segunda-feira, 27 de junho de 2016

Cavaleiro de Copas – Filosofia, Cinema & A Questão Incorporal.


                                                                                                  Ubiracy de Souza Braga*

                           “Filosofar é passear com um saco e, ao encontrar alguma coisa que sirva, pegar”. Gilles Deleuze 

                        
A história da filosofia determina três momentos principais na elaboração da univocidade do ser. O primeiro é representado por Duns Scot, no Opus Oxoniense, o maior livro de ontologia pura, onde o ser é pensado como unívoco, mas o ser unívoco é pensado como neutro, neuter, indiferente ao infinito e ao finito, ao singular e ao universal, ao criado e ao incriado. Não por acaso merece, pois, o nome de “doutor sutil”, porque seu olhar discerne o ser aquém do entrecruzamento do universal e do singular. Para neutralizar as forças da analogia do juízo, ele toma a dianteira e neutraliza antes de tudo o ser num conceito abstrato. Eis por que ele somente pensou o ser unívoco. Vê-se o inimigo que se esforça por evitar, em conformidade com as exigências do cristianismo: o panteísmo, em que ele cairia se o ser comum não fosse neutro. Todavia, ele soube definir dois tipos de distinção que reportavam à diferença este ser neutro indiferente. A distinção formal, com efeito, é uma distinção real, pois é fundada no ser, ou na coisa, mas não é necessariamente uma distinção numérica, porque se estabelece entre essências ou sentidos, entre “razões formais”, que podem deixar subsistir a unidade do sujeito a que são atribuídas. Não só a univocidade do ser em relação à Deus e às criaturas se prolonga na univocidade dos “atributos”, mas, sob a condição de sua infinitude, Deus pode possuir esses atributos unívocos distintos sem nada perder de sua unidade.
O outro tipo de “distinção”, a distinção modal, se estabelece entre o ser ou os atributos, por um lado, e, por outro, as variações intensivas de que são capazes. Essas variações, como os graus do branco, são modalidades individuantes das quais o infinito e o finito constituem precisamente as intensidades singulares. Do ponto de vista de sua própria neutralidade, o ser unívoco não implica, pois, somente formas qualitativas ou atributos distintos, eles mesmos unívocos, mas se reporta e os reporta a fatos intensivos ou graus individuantes que variam seu modo sem modificar-lhe a essência enquanto ser. Se é verdade que a distinção em geral reporta o ser à diferença, a distinção formal e a distinção modal sãos os dois tipos sob os quais o ser unívoco, em si mesmo, por si mesmo, se reporta à diferença. É com Espinosa que o ser unívoco deixa de ser neutralizado, tornando-se expressivo, tornando-se uma verdadeira proposição expressiva afirmativa. Todavia, subsiste ainda uma indiferença entre a substância e os modos: a substância espinosista aparece independente dos modos, e os modos dependem da substância, mas de outra coisa. Seria preciso que a substância fosse dita dos modos e somente dos modos.
Tal condição só pode ser preenchida à custa de uma subversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo e assim por diante. Que a identidade não é a primeira, que ela existe como princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que abre à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito geral já posto como idêntico. Com o eterno retorno, Nietzsche não queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o da vontade de potência) em que toda as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Revir é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz o mesmo retornar, mas o revir constitui o único Mesmo do que se torna. Revir é o devir-idêntico do próprio devir. Revir é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como repetição. Do mesmo modo a repetição do eterno retorno consiste em pensar o messo a partir do diferente. Mas esse pensamento já não é de modo algum uma representação teórica: ele opera praticamente uma seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno. A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição.
                              

