Ubiracy de Souza Braga*
“A vivência contêm uma expressão. Esta representa-a em sua plenitude”. Wilhelm Dilthey
Wilhelm Dilthey começou a frequentar
a Universidade de Berlim em 1863. Diplomado com 24 anos tornou-se professor da
Universidade de Basileia, fundada em 4 de abril de 1460, é a mais antiga
universidade da Suíça em funcionamento contínuo. Entre os nomes em geral associados
à instituição estão os de Erasmo, Paracelso, Daniel Bernoulli, Jacob
Burckhardt, Leonhard Euler, Friedrich Nietzsche, Eugen Huber, Carl Jung, Karl
Barth e Hans Urs von Balthasar. A Universidade de Basileia destaca-se
presentemente pelas pesquisas em medicina tropical. Durante aquele período, com
a influência do “clima positivista” que dominava a filosofia alemã, estudou a
ótica de Helmholtz e a psicofísica de Fechner. Hermann Ludwig Ferdinand von
Helmholtz nasceu em Potsdam, Alemanha, em 31 de agosto de 1821. Ingressou no
Friedrich Wilhelm Medical Institute, de Berlim, onde se diplomou em medicina.
Após a tese de doutorado, foi médico militar em Potsdam. Célebre por sua lei da
conservação de energia, Helmholtz é um dos nomes mais representativos da
ciência do século XIX: sua contribuição científica se estendeu à fisiologia, à
óptica, à matemática, à eletrodinâmica e à meteorologia. Seus gostos e sua
curiosidade desenvolveram-se com rapidez: dirigiu-se para as pesquisas
psicológicas e para estudos históricos e literários. Os trabalhos de Wilhelm Dilthey
foram escritos essencialmente no período entre 1870 e 1910.
Após
lecionar nas universidades de Kiel e Bratislava, ocupou, em 1882, a cátedra de Hermann
Lotze na Universidade de Berlim. Viveu nessa cidade até sua morte. Em 1867
havia publicado “Vida de Schleiermacher” e, em 1883, apareceu o primeiro volume
de sua “Introdução ao Estudo das Ciências Humanas”. Nessa obra, procurou
assegurar a autonomia do método às “ciências do espírito”. Vale lembrar que a hermenêutica remonta ao século XVII e estão
associados ao problema da compreensão dos significados de textos, sinais,
símbolos, práticas sociais, ações históricas e formas de arte. Enquanto disciplina
tem suas origens no século XIX com a reflexão de Scheiermacher e,
posteriormente, de Wilhelm Dilthey, no sentido da conceituação e formulação de
uma teoria da compreensão, ampliando o alcance da compreensão hermenêutica do
campo teológico, dos textos clássicos, para a compreensão objetiva de qualquer
tipo de texto e/ou mesmo expressão humana. Para Dilthey, a teoria hermenêutica
poderia ser considerada a base para as “ciências do espírito”, um modo de acesso
privilegiado ao significado em geral.
Com
Friedrich Schleiermacher no início do século XIX, a hermenêutica recebe uma
reformulação, pela qual ela definitivamente entra para o âmbito da filosofia.
Em seus projetos de hermenêutica coloca-se uma exigência significativa: a
exigência de se estabelecer uma hermenêutica geral, compreendida como uma
teoria geral da compreensão. A hermenêutica geral deveria ser capaz de
estabelecer os princípios gerais de toda e qualquer compreensão e interpretação
de manifestações linguísticas. Onde houvesse linguagem, ali aplicar-se-ia
sempre a interpretação. E tudo o que é objeto da compreensão é linguagem. Esta
afirmação, entretanto, demonstra todas as suas implicações quando se lhe
justapõe esta outra tese de Schleiermacher: - “A linguagem é o modo do pensamento
se tornar efetivo. Pois, não há pensamento sem discurso (...). Ninguém pode
pensar sem palavras”. Ao postular a unidade de pensamento e linguagem, a tarefa
da hermenêutica se torna universal e abarca a totalidade do que importa ao
humano. Representa uma análise da compreensão a partir da natureza da linguagem
e das condições basilares da relação entre o falante e o ouvinte.
Em
verdade a expressão ambígua que fora criada quando da tradução alemã, em 1843,
do Sistema de Lógica de Stuart Mill,
“cujo Livro VI trata das moral sciences. Claro que o empreendimento de
Dilthey nada tem em comum com a postura positivista de Stuart Mill, antes se
opõe a ela” (cf. Cohn, 2003: 21). Essa distinção teria enormes repercussões sociais, no
plano da teoria, causando polêmicas e discussões, tornando-se um divisor de águas que perduram
no pensamento filosófico. Dilthey procura “resolver” inclusivamente esta
questão, pois para ele é possível, diante do mundo humano, adotar uma atitude
de “compreensão pelo interior”, ao passo que, diante do mundo da natureza, essa
via de compreensão estaria completamente fechada. As “ciências do espírito”
teriam como objeto o homem e, por assim dizer, o comportamento humano. Os meios necessários à compreensão do mundo histórico-social podem ser dessa maneira, tirados da própria experiência psicológica, e a psicologia, deste ponto de vista Diltheyano, “é a primeira e mais elementar das ciências do espírito”.
