terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Frei Vicente do Salvador - Encarnação & História do Brasil.

                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga

       “Deus não mora no céu, mas se encarna no ser humano”. Frei Vicente do Salvador

Mapa de Salvador, invadida pelos holandeses em1624.
                          
            Frei, ou Frade, designa um católico consagrado, que pertence à Ordem religiosa franciscana. O termo Frade vem da palavra latina “Frater”, que significa “Irmão”. Frater é membro de uma Congregação ou Ordem Religiosa, que vive uma regra social ou religiosa de vida. Além dos membros da Ordem franciscana, há Congregações em que os membros usam essa palavra latina para se dirigir aos companheiros. Mas, entre nós e perante os outros, os Frades se chamam de “Frei”, uma abreviação de “Frade”.  Um franciscano pode ser clérigo ou leigo. As duas vocações não se excluem. Há religiosos que também se tornam padres e há também Frades (Freis) que não são ordenados padres. Aos Freis não-ordenados chamamos de “Irmãos leigos”. Assim, um religioso, ordenado padre, tem dois títulos: Padre e Frei. Mas, para os Freis franciscanos não existe diferença entre “Freis Padres” e “Freis Leigos”.  Todos são e se chamam de “Frei”. A formação é igual do início ao fim. No entanto, o Frei Padre assume trabalhos pastorais na condição de padre. Um trabalho específico, por exemplo, seria o de “Pároco” em uma paróquia.  Ele terá, então, a missão de ser pastor dessas comunidades reais ou imaginadas. Um Frei Leigo pode ajudar na paróquia, mas nunca a coordenar. O Frei, quando Padre, administra os sacramentos, específicos da vocação sacerdotal. Os Freis Leigos assumem serviços específicos de trabalho pastoral na Província, como Professores, Assistentes sociais.
            As primeiras ordens cristãs compunham-se de homens ou mulheres que se retiravam do mundo para melhor poderem adorar a Deus nos grandes mosteiros que se espalharam por toda a Europa na Idade Média. No entanto, o crescimento das cidades e das pobres comunidades de pessoas que nelas viviam, sem contato com o catolicismo, trouxeram a necessidade de um novo tipo de ordem religiosa. Este novo tipo não deveria estar tão enclausurado como o estilo de vida monástica dos monges e deveria estar mais inserido junto aos novos grandes centros urbanos. Por estas razões, no século XIII, surgem os franciscanos (os menoritas), criados por São Francisco de Assis, em 1210. Em seis anos São Domingos fundou a Ordem dos Pregadores, também reconhecida por Ordem de São Domingos, ou Ordem Dominicana,  uma ordem religiosa católica com objetivo da pregação da palavra e mensagem de Jesus Cristo e a conversão ao cristianismo. Fundada em Toulouse, França, em 22 de dezembro de 1216 por São Domingos de Gusmão, um sacerdote castelhano, sendo originário de Caleruega, e confirmada pelo Papa Honório III (1148-1227). Os dominicanos do ponto de vista abstrato, não são monges, mas frades. Professam o voto de obediência a Deus, à Bem-Aventurada Virgem Maria, a São Domingos, ao Mestre Geral e às leis dos irmãos pregadores onde estão incluídas a pobreza e castidade. Vivem em comunidade, conventos implantados tradicionalmente nas redondezas das cidades. Para além dos frades-padres, existem os frades cooperadores, que embora não sendo ordenados, comungam integralmente da missão da ordem. O trabalho de pregação da palavra, o estudo, a oração e a forma comunitária são elementos fundamentais nesta Ordem religiosa, que é contemplativa e apostólica. Os membros destas ordens realizavam, para além dos tradicionais votos de castidade e obediência, o voto de pobreza, renunciando à posse de bens. Daí serem reconhecidos, socialmente, por “mendicantes”, pois que apenas conseguiam subsistir “por intermédio de esmolas e dádivas dos fiéis”.