  As cartas de jogar apareceram na Europa cristã por volta de 1367, data da primeira evidência documentada de sua existência - a proibição de seu uso, em Berna, na Suíça. Antes disso, as cartas foram usadas por muitas décadas no Al-Andalus islâmico, nome dado à Península Ibérica com a Septimânia no século VIII, a partir do domínio do Califado Omíada, tendo o nome sido utilizado para se referir à Península independentemente do território politicamente controlado pelas forças de orientação da cultura islâmica. Contudo, utiliza-se o termo para referir os territórios que se diferenciam dos reinos cristãos. As primeiras fontes europeias descrevem um baralho com  cinquenta e duas cartas, como o baralho moderno sem curingas. O tarô de setenta e oito cartas resultou da adição de vinte e um trunfos numerados mais um sem número, neste caso, o curinga à variante de cinquenta e seis cartas, com especificamente quatorze cartas cada naipe.  Estima-se que tenha sido escrito entre 1418-25, uma vez que o pintor Michelino da Besozzo retornou a Milão em 1418 e o autor faleceu em 1425. Na historiografia de Giordano Berti, o Tarot foi inventado certamente antes do ano 1440, na corte do Duque de Milão Filippo Maria Visconti. Este sistema de crença decorre  do baralho desenhado por Marziano da Tortona, que apresentam indícios de que são muitos personagens também presentes no Tarô do século XV. Existem três documentos de Ferrara datado de 1º de janeiro de 1441 a julho de 1442, com o termo trionfi registrado etnograficamente pela primeira vez em fevereiro de 1442. 
 O documento de janeiro de 1441, que usa o termo trionfi, não é considerado confiável; contudo, o fato de o mesmo pintor, Jacomo Sagramoro, ter sido comissionado pelo mesmo patrão, Leonello d`Este - como no documento de fevereiro de 1442 - indica que é ao menos plausível um exemplo do mesmo tipo. Depois de 1442 há uns sete anos sem quaisquer exemplos de material semelhante, o jogo parece ter ganhado importância no ano de 1450, um ano de jubileu na Itália, que presenciou muitas festividades e um grande movimento de peregrinos. A palavra tarô não possui uma tradução específica. Acredita-se que ele possa vir da palavra árabe turuq, que significa quatro caminhos, ou talvez do árabe tarach, que significa rejeito. Segundo a etimologia francesa, tarot é um empréstimo do italiano tarocco, derivado de tara, perda de valor que sofre uma mercadoria, significando ainda dedução, ação de deduzir. O tarô tradicional possui 78 cartas; quando usado para fins divinatórios, cada qual é denominada de arcano, palavra que significa: mistérios ou segredos a serem desvendados e foi incorporada pelos ocultistas do século XIX. Mas não há documentos que atestem o uso divinatório do tarô anteriores ao século XVIII, embora se saiba que o uso comparativamente de cartas semelhantes para tal uso era evidente por volta de 1540.
 À primeira vista, O Cavaleiro de Copas apresenta uma sequência de imagens de grande potência estética (cf. Pasquino 1978; Brehier, 1980; Ulpiano, 1996) acompanhada por diálogos e narrações sussurradas e desconexas. Estes fragmentos serão, ao mesmo tempo, o recurso fílmico desafiador de Malick e o mote explicativo da narrativa e dos significados capitais da obra. O caminho percorrido por Rick (Christian Bale), personagem principal do filme, revela, por meio de um roteiro não cronológico, os gozos e as dores vividas por um homem que chega à meia idade. Memórias de luxo, sucesso, mulheres, festas e fama intercalam-se com dramas e rupturas familiares, relacionamentos fracassados, dor e arrependimento. Tudo isto se apresenta na narrativa do filme, que se afunila e se concentra no problema principal: a angústia, o remorso e a dúvida de um homem que se encontra desconcertado com estas memórias e desesperado em relação ao real entendimento do presente e as escolhas a serem realizadas para o futuro. Malick oferece caminhos explicativos para Rick – possibilidades completamente distintas, contudo, possíveis na experiência humana. Uma vida liberta, solitária e nômade; uma vida familiar focada na concepção e no cuidado com os filhos que darão sequência à nossa jornada; ou simplesmente, a opção de não acreditar no devir como um espiral de crescimento inexorável até a almejada redenção, conforme apresentado pelo pai de Rick, um senhor desgostoso que se decepcionou ao não encontrar o sentido final no crepúsculo da existência. É nesta opção que talvez resida a grande potência do filme. Ela revelará, em última instância, a junção da concepção fílmica e semântica da obra.
Historicamente um livro intitulado Os Oráculos de Francesco Marcolino da Forli apresenta um método divinatório simples usando o naipe de ouros de um baralho comum. Manuscritos de 1735, representando O Quadrado dos Setes, e de 1750, representando a Cartomancia Pratesi, documentam o significado rudimentar divinatório das cartas de tarô, bem como um sistema de tirada de cartas. Em 1765, Giacomo Casanova escreveu em seu Diário que “sua criada russa frequentemente usava um baralho de jogar para ler a sorte”. Durante a fase de produção artesanal das cartas, desenvolveram-se muitas variedades regionais com diferentes sistemas de naipes e também na ordem dos trunfos. Com a expansão do jogo do tarô pela Europa - originalmente um jogo italiano, espalhou-se pelo sul da França, Suíça, Bélgica, sul da Alemanha e auspicioso Império Austro-Húngaro - e com a mudança da produção de sentido artesanal das cartas para uma produção em grande escala, a produção das cartas passou por um processo secular de padronização. Antes do século XVIII os fabricantes de cartas italianos já haviam padronizado as figuras, mesmo que elas fossem desenhadas de diferentes formas, pelos variados fabricantes regionais nas regras do jogo no que diz respeito à ordem dos trunfos. Segundo Deleuze, o sentido aparece em três momentos diversos: primeiro entre os estoicos no século III a. C.; uma segunda descoberta no século XIV por Gregório de Rimini1 e Nicolas d’Autrecourt; e uma terceira vez, como objektiv, no século XIX, com o filósofo alemão Alexius Von Meinong  cuja notoriedade se deve, em parte, a formulação de uma teoria de objetos não-existentes, duramente criticada pela perspectiva de Bertrand Russell não obstante o seu profundo respeito pela obra de Meinong.
De início, pode soar um pouco estranho o fato de Deleuze ter escrito um livro apoiado em Meinong, mesmo após Bertrand Russell (1973) ter atacado a posição do lógico alemão acerca do objektiv. Desse modo, Deleuze rompe com toda a tradição inaugurada por Frege e se estende por Bertrand Russell. Qual a importância da questão do sentido para Deleuze? O que pode ser construído, em filosofia, a partir dessa abordagem? É espantoso como Deleuze tende mais para Meinong do que para Frege, o que de imediato nos leva a consideração do sentido como entidade não existente, melhor dizendo, à tese capital do livro. No desenvolvimento teórico dos conceitos de sua filosofia, contida no livro: Lógica do Sentido, iremos compreender a afirmação natural de que a filosofia é uma disciplina que trata da criação/e invenção de conceitos. A tese filosófica de Gilles Deleuze, esquematicamente, isto é, explica a representação que o conceito remete ao acontecimento. Devemos distinguir e compreender como se dá esta passagem do livro Lógica do Sentido para o livro O que é a Filosofia? No primeiro, a questão do sentido está diretamente relacionada a proposição; mas no segundo, o sentido dá uma passo mais adiante no entendimento remetendo ao conceito.
Historicamente a ideia de acontecimento dá ao conceito um aspecto diferente daquele pensado por Aristóteles. Desta maneira, o pensamento filosófico contemporâneo de Gilles Deleuze procura indicar novas saídas para a filosofia. É neste sentido que nossa apreensão do mundo, dando-se através da superfície das coisas, nos faria apreender além das coisas e suas imagens, os acontecimentos que as envolvem. Deleuze quer tornar relevante a ideia praticada de que a linguagem e a superfície estão relacionadas. O que pensamos e falamos sobre as coisas passa pela superfície. O estatuto da ideia é superficial. A linguagem, somente atinge a significação quando se dá na superfície. A significação somente é possível pelo sentido que a envolve. O acontecimento sinaliza para o sentido como a proposição para a linguagem. O que deve ser esclarecido é que Deleuze particularmente aposta no conceito filosófico como incorporal. Por outro lado, há também um fascínio de consciência do autor da Lógica do Sentido pela obra de Lewis Carroll; diante desta, procura demonstrar que a obra lógica de Carroll difere de sua obra fantástica exatamente pelo tratamento dado ao sentido. 
A obra de Lewis Carroll representa um jogo do sentido, do não senso, um caos-cosmos. O sentido é uma entidade não existente, ele com o “não-senso” têm relações particulares. Lewis Carroll promoveu encenações do paradoxo, o que se aproxima dos estoicos na constituição paradoxal com o sentido. “Alice e do outro lado do espelho” tratam dos acontecimentos, dos acontecimentos puros. Simultaneidade do devir – maiores do que éramos e menores do que nos tornamos, na medida em que se furta o presente: o devir não suporta a cisão nem a diferença do antes (passado) e do depois (futuro). A essência do devir é “puxar” nos dois sentidos ao mesmo tempo. O bom senso é uma afirmação de um sentido determinável em todas as coisas – o paradoxo, que afirma os dois sentidos ao mesmo tempo. O puro devir é o ilimitado, matéria do simulacro, quando se furta a ação da ideia, quando contesta ao mesmo tempo o modelo e a cópia: as coisas medidas se acham nas ideias. O paradoxo desse puro devir quando é capaz de furtar-se ao presente é a identidade do infinito de dois sentidos simultâneos: a) Alice - contestação da identidade de pessoal, na aventura da perda do nome próprio, que é garantido por um saber; b) o “eu” pessoal tem necessidade de Deus e do mundo.
         Os substantivos e os adjetivos estão fundidos, paradas e repousos arrastados pelos verbos de puro devir, que desliza na linguagem dos acontecimentos, em que a identidade se perde para o eu, o mundo e Deus; c) o paradoxo destrói o bom senso como único sentido, destrói o senso comum como designação das identidades fixas. Enfim, o estatuto do sentido, a partir da filosofia estoica, tem no exprimível, no “lekton”, seu ponto de partida. Deleuze, na “Lógica do sentido”, procura demonstrar os filósofos que tratam o sentido de modo direto, fazendo-o aparecer na fronteira entre as proposições e as coisas. Pela via dos “incorporais”, ele acredita que temos um novo modo de pensar a lógica, sobretudo pelo fato do princípio de “não contradição” não atingir os incorporais. Desde Aristóteles, este princípio fundamenta e garante a verdade das premissas. Consequentemente permite observar se, de premissas verdadeiras, seguem-se necessariamente conclusões verdadeiras: a prova da validade dos argumentos. Deleuze seguindo esta tradição também estabelece uma relação entre o sentido e o tempo, destacando o presente – que pertence aos corpos, o reino de Cronos -, e o tempo dos incorporais, denominado Aion, quer dizer através da compreensão da linguagem, o substantivo e os verbos apareceriam relacionados as dimensões de apreensão do tempo. 
 
