sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Wilhelm Dilthey - A Questão da Vivência & Sentido da História.

      Ubiracy de Souza Braga*
 
                 “A vivência contêm uma expressão. Esta representa-a em sua plenitude”. Wilhelm Dilthey

               
      Wilhelm Dilthey começou a frequentar a Universidade de Berlim em 1863. Diplomado com 24 anos tornou-se professor da Universidade de Basileia, fundada em 4 de abril de 1460, é a mais antiga universidade da Suíça em funcionamento contínuo. Entre os nomes em geral associados à instituição estão os de Erasmo, Paracelso, Daniel Bernoulli, Jacob Burckhardt, Leonhard Euler, Friedrich Nietzsche, Eugen Huber, Carl Jung, Karl Barth e Hans Urs von Balthasar. A Universidade de Basileia destaca-se presentemente pelas pesquisas em medicina tropical. Durante aquele período, com a influência do “clima positivista” que dominava a filosofia alemã, estudou a ótica de Helmholtz e a psicofísica de Fechner. Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz nasceu em Potsdam, Alemanha, em 31 de agosto de 1821. Ingressou no Friedrich Wilhelm Medical Institute, de Berlim, onde se diplomou em medicina. Após a tese de doutorado, foi médico militar em Potsdam. Célebre por sua lei da conservação de energia, Helmholtz é um dos nomes mais representativos da ciência do século XIX: sua contribuição científica se estendeu à fisiologia, à óptica, à matemática, à eletrodinâmica e à meteorologia. Seus gostos e sua curiosidade desenvolveram-se com rapidez: dirigiu-se para as pesquisas psicológicas e para estudos históricos e literários. Os trabalhos de Wilhelm Dilthey foram escritos essencialmente no período entre 1870 e 1910.
Após lecionar nas universidades de Kiel e Bratislava, ocupou, em 1882, a cátedra de Hermann Lotze na Universidade de Berlim. Viveu nessa cidade até sua morte. Em 1867 havia publicado “Vida de Schleiermacher” e, em 1883, apareceu o primeiro volume de sua “Introdução ao Estudo das Ciências Humanas”. Nessa obra, procurou assegurar a autonomia do método às “ciências do espírito”. Vale lembrar que a  hermenêutica remonta ao século XVII e estão associados ao problema da compreensão dos significados de textos, sinais, símbolos, práticas sociais, ações históricas e formas de arte. Enquanto disciplina tem suas origens no século XIX com a reflexão de Scheiermacher e, posteriormente, de Wilhelm Dilthey, no sentido da conceituação e formulação de uma teoria da compreensão, ampliando o alcance da compreensão hermenêutica do campo teológico, dos textos clássicos, para a compreensão objetiva de qualquer tipo de texto e/ou mesmo expressão humana. Para Dilthey, a teoria hermenêutica poderia ser considerada a base para as “ciências do espírito”, um modo de acesso privilegiado ao significado em geral.


Com Friedrich Schleiermacher no início do século XIX, a hermenêutica recebe uma reformulação, pela qual ela definitivamente entra para o âmbito da filosofia. Em seus projetos de hermenêutica coloca-se uma exigência significativa: a exigência de se estabelecer uma hermenêutica geral, compreendida como uma teoria geral da compreensão. A hermenêutica geral deveria ser capaz de estabelecer os princípios gerais de toda e qualquer compreensão e interpretação de manifestações linguísticas. Onde houvesse linguagem, ali aplicar-se-ia sempre a interpretação. E tudo o que é objeto da compreensão é linguagem. Esta afirmação, entretanto, demonstra todas as suas implicações quando se lhe justapõe esta outra tese de Schleiermacher: - “A linguagem é o modo do pensamento se tornar efetivo. Pois, não há pensamento sem discurso (...). Ninguém pode pensar sem palavras”. Ao postular a unidade de pensamento e linguagem, a tarefa da hermenêutica se torna universal e abarca a totalidade do que importa ao humano. Representa uma análise da compreensão a partir da natureza da linguagem e das condições basilares da relação entre o falante e o ouvinte.
Em verdade a expressão ambígua que fora criada quando da tradução alemã, em 1843, do Sistema de Lógica de Stuart Mill, “cujo Livro VI trata das moral sciences. Claro que o empreendimento de Dilthey nada tem em comum com a postura positivista de Stuart Mill, antes se opõe a ela” (cf. Cohn, 2003: 21). Essa distinção teria enormes repercussões sociais, no plano da teoria, causando polêmicas e discussões, tornando-se um divisor de águas que perduram no pensamento filosófico. Dilthey procura “resolver” inclusivamente esta questão, pois para ele é possível, diante do mundo humano, adotar uma atitude de “compreensão pelo interior”, ao passo que, diante do mundo da natureza, essa via de compreensão estaria completamente fechada. As “ciências do espírito” teriam como objeto o homem e, por assim dizer, o comportamento humano.  Os meios necessários à compreensão do mundo histórico-social podem ser dessa maneira, tirados da própria experiência psicológica, e a psicologia, deste ponto de vista Diltheyano, “é a primeira e mais elementar das ciências do espírito”.  

