“Quem acha sem procurar é quem longamente buscou sem encontrar”. Gaston Bachelard
No panorama filosófico do século
XX, a obra de Gaston Bachelard tem como representação uma reflexão referencial
sobre a ciência e os saberes objetivos em que se revela outra direção
fundamental do seu pensamento – a poética. A psicanálise vem em auxílio de uma
ideia implícita na obra de Bachelard: o homem é um ser que se percebe na sua relação
de habitação e familiaridade inquietante com as coisas do mundo. Essa é a
condição do ser que vive num mundo constituído por saberes e verdades que ele
próprio inventa. A poesia e a ciência é uma forma de compreender a relação do
homem com o seu saber. O nascimento de tal categoria decorre do desdobramento
de questões relativas ao tempo incluídas em obras anteriores como: “L´Intuition
de l`instant” (1932), e “La Dialéctique de la Durée”, (1936), nas quais a
filosofia de Bachelard desenvolve as teses da instantaneidade e da descontinuidade
temporais. Neste sentido da durée bergsoniana, Bachelard contrapõe a
noção de “descontinuidade temporal”. O tempo e a instantaneidade correspondem,
para ele a problemática presente no livro: “L´intuition de l`instant”, é que o tempo é uma realidade fechada sobre o instante e interrompida entre dois
nadas. O tempo poderá renascer, mas é necessário primeiro que morra.
Ele não poderá transportar o seu ser de um instante para outro instante para
daí fazer uma duração.
Em 1930, aos 46 anos, com a obtenção do título de doutor, iniciou sua carreira universitária na Faculdade de Letras, cidade de Dijon, capital da região da Burgúndia no Departamento francês Côte-d`Or, importante centro de comercial, industrial, cultural e universitário da França, permanecendo até novembro de 1940, quando foi nomeado para a Sorbone, onde passa a ministrar cursos muito disputados pelos alunos devido ao espírito livre, original e profundo deste filósofo que foi um professor par excellence. Em 1951, ingressa na legião para a Academia de Ciências Morais e Políticas de Paris, quando posteriormente laureado com o Grande Prêmio Nacional de Letras em 1961, próximo de sua morte ocorrida em 1962. No auge do prestígio intelectual proferiu a conferência inaugural do 1° colóquio de Les Cahiers Internationaux de Symbolisme, realizado em 1962, em Paris. Em sua memória foi criado o Centre Gaston Bachelard de Recherches sur L`Imaginaire et la Racionalité na Universidade de Borgonha. Em “A Intuição do Instante” o autor desenvolve e amplia a ideia do historiador francês Gaston Roupnel em um de seus mais importantes estudos – chamado Siloë – que propõe o olhar sobre a história numa perspectiva de tempo descontinuada, em instantes. Em Siloë, só o amor faz com que a duração progrida à medida que nos direcionamos à fonte única e misteriosa de seu leito. A partir da demonstração de alguns dos principais conceitos da filosofia bergsoniana – duração, criação, impulso vital – ele desenvolve e alonga a tese de Roupnel refutando que “a duração não passa de um número cuja unidade é o instante”. Segue afirmando que a duração não tem força direta – já que não é em si representativa de um ato – e que o tempo real só existe verdadeiramente pelo instante isolado, esse sim, acontecendo inteiramente no presente, no ato.
Enfim, após ter lido os “Cantos de Maldoror” de
Lautréamont – sua principal obra, escrita originalmente em francês –, o
filósofo Gaston Bachelard será um dos primeiros a escrever um livro acerca
deste literato em 1939, cuja atualidade da abordagem pode trazer perplexidade
para muitos historiadores contemporâneos. Primitividade poética é, para
Bachelard, a “agressividade do movimento criativo das imagens poéticas”, isto
é, que está em descompasso com as referências intelectuais, com os valores
aprendidos pela tradição, em contradição com as interpretações já consolidadas.
É no instante da criação poética que é possível apreender-lhe sua
primitividade, alheia aos esquemas interpretativos que a tradição
intelectualista lhe impõe. É, portanto, a partir de uma filosofia do ato
poético – e não da ação poética – que está a riqueza da análise bachelardiana
da obra de Lautréamont. Quando põe em contraposição os pensamentos de Henri
Bergson e de Gaston Roupnel acerca da natureza do tempo, faz uma constatação:
enquanto Bergson admite ser a duração contínua seu princípio, Roupnel afirma ser
o instante sua realidade. Bachelard aprofunda esta antinomia, comparando ato e
ação citando o livro “Siloë” (1927), de Roupnel, para responder esta questão. Acredita-se
que o pseudônimo Lautréamont tenha sido inspirado no nome de um romance de
Eugène Sue, “Latréaumont”. Note-se que há uma leve diferença na grafia da
palavra. A atribuição do título de Conde poderá ser uma referência ao Marquês
de Sade (1740-1814) ou uma forma de destacar-se da nascente burguesia urbana,
ainda que não existam quaisquer provas destas duas teses.