  Knight of Cups é um filme norte-americano escrito e dirigido por Terrence Malick e estrelado por Christian Bale, Cate Blanchett, Natalie Portman, Antonio Bandeiras, Brian Dennehy, Freida Pinto, Imogen Poots, Isabel Lucas, Teresa Palmer e Wes Bentley. O filme estreou no Festival de Berlim em fevereiro de 2015, e foi lançado nos Estados Unidos da América em 4 de março de 2016.  O filme delimita a nova experiência de Terrence Malick através de um tipo muito especial de metafísica estética, que tenta atribuir o caos na vida dos personagens ao caos nas imagens: Christian Bale interpreta um “homem qualquer”, praticamente sem “vontades manifestadas”, que se relaciona sucessivamente com uma porção adequada de beldades de Hollywood. Fica a impressão que, ao invés de criar um contexto, Knight of Cups privilegia a ideia de descontextualização, a aleatoriedade: esta história poderia ter durado 20 minutos, ou talvez cinco horas, já que o desfile de imagens de festa, de brigas e de corridas ao mar se sucede com um corte/separação com a imagem anterior. Há a proposição inovadora de um fluxo inconsciente, difuso no tempo, desprovido de razão ou de alguma intenção racionalizadora para além do próprio dispositivo, isto é, suas imagens, retóricas.
Esta erosão e derrisão do singular, ou, do extraordinário, já vinham anunciada em O Homem sem Qualidade: talvez seja precisamente o pequeno-burguês a pressentir a autora de um novo heroísmo, enorme e coletivo, a exemplo das formigas. Na verdade, a chegada dessa sociedade de formigas começou com a massificação da sociedade, as primeiras a serem submetidas ao enquadramento das racionalidades niveladoras. O fluxo se expandiu. A seguir, atingiu os quadros possuidores do aparelho, quadros e técnicos absorvidos no sistema socio-técnico que geravam; invadiu enfim as profissões liberais que se acreditavam protegidas contra ele, e as “belas almas” literárias, artísticas e estéticas. Em suas águas, ele rola e dispersa as obras, antigamente insulares, hoje mundanas em gotas d`água no mar, ou em metáforas de uma disseminação da língua que não tem mais autor, de acordo com Michel de Certeau, “mas se torna o discurso ou a citação indefinida do outro”. Existem antecedentes, mas organizados por uma comunidade na loucura e na morte “comuns”, e não ainda pelo nivelamento da racionalidade técnica. Na aurora da modernidade, no século XVI, o homem ordinário aparece com as insígnias de uma desventura geral que ele transmuda em derrisão.      
Assim como é desenhado em uma literatura irônica, aliás, típica dos países do Norte e de inspiração já democrática, “embarca” na apertada nau humana dos insensatos e dos mortais, inversão da Arca de Noé, pois leva ao extravio e à perda. Fica aí encurralado na sorte comum. Chamado “Cada um”, nome que trai a ausência de nome, este anti-herói é também Ninguém, Nemo, da mesma forma que o Everyman inglês se torna o Nobody ou o Jedermann alemão se torna o Niemand. É sempre o outro, sem responsabilidades próprias, pois, pensando bem, “a culpa não é minha, mas do outro: o destino”, e de propriedades particulares que limitam o lugar próprio, pois a morte apaga todas as diferenças. No entanto, mesmo neste teatro humanista, ele ainda ri. E nisto é sábio e louco ao mesmo tempo, lúcido e ridículo, no destino que se impõe a todos e reduz a nada a isenção que cada um almeja. O extravio da escrita fora do seu lugar próprio é traçado por este homem ordinário, metáfora e deriva da dúvida que a habita, fantasma de sua “vaidade”, figura enigmática da relação social que ela mantém com todo o mundo, com a perda de sua isenção e finalmente com sua morte. 
Se me permitem uma digressão... François Truffaut costumava faltar às aulas para assistir a muitos filmes secretamente, muitas vezes com o colega de classe Robert Lachenay, seu grande amigo na infância. Aos 14 anos, abandonou a escola definitivamente e passou a viver de pequenos trabalhos e alguns furtos. A paixão pelo cinema fez o jovem Truffaut fundar, em 1947, um cineclube, chamado Cercle Cinémane. Aquela era uma época de enorme efervescência cultural na França do pós-Segunda Guerra, e os cineclubes, lotados, eram o local para se assistir às projeções e discuti-las depois. Mas o Cercle não teria vida longa, já que ele concorria com o Travail et Culture, cineclube do escritor e crítico de cinema André Bazin. Quando este soube que o Cercle estava à beira da falência, foi conhecer o jovem Truffaut e, sensibilizado com o menino cinéfilo, passou a ser uma espécie de tutor para François. A influência de Bazin na vida de François Truffaut foi decisiva, que se tornou autodidata – quando “esforçava-se para ver três filmes por dia e ler três livros por semana”. Ele até chegou a fazer um acordo com o pai adotivo, que lhe custearia despesas derivadas de sua vida cinéfila. Em troca, Roland Truffaut exigiu que François arrumasse um emprego estável e abandonasse o seu cineclube definitivamente. Mas o garoto descumpriu o acordo, e Roland Truffaut o internou em um reformatório juvenil de Villejuif, uma comuna francesa na região administrativa da Ilha-de-França, no departamento de Val-de-Marne, e assim passou sua custódia para a polícia. Os psicólogos do reformatório contataram André Bazin, que prometeu dar um emprego a François no Travail et Culture. Sob liberdade condicional, Truffaut foi internado em um lar religioso de Versailles, cidade artificial, criada a partir do zero por vontade do rei Luís XIV, Versalhes foi a sede do poder político durante um século, entre 1682 e 1789, antes de se tornar o berço da Revolução. Depois de perder o seu estatuto como “cidade real”, torna-se a capital de um departamento, o Sena e Oise, em 1790, depois o Yvelines em 1968 e um bispado, mas, no caso da trama cinematográfica, felizmente seis meses depois, foi expulso por mau comportamento.

           Como tem sido recorrente nos filmes de Malick, os diálogos são mais em off, como sucede neste caso com o acompanhamento do timbre sempre pomposo Sir John Gielgud. Já a câmara etérea de Emmanuel Lubezki que começou sua carreira no cinema mexicano e em produções televisivas do final dos anos 1980, como a série cult de terror, La Hora Marcada (1986), desliza e contempla as personagens, raramente nelas se fixando, mas que frequentemente infere apenas em planos cortados. Apesar de Malick conseguir em Knight of Cups alguns momentos de suprema elevação, como uma espécie de consciência velada de uma indústria hollywoodiana corrompida que,transforma pessoas em “personagens midiáticos” para atender a uma demanda fetichista de uma sociedade com valores cada vez mais mecanicistas, pragmática e, claro, vazia de ideias. Onde a subsunção do lucro condiciona e acaba de alguma forma sentida e vazia. Parece até um Malick mais impressionado em formular esboços de personagens com o habitual distanciamento. Empenha-se ao acentuar o peso visual da comunidade corporativa e materialista. Mas acaba vítima do mesmo vírus ao não evitar que o seu filme fique também, inevitavelmente, esvaziado de parte do seu interesse. 
O filme não difere muito de A Árvore da Vida, outra obra de Malick, construída a partir do mesmo estilo de representação de imagens. Mesma narração sussurrante, mesmo tom de autoajuda. Mas enquanto A Árvore da Vida se parecia com uma grande missa, citando de maneira explícita a Bíblia, Knight of Cups é mundano. É contemporâneo, e lembra uma grande propaganda para marcas de roupas chiques, com Christian Bale desfilando seus ternos e camisas por festas caras, pelas ruas da cidade e pelo deserto. De qualquer maneira, persiste a sensação de uma obra cristã. Construída a partir do “sentimento de culpa” inerente ao ser humano: façam o que fizerem, os personagens de Malick são sempre vazios, tristes, em busca da reconciliação com o mundo transcendental. A beleza é sempre uma construção estética, determinada por sua historicidade, não uma apreensão técnica e direta da objetividade consumista da realidade. Por essa razão, defender belezas absolutas e automáticas em Knight of Cups parece ser um argumento interessante e só aparentemente de difícil sustentação na concepção própria de direção. O que o filme revela, acima de tudo, no âmbito do processo de trabalho é o insustentável do cinema autoral. Muitos não assistiram a um filme qualquer, mas ao “novo Malick”, a nova assinatura do diretor. A paixão pelo cinema transforma-se em culto à personalidade. Em apreciação acrítica que não distingue uma obra da outra: “quanto mais Malick, melhor”. A lógica da autoria é retórica, e esgota-se “em si”, talvez como fundamento da lógica científica. 
Bibliografia geral consultada. 

