terça-feira, 19 de abril de 2016

Golpe de Mestre - Astúcias & Habilidades de Pensar.


                                                                                                             Ubiracy de Souza Braga*
 
                  “Concentração é habilidade de pensar sobre nada quando isto é absolutamente necessário”. Ray Knight  
                                              


O filme Golpe de Mestre defende um enredo que, se passados quarenta anos atrás soasse um tanto inédito, hoje em dia demonstra sua modernidade: a dos vigaristas querendo se safar com um último e bem-sucedido plano golpista. Basta lembrarmo-nos do recente: “Trapaça” (2013) – que, aliás, também concorreu ao Oscar em dez categorias – para verificar como esse tipo de argumento encontra apreciadores na meca do cinema, na igreja e na sociedade política em geral. No filme dirigido por George Roy Hill, o protagonista é o malandro Johnny Hooker, interpretado por Robert Redford, no auge de sua beleza física e talento, conquistando a única indicação ao Oscar como Melhor Ator de sua magnífica carreira, que após um lance de sorte numa “jogada de rua” acaba passando a mão em mais de US$ 10 mil de um otário. O que ele não desconfiava é que esse dinheiro era de um poderoso mafioso, e que sua vítima era apenas um mensageiro. Assim, ele passa a ser perseguido pelo bandido, que pra começar elimina seu antigo parceiro. Johnny Hooker, tanto para se proteger como para vingar o amigo, se junta a um golpista experiente, para juntos armarem um esquema megalomaníaco quase perfeito.
            Assumindo um personagem que muitos recusaram, como o ator Jack Nicholson, por exemplo, Redford afirma ter concordado em ser o protagonista apenas após o diretor George Roy Hill ser contratado. Temia-se que uma história social tão bem engendrada, repleta de subplots e reviravoltas, pudessem fazer sentido nas telas e ser compreendida em sua dimensão trágica pelo espectador. Paul Newman foi o último a entrar – pela vontade de se juntar aos colegas – seu nome é o primeiro do elenco, embora sua presença de coadjuvante, ocupe o espaço do mestre que passa o bastião ao pupilo, como ocorre em argumento semelhante em um dos seus melhores filmes, Desafio à Corrupção (1961). Golpe de Mestre, não seria nada sem esse time em conjunto, pois coloca em evidência mais uma vez a impressionante química de dois astros, e o quão bem ambos funcionavam sob o comando deste cineasta, pois cada um trabalharia mais uma vez com ele, porém em projetos distintos.

                                    
            Na Chicago de reduto operário dos anos 1930 Johnny Hooker é um jovem aprendiz de vigarista. Seu mestre é Luther, uma das figuras mais respeitadas do submundo do crime. Os dois armam o golpe do século contra o poderoso Doyle Loningan, e tudo dá certo. Exceto por um detalhe: a dupla não contava que a vítima enfurecida, iria ordenar categoricamente que todos os envolvidos no desfalque fossem mortos. Inicia-se uma caçada feroz aos golpistas. Dois pesos e duas medidas: por um lado Luther é morto e Hooker passa a ser vítima de chantagens da própria polícia. Para sobreviver nesse mundo individualista e perigoso, Hooker busca a ajuda de Henry Gondorf, um vigarista aposentado que andava sumido, pois estava passando por uma maré de azar. A aproximação, comparativamente, como ocorre na política entre sociedade civil e Estado é evidente. De acordo com o marxista italiano Antônio Gramsci (1975), o Estado não deveria ser visto apenas como governo. Gramsci distingue a divisão de Estado em sociedade política e a sociedade civil. A sociedade política é referente às instituições políticas e o controle legal e constitucional que exercem. A sociedade civil é vista como um organismo fora do Estado ou privado, que pode incluir a economia, por exemplo. A sociedade política é conotada com a força e a sociedade civil com o consentimento, daí a dicotomia do conceito de sociedade civil e a dicotomia entre sociedade civil e política representada no Estado.
            A sequência de abertura de Golpe de Mestre dá o tom da narrativa, através da bem orquestrada simulação de um assalto, que resulta no primeiro golpe aplicado pelos vigaristas Luther e Hooker. Esta cena servirá também como base para todo o desenrolar da trama, que será narrada através da divisão de capítulos, garantindo uma característica de conto ou fábula ao longa-metragem e revelando o bom trabalho de montagem de William Reynolds, que, além disso, ainda confere um ritmo delicioso à narrativa. Conta ainda com um excelente trabalho técnico, responsável pelo belíssimo visual. O conjunto formado pelos impecáveis figurinos de Edith Head, a excepcional direção de arte de Henry Bumstead e a fotografia desnaturada  criam uma reconstituição de época incrivelmente realista, ambientando perfeitamente o espectador à trama. Observe, por exemplo, os carros nas ruas de Nova York, a fachada das lojas e até mesmo os trajes utilizados pelos jogadores para notar como o trabalho técnico é irretocável. O diretor de fotografia Robert Surtees cria ainda uma comunicação visual interessante nos ambientes internos, constantemente utilizando a sombra dos chapéus para encobrir o rosto dos personagens e usando o contraste luz e sombras de forma muito elegante. Finalmente, a ótima trilha sonora de Scott Joplin apresenta deliciosas canções e ainda utiliza o piano para compor divertidas melodias durante os jogos, o que reforça o clima leve e descontraído do filme.

            Não é piedade ou terror que o realismo doméstico das cenas de Golpe de Mestre, repleta de armadilhas, do anacronismo psicologizante ao historicismo mecanicista, o quadro resumido é imensamente sugestivo. Tanto para os interessados em compreender a maestria de um golpe quanto para os que investigam seu realismo na política. Bem pesada a tensão entre desfecho trágico e os recursos cômicos e paródicos, a invasão do domínio trágico pela esfera doméstica e a diferença de classes no âmbito do Estado, a ênfase na materialidade dos objetos cênicos e da vida humana, a submissão da verdade poética do mito ao tribunal da lógica eficaz e das razões práticas cotidianas, parece ser o melhor sinal da impregnação da realidade contemporânea está numa transformação essencial da forma trágica. Acolhendo em proporção inédita elementos cômicos, fundando uma nova tradição, da tragicomédia, vertente aberta à apreensão estética do cotidiano que apreendemos no decorrer da vida.                      
            Os olhos azuis de Paul Newman e Robert Redford, o tema nietzschiano do fraco contra o todo poderoso, as artimanhas inesperadas que mudam o rumo dos acontecimentos a todo instante sem permitir obviedades, um elenco de coadjuvantes em perfeita sintonia dos quais se destacam Charles Durning e Eileen Brennan e uma condução segura e preocupada, acima de tudo, em narrar uma boa história, fazem de “Golpe de Mestre” um filme perfeito. Hoje, sua premissa é ímpar na sociedade política, e no cinema se deve principalmente ao fato de ter servido como base para tantos outros que o seguiram, alguns o homenageando, muitos apenas lhe copiando. É uma obra cada vez mais retumbante de ser feita, que representa um espírito e um formato vitorioso por muitos anos e que fez do cinema norte-americano a expressão que o representa. Uma parte importante da história, e acima de tudo uma peça de reflexão para todos os tipos de público e crítica social e política.                      
            Com o talento de um grande ator eles te conquistam. Com a habilidade de um mágico eles te convencem. Com a velocidade de uma arma eles te roubam. E com a reação de uma tartaruga você descobre que foi vítima de um golpe. No final das contas, é preciso muito apreço pelo “carpe diem” para viver de pequenos golpes pelas ruas de Chicago. Os malandros Johnny Hooker e Luther Coleman não fogem de um desafio. Os seus golpes são simples, entretanto como uma armadilha na selva, você jamais sabe quando está em uma. Um dia o golpe saiu melhor do que o imaginado. O que era pra serem alguns dólares, na verdade se tratava de milhões. Entretanto, aquele montante tinha um dono fora do comum também. A dupla roubou o mafioso Doyle Lonnegan, poderoso gangster de Nova York, que de forma alguma ia deixar a roubalheira passar batida. Ele não queria ser tachado de trouxa. Horas depois do “truque”, Luther Coleman estava morto, e Johnny Hooker era a próxima vítima. A única saída era se aliar ao grande golpista Henry Gondoff, e se vingar aplicando um golpe de mestre. Portanto, o filme Golpe de Mestre, trata do tema da vingança, caro aos nossos dias.
            A relação entre pensar e sentir está em discussão. O que, no entanto, parece que só ilumina e clareia está perpassado de obscuridade através do que é a vingança. Provisoriamente podemos dizer: vingança é a perseguição que resiste, opõe-se e subestima. E terá esta perseguição suportada e conduzida à reflexão até hoje vigente. Quando procede a mencionada dimensão atribuída ao espírito de vingança? Então é preciso que tal dimensão seja vista desde a sua constituição íntima. Para que tal olhar venha a ter em certa medida algum sucesso, consideremos em que configuração essencial se manifesta modernamente. Esta estruturação essencial do ser vem à fala numa forma clássica, segundo a palavra de Nietzsche, no pensamento até hoje vigente determinado pelo “espírito de vingança”. Como pensa Nietzsche a essência da vingança, posto que ele a pensa metafisicamente? Podemos pensar á medida que temos a possibilidade para tal. Porém, ainda não nos garante que o possamos na possibilidade.  
Permitir que algo, segundo o seu próprio modo de ser, venha para junto de nós; resguardar insistentemente tal permissão. Sempre podemos somente isso para o qual temos gosto – isso a que se é afeiçoado, à medida que o acolhemos. Verdadeiramente só gostamos do que, previamente e a partir de si mesmo, dá gosto. E nos dá gosto em nosso próprio ser à medida que tende para isso. Através desta tendência, reivindica-se nosso próprio modo de ser. A tendência é conselheira. A fala do aconselhamento dirige-se ao nosso modo próprio de ser, para ele nos conclama e, assim, nos atem. Na verdade, ater significa: cuidar, guardar. Nós o guardamos se nós não o deixamos fugir da memória, representante que é da concentração do pensamento. Portanto, é o que cabe pensar cuidadosamente, sendo a palavra conselheira de nosso modo próprio de pensar. Golpe de Mestre (1973) saiu da noite do Oscar em 1974, passados 40 anos, com sete estatuetas, incluindo o principal prêmio, de melhor filme. 
Observe, por exemplo, como Redford transmite muito bem a apreensão de Hooker dentro do quarto, momentos antes de supostamente trair o parceiro e entregá-lo aos federais. Após o surpreendente final, entendemos que sua apreensão pode ser interpretada como fruto da ansiedade pela resolução do plano ou pela solidão do personagem, algo que fica claro quando este procura companhia para passar a noite. Mas inteligentemente, no momento em que vemos o personagem apreensivo, somos levados a pensar que ele realmente entregaria o parceiro, graças também à boa interpretação do ator. A cumplicidade da dupla, aliás, é essencial para a empatia do público, pois mesmo sendo dois trapaceiros e golpistas, nos identificamos com os personagens graças às realistas atuações de Newman e Redford. Vale citar a habilidade de Gondorff com as cartas na mão, notável quando as embaralha e sempre mostra o Às de Espadas que tem um passado triste na história. carta ás de espada foi usada na guerra, mais comumente na 2ª guerra mundial e na guerra do Vietnã. 