A
experiência imediata e “vivida na qualidade de realidade unitária” (“Erlebnis”)
seria o meio a permitir a apreensão singular da realidade histórica e humana sob suas
formas concreta e viva. Em seus ensaios gerais intitulados “Estudos sobre os
Fundamentos das Ciências do Espírito” e “Teoria das Concepções do Mundo”,
Dilthey submete a uma análise rigorosa o conceito de “Erlebnis”. Em “A Essência
da Filosofia”, obra de (1907), o hermeneuta chega a afirmar a falência da filosofia
como metafísica. Em verdade ele propõe uma filosofia histórica e relativa que analise
os comportamentos humanos e esclareça as estruturas do mundo no qual vive o
homem contrapondo-se a uma metafísica que se pretende colocar como imagem da
realidade e a reduzir todos os aspectos da realidade a um único princípio
absoluto.
O
contato conceitual de Wilhelm Dilthey com a hermenêutica está relacionada à sua
preparação teológica, embora a tenha utilizado para responder a seguinte pergunta:
- “Como se diferenciam as ciências
humanas ou sociais das ciências naturais? A reflexão de Dilthey para
estabelecer as relações entre significados e sistemas está presente ao longo de
todos os seus escritos principalmente àqueles relacionados sobre as “ciências
do espírito”, com oscilações que ensejam a leitura da sua obra tanto no âmbito
psicológico quanto de uma perspectiva mais propriamente sociológica. Sem dúvida
ele sempre recusou algum caráter de ciência à sociologia, referindo-se às suas
variantes positivistas, mas em sintonia com uma preocupação com os fenômenos
históricos em grande escala, nos quais as dimensões decisivas dizem respeito às
formas de organização da vida coletiva. Foi o primeiro pensador preocupado em
aproximar a hermenêutica do terreno das incertezas no conhecimento da história social europeia (cf.
Parrella, 1947; Hidalgo e
Cruz, 2015).
A
inovação causada por sua teoria foi única e, por isso, ele está na base de muitas
correntes de pensamento que articulam história e hermenêutica. A hermenêutica
tradicional se refere ao estudo da interpretação de textos escritos,
especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. A hermenêutica
moderna ou contemporânea engloba não somente textos escritos, mas também tudo
que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não verbais de
comunicação, assim como aspectos que afetam a comunicação, como proposições,
pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica. Não tem a
pretensão de eternizar o homem, mas possibilitar ao homem se aproximar da vida,
por meio de conexões que integram, aproxima e relaciona os homens. A teoria compreensiva tem uma importância ética
ímpar para o mundo contemporâneo. A base
para esse nexo em que se dá a relação da vivência é a categoria do significado.
Tal categoria corresponde a um apoio sólido que aparece como uma unidade de
conjunto onde age o pensamento, os sentimentos e a vontade. Considerando que há
uma relação conceitual estabelecida sobre o balanço referencial entre a parte e todo no nexo da vivência, o que garante o equilíbrio para
esse balanço é a categoria interpretativa do significado que para Wilhelm Dilthey, nada mais é do que
a integração num todo que nós encontramos junto e nos remete ao significado
e sentido contido na relação parte-todo que encontra na vivência e é seu fundamento.
É
neste sentido que Dilthey considera que vida e a mudança dos seus principais
momentos estruturais fazem que a concepção do mundo sempre e em toda a parte se
expresse em oposições, embora sobre um fundo comum. Portanto é na arte, na religião e no pensamento que
encarnam os ideais que atuam na existência de um povo. Por conseguinte, toda a
mundividência é produto da história. A historicidade
revela-se como uma propriedade fundamental da consciência humana. Os sistemas
filosóficos não constituem uma exceção. Como as religiões e as obras de arte,
contêm uma visão da vida e do mundo, inserida na vitalidade das pessoas que os
produziram e em consonância com as épocas em que vieram à luz do dia; traduzem
uma determinada atitude afetiva, caracterizam-se pela imprescindível energia
lógica, porque o filósofo procura trazer a imagem do mundo à clara consciência
e ao mais estrito urdimento cognitivo. Neste esforço de reflexão e de trabalho
dos conceitos, que gera uma circunspecção potenciada, é que reside o valor
prático da atitude filosófica.
Como
o centro da compreensão está na vida como um todo estruturado, mas sempre resultando
da relação entre individualidades, é possível perceber a conexão entre a ética
e a teoria compreensiva. Em verdade uma concepção da teoria, ao longo de quase
meio século, permeada lado a lado por um motivo básico: uma unidade cuja
garantia de existência é a presença do sentido.