RUSSELL, Bertrand, Significação e Verdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973; PASQUINO, Pascale, “Le Statut Ontologique des Incorporels dans l’Ancien Stoïcisme”. In: Les Stoïciens et leur Logique. Paris: Editions Vrin, 1978; BRÉHIER, Émile, La Théorie des Incorporels dans l’Ancien Stoïcisme. Paris: Editions Vrin, 1980; ULPIANO, Cláudio, “Afetos: Um Sorriso, Um Gesto”. In: Pontos de Fuga: Visão, Tato e Outros Pedaços. Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1996; DECKER, Ronald & DUMMETT, Michael, History of the Occult Tarot - 1870-1970. Londres: Editor Duckworth, 2002; LOPES, Luiz Manoel, “Teoria do Sentido em Deleuze”. In: An. Filos. São João del-Rei, n°10, pp. 203-220, jul. 2003; BOUANICHE, Arnaud, Gilles Deleuze – Une Introduction. Paris: Les Editions Pocket, 2007; BERTI, Giordano, Storia dei Tarocchi: Verità e Leggende sulle Carte più Misteriose del Mondo. Milano: Edizione Mondadori, 2007; STHEPAN, Cassiana Lopes, Michel Foucault e Pierre Hadot: Um Diálogo Contemporâneo sobre a Concepção Estóica de Si Mesmo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Setor de ciências Humanas. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2015; GIMBO, Fernando Sepe, Foucault, o Ethos e o Pathos de um Pensamento. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2015; NIQUETTI, Ricardo, Deleuze e Velhice: Uma Política de Encontro. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015; ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo de, A Criatividade da Decisão Judicial e Imunização da Comunidade: Uma Investigação a partir da Filosofia de Gilles Deleuze. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito de Recife. Universidade Federal de Pernambuco, 2016; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

sábado, 25 de junho de 2016

Alfred Hitchcock - Cinema, Suspense & Segredos Espetaculares.


                                                                                                                                          Ubiracy de Souza Braga

                Existe algo mais que a lógica: a Imaginação. Se a ideia é boa, jogue a lógica pela janela”. Alfred Hitchcock
 
    
            Os filmes de arte surgiram na França, em 1908, por iniciativa do empresário Paul Laffitte, que fundou a Le Film d`Art com a intenção de levar os intelectuais ao cinema. Para isso, a empresa realizou versões cinematográficas de obras literárias de autores famosos, como Charles Baudelaire, Émile Zola, Victor Hugo, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Molière e outros. Louis Feuillade, diretor do estúdio Gaumont, se opõe a esse tipo de intelectualismo e leva seu estúdio a produzir cerca de 80 filmes por ano em todos os gêneros, incluindo comédias, dramas do cotidiano, épicos e melodramas, mas foram seus filmes seriados sobre crimes que o levaram à fama na França e nos Estados Unidos. Filme de arte é um termo que comumente se refere a produções cinematográficas quase que tipicamente “independentes” e voltadas a um nicho condicionado de mercado. Em oposição a obras de caráter hollywoodiano, que são direcionadas ao grande público de mercado, o “filme de arte” é pretendido ser um trabalho sério, artístico, muitas vezes experimental e não projetado para o apelo de massa, feito principalmente por razões estéticas em vez de lucro comercial, e contém conteúdo não convencional ou altamente simbólico. O termo é usado na América do Norte, Reino Unido e Austrália, comparado ao resto da Europa, onde está mais associado a filmes autorais e ao cinema nacional. Suspense, para o que nos interessa, representa um sentimento de incerteza ou ansiedade mediante as consequências de determinado fato, mais frequentemente referente à perceptividade da audiência em um trabalho dramático. 
          Não é, porém, uma exclusividade da ficção, pode ocorrer em qualquer situação onde há a possibilidade de um grande evento ou um momento dramático, com a tensão como emoção primária mediante a situação. Em uma definição mais ampla do suspense, tal emoção sociológica surge quando alguém está preocupado com sua falta de conhecimento sobre o desenvolvimento de um evento significativo; assim o suspense seria, então, a combinação da antecipação com a lide da incerteza e obscuridade do porvir. Toda ideia de suspense ou, mais precisamente, narrativa tensional, não tem boa reputação no campo da literatura tradicional, considerada por alguns como um aspecto dinâmico do roteiro. Meir Sternberg, em uma visão retórica-funcionalista, considera o suspense como um dos vários componentes de interesse da narração. De acordo com ele, a narração pode ser definida como a interação entre suspense/curiosidade/surpresa e o tempo abstrato de comunicação per se em qualquer combinação, qualquer meio, qualquer manifesto ou forma latente. Nas mesmas linhas funcionais, ele define a narrativa como um discurso onde essa interação domina: a narratividade, então, ascende de um possível detalhe ou papel secundário, ao status de princípio regulador, o primeiro entre as prioridades de contar/ler. Nessa concepção, suspense pode ser o oposto de curiosidade, porque precisa de uma narração cronológica. Por exemplo, o interesse estando na obscuridade do futuro, enquanto o segundo cria mistério modificando a ordem de exposição dos eventos, numa teleologia da narração.

Por extensão, a análise comparada em literatura e cinema, o termo suspense passou a designar um gênero de narrativa seja de ficção ou de não-ficção em que predominam as situações de tensão, provocando temor ou eventualmente sustos, no leitor ou espectador. No cinema, o suspense foi largamente explorado, como forma de “cativeiro da audiência”. Alguns cineastas o tornaram sua marca registrada, como é o caso principal e significativo de Alfred Hitchcock, cujos filmes possuem a preocupação principal de provocar uma reação de medo ou expectativa humana diante da realidade. No tipo de suspense descrito por Hitchcock, ele ocorre quando a audiência tem a expectativa ruim que está para acontecer, ou que eles acreditam que possa acontecer, uma perspectiva construída através de eventos sucessivos, aos quais eles não têm o poder de interferir de forma a prevenir os acontecimentos diante de uma fatalidade.

                   