Durante a grande guerra mundial, os soldados norte-americanos pintavam o ás de espadas em seu capacete para simbolizar a boa sorte. Na verdade, todos os quatro naipes das cartas eram usadas para identificar seus soldados. Durante a guerra do Vietnã, o ás de espadas foi usado para causar medo nos vietnamitas. Não era incomum ver soldados vietnamitas mortos com uma carta de ás espada sobre o corpo. Em alguns casos, milhares de cartas de ás de espada foram colocadas em campos como representação da morte. Assim ele era usado como arma psicológica. O ás de espada pode simbolizar uma variedade de coisas diferentes. A tatuagem de ás de espada normalmente é usada por jogadores, motociclistas e gangues. O ás de espada tem diversas associações na história social e política, assim como significados. Do ponto de vista da representação antropológico, no entanto, nem sempre foi uma das cartas mais significativas nos jogos de baralho. Mas é a carta mais alta do Naipe mais alto em diversos jogos de baralho. Também era usada para demonstrar o nome das companhias de baralhos, pratica que teve sua origem a partir do século XVII, quando o rei Jaime I criou uma lei que exigia que os ases de espada tivessem o símbolo da casa de impressão como confirmação que haviam pago a taxa de produção e é praticado por diversas marcas até hoje como parte da tradição.
Além do sucesso de crítica cinematográfica, o filme também agradou muito ao público. O cenário é a Chicago sindicalista dos anos 1930 e a trilha sonora é ragtime, gênero musical do final do século XIX norte-americano, caracterizado por um tempo musical desigual, sincopado, para dançar ou ao menos balançar pés ou, para manter fidelidade ao estilo, sacudir alegremente as mãos. The Entertainer é a música chave da película, composta por Scott Joplin, de 1902. Aliás, o fato dessa ser uma música de um período anterior ao da ambientação do enredo gerou algumas críticas, superadas em parte pela qualidade da trilha sonora, como também  por ter cumprido o papel de apresentar o ragtime, predecessor do jazz, às novas gerações. Economicamente custou aproximadamente 5 milhões de dólares. Arrecadou nas bilheterias mais de 150 milhões de dólares no mundo. Além do carisma dos protagonistas, o sucesso pode ser atribuído ao roteiro inteligente e envolvente, capaz de misturar muito bem situações engraçadas e inesperadas, além de esconder com maestria o desfecho final. A produção foi excelente, os cenários e figurinos foram criados com extremo cuidado e eficiência. A direção de George Roy Hill é segura e comprova que o diretor havia atingido o auge na composição da sua carreira. O cineasta acertou em cheio no equilíbrio contraditório e em oposição assimétrica da trama. O tom mais leve foi essencial para que o clima de gato e rato funcionasse.
George C. Parker (1860-1936), por exemplo, foi um belo exemplar de vigarista norte-americano  mais conhecido por suas tentativas surpreendentemente bem sucedidas para vender a ponte de Brooklyn . Ele ganhava a vida através da realização de vendas ilegais de propriedade que ele não possuía, muitas vezes considerados marcas públicas de Nova York, para imigrantes incautos. A ponte de Brooklyn foi objeto de várias de suas operações, “baseada na noção de que o comprador controlar o acesso à ponte”. A Polícia removeu várias de suas vítimas a partir da ponte, enquanto tentavam erguer cabines de pedágio. Parker nasceu em Nova York de pais irlandeses. Ele tinha quatro irmãos e três irmãs, e era um jovem graduado do ensino médio. Parker usou vários pseudônimos como um vigarista, incluindo James J. O`Brien, Warden Kennedy, Sr. Roberts e o Sr. Taylor. 
            Além de seu golpe Brooklyn Bridge, outros marcos públicos ele incorporou em seus golpes incluído o original Madison Square Garden, o Metropolitan Museum of Art, Túmulo de Grant e a Estátua da Liberdade. Ele utilizou vários métodos para fazer suas vendas. Quando vendeu Túmulo de Grant , ele costumava posar como neto do general, e ele montou um escritório falso para lidar com suas falcatruas imobiliários. Ele reproduziu documentos falsos como evidência para sugerir que ele era o proprietário legal de qualquer propriedade que ele estava vendendo. Ele também vendia com sucesso vários programas de fama e desempenho, da qual ele não tinha posse legal. O direito de propriedade confere ao titular a autoridade direta, imediata e exclusiva sobre a coisa. O proprietário pode usufruí-la, dirigi-la e dispô-la nos termos da lei. Entretanto, nem todas as pessoas são capazes ou estão interessadas em administrar suas propriedades. Neste caso, a lei permite que a administração do bem seja destacada da propriedade. Isso pode ser implementado pelo uso de instrumentos corporativos, nomeadamente, a transferência da propriedade para pessoa jurídica, como uma corporação, uma sociedade ou uma fundação. Isso também pode ser realizado sem interposição  jurídica entre pessoa física e propriedade, nos casos da administração de menores ou incapazes.
          As tramas de mistério são a raiz da literatura de entretenimento e têm no conto  sua forma narrativa ideal. Mas o que seriam dos heróis sem adversários adequados? Quem desvenda crimes costuma agir de duas maneiras. Ou é um investigador cerebral, como Sherlock Holmes e Hercule Poirot, ou um durão, como Sam Spade e Philip Marlowe. Já as possibilidades para quem os comete são bem mais amplas. Parker foi condenado por fraude três vezes. Depois de uma prisão em 1908, ele escapou do tribunal caminhando calmamente para fora após utilizado o chapéu de um xerife e casaco que tinha sido estabelecido por um xerife que tinha orientado do frio ao ar livre. Depois de sua terceira condenação em 17 de dezembro de 1928, ele foi também condenado a uma pena de prisão perpétua obrigatória na Sing Sing Prison pelo juiz Alonzo G. McLaughlin no County Reis Tribunal. É uma prisão de segurança máxima operada pelo Departamento de Correções e Supervisão Comunitária do Estado de Nova York, na vila de Ossining, Nova York. Está localizado a 48 km ao norte de Nova York, na margem leste do rio Hudson. Ele passou os últimos oito anos de sua vida  encarcerado. Mas lá e era popular entre os guardas e colegas de cela que gostava de audição de suas façanhas. Parker é lembrado como um dos andarilhos de maior sucesso na história norte-americana, como um dos fraudadores mais talentosos da história. Seus métodos se passaram na cultura popular, dando lugar a frases como “e se você acredita que, eu tenho uma ponte para vendê-lo”, um viés ideológico de tornar popular e expressar a crença de que alguém é naturalmente ingênuo.          
Bibliografia geral consultada.