Vale lembrar que, historicamente, a primeira referência à Lusitânia foi feita nas Histórias de Políbio. O historiador e geógrafo grego Estrabão (63 a.C. - 24 d.C.) descreveu a Lusitânia pré-romana, numa primeira análise, desde o Tejo à costa cantábrica, tendo a Ocidente o Atlântico e a Oriente as terras de tribos célticas. A Lusitânia pré-romana é referido como o período até 29 a.C. quando foi criada por Augusto a província Lusitânia, o limite ao norte passou a ser o rio Douro e ao sul ultrapassou o Tejo, anexando a Estremadura espanhola, Alentejo e Algarve; e a oriente ocupou parte das terras dos célticos. Supõe-se que o Périplo de um navegador massaliota, efetuado por volta de 520 a.C., que descreve a sua viagem marítima ao longo das costas da Península, tenha sido aproveitado por Avieno, escritor do século IV, para compor a Ode Marítima. No seu poema, Avieno refere-se aos Lucis, que seria considerada, por alguns autores, a mais antiga menção aos Lusitanos neste território. Além deles foram referidos os Estrímnios, os Draganos, e a sul, na atual região do Algarve, os Cinetes ou Cónios.  O Périplo massaliota (Massalia, a atual Marselha, era uma colônia grega), era um manual para os comerciantes, atualmente perdido, que possivelmente datasse dos começos do século VI a.C. e no qual eram descritas as rotas marítimas usadas pelos comerciantes de Fenícia e Tartessos, nas suas viagens ao redor da Europa na Idade do Ferro, ao longo da “rota do estanho”. Foi preservado por Avieno na obra Ora Maritima, escrevendo algumas partes mais tarde, durante o século IV.

Continha uma narração de viagem por mar desde Massília (Marselha) ao mar Mediterrâneo ocidental. Descreve as rotas marítimas desde Cádis (na atual Espanha) para os norte ao longo da costa da Europa atlântica de Bretanha, Irlanda e Grã-Bretanha. Muitos dos povos antigos que entraram na Península Ibérica deixaram no território da Lusitânia vestígios etnográficos bem marcados dos contatos comerciais e de influência cultural. Ficariam perfeitamente acentuados e reveladores de uma assimilação mais profunda os vestígios da ocupação romana, a que se seguiriam as ocupações dos visigodos e dos árabes. Alguns historiadores antigos referem-se ao ouro da Lusitânia, riqueza que como a prata é testemunhada pela frequência dos achados em Portugal, de numerosas joias típicas fabricadas com esses metais: colares, braceletes, pulseiras, arrecadas etc. O cobre, em abundância, extraía-se das minas do Sul. O chumbo encontrava-se, segundo Plínio, o Velho, na cidade lusitana de Medúbriga Plumbária, que da abundância local daquele minério teria recebido o nome. Os lusitanos, normalmente considerados antepassados dos portugueses do centro e sul do país e dos estremenhos, foram um povo celtibérico que viveu na parte ocidental da Península Ibérica. Inicialmente, uma única tribo que vivia entre os rios Douro e Tejo ou Tejo e Guadiana. Ao norte do Douro limitavam com os galaicos e ástures - a maior parte dos habitantes do norte de Portugal, depois integrados na província romana de Galécia, a sul com os Béticos e a oeste com os celtiberos na área mais central da Hispânia Tarraconense. A figura mais notável entre os lusitanos foi Viriato, o mais destacado dos seus líderes no combate aos romanos.