            Sir Alfred Joseph Hitchcock, nasceu em Leytonstone, subúrbio de Londres, em 13 de agosto de 1899 e faleceu em Bel Air, Los Angeles, em 29 de abril de 1980. Foi um cineasta inglês, considerado o mestre dos filmes de suspense, dos mais conhecidos e populares “realizadores” de todos os tempos. Em 1913 ele deixou a escola e passou a definir sua carreira profissional, estudando engenharia na School of Engineering and Navigation. Fez cursos de desenho no Departamento de Belas Artes da Universidade de Londres. Foi então que descobriu um novo hobby para preencher, por assim dizer, o seu tempo de lazer, o cinema, que estava começando a se estabelecer como uma das mais importantes atividades intelectuais e recreativas em Londres. A capital tinha mais de quatrocentos dispositivos de projeção, instalados no entorno de concorridas pistas de patinação. Em 1920, aos vinte e um anos de idade, o jovem Alfred Hitchcock leu em uma revista que uma empresa de cinema dos Estados Unidos da América (EUA), a Famous Players-Lasky Company, iria criar um estúdio em Londres, Inglaterra.
Alfred Hitchcock apresentou-se nos escritórios da Famous levando consigo alguns esboços de letreiros para filmes mudos que tinha projetado com a ajuda de seu chefe no departamento de publicidade da Henley. Imediatamente, a empresa o contratou como desenhista de letreiros. Mas quando o salário que passou a ganhar no novo emprego lhe permitiu ele deixou o emprego na Henley. No primeiro ano trabalhou como letrista em vários filmes, e no ano seguinte passou a ser responsável por cenários e pequenos diálogos em novos filmes. Ele escrevia sob a direção de George Fitzmaurice, que também lhe ensinou as primeiras técnicas de filmagem. Nos estúdios, Hitchcock conheceu Alma Reville, “uma jovem encantadora da mesma idade, nascida em Nottingham”. Extremamente pequena e magra, e grande fã de cinema, ela trabalhou nos estúdios de uma empresa londrina desde os 16 anos, a Film Company, e logo passou a trabalhar na Famous. Alma e Hitchcock colaboraram em vários filmes dirigidos por Graham e Cutts, e em 1923 viajaram para a Alemanha para produzir um filme cujo roteiro ele mesmo havia escrito, “The prude`s fall”. No navio de retorno a Inglaterra, Hitchcock declarou-se a Alma e logo iniciaram um longo noivado (cf. Xenakis, 1987).    
Em assim sendo, em nosso ponto de vista analítico “Hitchcock, o filme, não é uma biografia do genial diretor”. É um episódio de sua vida, importante, sim, mas não chega a ser um elogio às virtudes de Hitchcock, e sim às de sua mulher, a roteirista Alma Reville, e às de Helen Mirren, que a interpreta - mais que às de Anthony Hopkins. Se a ideia era dar protagonismo a Alfred Hitchcock, a produção teve efeito contrário ao que esperava o diretor Sacha Gervasi. A excessiva caracterização de Anthony Hopkins como Hitchcock foi mais um empecilho que um benefício para o ator galês, cuja interpretação ficou muito condicionada pelo aspecto físico característico do diretor de Psicose. Sua voz impostada e a sensação que sempre se vê o ator acima do personagem fazem com que seja ainda mais evidente a sutileza da interpretação de Helen Mirren em seu papel de esposa à sombra - mas não abnegada. Alma Reville é sem dúvida a revelação do filme. Tanto pelo pouco etnográfico que se sabe de sua pessoa como pela força expressiva e psicanalítica de uma personalidade que, apesar de tudo, soube entender melhor que ninguém a grandeza e as fragilidades de Hitchcock”.
O suspense de Alfred Hitchcock trouxe “inovações técnicas” nas posições e movimentos das câmeras (cf. Deleuze, 1974; 1983), nas elaboradas edições e nas surpreendentes trilhas sonoras que realçam os efeitos de suspense e aparente terror. O clima de suspense é acentuado pelo uso de música forte e dos efeitos de luz. Em Psycho, “somente o espectador vê a porta se entreabrir, esperando algo acontecer enquanto o detetive sobe a escada”. Um dos recursos de suspenses mais utilizados por Hitchcock é o do “vilão inocente”, através dele um inocente é erroneamente acusado ou condenado por um crime e que, para se ver livre, acaba assumindo a missão de perseguir e encontrar o real culpado.  Em alguns filmes, o personagem age como se soubesse que o telespectador está observando sua vida. No filme “Rear Window” (1954), o personagem Lars Thorwald (interpretado por Raymond Burr) confronta Jeffries (interpretado por James Stewart) dizendo: - “O que você quer de mim?” endereçando a pergunta ao telespectador com um close em seu rosto. Hitchcock usou em vários de seus filmes o que é conhecido como cameo, literalmente “camafeu”, significando uma “participação especial”, onde uma pessoa famosa aparece em um filme. Nos filmes de Hitchcock, quem aparecia era ele próprio, em instantes, geralmente no início de seus filmes. Para não distrair o público do enredo principal, no decorrer de sua obra o diretor passou a aparecer logo no início dos filmes. 
     Embora inúmeros cinéfilos reconheçam o clássico filme: Psicose, de Alfred Hitchcock, nem todos sabem como o filme foi realizado. Hitchcock é uma ficção que pretende revelar o complicado contexto desta produção: o cineasta já não tinha a mesma notoriedade do início da sua carreira, aparentemente nenhum produtor queria investir em um “pequeno filme de suspense onde a protagonista morre logo no começo, e as cenas de nudez no chuveiro não facilitavam para encontrar a atriz principal”. No primeiro trailer divulgado, Anthony Hopkins incorpora o humor sarcástico do cineasta, enquanto Helen Mirren, no papel de sua esposa, trata de limitar as ambições do diretor. Scarlett Johansson interpreta Janet Leigh (foto), e vários outros nomes prestigiosos completam o elenco, tais como Jessica Biel, Toni Collette e James d`Arcy. O filme dirigido por Sacha Gervasi retrata de um “particular ponto de vista” os bastidores das gravações de Psicose. A imagem destaca Anthony Hopkins na pele de Alfred Hitchcock. Um detalhe interessante, que deve chamar a atenção dos cinéfilos, é a faca ensanguentada, numa referência clara à lendária cena do chuveiro. Scarlett Johansson interpreta Janet Leigh, a protagonista de Psicose, e personifica todas as loiras que obcecavam o cineasta - de Tippi Hedren a Grace Kelly, passando por Kim Novak.
             Do ponto de vista técnico-metodológico o “MacGuffin” é um conceito original nos filmes de Hitchcock, passando a ser um termo usado pelo cineasta “para inserir um objeto que serve de pretexto para avançar na história sem que ele tenha muita importância no conteúdo da mesma”. O MacGuffin de Psycho “é o dinheiro roubado do patrão”. O dinheiro só serve para conduzir a personagem Marion Crane até o Motel Bates, mas ao chegar ao motel o dinheiro perde a importância no desenrolar da história. Já o MacGuffin de Torn Courtain é a fórmula que possibilitaria a construção de um antimíssil. É para conseguir a fórmula que o personagem principal parece desertar para Berlim (então Oriental), é seguido pela noiva e daí desenvolve-se o enredo. E a exemplaridade do filme: Vertigo (“Um Corpo Que Cai / A Mulher que Viveu Duas Vezes”) lançado no auge da fama do diretor e, porém não foi muito bem recebido pela crítica. Contudo, Vertigo é reconhecido por ter influenciado vários diretores e roteiristas nas décadas seguintes. O filme foi eleito “entre os 100 melhores filmes de todos os tempos pelo Instituto Americano do Cinema em 1998”.    
  
   O filme: Psicose representa um “quadro psicopatológico” (cf. Freud, 1971: 229 e ss.) clássico, reconhecido pela psiquiatria, pela psicologia clínica e pela psicanálise como um estado psíquico no qual se verifica certa “perda de contato com a realidade”. Nos períodos de crises mais intensas podem ocorrer (variando de caso a caso) alucinações ou delírios, desorganização psíquica que inclua pensamento desorganizado e/ou paranoia (dementia paranoides), acentuada inquietude psicomotora, sensações de angústia intensa e opressão, e insônia severa. Tal é frequentemente acompanhado por uma falta de crítica ou de insight que se traduz numa incapacidade de reconhecer o carácter estranho ou bizarro do comportamento. Desta forma surgem também, nos momentos de crise, dificuldades de interação social e em cumprir normalmente as atividades de vida diária. Na psicanálise, a psicose causou dificuldades teóricas para Freud, mas não para Jacques Lacan. Se o primeiro demonstrou-se hesitante em enquadrá-la do ponto de vista analitico, concentrando-se na neurose, Lacan, tomando-a constantemente em suas conferências, associou-a a “foraclusão” (ou “forclusão”) do nome-do-pai.
            Para Freud, no caso da psicopatologia da vida cotidiana, 
gli errori di memoria si distinguono dalla dimenticanza accompagnata da falso ricordo soltanto per l´unico particolare tipico che l`errore (il falso ricordo) non viene riconosciuto come tale, ma trova credito. L`uso dell`espressione ´errore` però pare dipendere anche da um`altra condizione. Noi parliamo di ´errore` anziché di ´falso recordo` quando nel materiale psichico da riprodurre si vuole dare rilievo al carattere della realtà obiettiva, dove dunque si vuole ricordare qualcosa di diverso da un fatto della nostra vita psichica, anzi qualcosa di accessibile alla conferma o confutazione da parte della memoria altrui. L`opposto dell`errore di memoria in questo senso è l`ignoranza (cf. Freud, 1971).