NEDEL, José, Maquiavel: Concepção Antropológica e Ética. Porto Alegre: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1996; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos, Memória Coletiva e Teoria Social. São Paulo: Editora Annablume, 2003; BOBBIO, Norberto, Il Futuro della Democrazia. 1ª edição. Itália: Einaudi Editore, 2005; ABRAHÃO, Miguel, O Strip do Diabo. São Paulo: Editor Agbook, 2009; NIETZSCHE, Friedrich, A Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; PORTANTIERO, Juan Carlos, Fortuna y Virtud en la República Democrática. Estudios sobre Maquiavelo. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2000; VIROLI, Maurizio, O Sorriso de Nicolau. São Paulo: Estação Liberdade, 2002; NIVALDO, José, Maquiavel, o Poder. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004; PARVULESCO, Constantin, Casino: Plaisir du Jeu. Boulogne-Billancourt: Éditions Du May, 2008; PERDIGÃO, João; CORRADI, Euler, O Rei da Roleta: A Incrível História de Joaquim Rolla, o Homem que Inventou o Cassino da Urca e Transformou a História do Entretenimento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra, 2012; VIEIRA, Antônio Tostes Baêta, Os Cassinos Trio de Luxo do Rio de Janeiro: Atlântico, Copacabana e Urca. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Centro de Ciências Humanas e Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2013; FANTA, Daniel, A Neutralidade Valorativa: A Posição de Max Weber no Debate sobre os Juízos de Valor. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; TANAKA, Elder Kôei Itikawa, Inimigos Públicos em Hollywood: Estratégias de Contenção e Ruptura em Dois Filmes de Gângster dos Anos 1930-1940. Tese de Doutorado. Departamento de Letras Modernas. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2015; entre outros.  
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFF), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).  

domingo, 17 de abril de 2016

Cobra de Ferro - Comboio, Cinema & Imaginação de Leões Tsavos.


                                                                                                             Ubiracy de Souza Braga*
 
                                   Eles não são leões, são a sombra e a escuridão”. A fama dos Leões de Tsavos

              

O leão foi descrito no século XVIII por Carolus Linnaeus (1707-1778), em seu Systema Naturae, como Felis leo. Nos séculos XVIII e XIX, a maioria dos naturalistas e pesquisadores seguiram a nomenclatura originalmente proposta. Em 1816, Lorenz Oken (1779-1851) propôs a definição genérica Panthera, original como subgênero de Felis, assim como a Leo e Tigris. Algumas autoridades consideraram o Panthera como “inválido por razões técnicas de nomenclatura e preferiram usar o termo genérico Leo”. Em 1956, a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica rejeitou a obra de Lorenz Oken, Lehrbuch der Naturgeschichte, para fins de nomenclatura zoológica. Na década de 1960 e 1970, a questão sobre a validade do gênero Panthera foi questionada junto a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica, que em 1985 decidiu pela conservação do termo genérico Panthera. O registro fóssil mais antigo atribuído ao Panthera leo provém da Garganta de Olduvai, na Tanzânia, e está datado do Pleistoceno Inferior em cerca de 1,5 milhões de anos. Um registro etnográfico proveniente de Laetoli, na Tanzânia, e datado de 3,5 milhões de anos, era atribuído ao P. leo, entretanto, essa identificação é incerta, e outras interpretações demonstraram que os restos fósseis pertencem a espécie mais primitiva dentro do gênero Panthera.

Alguns registros etnográficos do Plio-Pleistoceno na África do Sul, encontrados nas cavernas em Kromdraai, Swartkrans e Sterkfontein, são atribuídos ao P. leo. Entretanto, o status taxonômico do material das cavernas de Sterkfontein é incerto, e os materiais de Kromdraai e Swartkrans aparentam ser de um animal mais robusto que o leão moderno. A espécie originalmente estava distribuída por toda África subsaariana, exceto na densa floresta tropical e do Norte da África, acima do deserto do Saara através do sudoeste asiático, a Oeste até a Europa (península balcânica e Cáucaso) e a Leste até a Índia. Na África, os leões podem ser encontrados em savanas com arborização escassa de Acacia que servem como áreas de descanso; na Índia, o habitat compreende uma mistura de savana arbustiva seca e floresta decídua seca. O leão tem uma larga tolerância para habitats, ausente somente na floresta tropical e no interior do deserto do Saara. A espécie pode ocorrer do nível do mar até regiões montanhosas, no leste da África pode ser encontrado até 3 600 metros, nos Monte Elgon, Quênia e Ruwenzori, e nas Montanhas Bale, na Etiópia, pode ser encontrado aos 4 200 metros. O leão é o segundo maior felino depois do tigre, apresentando comprimento e peso menor, mas sendo mais alto na cernelha. Possui uma pelagem curta e a coloração é unicolor, variando do castanho claro ao cinza prateado e do vermelho amarelado ao marrom escuro. Não apresenta rosetas e os filhotes e juvenis apresentam manchas na pelagem. O ventre e as partes mediais dos membros são mais claros, e o tufo de pelos na ponta da cauda é preto.

A juba é geralmente castanha, variando em tonalidades amareladas, avermelhadas ou tons mais escuros de marrom. Com a idade, a juba tende a ficar mais escura, podendo ser inteiramente preta. Tem a cabeça arredondada e curta, com a face larga e orelhas arredondadas. Só o macho possui a juba e o leão é o único felino que a possui. Há duas teorias que podem justificar a sua existência, a primeira diz que a juba seria um meio de se defender de predadores e de luta por território; a segunda teoria diz que a juba serve para que o macho pareça maior e assim intimide os adversários, impedindo que na maioria das vezes aconteça luta corporal que representa sociologicamente a teoria convincente e aceita atualmente. Em experiências realizadas com réplicas de leões com jubas de colorações diferentes, as leoas se interessaram por leões de jubas maiores e mais escuras, o que fortifica a concepção da segunda teoria. Também foi observado que nas lutas, o pescoço dos leões raramente é atacado, mesmo no caso de exemplares jovens sem juba.  A primeira teoria, levantada por Charles Darwin (1809-1882), permaneceu, mesmo sem embasamento, até 1972, quando George Schaller publicou seu trabalho intitulado: The Serengeti Lion, sugerindo que leões possuíam grandes jubas para evidenciar qualidades reprodutivas.

                         

Em 1898, os colonizadores britânicos decidiram construir uma ferrovia na África Oriental. Esta ferrovia iria se estender de Mombasa na costa do atual Quênia até o Lago Victoria, e dali seguiria até o país vizinho, Uganda, chamada de Uganda Railroad. A construção da ferrovia tinha uma série de propósitos legítimos. Do ponto de vista da comunicação, era a única rota sobre trilhos para o interior do continente africano substituindo a jornada que tinha de ser feita à pé. Economicamente havia muitas mercadorias agrícolas que poderiam ser transportadas para a costa a fim de ser em seguida distribuída para o mercado ocidental. Um transporte ligando a costa do Quênia ao interior também permitiria uma colonização mais eficiente. No mercado religioso, missionários estavam interessados na palavra de Deus aos povos tribais do interior e as dificuldades da jornada por terra eram um constante empecilho. Finalmente, havia o mercado do tráfico de escravos. A chegada da ferrovia encorajaria pessoas ligadas a captura de escravos a buscar outras atividades. Do ponto de vista técnico-metodológico a construção da ferrovia é dos maiores feitos de engenharia do final do século XIX. Suas 580 milhas de trilhos cruzam o Vale do Great Rift, diversos rios, e alguns dos terrenos mais inóspitos que se possa imaginar. A construção se iniciou em 1896, e chegou a Nairobi em 1899. 