Se o rigor destas disposições foi observado no início da fundação destas ordens religiosas, o seu sucesso inicial, com a adesão de milhares de jovens em grande parte da Europa, o crescente peso institucional e poder político, rapidamente levaram as autoridades eclesiásticas a “aliviar” tal rigor e austeridade, permitindo que os conventos pudessem de alguma forma subsistir sem ser apenas “por obra e graça da caridade alheia”. Tanto é que, coincidindo com o período gótico, os conventos franciscanos e dominicanos, destacaram-se pela magnificência das respectivas obras de arte e arquitetura, cujo melhor exemplo em Portugal é o dominicano Mosteiro de Santa Maria da Vitória, reconhecido como Mosteiro da Batalha é situado na vila de Batalha, na região do Centro, província da Beira Litoral, em Portugal, que foi mandado edificar em 1386 pelo rei D. João I de Portugal (1357-1433),  reconhecido como o Mestre de Avis e apelidado o de Boa Memória, foi o rei de Portugal e dos Algarves de 1385 até sua morte, sendo o primeiro monaca português da Casa de Avis e o décimo rei de Portugal. Ipso factocomo agradecimento à imagem de Virgem Maria pela vitória contra os rivais castelhanos na Batalha de Aljubarrota. Este mosteiro da Ordem de São Domingos foi construído ao longo de dois séculos até cerca de 1563, durante o reinado de sete reis de Portugal, embora desde 1388 já ali vivessem os primeiros frades dominicanos. Importantes ordens são a dos carmelitas, que surgiram no Monte Carmelo para a Europa em meados do século XIII, e a dos eremitas, que surgiram no século XII. 
Frei Vicente do Salvador foi um franciscano (cf. Iglesias, 2010), nascido com o nome Vicente Rodrigues Palha, em Salvador (1564), filho de João Rodrigo Palha e Messia de Lemos. Sua formação ocorreu no colégio dos jesuítas, em Salvador. E posteriormente em Direito e Teologia na Universidade de Coimbra, onde se doutorou em cânones. Presbítero secular foi cônego da catedral e vigário geral do bispado da Bahia. Ingressou na ordem franciscana, tendo recebido o hábito a 27 de janeiro de 1599 e professando a 30 de janeiro de 1600, no convento de Salvador. Por volta de 1607 fundou o convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, eleito guardião deste convento em 1612. Foi eleito custódio da Província de Santo Antônio do Brasil, no capítulo celebrado em Lisboa a 15 de fevereiro de 1614. Exerceu diversos cargos em sua ordem. Foi colecionador de obras de arte. Sobre sua obra, escreveu o antropólogo, político e escritor Darcy Ribeiro, em seu livro: O Povo Brasileiro: - “O melhor testemunho daqueles tempos se deve a frei Vicente do Salvador, natural da Bahia. Foi o primeiro intelectual assumido como inteligência do povo nascente, capaz de olhar nosso mundo e os mundos dos outros com olhos nossos, solidário com nossa gente, sem dúvidas sobre nossa identidade, e até com a ponta de orgulho que corresponde a uma consciência crítica” (cf. Ribeiro, 1995: 136 e ss.).     
         O melhor testemunho daqueles tempos, afirma Ribeiro, se deve a frei Vicente de Salvador, natural da Bahia. Foi o primeiro intelectual assumido como inteligência do povo nascente, capaz de olhar nosso mundo e os mundos dos outros com nossos olhos, solidário com nossa gente, sem dúvidas sobre nossa identidade, e até com a ponta de orgulho que corresponde a uma consciência crítica. Os quase todos os escribas depois, até hoje em dia, faltam essas qualidades de amor a terra, que fez de nós um povo “descabeçado” por falta de intelectualidade própria, ativista, que iluminaria a visão de nosso povo entre os povos diante de nosso destino.  Em 1627, deu concluída a sua História do Brasil dizendo: - “Sou de 63 anos e já é tempo de tratar só de minha vida e não das alheias”. Vive dez anos mais de esperança de ver sua obra publicada, o que só sucederia em 1888, numa primeira edição parcial de Capistrano de Abreu, de excelente qualidade. Nisso Portugal jamais falhou. Calava todas as vozes que falassem do Brasil, principalmente as louvandeiras. O frei Vicente do Salvador devia ser homem de boa comicidade, pelo menos escrevia com muito bom humor. Conta que seu pai foi salvo de um naufrágio quando vinha para o Brasil fugindo da madrasta. A respeito do governador Mem de Sá (1498-1572), “matador e fustigador de índios”, revela-se que ele “morreu gozoso” de suas vitórias.   