            O termo “foraclusão” foi introduzido pela primeira vez por Jacques Lacan, em 4 de julho de 1956, na última sessão de seu Seminário dedicado às psicoses e à leitura do comentário de Sigmund Freud sobre a paranoia do jurista Daniel Paul Schreber. Para compreender a gênese desse conceito, há que relacioná-lo com a utilização que Hippolyte Bernheim fez, em 1895, da noção de “alucinação negativa”: nesta designa a ausência de percepção de um objeto presente no campo do sujeito após a hipnose. Freud retomou o termo, porém não mais o empregou a partir de 1917, na medida em que, em 1914, propôs uma nova classificação das neuroses, psicoses e perversões no âmbito de sua teoria da castração. A primeira discussão publicada de Freud sobre o Complexo de castração aparece em seu estudo de caso Little Hans (1909), cuja mãe relatou ter dito ao filho que se continuasse a tocar seu pênis, ela pediria ao médico que o cortasse. Deu então o nome de Verneinung ao mecanismo verbal pelo qual o recalcado é reconhecido de maneira negativa pelo sujeito, sem, no entanto ser aceito: - “Não é meu pai”. Em 1934, o termo foi traduzido em francês por négation. Na psicanálise freudiana, a angústia de castração (Kastrationsangst) refere-se ao medo inconsciente da perda do pênis originário durante o Estágio fálico do desenvolvimento psicossexual em toda a vida.
De acordo com Freud, quando o menino torna-se consciente das diferenças entre os órgãos genitais masculinos e femininos, ele assume que o pênis do sexo feminino foi removido criando-se uma angústia que seu pênis será cortado por seu rival, a figura do pai, como punição por desejar a figura da mãe. Quanto à ”renegação” (Verleugnung), Freud a caracterizava como a recusa, por parte do sujeito, a reconhecer a realidade de uma percepção negativa - por exemplo, a ausência de pênis na mulher. Paralelamente, na França, Pichon introduzia o termo “escotomização”, para designar o mecanismo de “enceguecimento inconsciente” pelo qual o sujeito faz desaparecerem de sua memória ou sua consciência fatos desagradáveis. Em 1925, uma polêmica opôs Freud a René Laforgue a propósito dessa palavra. Laforgue propunha traduzir por “escotomização” tanto a renegação (Verleugnung) quanto outro mecanismo, próprio da psicose e, em especial, da esquizofrenia. Freud recusou-se a acompanhá-lo e distinguiu, de um lado, a Verleugnung, e de outro, a Verdrangung (“recalque”). A situação descrita por Laforgue despertava a ideia da anulação da percepção, ao passo que a exposta por Freud mantinha a percepção, no contexto da negatividade: dialeticamente atualização da percepção que consiste na renegação.      


          Hitchcock, filme que narra a história da produção do clássico: Psicose é o primeiro trabalho de ficção do londrino Sacha Gervasi como diretor. Roteirista de O Terminal e diretor do documentário: Anvil: The Story of Anvil, Gervasi fala dos desafios dessa sua estreia em entrevista exclusiva. - Manter Hitchcock conversando com a câmera - uma coisa que ele fazia para promover seus trabalhos - foi intencional para preservar a fantasia do cineasta? - Sim, é só um filme. Tem elementos fantásticos, e é também uma referência [à série de TV] Alfred Hitchcock Presents, em que ele se dirigia para a câmera. Tratamos como uma referência direta porque a maioria do público dos EUA via a série. Na Inglaterra eles têm outro referencial. Nós trabalhamos em cima dessa persona que ele criou. E também é uma forma de deixar o público ciente de que [o filme] é surreal e fantástico. Há esses elementos de fantasia. Imediatamente adiantamos que esta não é a típica cinebiografia intensa, sincera, honesta. - O que eu acho interessante é que o trabalho de Hitchcock, com o tempo, adquiriu o status de obra-prima, mas naquela época os críticos diziam que os filmes dele eram passatempos divertidos, como cinema de gênero. Ele fazia filmes para o público, então tentamos abraçar esse espírito. Sabíamos que isso provocaria uma comoção, mas ficamos empolgados com essa opção. Todo mundo sabe sobre as atrizes e o que aconteceu com Tippi Hedren, atriz, ativista dos direitos dos animais e ex-modelo norte-americana. É de domínio público esse lado ligeiramente difícil, sádico e neurótico do diretor. O que as pessoas não sabiam é que a grande parceira [de Hitchcock] era a esposa dele. Mas Hitchcock não era exatamente maravilhoso com a esposa. Essa é a questão de gênero que não deve ser desprezada.

Bibliografia geral consultada. 

FREUD, Sigmund, Psicopatologia della Vita Quotidiana. Torino: Bollati Boringhieri Editore, 1971; DELEUZE, Gilles, Cinéma I: l` Image-Mouvement. Paris: Éditions de Minuit, 1983; MONTERDE, José Enrique, Cine y Enseñanza. Barcelona: Editorial laia, 1986; TRUFFAUT, François, Truffaut/Hitchcock - Entrevistas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986; XENAKIS, Françoise, Ih, Esqueceram Madame Freud. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987; SILVA, Marcos Paulo do Nascimento, A Problemática do Mal em O Mal-Estar na Civilização. Dissertação de Mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2004; SIMMEL, Georg, “A Sociologia do Segredo e das Sociedades Secretas”. Tradução de Simone Carneiro Maldonado. In: Revista de Ciências Humanas. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Volume 43, Número 1, pp. 219-242, abril de 2009; SANTOS, Marcelo Moreira, Poética Fílmica: O Exemplo de Alfred Hitchcock. Tese de Doutorado em Comunicação. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012; Artigo: “Filme Hitchcock é, na verdade, uma história sobre Alma Reville, a mulher do diretor”. In: http://cinema.uol.com.br/2013/01/31CONSTANTINO, Maria Julia Évora. Trailer do Filme Psicose, para Além do Marketing Cinematográfico. Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2014; OLIVEIRA JÚNIOR, Luiz Carlos Gonçalves de, Vertigo, a Teoria Artística de Alfred Hitchcock e seus Desdobramentos no Cinema Moderno. Tese de Doutorado. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; MERENCIANO, Levi Henrique, Cinema Hollywoodiano no século XXI: O Ritmo em Abordagem Semiótica e os Filmes mais vistos em 2001 a 2010. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2015; RIBEIRO, Marcelo Rodrigues Souza, Do Inimaginável: Cinema, Direitos Humanos, Cosmopoéticas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual - Doutorado. Faculdade de Artes Visuais. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016;  entre outros.  

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).         

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Virginia Raggi – Uma Mulher Prefeita da Cidade Eterna.