Ela prosseguiu até a cidade de Kismu às margens de Lake Victoria em 1901. Levou mais 27 anos para que a ferrovia atingisse Kampala, além da fronteira de Uganda. Boa parte da mão de obra empregada no empreendimento foi suprida por trabalhadores vindos da Índia, colônia sobre o controle dos britânicos. O censo de 1872 revelou que 91,3% da população da região que forma a atual Índia residia em vilas e a urbanização em geral permaneceu lenta até a década de 1920. Esses trabalhadores comumente chamados de Coolies à princípio não se saíram muito bem na função. É um termo usado historicamente para designar trabalhadores braçais oriundos da Ásia, especialmente da China e da Índia, durante o século XIX e início do século XX. Segundo alguns historiadores especializados no tema, mais de 60% acabaram sucumbindo a doenças e acidentes com animais em seu habitat. A maioria dos que sobreviveram se estabeleceram no Quênia, formando expressiva comunidade de indianos que existe na África ocidental. Esta ferrovia continua em operação, ainda que tenha perdido muito do esplendor do passado. Há passeios turísticos que levam pessoas de muitas partes mundo através deste trecho e do monumental projeto: a construção de uma ponte elevada cruzando o Rio Tsavo (Rio da Morte), a cerca de 132 milhas a noroeste de Mombasa, objeto do filme: A Sombra e a Escuridão (1996).                                              

   O filme The Ghost and the Darkness (“A Sombra e a Escuridão”) foi dirigido por Stephen Hopkins e realizadodo pela Paramount Pictures em 1996, inspirado na história real dos incidentes de Tsavo, em 1898 e dirigido Stephen Hopkins. No final do século XIX acontece a disputa entre franceses, alemães e britânicos para tomarem posse do continente africano. Estando em vantagem, os britânicos encarregam o engenheiro britânico John Henry Patterson (Val Kilmer) para supervisionar a construção da ponte que passa acima do rio Tsavo. Naquele lugar, dois leões começam a atacar os operários. Os leões eram tão agressivos que alguns dos nativos deduziram que eles não eram animais e sim “espíritos dos curandeiros” mortos que vieram para aterrorizar o mundo, enquanto outros pensavam que eram o demônio que havia vindo para impedir o avanço do progresso. As feras são batizadas de “sombra” versus “escuridão”. Diante dos ataques e contando com a ajuda do caçador Remington (Michael Douglas), o engenheiro segue “a missão desesperada para dar fim aos animais”. O fascínio sobrenatural pela chama teve um declínio no imaginário individual e coletivo, mas permanece como fonte de iluminação. Esse lugar imaginário é o cenário de uma situação que propõe, por força da natureza agressiva, que os indivíduos, durante a noite, permanecessem abrigados nas cavernas, onde existia o resguardo contra as intempéries e os animais selvagens.
         Mas não é tão simples como pensam os naturalistas compreender esses fatores físicos e reais. Os Masai vivem em pequenas cabanas feitas de esterco de vaca e estacas de acácia. Um grupo de cabanas é construído dentro de uma área fechada por cercas espinhosas, formando uma aldeia que é chamada de Enkang. Eles permanecem nesta terra enquanto seu gado pasta; quando as pastagens secam, eles se mudam. Entretanto uma grande população dos Masai se estabeleceu nos distritos de Narok, Trans Mara e Kajiado, no Quênia. As mulheres constroem suas casas e os homens cuidam da segurança do assentamento (“Boma”) e do gado. Sobre os masai, particularmente sobre a forma como parte desta comunidade está a ser afetada pelas alterações climáticas na região, está disponível o livro Horizontes em Branco, do escritor José Maria Abecasis Soares publicado em novembro de 2010 pela Editorial Presença (PT). Há também o filme da diretora alemã Hermine Huntgeburth, A Massai branca (“Die weisse Massai”), baseado em uma história real. Dentre suas principais manifestações coletivas, do povo Maasai é a dança em saltos, uma dança guerreira que faz parte do ritual de passagem dos jovens rapazes para a iade adulta e outra é a circuncisão.  

Grupo étnico Massai.
    O engenheiro chefe John Henry Patterson ordenou que fossem construídas bomas, que são cercas de espinhos tradicionalmente erguidas por tribos para manter predadores afastados ao redor dos acampamentos, e que tochas fossem acesas toda noite para afastar os leões. Mas as medidas não surtiram efeito. Os leões ignoraram os obstáculos e fizeram mais uma vítima, dessa vez um homem que transportava água e foi atacado a pouco mais de 300 metros do acampamento. O verdadeiro pânico se instalou quando certa noite, uma das feras rastejou por baixo da boma e entrou numa das tendas onde catorze trabalhadores dormiam. A fera derrubou a tenda, um dos homens foi morto e outro operário indiano gravemente ferido no ombro com uma mordida. O medo se espalhou pelos acampamentos. Patterson determinou que fossem construídas casamatas com 4 metros de altura guarnecidas de iluminação onde atiradores ficariam à postos toda noite. Mais bomas foram construídos para restringir a aproximação e armadilhas foram espalhadas por caçadores de origem tribais contratados junto aos aborígenes.
   Poucos meses depois da chegada do Coronel Patterson, estranhos rumores começaram a circular entre os trabalhadores indianos. Alguns trabalhadores simplesmente haviam desaparecido depois de se embrenhar na mata para realizar alguma tarefa. Na ocasião chegou-se a cogitar que leões podiam ser responsáveis, mas Partterson não acreditou nos boatos. Mas a despeito disso, homens continuaram desaparecendo o que forçou o Coronel a investigar mais a fundo o caso. Uma pequena expedição liderada por Patterson descobriu os restos mutilados de dois operários em uma área isolada a 800 metros do acampamento. Os rastros indicavam que eram dois grandes leões, os responsáveis pelas mortes. Na expedição, um dos felinos foi visto, mas as tentativas de alvejá-lo falharam. - O animal desapareceu, como se fosse uma sombra entrando na escuridão, escreveu o Coronel.
   Mas as medidas não surtiram efeito prático. Coincidentemente o mesmo leão atacou a tenda hospitalar do acampamento, onde o operário que havia sido ferido estava sendo tratado. A fera matou o sujeito e feriu outros dois homens até ser espantada com tiros. Para muitos, o leão havia retornado para terminar o seu trabalho. Ninguém estava seguro! Do ponto de vista mitológico a fera era na verdade um “espírito da morte”, que uma vez tendo marcado sua vítima, retornaria quantas vezes fosse necessário para levá-la. Para outros, a construção estava amaldiçoada e os homens brancos não eram bem vindos a Tsavo. Foi decidido que o melhor seria mudar a tenda hospitalar de lugar. Ela foi movida para o centro do acampamento onde havia relativa segurança. Mas logo na noite seguinte, um leão atacou a tenda e matou um enfermeiro. O pobre foi arrastado para a selva e a equipe de caçadores que seguiu os rastros encontrou a cabeça do homem e a parte inferior de seu corpo na mata. A tenda foi movida, uma cerca de espinhos maior e reforçada foi erguida ao redor como proteção.
  Em 20 de outubro, enquanto o grupo estava longe, as feras atacaram o acampamento. Os dois leões de uma só vez apareceram como por magia, entre as barracas comunais. O primeiro homem foi morto em silêncio, mas outro despertou a tempo de ver a fera se aproximando e deu o grito de alerta. Houve correria e em meio a confusão um bando de “coolies” escalaram uma árvore onde esperavam escapar dos leões. Mas a árvore não aguentou o peso e partiu derrubando todos que estavam no alto. Os leões não se importaram e atacaram ferozmente matando-os. No fim haviam oito vítimas e os leões sumiram tão rápido quanto haviam surgido, sem deixar aparentemente vestígios. Os guardas foram acusados de ter relaxado na vigilância e quando Patterson chegou se deparou com o caos que havia se formado. Os caçadores que o acompanharam até a selva, entre os quais um respeitado caçador da tribo Massai, desertaram, dizendo que aqueles não eram animais normais: - São devoradores de homens, feras que caçam e matam por prazer, não para se alimentar! Eles tomaram o gosto pela caça e pela carne dos homens e nada mais vai satisfazê-los. O episódio reforçou a aura sobrenatural sobre as feras.