A experiência imediata e “vivida na qualidade de realidade unitária” (“Erlebnis”) seria o meio a permitir a apreensão singular da realidade histórica e humana sob suas formas concreta e viva. Em seus ensaios gerais intitulados “Estudos sobre os Fundamentos das Ciências do Espírito” e “Teoria das Concepções do Mundo”, Dilthey submete a uma análise rigorosa o conceito de “Erlebnis”. Em “A Essência da Filosofia”, obra de (1907), o hermeneuta chega a afirmar a falência da filosofia como metafísica. Em verdade ele propõe uma filosofia histórica e relativa que analise os comportamentos humanos e esclareça as estruturas do mundo no qual vive o homem contrapondo-se a uma metafísica que se pretende colocar como imagem da realidade e a reduzir todos os aspectos da realidade a um único princípio absoluto.
O contato conceitual de Wilhelm Dilthey com a hermenêutica está relacionada à sua preparação teológica, embora a tenha utilizado para responder a seguinte pergunta: - “Como se  diferenciam as ciências humanas ou sociais das ciências naturais? A reflexão de Dilthey para estabelecer as relações entre significados e sistemas está presente ao longo de todos os seus escritos principalmente àqueles relacionados sobre as “ciências do espírito”, com oscilações que ensejam a leitura da sua obra tanto no âmbito psicológico quanto de uma perspectiva mais propriamente sociológica. Sem dúvida ele sempre recusou algum caráter de ciência à sociologia, referindo-se às suas variantes positivistas, mas em sintonia com uma preocupação com os fenômenos históricos em grande escala, nos quais as dimensões decisivas dizem respeito às formas de organização da vida coletiva. Foi o primeiro pensador preocupado em aproximar a hermenêutica do terreno das incertezas no conhecimento da história social europeia (cf. Parrella, 1947; Hidalgo e Cruz, 2015).
A inovação causada por sua teoria foi única e, por isso, ele está na base de muitas correntes de pensamento que articulam história e hermenêutica. A hermenêutica tradicional se refere ao estudo da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. A hermenêutica moderna ou contemporânea engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não verbais de comunicação, assim como aspectos que afetam a comunicação, como proposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica. Não tem a pretensão de eternizar o homem, mas possibilitar ao homem se aproximar da vida, por meio de conexões que integram, aproxima e relaciona os homens. A teoria compreensiva tem uma importância ética ímpar para o mundo contemporâneo.  A base para esse nexo em que se dá a relação da vivência é a categoria do significado. Tal categoria corresponde a um apoio sólido que aparece como uma unidade de conjunto onde age o pensamento, os sentimentos e a vontade. Considerando que há uma relação conceitual estabelecida sobre o balanço referencial entre a parte e todo no nexo da vivência, o que garante o equilíbrio para esse balanço é a categoria interpretativa do significado que para Wilhelm Dilthey, nada mais é do que a integração num todo que nós encontramos junto e nos remete ao significado e sentido contido na relação parte-todo que encontra na vivência e é seu fundamento.
É neste sentido que Dilthey considera que vida e a mudança dos seus principais momentos estruturais fazem que a concepção do mundo sempre e em toda a parte se expresse em oposições, embora sobre um fundo comum. Portanto é  na arte, na religião e no pensamento que encarnam os ideais que atuam na existência de um povo. Por conseguinte, toda a mundividência é produto da história. A historicidade revela-se como uma propriedade fundamental da consciência humana. Os sistemas filosóficos não constituem uma exceção. Como as religiões e as obras de arte, contêm uma visão da vida e do mundo, inserida na vitalidade das pessoas que os produziram e em consonância com as épocas em que vieram à luz do dia; traduzem uma determinada atitude afetiva, caracterizam-se pela imprescindível energia lógica, porque o filósofo procura trazer a imagem do mundo à clara consciência e ao mais estrito urdimento cognitivo. Neste esforço de reflexão e de trabalho dos conceitos, que gera uma circunspecção potenciada, é que reside o valor prático da atitude filosófica.   
Como o centro da compreensão está na vida como um todo estruturado, mas sempre resultando da relação entre individualidades, é possível perceber a conexão entre a ética e a teoria compreensiva. Em verdade uma concepção da teoria, ao longo de quase meio século, permeada lado a lado por um motivo básico: uma unidade cuja garantia de existência é a presença do sentido. Há uma démarche que atravessa o homem, e nesta noção de sentido está a marca de uma concessão fatal a uma metafísica.  Ele desejava evitar tanto quanto o empirismo dos positivistas, desde que fique clara a dimensão de ser criador de significados, que não é simplesmente a noção ampla de vida, mas sua unidade constitutiva, a vivência, representada em toda experiência humana. Ipso facto, a história é suscetível de conhecimento porque é obra humana; nela o sujeito e objeto do conhecimento formam uma unidade. Nessa direção chega-se à formulação final da concepção de Dilthey. Seus elementos são: vivência, expressão e compreensão. A vivência surge nesse ponto, como algo especificamente social – pela sua dimensão intersubjetiva, e cultural – pela sua dimensão significativa -, para além do seu nível psicológico ou mesmo biológico porque guarda na memória. Trata-se de um ato reflexivo de consciência, que propõe e persegue fins num contexto intersubjetivo. As interações humanas ganham corpo nas diversas formas de “manifestação de vida” através da arte, filosofia, religião, ciência, como expressão desse caráter objetivo que a experiência, intersubjetivamente constituída assume. 
 