Ubiracy de Souza Braga
 
                                         “Credo i romani avrano le idee ancora più chiare in cabina elettorale”. Virginia Raggi 

           República Romana representou um período da antiga civilização romana onde o governo operou como uma república, também designado como monarquia romana ou período régio, é a expressão utilizada por convenção para definir o estado monárquico romano desde sua origem em 21 de abril de 753 a.C.) até a queda da realeza em 509 a.C. Começou com a queda da monarquia, tradicionalmente datada cerca de 509 a.C., e sua substituição pelo governo chefiado por dois cônsules, eleitos anualmente pelos cidadãos e aconselhados pelo senado. Uma complexa constituição gradualmente foi desenvolvida, centrada nos princípios de uma separação dos poderes e de freios e contrapesos. Exceto em tempos de terrível emergência nacional, ofícios públicos foram limitados por um ano, de modo que, em teoria ao menos, nenhum indivíduo exercesse poder absoluto sobre seus concidadãos. Era hierárquica. A evolução da constituição da República Romana foi pesadamente influenciada pela luta entre os patrícios, aristocratas proprietários de terra, que traçaram sua ancestralidade no início da história do Reino de Roma, e os plebeus, os cidadãos muito mais numerosos. Logo depois da fundação da república, o conflito levou à primeira das muitas secessões da plebe, na qual os plebeus se retiraram da cidade e se reuniram no monte sacro numa época de guerra, o que levou à criação do cargo de tribuno da plebe,  o que representou a primeira partilha de poder entre as ordem tradicionais romanas.

Historicamente as leis que deram aos patrícios direitos exclusivos de acesso aos mais altos ofícios foram revogadas e enfraquecidas, e as principais famílias plebeias tornaram-se membros plenos da aristocracia. Os líderes da república desenvolveram uma forte tradição e moralidade que exigia serviço público e patrocínio na paz e na guerra, tornando os sucessos políticos e militares indissociáveis. Durante os primeiros dois séculos de sua existência a república expandiu-se através de uma combinação de conquista e aliança, da Itália central para a península Itálica inteira. Pelo século seguinte, incluía o Norte da África, a Península Ibérica, Grécia, e o que é hoje o sul da França. Dois séculos após isso, em direção ao fim do século I a.C., incluía o resto da moderna França, e muito do Mediterrâneo Oriental. A República Romana, sem temor a erro, pode-se dizer que nunca foi totalmente restaurada, mas também pode-se afirmar, politicamente, que nunca foi formalmente abolida.

Por esta conjuntura política, apesar das restrições tradicionais e legais da república contra qualquer aquisição individual de poderes políticos permanentes, a política foi dominada por um pequeno número de líderes romanos, com suas alianças pontuadas por uma série de guerras civis. O vencedor de uma destas guerras civis, Otaviano (mais tarde reconhecido como Augusto) reformou a república como um principado, com ele mesmo como o “primeiro cidadão”. O senado continuou a sentar e debater. Magistrados anuais foram eleitos como antes, mas as decisões finais em assuntos de política, guerra, diplomacia e nomeações foram privilégios de Augusto através de seu manejo de um número de separados poderes simultaneamente. Um de seus muitos títulos foi Imperator do qual o título Imperador derivou, e é “o primeiro imperador romano”. Contudo, o termo res publica continuou a ser usado para referir-se ao aparato do Estado, assim a data exata da transição para o Império Romano é um assunto de interpretação. Historiadores variadamente propuseram a nomeação de Júlio César como ditador perpétuo em 44 a.C., a derrota de Marco Antônio na Batalha de Ácio em 31 a.C., e a concessão de poderes extraordinários para Otaviano sob o primeiro assentamento e sua adoção do título de Augusto em 27 a.C., como o evento que define o fim da república.

           Virginia Elena Raggi nasceu em Roma em 18 de junho de 1978. É advogada e política italiana. É a atual prefeita de Roma desde o ano de 2016. Filiada ao Movimento 5 Estrelas, foi eleita prefeita em 19 de junho de 2016, ganhando as eleições municipais, se tornando a  primeira prefeita de Roma, uma das cidades mais importantes da história da humanidade, exercendo uma influência ímpar no desenvolvimento da história e da cultura dos europeus durante milênios e na construção da Civilização Ocidental. Sua história abrange mais de 2500 anos, desde a sua fundação lendária em 753 a.C. Roma é uma das mais antigas cidades continuamente ocupadas na Europa e é conhecida como A Cidade Eterna, uma ideia expressa por poetas escritores da Roma Antiga. No mundo antigo, foi sucessivamente a capital do Reino de Roma, da República Romana e do Império Romano e é considerada um dos berços da civilização ocidental. Desde o século I, a cidade é a sede do papado e no século VIII a cidade tornou-se a capital dos Estados Pontifícios, que duraram até 1870. Em 1871, Roma se tornou a capital do Reino da Itália e em 1946 da República Italiana. A Constituição da República Romana é um nome normalmente utilizado por especialistas para se referir ao conjunto de regras e princípios, escritos ou não, que determinavam o que era permitido ou proibido dentro dos limites estabelecidos de soberania da antiga Roma republicana. Tal constituição era invocada para resolver disputas de competência entre diferentes poderes e instituições ou quando mudanças nas práticas políticas eram necessárias. Eles acreditavam que na eficácia da Constituição constituída pela acumulação da sabedoria de antepassados e não de legislação e não existia um texto legal unificado que codificasse a prática constitucional. 




           Precedentes (“mos maiorum”), isto é, costume ancestral, era reivindicado como argumento legal, a continuidade era normalmente desejável e os princípios republicanos eram tidos em larga medida como frutos da tradição. Esse sistema político era conhecido como “res publica”, expressão que, grosso modo, pode ser traduzida por “coisa pública”. O surgimento da República Romana é tradicionalmente situado no ano 510 a. C., quando o último rei romano teria sido expulso e o sistema monárquico teria sido substituído por magistrados nomeados anualmente. A partir de então, passou-se a eleger dois cônsules que deveriam permanecer no cargo por um ano e convocar eleições para seus sucessores. A ausência de documentação expressiva sobre este período torna difícil verificar a autenticidade desses relatos ou de fornecer detalhes mais expressivos sobre o processo político. É altamente provável que muitas das instituições republicanas já existissem no período monárquico, algo sugerido por Cícero no livro 2 da República. Relatos tardios referem-se aos primórdios da República como um período de disputa entre plebeus, a maioria da população e patrícios, uma minoria que teria controle dos principais cargos políticos. 
         Essas duas “castas” de cidadãos, dizem, teriam tido instituições exclusivas que se sobrepunham e conflitavam, algumas das quais teriam permanecido ativas até o período republicano tardio. Os principais magistrados romanos eram o ditador, o censor, o cônsul, o pretor, o edil, o questor e o tribuno da plebe. O ditador era superior a todos os outros cargos e era acompanhado por 24 lictores. Ele deveria ser escolhido pelos cônsules em situação emergencial por requisição do Senado e não poderia governar por mais de seis meses. O ditador possuía o “imperium”, isto é, a instância de poder de controlar homens dentro e fora de Roma e o auspício de consultar os deuses em nome da cidade. Dois cônsules eram eleitos em votações na assembleia das centúrias. Eram nomeados para atuar por um (01) ano apenas, mas poderiam ser reeleitos após um intervalo fixo em torno de dez anos. Possuíam o “imperium” de controlar homens dentro e fora de Roma, além do direito de realizar eleições de forma justa para magistrados. Neste sentido que um cidadão deveria ter ao menos 42 anos para ser eleito para o cargo de cônsul. Dois censores eram eleitos na assembleia das centúrias para servir por 18 meses. 

