Frei Vicente do Salvador - Aldeamento, Encarnação & História do Brasil.
Ubiracy de Souza Braga
“Deus não mora no céu, mas se encarna no ser
humano”. Frei Vicente do Salvador
Mapa de Salvador, invadida pelos holandeses em1624.
Frei, ou Frade, designa um católico
consagrado, que pertence à Ordem religiosa franciscana. O termo Frade vem da
palavra latina “Frater”, que significa “Irmão”. Frater é membro de uma Congregação ou Ordem Religiosa, que vive uma
regra social ou religiosa de vida. Além dos membros da Ordem franciscana, há Congregações em que os
membros usam essa palavra latina para se dirigir aos companheiros. Mas, entre
nós e perante os outros, os Frades se chamam de “Frei”, uma abreviação de “Frade”. Um franciscano pode ser clérigo ou leigo. As
duas vocações não se excluem. Há religiosos que também se tornam padres e há
também Frades (Freis) que não são ordenados padres. Aos Freis não-ordenados
chamamos de “Irmãos leigos”. Assim, um religioso, ordenado padre, tem dois
títulos: Padre e Frei. Mas, para os Freis franciscanos não existe diferença
entre “Freis Padres” e “Freis Leigos”.
Todos são e se chamam de “Frei”. A formação
é igual do início ao fim. No entanto, o Frei Padre assume trabalhos pastorais
na condição de padre. Um trabalho específico, por exemplo, seria o de “Pároco”
em uma paróquia. Ele terá, então, a
missão de ser pastor dessas comunidades reais ou imaginadas. Um Frei Leigo pode ajudar na paróquia,
mas nunca a coordenar. O Frei, quando Padre, administra os sacramentos,
específicos da vocação
sacerdotal. Os Freis Leigos assumem serviços específicos de trabalho pastoral na Província, como
Professores, Assistentes sociais.
As
primeiras ordens cristãs compunham-se de homens ou mulheres que se retiravam do
mundo para melhor poderem adorar a Deus nos grandes mosteiros que se espalharam
por toda a Europa na Idade Média. No entanto, o crescimento das cidades e das
pobres comunidades de pessoas que nelas viviam, sem contato com o catolicismo,
trouxeram a necessidade de um novo tipo de ordem religiosa. Este novo tipo não
deveria estar tão enclausurado como o estilo de vida monástica dos monges e
deveria estar mais inserido junto aos novos grandes centros urbanos. Por estas
razões, no século XIII, surgem os franciscanos (os menoritas), criados por São
Francisco de Assis, em 1210. Em seis anos São Domingos fundou a Ordem dos
Pregadores, também reconhecida por Ordem de São Domingos, ou Ordem
Dominicana, uma ordem religiosa
católica com objetivo da pregação da palavra e mensagem de Jesus Cristo e a conversão
ao cristianismo. Fundada em Toulouse, França, em 22 de dezembro de 1216 por São
Domingos de Gusmão, um sacerdote castelhano, sendo originário de Caleruega, e
confirmada pelo Papa Honório III (1148-1227). Os dominicanos do ponto de vista
abstrato, não são monges, mas frades. Professam o voto de obediência a Deus, à
Bem-Aventurada Virgem Maria, a São Domingos, ao Mestre Geral e às leis dos
irmãos pregadores onde estão incluídas a pobreza e castidade. Vivem em
comunidade, conventos implantados tradicionalmente nas redondezas das cidades.
Para além dos frades-padres, existem os frades cooperadores,
que embora não sendo ordenados, comungam integralmente da missão da ordem. O
trabalho de pregação da palavra, o estudo, a oração e a forma comunitária são
elementos fundamentais nesta Ordem religiosa, que é contemplativa e apostólica.
Os membros destas ordens realizavam, para além dos tradicionais votos de
castidade e obediência, o voto de pobreza, renunciando à posse de bens. Daí
serem reconhecidos, socialmente, por “mendicantes”, pois que apenas conseguiam
subsistir “por intermédio de esmolas e dádivas dos fiéis”.
