scotus, tal é justamente o comportamento da noção conceptual de ente, que por um lado, compartilha com as noções genéricas o fato dela ser um predicado in quid, essencial das noções que lhe são inferiores, mas que por outro lado, transgrida uma proibição a todo gênero, a de não ser predicado por si no primeiro modo. Mais do que  estar contido na ratio de seu sujeito como um componente de sua definição, de nenhuma diferença. Para o pensador escocês, a extensão predicativa da noção de ente abarca e supera analogamente a de qualquer noção genérica. Pois diz respeito não apenas a gêneros inferiores, mas também a representação das diferenças. O que Scotus põe em evidência é, claro: o fato de que a noção de ente se distingue de toda noção genérica devido à sua predicabilidade com respeito a todas as diferenças.   

Devemos nos voltar para o prólogo da Ordinatio, onde Duns Escoto diz que cabe precisamente à metafísica o estudo do ente em comum e, portanto, das paixões do ente (“passionum entis”), pois a uma dada interpretação cabe justamente o estudo das paixões ou propriedades de seu sujeito primeiro. As paixões do ente a que Escoto se refere são aqueles conceitos ou disjunções exclusivas (também, transcendentes) que se convertem com o ente, por exemplo, “todo bom é ente” e “todo ente é bom” ou ainda “todo ente é ato ou potência” e “todo ato ou potência é ente”. Neste ínterim, o Doutor Sutil distingue seis conceitos  que podem ser expressos pela locução “verdade na coisa” (“veritas in re”). Ressalte-se que essa mesma locução expressa os seis casos equivocamente (“aequivoce”). Em outras palavras, ela significa cada um desses seis casos propriamente, e primeiramente, isto é, sem estabelecer qualquer relação de dependência ou anterioridade entre cada um dos seus significados. O problema não está em estabelecer um uso de “verdade na coisa”, mas em enumerar seus significados para ao fim da questão, demonstrar quais deles dizem respeito ao metafísico. Tese: é possível produzir algo sem o inteligir e, ipso facto inteligir algo sem o ter produzido.   

Nesse ponto começa a ficar claro o papel central que Deus possui nessa “verdade na coisa por comparação àquilo que a produziu”. Na explicação desse segundo modo fornecida por Duns Escoto, se afirma que esse segundo modo se encontra no Filho de Deus (isto é, na segunda pessoa da trindade) que é, ele próprio, verdade e “suma similitude do princípio”; esse princípio, aliás, é o próprio Pai, primeira pessoa da trindade una que é Deus. Destarte, a similitude que está em jogo nesse segundo caso é algo como uma similitude por identidade, pois sendo o Filho de Deus consubstancial ao próprio Deus, ele é semelhante a este último ao se pode adequar completamente a ele e, enfim, ao ser o próprio Deus. Analogamente, se o segundo modo de “verdade na coisa por comparação àquilo que a produziu” diz respeito à verdade determinada própria daquilo que se assemelha por adequação ou, por identidade a seu produtor e princípio, o terceiro modo será aquela verdade determinada daquilo que se assemelha não por adequação, mas por imitação (“imitatio”). Esse terceiro modo representa a verdade que a criatura possui em si por comparação ao seu criador, uma vez que analiticamente essa imitação se distancia da forma simples de adequação. De fato, longe de ser uma “suma similitude do princípio” produtor, a imitação é antes uma “assemelhação defeituosa” (“assimilatur; defective tamen”) daquele exemplar donde provém a criatura. Fresco of Virgo Immaculata from St. Isidore’s (Irish) College Rome.


Metodologicamente o problema será compreender de que maneira uma mesma coisa pode ser tomada como verdadeira, ou seja, “por comparação àquele que a interlige”. Assim, a démarche será dada cada vez mais ênfase à consideração da relação entre criaturas, de apropriação mental, isto é, entre coisas criadas e intelectos criados. Além disso, Duns Escoto distingue aqui três modos pelos quais se diz que há “verdade nas coisas”; da mesma maneira, aqui também essa locução significa equivocamente os três modos. E, no entanto, mais uma vez os três casos parecem estar relacionados, embora o próprio Doutor Sutil não seja de maneira alguma explícito sobre uma possível relação entre eles, como vemos na formulação completa desse segundo significado de “verdade na coisa”: ocorrido por comparação ao intelecto, uma coisa é dita verdadeira triplamente. Em primeiro lugar, porque é manifestativa de si (“manifestativa sui”) - quanto a si (“quantum est de se”) - a qualquer intelecto que possa conhecer a manifestação. Em segundo lugar, porque é assemelhativa do intelecto assemelhável (“assimilativa intellectus assimilabilis”), que não é senão um “intelecto criado”. Em terceiro lugar, feita essa manifestação ou assemelhação, a coisa é apropriada no intelecto tal como o conhecido no cognoscente (“sicut cognitum in cognoscente”).