  Por um lado, os homens juravam que algo protegia os leões, uma força maligna, que impedia que os animais fossem atingidos, mesmo por disparos feitos à queima roupa. Por outro, um dos atiradores envolvidos teria se suicidado dias depois saltando do alto da ponte em construção para o rio turbulento. Logo, o supervisor e os homens partiram, sem oferecer uma solução para o caso. Patterson estava sozinho novamente. Os dias seguintes foram de apreensão. Com menos presas, os leões sem dúvida seriam atraídos para o acampamento. Os homens queimavam grandes fogueiras durante a noite para manter os felinos afastados e jamais se afastavam sozinhos. Patterson entregou uma arma para cada grupo de cinco homens e convenceu-os de que deveriam atirar ao primeiro sinal de perigo. Em pelo menos três oportunidades os leões se aproximaram do acampamento, e cirurgicamente em uma delas chegaram a entrar silenciosamente nas tendas vazias. O Coronel chegou a relatar em Diário que estavam próximas para ele ouvi-las rondando do outro lado da boma.
Enfim, Patterson teve outra ideia, mandou construir uma plataforma sobre quatro postes de madeira na entrada do acampamento. Esta plataforma chamada “machan”, era usada por caçadores indianos para matar tigres e servia como uma árvore artificial para esconder o caçador. Para anular o faro dos animais, o coronel ordenou que três cabras fossem mortas e o sangue espalhado junto com as carcaças aos pés do “machan”. E lá ele ficou acompanhado de um ajudante que mantinha três rifles de cano duplo ao alcance das mãos. Na terceira noite de vigília, Patterson ouviu o som de gravetos se quebrando e detectou movimento. Um dos leões estava se aproximando, finalmente atraído pelo cheiro de carne. Antes que pudesse apontar a arma na direção da fera, ela saltou contra um dos postes de madeira e abalou a plataforma. Patterson manteve a compostura e conseguiu fazer mira alvejando o leão com um tiro na área superior de sua cabeça. A fera rosnou e se embrenhou nos arbustos. O coronel continuou ouvindo os rosnados e deu mais cinco tiros. Os rosnados continuaram até parar de vez. Pela manhã ele e o ajudante desceram e no caminho encontraram o devorador de homens morto.
Conforme retratado no filme, houve realmente a construção de uma ferrovia e uma ponte que liga a cidade litorânea de Mombaça, no Quênia, e Campala, em Uganda, região do Rio Tsavo, com o objetivo de escoar o comércio de marfim. A história dos leões também é totalmente verídica, contada pelo protagonista da história em seu livro, o engenheiro chefe John Henry Patterson. Logo que os operários acamparam, começaram a sofrer ataque dos leões, até então normal, pois estavam na África, no meio da savana. Nada normal era a forma como os leões atacavam: coordenadamente, sem chance para suas vítimas, sempre em dupla, o que é um comportamento atípico em leões, e a forma como agiam: quase humana. Os nativos da região os chamavam de shaitaini (“demônios da noite”) e os ingleses traduziram isso para “sombra e escuridão”. Eram dois leões machos, adultos e sem juba (o que é um fato muito raro). Há relatos etnográficos de que em vários ataques arrastaram as vítimas vivas por metros a dentro da savana, outros relatos dão conta de que muitas vezes, começavam a devorar sus vítimas pelos pés, ainda vivas. A crueldade dos ataques, a intensidade como passaram a ocorrer fez com que os operários abandonassem a obra. Em 9 meses, eles mataram 140 pessoas. Acredita-se que a escassez de alimento, devido à uma peste que matou muitos animais predados por leões, eles viram na “fartura de seres humanos trabalhadores da ferrovia a oportunidade de comida fácil”. Após meses de tentativas frustradas, o engenheiro chefe John Henry Patterson, em 09 de dezembro de 1898, capturou e matou o primeiro leão; o outro foi morto em 29 de dezembro. Foram empalhados e estão em exposição no Chicago Field Museum of Natural History. Basta acessar o site do museu para ver as fotos e a história social com a narrativa completa sobre as vítimas dos leões. 
Décadas mais tarde, a caverna que servia de covil para os felinos foi descoberta, repleta de ossos humanos evidenciando que os devoradores haviam feito inúmeras outras vítimas. O número total nunca foi determinado, mas há uma estimativa de mais de 135 mortes está dentro provavelmente da realidade. O comportamento incomum e agressivo que até hoje intriga estudiosos do mundo animal que jamais encontraram caso semelhante. Os trabalhadores retornaram e concluíram a construção da ponte sobre o Rio Tsavo. Em 30 de janeiro de 1899, o Coronel John H. Patterson recebeu uma bacia de prata presenteada pelos trabalhadores em agradecimento por sua bravura e determinação. No dia seguinte a inauguração da ponte uma tempestade como nenhuma outra caiu sobre Nairobi, como se a água servisse para lavar o sangue deixado nos trilhos. Patterson partiu da África no final daquele ano. Mas ele retornou em 1906, e viveu muitos anos como guia de safari. Durante esse tempo ele escreveu o livro: Os Devoradores de Homens de Tsavo, que se tornou um best seller. Em 1924, ele vendeu as peles e crânios dos leões para o Museu de História Natural de Chicago, Illinois. Os dois animais foram reconstituídos e colocados em exposição em 1928.
         Durante o decorrer dos anos, o incidente foi ganhando fama, sendo assunto de livros e documentários. Vários filmes também usaram a temática do caso, incluindo The Ghost and the Darkness (1996), premiado com o Oscar, baseado no livro The Man-eaters of Tsavo, escrito pelo coronel John Patterson, que foi o homem especialista que matou estes leões. Várias explicações foram dadas para justificar o comportamento anormal dos animais. Uma das teorias era que as presas naturais dos leões na região foram mortas em massa devido a uma epidemia de peste bovina, o que forçou os predadores a buscar presas alternativas. Outros pesquisadores dizem que os animais já estavam acostumados ao gosto da carne humana devido aos vários corpos que os mercadores de escravos deixavam nas estradas que cortavam a região de Zanzibar, nome dado ao conjunto de duas ilhas do Arquipélago de Zanzibar, ao largo da costa da Tanzânia, na margem leste-africana, de que formam um Estado semiautônomo daquele país. Estudos relativamente recentes também indicam que os animais tinham problemas nos seus dentes, o que tornava caçar suas presas naturais mais difíceis.
          Também se acredita que a carne humana poderia ser “um complemento à dieta dos animais” e como os trabalhadores eram presas fáceis, eles acabaram se tornando seu alvo principal. O leão tem sido um ícone para a humanidade por milhares de anos, aparecendo em culturas de toda a Europa, Ásia e África. Apesar de incidentes de ataques a seres humanos, os leões têm tido uma representação positiva na cultura, representando tanto força como pela astúcia e nobreza. Leão foi usado como apelido por vários governantes guerreiros medievais com uma reputação de bravura, como o rei inglês Ricardo Coração de Leão, Henry, o Leão (em alemão: Heinrich der Löwe), duque da Saxônia e Robert III de Flandres apelidado de o leão da Flandres, um grande ícone nacional flamengo até o presente. Leões são frequentemente descritos em brasões, como um dispositivo em escudos ou como partidários. Leões continuam a figurar na literatura moderna e contemporânea, sendo símbolo heráldico de muitas famílias da nobreza da série de livros das Crônicas de Gelo e Fogo, como os Lannisters e os Reynes.
           Na literatura também se destacam leões personagens de caracteres variando do messiânico Aslan, um leão que apresenta muitos dos ideais associados à espécie, como liderança e coragem, em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa e livros seguintes da série As Crônicas de Nárnia escrita por C. S. Lewis, ao Leão Covarde, antítese a esses mesmos ideais, em O Mágico de Oz. O advento de imagens em movimento viu a contínua presença do simbólico leão, um dos leões mais icônico e amplamente reconhecido é Leo o Leão, que tem sido o mascote para os estúdios da empresa Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) desde a década de 1920. Na década de 1960, surgiu a mais famosa leoa, o animal queniano Elsa, no filme Born Free, baseado no best-seller internacional homônimo. É um filme britânico de 1966 estrelado por Virginia McKenna e Bill Travers como Joy e George Adamson, um casal que adota Elsa, um filhote de leão. Quando adulta percebem que Elsa deve viver em liberdade e a preparam para viver na natureza, soltando-a em uma reserva no Quénia. O papel do leão como rei dos animais tem sido utilizado em desenhos animados, da década de 1950 com o mangá que deu origem à primeira série japonesa de animação colorida na TV, Kimba, o Leão Branco, leão Leonardo da King, ambos da década de 1960, até o filme de animação, de 1994, da Walt Disney o Rei Leão, que também contou com a canção popular The Lion Sleeps Tonight  em sua trilha musical sonora.
Bibliografia geral consultada.
GENOVESE, Eugene, A Economia Política da Escravidão. Rio de Janeiro: Palas, 1976; KEMP, Tom, La Revolucion Industrial en la Europa del Siglo XIX. Barcelona: Libros de Confrontacion, 1976; WILLIAMS, Eric, Capitalismo e Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Palas, 1978; CORNEVIN, Marianne, Apartheid, Poder e Falsificação Histórica. Lisboa: Edições 70, 1979; KI-ZERBO, Joseph (Org.), História Geral da África. São Paulo: Editora Ática; Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, 1982; ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profano. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1992; HALBWACHS, Maurice, A Memória Coletiva. São Paulo: Editor Centauro, 2006; COSTA, Edilson da, A Impossibilidade de uma Ética Ambiental: O Antropocentrismo Moral como Obstáculo ao Desenvolvimento de um Vínculo Ético entre o ser Humano e Natureza. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2007; BOGART, Dan, “A Global Perspective on Railway Inefficiency and the Rise of State Ownership, 1880–1912”. In: Explorations in Economic History, 47(2), 2010; 158–178; CUNHA, Luciano Carlos, O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal: Uma Análise Crítica Comparativa das Perspectivas de Peter Singer, Steve Sapontzis, Tom Regan e Gary Francioni. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Filosofia.  Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010; SCHWALB, Diego Zanoto; GARCIA, Jeferson, BECK, José Orestes, QUINSANI, Rafael Hansen, “África Meridional Inglesa: Das Estruturas Coloniais ao Desenvolvimento Econômico, Político e Social no Século XX”. In: Revista Historiador. Ano 3 (3): 41-63, dezembro de 2010; GENTILI, Anna Maria, El León y el Cazador. Historia del África Subsahariana. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales,  2012; Artigo: “Análises genéticas revelam origens dos leões modernos”. In: http://g1.globo.com/natureza/noticia/2014/04/06; MÜTZENBERG, Bruno Vinicius, O Emergente Preservacionismo Transimperial durante o Colonialismo na África: a Conferência Internacional para a Proteção da Vida Selvagem (Londres, 1900). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2015; entre outros.  
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).             