Vale lembrar que, historicamente, a primeira referência à Lusitânia foi feita nas Histórias de Políbio. O
historiador e geógrafo grego Estrabão (63 a.C. - 24 d.C.) descreveu a Lusitânia
pré-romana, numa primeira análise, desde o Tejo à costa cantábrica, tendo a
Ocidente o Atlântico e a Oriente as terras de tribos célticas. A Lusitânia
pré-romana é referido como o período até 29 a.C. quando foi criada por Augusto
a província Lusitânia, o limite ao norte passou a ser o rio Douro e ao sul
ultrapassou o Tejo, anexando a Estremadura espanhola, Alentejo e Algarve; e a
oriente ocupou parte das terras dos célticos. Supõe-se que o Périplo de um
navegador massaliota, efetuado por volta de 520 a.C., que descreve a sua viagem
marítima ao longo das costas da Península, tenha sido aproveitado por Avieno,
escritor do século IV, para compor a Ode Marítima. No seu poema, Avieno
refere-se aos Lucis, que seria considerada, por alguns autores, a mais antiga
menção aos Lusitanos neste território. Além deles foram referidos os
Estrímnios, os Draganos, e a sul, na atual região do Algarve, os Cinetes ou
Cónios. O Périplo massaliota (Massalia,
a atual Marselha, era uma colônia grega), era um manual para os comerciantes,
atualmente perdido, que possivelmente datasse dos começos do século VI a.C. e
no qual eram descritas as rotas marítimas usadas pelos comerciantes de Fenícia
e Tartessos, nas suas viagens ao redor da Europa na Idade do Ferro, ao longo da
“rota do estanho”. Foi preservado por Avieno na obra Ora Maritima, escrevendo algumas partes mais tarde, durante o século IV.
Continha
uma narração de viagem “por mar” desde Massília (Marselha) ao mar
Mediterrâneo ocidental. Descreve as rotas marítimas desde Cádis (na atual Espanha)
para os norte ao longo da costa da Europa atlântica de Bretanha, Irlanda e
Grã-Bretanha. Muitos dos povos antigos que entraram na Península Ibérica
deixaram no território da Lusitânia vestígios etnográficos bem marcados dos
contatos comerciais e de influência cultural. Ficariam perfeitamente acentuados
e reveladores de uma assimilação mais profunda os vestígios da ocupação
romana, a que se seguiriam as ocupações dos visigodos e dos árabes. Alguns
historiadores antigos referem-se ao ouro da Lusitânia, riqueza que como a prata
é testemunhada pela frequência dos achados em Portugal, de numerosas joias
típicas fabricadas com esses metais: colares, braceletes, pulseiras, arrecadas
etc. O cobre, em abundância, extraía-se das minas do Sul. O chumbo
encontrava-se, segundo Plínio, o Velho, na cidade lusitana de Medúbriga
Plumbária, que da abundância local daquele minério teria recebido o nome. Os
lusitanos, normalmente considerados antepassados dos portugueses do centro e
sul do país e dos estremenhos, foram um povo celtibérico que viveu na
parte ocidental da Península Ibérica. Inicialmente, uma única tribo que vivia
entre os rios Douro e Tejo ou Tejo e Guadiana. Ao norte do Douro limitavam com
os galaicos e ástures - a maior parte dos habitantes do norte de
Portugal, depois integrados na província romana de Galécia, a sul com os
Béticos e a oeste com os celtiberos na área mais central da Hispânia
Tarraconense. A figura mais notável entre os lusitanos foi Viriato, o mais
destacado dos seus líderes no combate aos romanos.
Se
o rigor destas disposições foi observado no início da fundação destas ordens
religiosas, o seu sucesso inicial, com a adesão de milhares de jovens em grande
parte da Europa, o crescente peso institucional e poder político, rapidamente
levaram as autoridades eclesiásticas a “aliviar” tal rigor e austeridade,
permitindo que os conventos pudessem de alguma forma subsistir sem ser apenas “por
obra e graça da caridade alheia”. Tanto é que, coincidindo com o período
gótico, os conventos franciscanos e dominicanos, destacaram-se pela
magnificência das respectivas obras de arte e arquitetura, cujo melhor exemplo
em Portugal é o dominicano Mosteiro de Santa Maria da Vitória, reconhecido como Mosteiro da Batalha é situado na vila de Batalha, na região do Centro, província da Beira Litoral, em Portugal, que foi mandado edificar em 1386 pelo rei D. João I de Portugal (1357-1433), reconhecido como o Mestre de Avis e apelidado o de Boa Memória, foi o rei de Portugal e dos Algarves de 1385 até sua morte, sendo o primeiro monaca português da Casa de Avis e o décimo rei de Portugal. Ipso facto, como agradecimento à imagem de Virgem Maria pela vitória contra os rivais castelhanos na Batalha de Aljubarrota. Este mosteiro da Ordem de São Domingos foi construído ao longo de dois séculos até cerca de 1563, durante o reinado de sete reis de Portugal, embora desde 1388 já ali vivessem os primeiros frades dominicanos. Importantes ordens são a dos carmelitas, que surgiram no Monte Carmelo para a Europa em meados do século XIII, e a dos eremitas, que surgiram no século XII.