Há uma démarche que atravessa o
homem, e nesta noção de sentido está a marca de uma concessão fatal a uma
metafísica. Ele desejava evitar tanto
quanto o empirismo dos positivistas, desde que fique clara a dimensão de ser
criador de significados, que não é simplesmente a noção ampla de vida, mas sua
unidade constitutiva, a vivência, representada em toda experiência humana. Ipso facto,
a história é suscetível de conhecimento porque é obra humana; nela o sujeito e
objeto do conhecimento formam uma unidade. Nessa direção chega-se à formulação
final da concepção de Dilthey. Seus elementos são: vivência, expressão e
compreensão. A vivência surge nesse ponto, como algo especificamente social –
pela sua dimensão intersubjetiva, e cultural – pela sua dimensão significativa
-, para além do seu nível psicológico ou mesmo biológico porque guarda na
memória. Trata-se de um ato reflexivo de consciência, que propõe e persegue fins num
contexto intersubjetivo. As interações humanas ganham corpo nas diversas formas de “manifestação de vida” através da arte, filosofia, religião, ciência, como expressão desse caráter objetivo que a experiência, intersubjetivamente constituída assume.
Sua
concepção metodológica articula-se, portanto, em torno do movimento de ir e vir
que ocorre entre a vida, como conjunto de vivências e as formas objetivas que
seus resultados assumem na sua expressão. A referência às “vivências”, segundo
Gabriel Cohn, visa a preservar esse caráter imediato, no qual só é possível
compreender aquilo de que o próprio intérprete (pois é de interpretação que se
trata, e não de observação) é também o produtor; ou seja, os propósitos, os
fins e os valores, ainda que ao intérprete caiba mais propriamente reproduzi-los,
na sua tarefa de reconstituir o processo da sua produção primeira. A
diferenciação das ciências da sociedade não se realizou por
artifício da “inteligência teórica”, em resolver o problema posto pela
existência do mundo mediante a análise metódica do objeto de investigação: a própria
vida a realizou.
Por
fim, fica evidente que, na segunda metade do século XIX, todas as metafísicas
não podem ser classificadas como ciências, mesmo os grandes novos sistemas do
idealismo alemão. Por esta razão, Dilthey as declara “visões de mundo” (“Weltanschauungen”),
que não são comprováveis, mas também não são refutáveis e, por esta razão, permanecem
em eterno conflito entre si. Os três tipos de metafísica discernidos por
Dilthey – naturalismo, idealismo subjetivo e idealismo objetivo – têm a mesma
posição perante as ciências das três religiões monoteístas em Lessing: elas têm
uma verdade existencial, mas não uma verdade científica. A verdade é que há que
uma diferença crucial no despontar do pensamento heideggeriano e a assunção de
uma via histórica representada por influência de Dilthey e Heinrich Rickert.
Com Dilthey, Heidegger percebeu que não se devem tratar as questões filosóficas
de maneira a-histórica, mas sim as
enraizando no seu contexto histórico particular, onde qualquer experiência
embora seja singular, a mesma só pode ser apreendida quando fazem parte de uma “comunidade
de sentido”. Mais uma vez compreendermos algo da ordem “singular-universal”.
Essa vivência singular encerra em si uma ligação com o todo de um determinado
tempo histórico, o que o próprio Dilthey irá chamar de visão de mundo.
Bibliografia
geral consultada.
DILTHEY, Wilhelm,
El Mundo Histórico. México:
Fondo de Cultura Económica, 1947; Idem, Psicología
y Teoría del Conocimiento. México: Fondo de Cultura Económica, 1951; Idem, “Introducción a las Ciencias del
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1966; PARELLA, Juan Roura, El Mundo Histórico
Social: Ensayo sobre la morfologia de la cultura de Dilthey. México:
Editorial Stylo. 1947; VALLENILLA, Ernesto Mays, La Idea de Estructura Psiquíca em Dilthey. Caracas: Universidad
Central de Venezuela, 1949; ÍMAZ, Eugenio, El
Pensamiento de Dilthey. México: Fundo de Cultura Econômica, 1979; CHACON,
Vamireh, “Tempo e Vida de Dilthey”. In: Revista
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de Camargo Pacheco, “Dilthey - Conceito de Vivência e os Limites da Compreensão
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Social. 2ª edição. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2003; SILVA, Edmar Luis da, Compreender a Vida, Fundamentar a História: A Crítica da Razão História em Wilhelm Dilthey (1833-1911). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006; CLARA, Fernando, “Experiência-Vivência. Dilthey e
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Yenisey López, “La Hermenéutica en el Pensamiento de Wilhelm Dilthey”. In: Griot - Revista de Filosofia. Santiago de Cuba, vol. 11, n°1, junho de 2015; LOURENÇO, Luís Eduardo Morimatsu, A Teoria da Experiência de Wilhelm Dilthey enquanto Crítica da Tradição Epistemológica (1883-1894). Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016; PITTA, Maurício Fernando,
“Do Problema da Espacialidade em Heidegger à Esferologia de Sloterdijk”. In: Synesis,
9 (1), 141–164; 2017; entre outros.
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