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Simone de Beauvoir - O Amor e a Condição da Mulher Contemporânea.



Ubiracy de Souza Braga*

           O sexo não se julga apenas, administra-se”. Michel Foucault

            
       Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, é, simplesmente, mais conhecida como Simone de Beauvoir (Paris, 1908, Paris, 1986), uma escritora talentosa, filósofa existencialista e feminista francesa par excellence. Escreveu romances, monografias sobre filosofia, política, sociedade, ensaios, uma autobiografia: Mémoires d’une jeune fille rangée (1958) e uma biografia: La Cérémonie des adieux suivi de Entretiens avec Jean-Paul Sartre: août - septembre 1974.  Simone de Beauvoir era a mais velha das únicas duas filhas de Georges Bertrand de Beauvoir, um advogado em tempo integral e ator amador, e Françoise Brasseur, uma jovem mulher de Verdun. Nasceu em Paris como Simone (então um nome pomposo que seu pai gostava) - Lucie (por sua avó materna) - Ernestine (por seu avô paterno, Ernest-Narcisse) - Marie (pela Virgem Maria) Bertrand de Beauvoir (ela foi orientada quando criança a dar seu nome como simplesmente “Simone de Beauvoir”). Era uma criança atraente, mas mimada, teimando para obter o que queria, tendo sido o centro das atenções em sua família. A mãe não foi uma grande costureira, e as roupas que costurou eram mal ajustadas. Ao crescer, Simone de Beauvoir não tinha amigos, exceto no âmbito familiar a irmã Hélène, que era dois anos e meio mais nova e de quem ela era próxima.
Em 1909, o avô materno de Beauvoir, Gustave Brasseur, presidente do Banco Meuse, faliu, jogando toda a sua família em desonra e pobreza. Georges não recebeu o dote devido por casar-se com Françoise, e a família teve que se mudar para um apartamento menor. Georges de Beauvoir teve de voltar ao trabalho, embora o trabalho não lhe agradasse. A família lutou durante toda a infância das meninas para manter seu lugar na alta burguesia, e Georges dizia frequentemente: “Vocês, meninas, nunca vão se casar, porque vocês não terão nenhum dote”. Beauvoir sempre esteve consciente de que seu pai esperava ter um filho, ao invés de duas filhas. Ele afirmava, “Simone pensa como um homem!” o que a agradava muito, e desde pouca idade Beauvoir distinguiu-se nos estudos. Georges de Beauvoir passou seu amor pelo teatro e pela literatura para sua filha. Ele ficou convencido de que somente o sucesso acadêmico poderia tirar as filhas da pobreza. Hélène tornou-se uma pintora. Do ponto de vista da formação ela se tornou uma adolescente desajeitada, dedicada aos livros e à aprendizagem, e preferiu ignorar os esportes porque ela não era nada atlética  e cada pessoa, socialmente busca determinada coisa e tem uma motivação diferente para se realizar no mundo. 

 
      
Ela e sua irmã foram educadas no Institut Adeline Désir, ou Cour Désir, “uma escola católica para meninas, algo que era desprezado pelos intelectuais da época”. As escolas católicas para meninas eram vistas como lugares onde as jovens aprendiam uma das duas alternativas abertas às mulheres: casamento ou um convento. Sua mãe, que Beauvoir considerava uma intrusa espiando cada movimento seu,  frequentou aulas com elas, sentada atrás delas, como se esperava que a maioria das mães fizessem. Lá Beauvoir conheceu sua melhor amiga, Elisabeth Le Coin (ZaZa nas memórias de Beauvoir). Simone amou a escola e se formou em 1924 com “distinção”. Aos 15 anos, Beauvoir já havia decidido que seria uma escritora. Jacques Champigneulle tornou-se seu mentor intelectual e amigo, aquele que sua mãe esperava que fosse cortejá-la e um dia se casar com ela. Geraldine Paro (GéGé) e Estepha Awdykovicz (Stépha) tornaram-se suas amigas. Depois de passar nos exames de bacharelado em matemática e filosofia, estudou matemática no Instituto Católico e literatura e línguas no Instituto Sainte-Marie, e em seguida, filosofia na Universidade de Paris (Sorbonne). Em 1929, quando na Sorbonne, Beauvoir fez uma apresentação sobre Leibniz. Lá, ela conheceu outros jovens, incluindo Maurice Merleau-Ponty, René Maheu e Jean-Paul Sartre que sugeriu aos outros dois que Simone, então com 21 anos, fizesse uma apresentação privada de Leibniz para ajudá-los nas provas. 
Enquanto na Sorbonne, Maheu deu a Beauvoir o apelido que lhe acompanharia ao longo da vida, Castor, dado a ela por causa do forte trabalho ético do animal. Em 1929, na idade de 21, Beauvoir se tornou “a pessoa mais jovem a obter o Agrégation na filosofia, e a nona mulher a obter este grau”. No exame final, ficou em segundo lugar; Sartre, 24 anos, foi o primeiro, mas ele havia sido reprovado em seu primeiro exame. O júri do Agrégation discutiu sobre a possibilidade de dar a Sartre ou Beauvoir primeiro lugar na competição. No final, concederam a Sartre. Sua amizade com Elizabeth Mabille (“Zaza”) foi abruptamente rompida com a morte precoce de Zaza. Simone narrou esse episódio de sua vida, em seu primeiro livro autobiográfico, Memórias de Uma Moça bem-comportada, que é a primeira parte da obra autobiográfica em que critica os valores tipicamente burgueses, onde descreve a sua educação numa família de classe média, sem dinheiro e sem relações sociais, e a sua mudança da vida, graças à literatura, à filosofia e a novas amizades. Move-a um desejo de intervenção filosófica e de que a sua vida seja útil. Sem temor escolher o seu próprio destino e de se tornar alguém. Escolhe a filosofia e com ela uma forma determinada.

                  
         Logo se uniu estreitamente ao filósofo Jean-Paul Sartre e a seu círculo, dos amigos íntimos (a chamada família) criando entre eles uma relação social polêmica e fecunda, que lhes permitiu compatibilizar suas liberdades individuais com sua vida em conjunto. Na verdade, é difícil caracterizá-los como casal, porque viveram longas relações amorosas cada um com outras pessoas; Beauvoir, por exemplo, teve uma forte relação com o escritor norte-americano Nelson Algren logo após a guerra, e na década de 1950 manteve outra relação duradoura com Claude Lanzmann,  cineasta francês conhecido pelo documentário Shoah (1985) e também Editor chefe da revista Les Temps Modernes, fundada por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, e professor da European Graduate School em Saas-Fee, na Suíça. Em 2009, ele publicou suas memórias sob o título Le lièvre de Patagonie.  No verão, era comum Simone de Claude Beauvoir e Lanzmann viajarem com Sartre e sua amante Michelle Vian, ex-esposa do escritor Boris Vian. Profissionalmente Simone de Beauvoir foi professora de filosofia até 1943 em escolas de diferentes localidades francesas, como os casos de cidades como Ruão e Marselha. Morreu de pneumonia em Paris, aos 78 anos. Encontra-se sepultada no mesmo túmulo de Jean-Paul Sartre no Cemitério de Montparnasse em Paris.
            Vale lembrar que Sartre em 1924 ingressou na École Normale Supérieure na mesma turma de Paul Nizan, Daniel Agache e Raymond Aron. Curiosamente músico e ator talentoso e sempre disposto a participar de brincadeiras e eventos sociais, Sartre torna-se muito popular entre os colegas na universiade. Os alunos da escola se dividem em grupos de afinidades religiosas, ateus  e “carolas”, e claro das facções políticas, socialistas, comunistas, reacionários, pacifistas. Mas Sartre adere aos ateus e aos pacifistas e enquanto Aron e Nizan aderem aos círculos socialistas e comunistas e começa a participar da vida política francesa, o que o leva a manter o individualismo e o desinteresse pela política que conservaria até o fim da Segunda Guerra. No campo filosófico, além de Bergson, passou a ler Nietzsche, Kant, Descartes e Spinoza. Já na escola começa a desenvolver as primeiras ideias de uma “filosofia da liberdade leiga”, tendo como representação a oposição entre os seres e a consciência, do absurdo e da contingência que ele viria a desenvolver posteriormente em suas grandes obras filosóficas. Seu principal interesse filosófico é o indivíduo e a psicologia. A singularidade é o que distingue um homem de outros, é o que o torna na ontogênese humana.