É útil notar que para o Doutor Sutil, uma coisa não é verdadeira desse primeiro modo por se manifestar em ato ao intelecto, mas por poder se manifestar a um intelecto. Uma coisa real é verdadeira não por já ter atualmente se manifestado, mas por ser manifestativa de si (“manifestativa sui”). Essa verdade diz respeito não exatamente a uma relação atual entre uma coisa enquanto objeto de conhecimento e o intelecto, mas à condição e possibilidade que algo possui de se dar a conhecer a um intelecto, isto é, à potência que essa coisa possui de estabelecer uma relação com um intelecto de maneira a que possa ser conhecida por este último. De fato, qualquer coisa real não raro continuaria a ser manifestativa de si, mesmo que não houvesse um intelecto que a pudesse conhecer. E essa é a notícia pela qual uma coisa é dita reconhecida da natureza (“nota naturae”) - não porque a natureza a reconheça, mas porque seria naturalmente apta (“esset nata”) ser conhecida, quanto a si (“quantum est de se”), mais ou menos perfeitamente, por uma manifestação própria, seja ela maior ou menor.

Para compreender como isso ocorre, devemos nos voltar para o “Tratado sobre o primeiro princípio” que é sua prova metafísica da existência de Deus. Ainda no início desse opúsculo, Duns Escoto retorna à noção de “paixão do ente”, que já vimos acima, ao afirmar que uma dessas paixões que acompanham qualquer ente é uma “ordem essencial” (“ordo essentialis”), que não é senão “uma relação de comparação dita do anterior com respeito ao posterior e o contrário, tal que, a saber, o ordenado se divida suficientemente por anterior e posterior”. Em outras palavras, todo ente que, pelo fato mesmo de ser, é posto em uma ordenação que o relaciona aos demais entes, sendo anterior a uns e posterior a outros. Porém, é preciso avançar na distinção, pois há uma “ordem essencial de eminência” (“ordo eminentiae”) e uma “ordem essencial de dependência”. Pela ordem de eminência em que estão implicados todos os entes, é eminente e anterior aquilo que for mais perfeito ou nobre de acordo com sua essência, excedendo aquilo que for menos perfeito ou nobre. Uma hierarquia de perfeição essencial que perpassa tudo o que há, organizando tudo segundo uma maior ou menor perfeição essencial.

Bibliografia geral consultada.                                             

ZAVALLONI, Roberto, Giovanni Duns Scoto - Maestro di Vita e Pensiero. Bologna: Editori Francescane, 1992; AQUINO, Tomás de, O Ente e a Essência. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2005; DE BONI, Luis Alberto, “Sobre a Vida e a Obra de Duns Scotus”. In: Veritas. Porto Alegre, vol. 53, n° 3 jul./set. 2008 pp. 7-31; MEIRINHOS, José Francisco (Coord.), João Duns Escoto (c. 1265 - 1308). Subsídios bibliográficos. 2ª edição. Porto: Tipografia Nunes Ltda, 2008; GILSON, Étienne, Por que São Tomás criticou Santo Agostinho: Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto. São Paulo: Editora Paulus, 2010; COUTO, Antônio Augusto Caldasso, Amor, Desejo e Amizade: Um Estudo sobre a Natureza do Amor na Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Faculdade de Filosofia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012; KOLAKOVSKI, Leszek, Las Preguntas de los Grandes Filósofos. Madrid: Editorial Arcadia, 2013; SILVA, Roberto de Sousa, A Existência de Deus em Duns Scotus. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2014; PAIVA, Gustavo Barreto Vilhena de, “A Intelecção Intuitiva em João Duns Escoto”. In: Seara Filosófica, n° 6, 2013, pp. 43-46; Idem, “Duns Escoto e a Verdade nas Coisas: Um Estudo de Questões sobre a Metafísica VI, Q.3”. In: Kriterion, vol.56 n°131. Belo Horizonte, jan./jun., 2015; FERNANDES, Marco Aurélio, “Heidegger, Scotus e o Indivíduo”. In: Sofia. Vitória (ES), vol. 5, n°2, ago. - dez., 2016, pp. 352-382; ALT, Guido José Rey, “Atos Mentais e Cognição em J. Duns Scotus: Um Estudo de Caso do Quodl XIII”. In: Intuito. Porto Alegre, vol. 10, 2017; Idem, Individuação e Distinções em J. Duns Scotus. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Escola de Humanidades. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2018; entre outros.

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