    O símbolo não sendo já de natureza linguística deixa de se desenvolver numa só dimensão. As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades. Se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, de fato, as classificações mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da imaginação individual em geral literária. 
            Tanto podem escolher como norma classificativa uma ordem de motivação  cosmológica e astral, na qual são as grandes sequências das estações, dos meteoros e dos astros que servem de indutores à fabulação, tanto são os elementos de uma física primitiva e sumária que, pelas suas qualidades sensoriais, polarizam os campos de força no continuum homogêneo do imaginário; tanto, enfim, se suspeita que são os dados sociológicos do microgrupo ou de grupos que se estendem aos confins do grupo linguístico que fornecem quadros primordiais para os símbolos. Quer a imaginação estreitamente motivada seja pela língua, seja pelas funções sociais, se modele sobre essas matrizes sociológicas e antropológicas, quer pelos seus genes raciais intervenham bastante misteriosamente para estruturar os conjuntos simbólicos, distribuindo seja as mentalidades imaginárias, sejam os rituais religiosos, querem ainda, com uma matriz evolucionista, se tente estabelecer uma hierarquia das grandes formas simbólicas e restaurar a unidade no dualismo de Henri Bergson das Deux Sources, quer enfim que atravessando a técnica da psicanálise se tente encontrar uma síntese entre as pulsões de uma libido em evolução e as pressões recalcadoras do microgrupo familiar. São estas diferentes classificações das motivações simbólicas que precisamos criticar antes de estabelecer um método de análise pretensamente firme na ordem das motivações.              
            Desde que o laureado historiador cearense Capistrano de Abreu publicou pela primeira vez o livro no Brasil, nos Anais da Biblioteca Nacional de 1888, prevalece a ideia de que o livro representa um símbolo e testemunha o nascente nativismo brasileiro diante do colonizador português. Representa a primeira obra no gênero, escrita por um brasileiro - o quarto capítulo mostra como ela foi casualmente encontrada por um livreiro que a doou à Biblioteca Nacional, suas edições, as fontes utilizadas pelo Frei, seu estilo “com aspecto de poema histórico em prosa”. Os capítulos seguintes, do quinto ao décimo descreve uma análise dessa obra ultimada em 1627, uma abstração do “todo  complexo permitindo a avaliação da multiplicidade de aspectos estruturais”. Nas palavras do próprio Capistrano, “o Brasil significa para ele (frei Vicente do Salvador) mais do que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta ideia, como o século XVIII é a maturação”. O tom religioso determina os rumos de personagens e dos acontecimentos da História, sobrando pouco espaço para o livre-arbítrio. A vontade divina implicava, na invasão holandesa a Salvador em 1624, no episódio onde o próprio franciscano foi preso. Segundo ele, o revés foi uma punição de Deus aos desentendimentos entre o bispo Marcos Teixeira e o governador Diogo Mendonça Furtado, “pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o reino onde houvesse guerra entre os naturais e moradores seria assolado e destruído”. Em outra passagem, um indígena chamado Guaraci, morre ao tentar mostrar o caminho das pedras preciosas para um português ao longo das margens do Rio São Francisco, “ficando de todo as minas obscuras até que Deus, verdadeiro sol, queira manifestá-las”.
            De Duarte Coelho, fundador de Pernambuco, único donatário eficiente, conta que, voltando à metrópole, “lá morreu, desgostoso por haver El-rei recebido com remoques e pouca graça”. Acresce, ainda, à crônica colonial, a notícia de que o poderoso Tomé de Souza, que esperou anos, impaciente, a licença para voltar ao reino, ao recebê-la, teria dito: - “Verdade, é que eu desejava muito e me crescia a água na boca quando cuidava de ir pera Portugal. Mas não sei que é que agora me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso”. Mas frei Vicente também faz justiça. Por exemplo: de Albuquerque, além de louvar a valentia sem paralelo, acresce que foi “sempre muito limpo de mãos”, coisa rara, louvável até hoje, entre nós. Seu juízo sobre os colonos não é lisonjeiro. Para o frei, os portugueses “não sabem povoar nem aproveitar as terras que conquistaram”. E são muito ingratos “porque os serviços no Brasil raramente se pagam”. Em certos passos, nosso frei chega a queixar-se. É o que faz, por exemplo, reclamando o descaso do rei por nós. Tamanho, que preferiu ser senhor da Guiné que do Brasil. Dos povoadores, ele nos dias ainda que, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como aos papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: ´papagaio real pera Portugal`, porque tudo querem  para lá; uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”.