Frei
Vicente do Salvador foi um franciscano (cf. Iglesias, 2010), nascido com o nome Vicente
Rodrigues Palha, em Salvador (1564), filho de João Rodrigo Palha e Messia de
Lemos. Sua formação ocorreu no colégio dos jesuítas, em Salvador. E
posteriormente em Direito e Teologia na Universidade de Coimbra, onde se
doutorou em cânones. Presbítero secular foi cônego da catedral e vigário geral
do bispado da Bahia. Ingressou na ordem franciscana, tendo recebido o hábito a
27 de janeiro de 1599 e professando a 30 de janeiro de 1600, no convento de
Salvador. Por volta de 1607 fundou o convento de Santo Antônio do Rio de
Janeiro, eleito guardião deste convento em 1612. Foi eleito custódio da
Província de Santo Antônio do Brasil, no capítulo celebrado em Lisboa a 15 de
fevereiro de 1614. Exerceu diversos cargos em sua ordem. Foi colecionador de
obras de arte. Sobre sua obra, escreveu o antropólogo, político e escritor Darcy Ribeiro, em seu livro: O Povo
Brasileiro: - “O melhor testemunho daqueles tempos se deve a frei Vicente
do Salvador, natural da Bahia. Foi o primeiro intelectual assumido como
inteligência do povo nascente, capaz de olhar nosso mundo e os mundos dos
outros com olhos nossos, solidário com nossa gente, sem dúvidas sobre nossa
identidade, e até com a ponta de orgulho que corresponde a uma consciência crítica”
(cf. Ribeiro, 1995: 136 e ss.).
O melhor testemunho daqueles tempos,
afirma Ribeiro, se deve a frei Vicente de Salvador, natural da Bahia. Foi o
primeiro intelectual assumido como inteligência do povo nascente, capaz de
olhar nosso mundo e os mundos dos outros com nossos olhos, solidário com nossa
gente, sem dúvidas sobre nossa identidade, e até com a ponta de orgulho que
corresponde a uma consciência crítica. Os quase todos os escribas depois, até
hoje em dia, faltam essas qualidades de amor a terra, que fez de nós um povo “descabeçado”
por falta de intelectualidade própria, ativista, que iluminaria a visão de
nosso povo entre os povos diante de nosso destino. Em 1627, deu concluída a sua História do Brasil dizendo: - “Sou de 63
anos e já é tempo de tratar só de minha vida e não das alheias”. Vive dez anos
mais de esperança de ver sua obra publicada, o que só sucederia em 1888, numa
primeira edição parcial de Capistrano de Abreu, de excelente qualidade. Nisso Portugal
jamais falhou. Calava todas as vozes que falassem do Brasil, principalmente as
louvandeiras. O frei Vicente do Salvador devia ser homem de boa comicidade, pelo menos escrevia com
muito bom humor. Conta que seu pai foi salvo de um naufrágio quando vinha para
o Brasil fugindo da madrasta. A respeito do governador Mem de Sá (1498-1572), “matador e
fustigador de índios”, revela-se que ele “morreu gozoso” de suas vitórias.
O símbolo não sendo já de natureza linguística deixa de se
desenvolver numa só dimensão. As motivações que ordenam os símbolos não apenas
já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação
linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o
estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da
imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo
próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades.
Se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios,
como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas
antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das
motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas
para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um
pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de
atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de
pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, de fato, as classificações
mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da
imaginação individual em geral literária.
Tanto podem escolher como norma
classificativa uma ordem de motivação cosmológica
e astral, na qual são as grandes sequências das estações, dos meteoros e dos
astros que servem de indutores à fabulação, tanto são os elementos de uma
física primitiva e sumária que, pelas suas qualidades sensoriais, polarizam os
campos de força no continuum homogêneo do imaginário; tanto, enfim, se suspeita
que são os dados sociológicos do microgrupo ou de grupos que se estendem aos
confins do grupo linguístico que fornecem quadros primordiais para os símbolos.
Quer a imaginação estreitamente motivada seja pela língua, seja pelas funções
sociais, se modele sobre essas matrizes sociológicas e antropológicas, quer
pelos seus genes raciais intervenham bastante misteriosamente para estruturar
os conjuntos simbólicos, distribuindo seja as mentalidades imaginárias, sejam
os rituais religiosos, querem ainda, com uma matriz evolucionista, se tente
estabelecer uma hierarquia das grandes formas simbólicas e restaurar a unidade
no dualismo de Henri Bergson das Deux Sources, quer enfim que atravessando a técnica
da psicanálise se tente encontrar uma síntese entre as pulsões de uma libido em
evolução e as pressões recalcadoras do microgrupo familiar. São estas
diferentes classificações das motivações simbólicas que precisamos criticar
antes de estabelecer um método de análise pretensamente firme na ordem das
motivações.