               Em 1931, Simone de Beauvoir é nomeada professora em Marseille, e Sartre é nomeado para o Havre. Este afastamento provoca em Beauvoir tamanha contrariedade que Sartre lhe propõe casamento. Ela se recusa, pois não queria aderir aos moldes das obrigações familiares e sociais, nem alterar a originalidade inestimável de suas relações pessoais. Aos 23 anos, Beauvoir prefere Sartre em liberdade. Lembramos nessas notas que Sartre e Beauvoir nunca formaram um casal monogâmico. Não se casaram e mantinham uma “relação aberta”. Sua correspondência é repleta de confidências sobre suas relações com outros parceiros. Além da relação amorosa, eles tinham uma grande afinidade intelectual. Beauvoir colaborou com a obra filosófica de Sartre, revisava seus livros e também se tornou uma das principais filósofas do movimento existencialista. Sua obra literária que inclui diversos volumes autobiográficos frequentemente relata o processo criativo de ambos.
No verão, os dois partem para a Espanha a convite de Fernando Gerassi, a fim de aproveitarem as férias. De volta a Marseille, Simone começa a chamar a atenção, no Lycée Montgrand, “por sua forma provocadora de lecionar”. No aparente “isolamento” de Marseille, Beauvoir aproveita para provar a si mesma que é capaz de se “despolarizar” intelectualmente de Sartre. Em outubro de 1932, a fim de ficar mais perto de Paris, Simone consegue uma transferência, não por acaso, se seguirmos a trilha aberta na psicanálise por Freud sobre as descobertas do inconsciente, para o Lycée Jeanne d`Arc em Rouen (a uma hora de trem do Havre). Logo se estabelece uma rotina: “todas as quintas-feiras Sartre vai a Rouen, e os dois passam os fins de semana em Paris”.
Do ponto de vista literário e filosófico, as suas obras oferecem uma visão sumamente reveladora de sua vida e de seu tempo. Em seu primeiro romance, A convidada (1943), explorou os dilemas existencialistas da liberdade, da ação e da responsabilidade individual, temas que abordou igualmente em romances posteriores como O sangue dos outros (1944) e Os mandarins (1954), obra pela qual recebeu o Prêmio Goncourt e que é considerada a sua obra-prima. As teses existencialistas, segundo as quais “cada pessoa é responsável por si própria”, introduzem-se também em uma série de quatro obras autobiográficas, além de Memórias de uma moça bem-comportada (1958), destacam-se A força das coisas (1963) e Tudo dito e feito (1972). Entre seus ensaios críticos cabe destacar principalmente: a) O Segundo Sexo (1949), onde se detém sobre uma profunda análise sobre o papel das mulheres na sociedade; b) A velhice (1970), sobre o real de envelhecimento, onde teceu críticas apaixonadas sobre a atitude da sociedade com os anciãos; e last but not least, e  não é um truísmo, A cerimônia do adeus (1981), onde evocou seu companheiro de tantos anos, Jean-Paul Sartre.
Simone conhece Colette Audry, também professora na mesma escola, mas uma romancista  roteirista e crítica. Audry nasceu em Orange, Vaucluse. Ela ganhou o Prix Médicis para o romance autobiográfico Derrière la Baignoiree; logo se tornam amigas. Beauvoir rejeita o quinto romance que havia acabado de escrever, insatisfeita com o resultado final. Troca ideias com Sartre e sugere que ele faça mudanças no livro que está escrevendo (A Náusea). Simone também organiza as “novas teorias” de Sartre, que mais tarde se transformariam em A Transcendência do Ego. Em Rouen, no Havre, em Paris, o trabalho em comum prossegue em conversas, nas cartas e nos famosos cadernos de notas de que ambos têm conhecimento recíproco. No outono de 1933, Sartre consegue uma bolsa de um ano no Institut Français de Berlin, onde estudará Husserl e Heidegger. Em fevereiro de 1934, Beauvoir visita Sartre em Berlim, a fim de certificar-se de que a nova paixão dele (pela esposa de um amigo) não a ameaça. De volta a Rouen, Simone acaba percebendo entre suas alunas Olga Kosakiewicz, “a pequena russa”, por quem rapidamente se afeiçoa, não demorando a ser correspondida. Com o retorno de Sartre à França, Beauvoir, ele e Olga iniciam uma espécie de triângulo amoroso, o Trio. Jacques-Laurent Bost, ex-aluno de Sartre no Havre, uma comuna francesa na região administrativa da Normandia, no departamento Seine-Maritime e acaba se juntando ao grupo de amigos de Simone e Sartre, “la petite famille”, que fazem do Hôtel Le Petit Mouton seu quartel-general.
Simone e Sartre “adotam” Olga, responsabilizando-se por seus estudos, que não tardam a fracassar. O relacionamento do Trio experimenta seu apogeu, e logo em seguida vem o declínio. Olga Kosakiewicz  inicia um envolvimento com Jacques-Laurent. E Beauvoir começa a escrever uma série de contos e novelas que mais tarde comporiam o livro Quando o Espiritual Domina. No verão de 1936, transferida para Paris, Simone começa a lecionar no Lycée Molière, instalando-se no Hôtel Royal Bretagne. Também ocorre que Sartre é transferido para Laon, mas o Trio e la petite famille continuam a existir, fazendo do Dôme seu novo ponto de relacionamento e encontro. Vítima de uma inusitada congestão pulmonar, Beauvoir é hospitalizada. Para uma convalescença apropriada ela se muda para um hotel mais confortável (e caro) na rue Delambre. Em 1937, durante uma viagem pelos Alpes, Simone envolve-se com Bost, que lhe fazia companhia - o que, de certo modo, acaba provocando a dissolução definitivamente do Trio. Incentivada por Sartre a colocar empenho de si mesma no processo criativo e em seus livros, Simone de Beauvoir começa a escrever A Convidada(1943). Considerada uma de suas melhores obras mais argutas sobre o desejo, tem como escopo o triângulo amoroso entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre com uma jovem que fascinava ambos. Ipso facto serve para questionar o modelo burguês de casal e de família, assim como explorar os dilemas existencialistas da liberdade, da ação e da responsabilidade individual pelo prazer.

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir quando visitaram a Reitoria da UFC. Na foto, o casal é recebido pelo Reitor Martins Filho e pelos escritores Milton Dias e Fran Martins (os dois à direita), em setembro de 1960.