A função, normalmente cumprida por ex-cônsules, consistia em revisões de listas senatoriais e na exclusão de senadores indesejáveis (ou inclusão de senadores bem quistos). O censor também era responsável pela fiscalização da moral e dos costumes. Os questores e edis eram mais numerosos e tinham funções relativamente restritas. Ambos eram eleitos pela assembleia tribal, sendo os primeiros responsáveis pelo controle do tesouro, dos arquivos e das finanças, enquanto os segundos organizavam jogos anuais e fiscalizavam ruas e mercados, além de se responsabilizarem pelo suprimento de alimentos. O tribuno da plebe tinha poder de veto contra qualquer decisão de outro magistrado ou decreto senatorial. Ele poderia intervir pela proteção dos direitos de qualquer cidadão, exceto se essa ação contrariasse as intenções de um ditador. Eles também detinham o poder de propor leis para a assembleia tribal. Os pretores eram líderes políticos eleitos para comandar exércitos fora de Roma. Cumpriam um termo de um ano, e eram escolhidos pela assembleia das centúrias após a decisão de um cônsul. Esse cargo foi introduzido pela primeira vez no ano 366 a. C. e, na época de Lúcio Cornélio Sula, existiam pelo menos 8 pretores na República, apenas para citarmos tal exemplo.
A advogada Virgínia Raggi, de 37 anos, foi eleita prefeita de Roma, domingo (19/06), em uma vitória que representa um duro golpe para o governo do primeiro-ministro Matteo Renzi. Com 80% das urnas apuradas, a candidata do partido antissistema “Movimento 5 Estrelas” (M5S) aparece com 67% dos votos, bem à frente de Roberto Giachetti, apoiado pelo Partido Democrático (PD, centro-esquerda) de Renzi. No primeiro turno, Virgínia obteve 35% dos votos. O M5S foi fundado pelo humorista Beppe Grillo em 2009. Os resultados das eleições municipais deste domingo, realizadas em 126 cidades italianas, devem confirmar o avanço do M5S, movimento que se tornou, em 2013, o segundo maior partido da Itália, com 25% dos votos nas eleições legislativas. Seu discurso de denúncia sistemática da corrupção política continua a angariar adesões. - "Hoje é algo muito especial. Temos a sorte de ter alguém novo que poderá mudar as coisas. Todos os outros fracassaram. Espero que eles consigam", disse à AFP o aposentado Aldo, de 72 anos, que votou no M5S em Roma. A denúncia da corrupção foi a palavra de ordem da campanha de Virgínia Raggi. Ela não divulgou, porém, muitos detalhes de seu programa para reduzir a enorme dívida da cidade, em torno de 12 bilhões de euros. Tampouco antecipou nomes de sua futura equipe.        
            Essa última questão é essencial, já que o M5S não conta com políticos veteranos, o que já se notou em sua gestão das cidades onde governa, como Parma, ou Livorno. Nos últimos dias, a imprensa italiana criticou Virgínia por não ter declarado receitas provenientes de consultorias, o que a candidata nega. - "Não sabem mais como me atacar. Já esclareci. Está tudo declarado", afirmou ela. A reta final da campanha não contou com a presença de Renzi, que está na Rússia, nem com a de Grillo. Tampouco se ouviu a voz de Matteo Salvini, o líder da Liga Norte. Silvio Berlusconi, que tenta sem sucesso continuar sendo o líder da centro-direita na Itália, continua hospitalizado, após uma cirurgia de coração aberto. Essas eleições "deixarão uma marca na política italiana, uma marca de descontinuidade e uma possível ruptura do sistema", afirmou em um editorial, o diretor do jornal “La Repubblica”, Mario Calabresi. Com o M5S, “elegeram-se as caras novas e a simpatia, considerou-se a inexperiência como o maior valor. E se associou à esperança”, completou, comparando seus militantes com passageiros que assumem o controle de um avião em protesto pelos atrasos nos voos e pelos benefícios dos pilotos comparativamente em seu posto de trabalho.  Advogada de formação, Raggi foi oficializada candidata.  

              Ocorreu em uma votação online realizada no blog de Beppe Grillo - esse é o método usado pelo movimento para tomar decisões importantes. Inclusive, uma das principais acusações à agora prefeita eleita “é que ela seria um mero fantoche se assumisse a Prefeitura de Roma”. Raggi cresceu nos bairros de San Giovanni e Ottavia e é graduada em direito e jurisprudência pela Universidade de Roma Tre. Se especializou em direito autoral e propriedade intelectual e trabalhou por seis anos em um escritório de advocacia que fazia a defesa do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi. No entanto, ela sempre rechaçou ter qualquer afinidade eletiva com o líder conservador. Eleita vereadora em 2013, dedicou-se aos temas de educação e meio-ambiente e, durante a campanha, prometeu instalar teleféricos na cidade e aumentar a taxação sobre ciganos. Além disso, garantiu que colocará as finanças da capital em ordem e afirmou ser contra a candidatura romana para receber as Olimpíadas de 2024.
              Depois voltou atrás e declarou que apenas gostaria que a população fosse consultada sobre o assunto. Outro tema polêmico que ela pode submeter ao povo é a construção do novo estádio da Roma, que terá capacidade para 60 mil pessoas e será erguido no bairro de Tor di Valle. Segundo os investigadores, Lanzalone, da Acea, entre janeiro e fevereiro de 2017 se ocupou do dossiê sobre a construção do estádio, atuando também como conselheiro para o M5S. Ele conduziu uma mediação com a empresa Eurnova, de Luca Parnasi, que comprou os terrenos no Tor di Valle para construir o estádio. A Área pertencia à sociedade Sais, da família Papalia. Com a mediação de Lanzalone, o projeto original do estádio foi modificado, com a redução das coberturas do estádio, além do cancelamento de obras de serviço e de duas torres. O projeto de construção do novo estádio da Roma, que terá capacidade para mais de 52 mil pessoas, foi aprovado pela Câmara em junho de 2017. A Procuradoria informou que a A.S. Roma não tem relação com o caso de dimensões políticas.
Bibliografia geral consultada.
ARANTES JÚNIOR, Edson, Regime de Memória Romano: Imagens do Herói Héracles nos Escritos de Luciano de Samósata (século II d. C.). Programa de Mestrado em História. Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas. Goânia: Universidade Federal de Goiás, 2008; PIRES, Francisco Murari, “Machiavel et Thucydide: Le(s) Regard(s) de l’Histoire et les Figurations de l’Historien”. In: Action Politique et Histoire: Le Narrateur Homme d’Action. Sous la direction de Marie-Rose Guelfucci, CEA, 47 (2010): 271-289; ANTIQUEIRA, Moisés, O Império Romano de Aurélio Vítor. Tese de Doutorado. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012; MENNITTI, Danieli, As Mulheres Não Tão Silenciosas de Roma: Representações do Feminino em Plínio, o Jovem (62 a 116 d. C.). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras. Assis: Universidade Estadual Paulista, 2015;  Artigo: “Raggi é Declarada Prefeita de Roma e Toma Posse”. In: http://www.jb.com.br/internacional/2016/06/22; Artigo: “Roma Elege Primeira Prefeita Mulher de sua História”. In: http://noticias.r7/2016REAL, Luiza Andrade Wiggers, Sabinas Lucrécias e Tarperias: O Ritual do Casamento Ressignificado. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Literatura. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2016; Artigo: “Virginia Raggi, Primeira Mulher Prefeita de Roma”. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/18; Artigo: “Virginia Raggi, la Regia: Basta una  sua Frase per Bruciare 71 Milioni di Euro”. Disponível em: http://www.liberoquotidiano.it/24marzo2016; Artigo: Virginia Elena Raggi, alcaldesa en Roma. Disponível em:  http://www.heroinas.net/2016/06; COTOGNI, Isobel, “mayor Virginia Raggi calls for ban on any more migrants living in the city over fears of  ´social tensions`. Disponível em: https://www.thesun.co.uk/news/15/06/2017; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).