            No prolongamento dos esquemas explicativos, arquétipos e simples símbolos modernos pode-se considerar o mito. Lembramos, todavia, que não estamos tomando este termo na concepção restrita que lhe dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual. Entendemos por mito, “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se na narrativa”. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a ideia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem observou Bréhier, a narrativa histórica e lendária. O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito. Enfim, para sermos breves, este isomorfismo dos esquemas, arquétipos e símbolos no âmbito dos sistemas míticos ou de constelações estáticas pode levar-nos a verificar a existência de protocolos normativos das representações imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados em torno dos esquemas originais e que antropologicamente a literatura refere-se como estruturas.
Sua história é em grande parte uma “crônica testemunhal”. Além de viver meio século com olhos de ver tudo o que sucedia ao seu redor, ouviu numerosos velhos que podiam contar de experiência própria o que sucedeu em eras anteriores. A crônica guarda uma relação especial com o retrato de seu tempo, fato evidente que se manifesta na própria etimologia do termo. Mesmo antes de se consolidar modernamente no meio de comunicação jornal impresso, teve o seu significado vinculado ao registro de fatos reais circundantes. Podemos dizer que a crônica é passível de ser conceitualmente pensada em seu caráter empírico documental, enquanto instrumento de investigação histórica. Ainda que sucinto, nosso frei abstrai as resinas milagrosas, dos bálsamos medicinais, dos óleos cheirosos. Encanta-se com o conhecimento do fruto de árvores possantes, como a massaranduba, mais ainda com o jenipapo, cujo suco, tão aguado, tingia os índios de negro por semanas. Os feijões são incomparavelmente melhores que os do Reino. Até da sensitiva dá notícia, com sua capacidade de encolher-se ao menor toque. No capítulo dos mantimentos, gaba, principalmente, a mandioca e o aipim. Falando dos bichos, nos apresenta os porcos do mato, capivaras, antas, tamanduás comedores de formigas, onças capazes de derrubar e comer touros, raposas, as variedades de macacos, e fala até de cobras. Relata inclusive o mau hábito de uma delas. É o caso de uma dona Pernambuco “que estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em os peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e, depois que conheceu o engano, o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e a matou”.
            A obra do frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1918), dividida em cinco livros, narra o modus vivendi apreendido na vida da Colônia, narrando etnograficamente os episódios reconhecidos dos primeiros governadores, com anedotas, expressando as características de falarviver nas terras colonizadas e inseridas no [largo] processo civilizatório. As fontes em que bebeu, até onde foi possível rastreá-las, podem distribuir-se em: obras gerais, que no Brasil lidam acidentalmente, como as de João de Barros, Diogo do Couto, Pedro de Mariz, Sachino, Herrera; obras particulares sobre o Brasil, impressas umas como a historia da nau Santo Antônio, a Historia de Gandavo, a biografia de Anchieta; inéditas outras como o Sumário das Armadas, relações, diários, roteiros, cuja presença o exame atento revela, mesmo quando não restam outros vestígios [documentais] de sua existência; comunicações particulares, tradições colhidas nos diversos lugares praticados que percorreu; documentos semioficiais, justificações, atestados de serviços, inquirições de testemunhas. Documentos oficiais, salvo um tratado de tréguas e outro de paz, não conheceu; a publicidade desafinava dos atos do governo, e com isso não perdemos, porque lhes substitui com vantagem o tom popular, quase folclórico. Ás fontes etnográficas com as quais lidava atinha-se com uma fidelidade que descambava para o servilismo: os indígenas variam de designação com os documentos originais consultados: gentios, índios, negros, brasis, selvagens poucas vezes, bárbaros poucas vezes, rústico uma. 