Desde que o laureado historiador
cearense Capistrano de Abreu publicou pela primeira vez o livro no Brasil, nos Anais da Biblioteca Nacional de 1888, prevalece a ideia de que o livro
representa um símbolo e testemunha o nascente nativismo brasileiro diante do
colonizador português. Representa a primeira obra no gênero, escrita por um
brasileiro - o quarto capítulo mostra como ela foi casualmente encontrada por
um livreiro que a doou à Biblioteca Nacional, suas edições, as fontes
utilizadas pelo Frei, seu estilo “com aspecto de poema histórico em prosa”. Os
capítulos seguintes, do quinto ao décimo descreve uma análise dessa obra
ultimada em 1627, uma abstração do “todo
complexo permitindo a avaliação da multiplicidade de aspectos
estruturais”. Nas palavras do próprio Capistrano, “o Brasil significa para ele
(frei Vicente do Salvador) mais do que expressão geográfica, expressão
histórica e social. O século XVII é a germinação desta ideia, como o século
XVIII é a maturação”. O tom religioso determina os rumos de personagens e dos
acontecimentos da História, sobrando pouco espaço para o livre-arbítrio. A
vontade divina implicava, na invasão holandesa a Salvador em 1624, no episódio
onde o próprio franciscano foi preso. Segundo ele, o revés foi uma punição de
Deus aos desentendimentos entre o bispo Marcos Teixeira e o governador Diogo
Mendonça Furtado, “pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o
reino onde houvesse guerra entre os naturais e moradores seria assolado e
destruído”. Em outra passagem, um indígena chamado Guaraci, morre ao tentar
mostrar o caminho das pedras preciosas para um português ao longo das margens do
Rio São Francisco, “ficando de todo as minas obscuras até que Deus, verdadeiro
sol, queira manifestá-las”.
De Duarte Coelho, fundador de
Pernambuco, único donatário eficiente, conta que, voltando à metrópole, “lá morreu,
desgostoso por haver El-rei recebido com remoques e pouca graça”. Acresce,
ainda, à crônica colonial, a notícia de que o poderoso Tomé de Souza, que
esperou anos, impaciente, a licença para voltar ao reino, ao recebê-la, teria
dito: - “Verdade, é que eu desejava muito e me crescia a água na boca quando
cuidava de ir pera Portugal. Mas não sei que é que agora me seca a boca de tal
modo que quero cuspir e não posso”. Mas frei Vicente também faz justiça. Por
exemplo: de Albuquerque, além de louvar a valentia sem paralelo, acresce que
foi “sempre muito limpo de mãos”, coisa rara, louvável até hoje, entre nós. Seu
juízo sobre os colonos não é lisonjeiro. Para o frei, os portugueses “não sabem
povoar nem aproveitar as terras que conquistaram”. E são muito ingratos “porque
os serviços no Brasil raramente se pagam”. Em certos passos, nosso frei chega a
queixar-se. É o que faz, por exemplo, reclamando o descaso do rei por nós.
Tamanho, que preferiu ser senhor da Guiné que do Brasil. Dos povoadores, ele
nos dias ainda que, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que
sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem
souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como aos papagaios, aos
quais a primeira coisa que ensinam é: ´papagaio real pera Portugal`, porque
tudo querem para lá; uns e outros usam
da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a
deixarem destruída”.
No prolongamento dos esquemas
explicativos, arquétipos e simples símbolos modernos pode-se considerar o mito.
Lembramos, todavia, que não estamos tomando este termo na concepção restrita
que lhe dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um
ato ritual. Entendemos por mito, “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e
esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se
na narrativa”. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio
do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em
ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que
o arquétipo promovia a ideia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer
que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem
observou Bréhier, a narrativa histórica e lendária. O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação
e no mito. Enfim, para sermos breves, este isomorfismo dos esquemas, arquétipos
e símbolos no âmbito dos sistemas míticos ou de constelações estáticas pode
levar-nos a verificar a existência de protocolos normativos das representações
imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados em torno dos
esquemas originais e que antropologicamente a literatura refere-se como
estruturas.