          Início orgástico de um novo trio: Beauvoir, Sartre & Bianca. Entretanto, em virtude da guerra, o relacionamento é bruscamente interrompido. Em 3 de setembro a Segunda Guerra Mundial é declarada. Sartre é convocado para o exército, Bost também. Numa Paris subitamente vazia, Simone começa a escrever um diário específico sobre este período, do qual uma parte será incorporada, bem mais tarde, em A Força das Coisas. Dispensada de suas funções no Lycée Molière desde a declaração de guerra, Beauvoir consegue, em outubro, um lugar como professora no Lycée Camille-Sée e também no Lycée Henri-IV. Nestas instituições suas aulas eram frequentemente interrompidas pelos alertas de bombardeio. Muda-se para o Hôtel du Danemark, na rue Vavin. Apesar (ɐpə'zardə) de não ser casada com Sartre, Simone obtém um salvo-conduto que lhe permite visitá-lo em Brumath, comuna francesa na região administrativa de Grande Leste, no departamento Baixo Reno. Era conhecida como Brocômago durante o período romano.   No tempo em que passam juntos, leem o que haviam escrito, utilizando uma técnica de interpretação curiosa: “cada um na ausência do outro”. Para sermos breves, “feminismo francês” é um ramo sociológico do feminismo que teria origem a partir de um grupo de estudiosos franceses, da década de 1970 à de 1990.
            O feminismo francês comparado ao anglófilo, se destaca por uma abordagem mais filosófica e literária, e seus escritos tendem a ser efusivos e metafóricas, menos preocupados com a doutrina política, e geralmente mais focados nas teorias “do corpo”. O termo inclui autores que não são necessariamente franceses, mas que trabalharam substancialmente na França ou na tradição francesa, tais como Julia Kristeva e Bracha Ettinger. Como vimos, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu romances, monografias sobre filosofia, política e questões sociais, ensaios, biografias e uma autobiografia, e é conhecida atualmente por seus romances metafísicos, incluindo Ela Veio Para Ficar e Os Mandarins, e por sua obra-prima O Segundo Sexo, de 1949, uma análise detalhada da opressão sofrida pela mulher e um tratado com as fundações do feminismo contemporâneo. O livro estabelece um existencialismo feminista, que determina uma revolução moral. Como existencialista, aceitou o preceito de Sartre de que “a existência precede a essência” e, portanto, “não se nasce uma mulher, torna-se uma”. Sua análise se concentra na construção social da Mulher como “o Outro”, que ela identifica como sendo fundamental à opressão da mulher.
  Um de seus argumentos principais é o de que as mulheres teriam sido consideradas, ao longo da história, como anormais e transviadas, e sustenta ainda que até mesmo Mary Wollstonecraft é geralmente considerada a fundadora do feminismo. Seu pensamento marca a primeira elaboração sistemática de um entendimento das raízes da opressão sofrida pelas mulheres, pois ao nível afetivo ela considerava os homens como o ideal ao qual as mulheres deviam aspirar; para o feminismo seguir adiante, segundo ela, esta atitude deveria ser abandonada. Na década de 1970 as feministas francesas abordaram o feminismo com o conceito categórico “écriture féminine”. Segundo  Hélène Cixous  ensaísta, dramaturga, poetisa e crítica literária francesa com diversos títulos honorários de universidades canadenses, irlandesas, britânicas e norte-americanas a escrita e a forma de pensar a filosofia seriam “falocêntricas”, e como Luce Irigaray, filósofa e feminista belga é uma pensadora interdisciplinar cujos trabalhos se dividem entre filosofia, psicanálise e linguística.  Enfatizou a “escrita do corpo” como um exercício prático subversivo. Enfim, além disso, a filósofa e psicanalista feminista Julia Kristeva influenciou a teoria feminista, em especial a crítica literária feminista, e, a partir da década de 1980, a artista e psicanalista Bracha Ettinger influenciou a crítica literária, história da arte e a teoria cinemática. Como anteviu ainda Elizabeth Wright: - “nenhuma destas feministas francesas se alinha com o movimento feminista tal como ele aparecia no mundo anglófilo”.




          Quando surgiu, em 1949, “O Segundo Sexo” causou tanta admiração, quanto estranheza. Originava-se uma obra vasta, tecnicamente dividida em dois volumes, bem documentada e alicerçada na lógica e no conhecimento e aparentemente muito pouca feminina. Às mulheres então estavam reservadas no âmbito da divisão social do trabalho aos fecundos gêneros literários como o romance ou a novela para perceber sua importância na formação do sujeito e da sociedade. Tendo como missão, sem ser messiânica, pôs a nu a condição feminina, explorou áreas ligadas à situação da mulher no mundo, englobando história, filosofia, economia, biologia, etc., bem como alguns “case studies” e algumas experiências particulares. Simone queria demonstrar para o mundo social e afetivos que a própria noção de feminilidade era uma ficção inventada pelos homens na qual as mulheres consentiam, fosse por estarem pouco treinadas nos rigores do pensamento lógico ou porque calculavam ganhar algo com a sua passividade, perante as fantasias masculinas que tem como representação a legitimação e ocultação da exclusão que sua expressão determina.
          Enfim, comparando ainda Simone de Beauvoir, se me permitem a digressão, está longe de ser (e deveria?) uma Maria Quiteria de Jesus (1792-1853), militar brasileira, heroína da Guerra de Independência e menos ainda, a revolucionária Anita Garibaldi, Ana Maria de Jesus (1821-1849), a companheira do revolucionário Giuseppe Garibaldi, sendo conhecida como a “heroína de dois mundos”? Ou mesmo uma Olga Benario Prestes, companheira do líder comunista Luiz Carlos Prestes, de façanha ímpar no contato com o gentio mais diverso um movimento político-militar de origem tenentista, que entre 1925-27 se deslocou pelo interior do país pregando reformas políticas e e combatendo o governo do então presidente Arthur Bernardes e, posteriormente, de Washington Luís?Ou, pelo talento político de Hilary Rodham como estadista, conquanto se fosse contrarrevolucionária, certamente poderia ser igualada a Marie Curie, em verdade Maria Sklodowiska, pioneira no estudo da radioatividade  que obteve o prêmio Nobel, ou, como Margaretha Geertruda Zelle quando servindo-se de sua capacidade de sedução para trabalhar como “espiã dos franceses para o governo alemão”.
Um tribunal francês ordenou que fosse fuzilada, por “alta traição”, ou ainda como no caso da escritora Virginia Woolf, pela moradia londrina de Bloomsbury onde passaram autores como J. M. Keynes e C. M. Foster, que se suicidou afogado por medo de distúrbios mentais - Michel Foucault chegara tarde para acudi-la com sua genealogia sobre o saber-poder. Ou ainda, como aquela mulher que deve constar de nosso inconsciente, para fazermos referência à Freud, a brasileira, cantora e atriz que “fez fama em seu país”, chamada Maria do Carmo Miranda da Cunha, luso-brasileira  e precursora do tropicalismo, talvez, mal comparando nos dias de hoje a uma Britney; a missionária Gonxha Agnes, reconhecida como Tereza de Calcutá; a cantora Edith Piaf, que “fora criada pela avó que dirigia uma casa de prostitutas”; a política Evita Perón, casada com o líder populista argentino Perón, pois como mulher lutou pelos direitos civis dos trabalhadores e da mulher, tal qual La Negra, Mercedes Sosa neste país, entoando “gracias a la vida que me ha dado tanto”; ou mormente a atriz norte-americana Grace Kelly, cuja sina foi ter abandonado a sua carreira de cinema como estrela para casar-se em 1956, com o príncipe Rainer de Mônaco, quando posteriormente morre num acidente de trânsito quando viajava com a sua filha Estephanie de Mônaco, como na homenagem entoada na voz do cantor Paulo Ricardo na incisiva toada de “Olhar 43”.

Melhor dizendo, para insistirmos nesta direção, para louvar a Deusa, como se referem os gregos “se conhece pelo andar”, Leila Diniz (1945-1972), conhecida como “a mulher de Ipanema”, defensora do “amor livre e do prazer sexual”, tal como fora Simone de Beauvoir, é sempre lembrada como símbolo da revolução sexual feminina, que rompeu os conceitos e tabus em moda, esclarecidos in partibus infidelium pelos estudos do antropólogo francês Claude Lévi-Straus, “que não gostou da baía de Guanabara, pois achou que ela tinha uma boca banguela”. Mas neste caso, por meios das ideias e atitudes de uma mulher; como também ocorrera, no plano obscuro da política para a mulher islâmica, Benazir Bhutto, líder do partido popular do Paquistão (1953-2007), primeira mulher que ocupou o cargo de premiê de um país muçulmano, ipso facto fora assassinada em plena campanha política. Mas a perda também se dá como ocorrera com a Realeza inglesa quando a jovem e bela Diana de Gales, reconhecida socialmente como a “Princesa do povo” (1961-1997), morre ao lado do namorado em um controvertido puzzle, ainda inexplorado acidente de trânsito “à la James Bond”, quando fugia supostamente da perseguição vampiresca dos chamados “paparazzi”, uma nova farsa da “notícia avant première”, enquanto indiscretos fotógrafos de celebridades. 

Bibliografia geral consultada.

BORNHEIM, Gerd, Sartre. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971; SARTRE, Jean-Paul, Critique de la Raison Dialectique. Paris: Éditions Gallimard, 1960; SOBOL, Donald, The Amazons of Greek Mythology. Nova Yorque, 1972; BEAUVOIR, Simone de, O Segundo Sexo. 1. Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991; Idem, O Segundo Sexo. 2. A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980; SCHORSKE, Carl, Viena fin-de-siècle - Política e cultura. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1988; ASCHER, Carol, Simone de Beauvoir: Uma Vida de Liberdade. Rio de Janeiro: Editor Francisco Alves, 1991; MEZAN, Renato, A Sombra de Dom Juan. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993; SIMMEL, Georg, “O Papel do Dinheiro nas Relações entre os Sexos - Fragmento de uma Filosofia do Dinheiro”. Disponível em: Filosofia do Amor. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993; SCHUMAHER, Schuma  e VITAL BRAZIL, Érico (Organizadores),  Dicionário Mulheres do Brasil – De 1500 até a Atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, “Feminismo pós-1975”, pp. 229 e ss.; ROMANO, Luís Antônio Contatori, A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, 2000; BECKER, Howard, Falando da Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009; GUIMARÃES, Maíra, O Universo Feminino à Luz de Simone de Beauvoir: Vida, Ficção e Teoria. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais , 2015; entre outros.  
 
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto a Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).