        Sua descrição dos índios é sumária, mas chega a notar que “nem têm rei que lha dê e a quem obedeçam, senão é um capitão, mais para a guerra que pera paz”. Comenta, também, a saudação lacrimosa com que os índios Tupi recebiam visitantes queridos, inclusive os portugueses que falavam sua língua. Os recebiam chorando muito e lamentando. Malicioso, o frei se consente até em falar mal de Anchieta, relatando um episódio vexatório no justiçamento de um calvinista francês. Ele nos diz: - “Vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício, e que se detinha em dar a morte ao réu e com isso o angustiava e punha em perigo de renegar a verdade que já tinha confessada, repreendeu o algoz e o industriou para que fizesse com presteza o ofício”. E acrescenta judicioso: - “Casos como este são mais pera admirar quer pera imitar”. Nosso frei, afirma Ribeiro, antecipou de séculos um sentimento de brasilidade que só iria amadurecer expressamente com os companheiros de Tiradentes, que falam de brasileiros como designação política do povo que eles queriam alçar. Também o movimento nativista, identificado como indianismo, foi uma assunção da qualidade de nativos não portugueses que se achavam muito melhores que os lusitanos. Muito se fala de identidade que pouco acrescenta ao fato concreto e visível: é o surgimento do brasileiro, construído por si mesmo, já plenamente ciente de que era uma gente única, se não hostil pelo menos desconfiada de todas as outras.
Bibliografia geral consultada.

RIBEIRO, Darcy, O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio. In: Revista Mana. Rio de Janeiro, vol. 2, n° 2, pp. 115-144, 1996; PEREIRA, Daniel Mesquita, Descobrimentos de Capistrano. A História do Brasil “a grandes traços e largas malhas”.  Tese Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002; OLIVEIRA, Milena Fernandes de, Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador - Construção de uma ´Arqueologia` da Consciência da Diferença entre Colonos e Reinóis em Documentos Luso-Brasileiros dos Séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestrado em História Econômica. Instituto de Economia. Campinas: Universidade de Campinas, 2003; GÂNDAVO, Pero de Magalhães de, A Primeira História do Brasil: História da Província Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004;  OLIVEIRA, Maria Lêda, A Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador. História e Política no Império Português do Século XVII. Rio de Janeiro: Editor Versal; São Paulo: Editora Odebrecht, 2008; GURGEL, Cristina Brandt Freidrich Martin, Índios, Jesuitas e Bandeirantes. Medicinas e Doenças no Brasil dos Séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado em Medicina. Faculdade de Ciências Médicas. Campinas: Universidade de Campinas, 2009; IGLESIAS, Tania Conceição, A Experiência Educativa da Ordem Franciscana, Aplicação na América e sua Influência na América Colonial. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2010; SANTOS, Pedro Afonso Cristóvão dos, “Um Distinto Bibliógrafo e Bibliófilo: Capistrano de Abreu Editor de Documentos Históricos”. In: História. Vol.29 n° 1. Franca, 2010; ABRAM, David, Um Mundo Além do Humano. In: Espaço Ameríndio. Porto Alegre (RS), n° 2, vol. 7, pp. 64-95, 2013; SOUZA, Mariana Silveira Leonardo de, Espacializando a Historia do Brazil, de frei Vicente do Salvador. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Brasília: Universidade de Brasília, 2016; OLIVEIRA, Maria Lêda, “A corte em Salvador, um papa baiano e o Novo Mundo como geografia de regeneração (séculos XVII-XVIII)”. In: Cultura – Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 36, 2017; pp. 123-155; entre outros.

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