Sua
história é em grande parte uma “crônica testemunhal”. Além de viver meio século
com olhos de ver tudo o que sucedia ao seu redor, ouviu numerosos velhos que
podiam contar de experiência própria o que sucedeu em eras anteriores. A crônica
guarda uma relação especial com o retrato de seu tempo, fato evidente que se manifesta
na própria etimologia do termo. Mesmo antes de se consolidar modernamente no
meio de comunicação jornal impresso, teve o seu significado vinculado ao registro
de fatos reais circundantes. Podemos dizer que a crônica é passível de ser
conceitualmente pensada em seu caráter empírico documental, enquanto
instrumento de investigação histórica. Ainda que sucinto, nosso frei abstrai as
resinas milagrosas, dos bálsamos medicinais, dos óleos cheirosos. Encanta-se
com o conhecimento do fruto de árvores possantes, como a massaranduba, mais ainda com o jenipapo,
cujo suco, tão aguado, tingia os índios de negro por semanas. Os feijões são
incomparavelmente melhores que os do Reino. Até da sensitiva dá notícia, com
sua capacidade de encolher-se ao menor toque. No capítulo dos mantimentos,
gaba, principalmente, a mandioca e o aipim. Falando dos bichos, nos apresenta
os porcos do mato, capivaras, antas, tamanduás comedores de formigas, onças
capazes de derrubar e comer touros, raposas, as variedades de macacos, e fala
até de cobras. Relata inclusive o mau hábito de uma delas. É o caso de uma dona
Pernambuco “que estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em os
peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e, depois
que conheceu o engano, o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte
e a matou”.
A obra do frei Vicente do Salvador, História
do Brasil (1918), dividida em cinco livros, narra o modus vivendi apreendido na vida da Colônia, narrando etnograficamente os episódios reconhecidos dos primeiros governadores, com anedotas, expressando as características de falar
e viver nas terras colonizadas e inseridas no [largo] processo
civilizatório. As fontes em que bebeu, até onde foi possível rastreá-las, podem
distribuir-se em: obras gerais, que no Brasil lidam acidentalmente, como as
de João de Barros, Diogo do Couto, Pedro de Mariz, Sachino, Herrera; obras
particulares sobre o Brasil, impressas umas como a historia da nau Santo
Antônio, a Historia de Gandavo, a biografia de Anchieta; inéditas outras como o
Sumário das Armadas, relações,
diários, roteiros, cuja presença o exame atento revela, mesmo quando não restam
outros vestígios [documentais] de sua existência; comunicações particulares, tradições
colhidas nos diversos lugares praticados que percorreu; documentos semioficiais, justificações, atestados de serviços, inquirições de testemunhas. Documentos oficiais,
salvo um tratado de tréguas e outro de paz, não conheceu; a publicidade
desafinava dos atos do governo, e com isso não perdemos, porque lhes substitui
com vantagem o tom popular, quase folclórico. Ás fontes etnográficas com as quais lidava atinha-se
com uma fidelidade que descambava para o servilismo: os indígenas variam de
designação com os documentos originais consultados: gentios, índios, negros, brasis,
selvagens poucas vezes, bárbaros poucas vezes, rústico uma.
Sua descrição dos índios é sumária,
mas chega a notar que “nem têm rei que lha dê e a quem obedeçam, senão é um
capitão, mais para a guerra que pera paz”. Comenta, também, a saudação
lacrimosa com que os índios Tupi recebiam visitantes queridos, inclusive os
portugueses que falavam sua língua. Os recebiam chorando muito e lamentando. Malicioso,
o frei se consente até em falar mal de Anchieta, relatando um episódio
vexatório no justiçamento de um calvinista francês. Ele nos diz: - “Vendo ser o
algoz pouco destro em seu ofício, e que se detinha em dar a morte ao réu e com
isso o angustiava e punha em perigo de renegar a verdade que já tinha
confessada, repreendeu o algoz e o industriou para que fizesse com presteza o
ofício”. E acrescenta judicioso: - “Casos como este são mais pera admirar quer
pera imitar”. Nosso frei, afirma Ribeiro, antecipou de séculos um sentimento de
brasilidade que só iria amadurecer expressamente com os companheiros de
Tiradentes, que falam de brasileiros como designação política do povo que eles
queriam alçar. Também o movimento nativista, identificado
como indianismo, foi uma assunção da qualidade de nativos não portugueses que se
achavam muito melhores que os lusitanos. Muito se fala de identidade que
pouco acrescenta ao fato concreto e visível: é o surgimento do brasileiro,
construído por si mesmo, já plenamente ciente de que era uma gente única, se não hostil pelo menos desconfiada de todas as outras.
Bibliografia
geral consultada.
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regeneração (séculos XVII-XVIII)”. In: Cultura – Revista de História e
Teoria das Ideias, vol. 36, 2017; pp. 123-155; entre outros.
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