 Sua concepção metodológica articula-se, portanto, em torno do movimento de ir e vir que ocorre entre a vida, como conjunto de vivências e as formas objetivas que seus resultados assumem na sua expressão. A referência às “vivências”, segundo Gabriel Cohn, visa a preservar esse caráter imediato, no qual só é possível compreender aquilo de que o próprio intérprete (pois é de interpretação que se trata, e não de observação) é também o produtor; ou seja, os propósitos, os fins e os valores, ainda que ao intérprete caiba mais propriamente reproduzi-los, na sua tarefa de reconstituir o processo da sua produção primeira. A diferenciação das ciências da sociedade não se realizou por artifício da “inteligência teórica”, em resolver o problema posto pela existência do mundo mediante a análise metódica do objeto de investigação: a própria vida a realizou.
Por fim, fica evidente que, na segunda metade do século XIX, todas as metafísicas não podem ser classificadas como ciências, mesmo os grandes novos sistemas do idealismo alemão. Por esta razão, Dilthey as declara “visões de mundo” (“Weltanschauungen”), que não são comprováveis, mas também não são refutáveis e, por esta razão, permanecem em eterno conflito entre si. Os três tipos de metafísica discernidos por Dilthey – naturalismo, idealismo subjetivo e idealismo objetivo – têm a mesma posição perante as ciências das três religiões monoteístas em Lessing: elas têm uma verdade existencial, mas não uma verdade científica. A verdade é que há que uma diferença crucial no despontar do pensamento heideggeriano e a assunção de uma via histórica representada por influência de Dilthey e Heinrich Rickert. Com Dilthey, Heidegger percebeu que não se devem tratar as questões filosóficas de maneira a-histórica, mas sim as enraizando no seu contexto histórico particular, onde qualquer experiência embora seja singular, a mesma só pode ser apreendida quando fazem parte de uma “comunidade de sentido”. Mais uma vez compreendermos algo da ordem “singular-universal”. Essa vivência singular encerra em si uma ligação com o todo de um determinado tempo histórico, o que o próprio Dilthey irá chamar de visão de mundo.
Bibliografia geral consultada.

DILTHEY, Wilhelm, El Mundo Histórico. México: Fondo de Cultura Económica, 1947; Idem, Psicología y Teoría del Conocimiento. México: Fondo de Cultura Económica, 1951;  Idem, “Introducción a las Ciencias del Espíritu; ensayo de una fundamentación del estudio de la sociedad y de la historia”. In: Revista de Occidente, 1966; PARELLA, Juan Roura, El Mundo Histórico Social: Ensayo sobre la morfologia de la cultura de Dilthey. México: Editorial Stylo. 1947; VALLENILLA, Ernesto Mays, La Idea de Estructura Psiquíca em Dilthey. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1949; ÍMAZ, Eugenio, El Pensamiento de Dilthey. México: Fundo de Cultura Econômica, 1979; CHACON, Vamireh, “Tempo e Vida de Dilthey”. In: Revista Brasileira de Filosofia. Volume 34, 1984; pp. 119-129; AMARAL, Maria Nazaré de Camargo Pacheco, “Dilthey - Conceito de Vivência e os Limites da Compreensão nas Ciências do Espírito”. In: http://www.scielo.br/pdf/trans/v27n2/v27n2a04.pdf; COHN, Gabriel, “Dilthey e a hermenêutica”. In: Crítica e Resignação: Max Weber e a Teoria Social. 2ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003; SILVA, Edmar Luis da, Compreender a Vida, Fundamentar a História: A Crítica da Razão História em Wilhelm Dilthey (1833-1911). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006;  CLARA, Fernando, “Experiência-Vivência. Dilthey e as Humanidades: Um Olhar Retrospectivo”. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n° 19. Lisboa: Edições Colibri, 2007, pp. 35-48; HIDALGO, Yaremis da Trinidade; CRUZ, Yenisey López, “La Hermenéutica en el Pensamiento de Wilhelm Dilthey”. In: Griot - Revista de Filosofia. Santiago de Cuba,  vol. 11, n°1, junho de 2015; LOURENÇO, Luís Eduardo Morimatsu, A Teoria da Experiência de Wilhelm Dilthey enquanto Crítica da Tradição Epistemológica (1883-1894). Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016; PITTA, Maurício Fernando, “Do Problema da Espacialidade em Heidegger à Esferologia de Sloterdijk”. In: Synesis, 9 (1), 141–164; 2017; entre outros. 

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