Mais robustas são as
hipóteses apresentadas pelo romancista, dramaturgo e poeta pernambucano Ruy
Câmara, no seu belíssimo livro: “Cantos de Outono - O Romance da vida de
Lautréamont”. Segundo Ruy Câmara, o codinome sugere a junção de duas palavras
de grande relevância na vida de Isidore Ducasse. A primeira palavra seria
“lauréat”, que significa laureado ou premiado em concurso acadêmico,
deslocando-se o “t” final para o meio teremos “lautréa”, que acrescida de
“mont”, raiz da palavra “Montevidéu”, cidade natal do poeta, tem como resultado
“Lautréamont”, denotando “o laureado de Montevidéu”. A terceira possibilidade,
mais rigorosa que as duas anteriores, trabalha com a associação da palavra “l`autre”,
“o outro”, mais a preposição “a” que indica lugar, a raiz “mont”, de
Montevidéu, dando Lautréamont, cujo sentido único, exato e incontestável na
semiologia representa “o outro de Montevidéu”, já que o primeiro é ele próprio.
O símbolo não sendo já de natureza linguística deixa de se desenvolver numa só
dimensão. As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas
cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de
dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das
motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em
categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da
não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades.
Metodologicamente, se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da
lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as
estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação
das motivações, numa inextricável confusão.
Parecem-nos mais sérias
as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse
de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de
atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de
pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, de fato, as classificações
mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da
imaginação de modo geral literária. No prolongamento dos esquemas explicativos,
arquétipos e simples símbolos modernos podem-se considerar o mito. Lembramos,
todavia, que não estamos tomando este termo na concepção restrita que lhe dão
os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual.
Entendemos por mito, “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas,
sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se na
narrativa”. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o
fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em
ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que
o arquétipo promovia a ideia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer
que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem
observou Bréhier, a narrativa histórica e lendária. O método de convergência
evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito. Este isomorfismo dos
esquemas, arquétipos e símbolos no seio dos sistemas míticos ou de constelações
estáticas pode levar-nos a verificar a existência de protocolos normativos das
representações imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados
em torno dos esquemas originais e que per se a literatura se refere como
estruturas.
Uma parte de sua obra, incluindo seus livros mais representativos sobre a tópica da intuição trabalhada como: A Poética do Espaço, A Poética do Devaneio, A Água e os Sonhos e O Ar e os Sonhos, é permeada por categorias e conceitos que fogem ao lugar comum de análise e, sobretudo, do debate contemporâneo da ciência institucionalizada: sonho, devaneio, poética, alquimia, tempo, imaginação. A riqueza de Bachelard consiste fundamentalmente do ponto de vista do processo de criação em trazer para sua produção intelectual um duplo projeto: o aspecto diurno da sua obra – onde se inscrevem os conceitos mais ligados à formação da epistemologia – e o aspecto noturno – onde aparece a complementaridade dos sinais da poesia e do sonho – e posteriormente do devaneio e da ciência. Ao aproximar os dois aspectos, a sua concepção de história e filosofia demonstra que a cisão entre razão e imaginação fica bem clara se utilizarmos a via racional; se usarmos a via onírica, a razão e a imaginação se articulam, se interpenetram e se tornam complementares. A atividade dialética surge esboçada e a partir da análise da noção de “corpúsculo”. Tendo como certo que o filósofo deve tentar compreender a novidade da linguagem e ao mesmo tempo aprender a formar noções e conceitos completamente novos para resistir aos conhecimentos comuns e à memória cultural, Bachelard, tentando precisar a noção de “corpúsculo”, rememora uma sequência de teses: o corpúsculo não é um pequeno corpo. Não é fragmento de substância. O corpúsculo não tem dimensões absolutas definidas. Só existe nos limites do espaço em que atua.
Correlativamente, se o corpúsculo não tem
dimensões definidas, não tem, portanto, forma reconhecida. O elemento não tem
geometria. E, ipso facto, não se lhe pode atribuir um lugar muito
preciso em virtude do princípio da indeterminação na Física de Heisenberg, a
sua localização é submetida a tais restrições que a função de existência
situada não tem mais valor absoluto. Em várias circunstâncias, a microfísica
põe como um verdadeiro princípio a perda da individualidade do corpúsculo.
Enfim, uma última tese que contradiz o axioma fundamental do atomismo
filosófico. Complementarmente com as suas reflexões acerca da imaginação
criadora e da poética, Bachelard infere que os corpúsculos, não sendo dados dos
sentidos, “nem de perto nem de longe”, também não são dados escondidos. No
entanto, apenas é possível conhecê-los, descobrindo-os, ou melhor,
inventando-os, porque eles são a prova de que algo está no limite da invenção e
da descoberta. Admirável é, então, a referência que Bachelard faz à noção de
intuição trabalhada. Em Études, no ensaio “Idealismo discursivo” ele
sublinha que tem alguma confiança na intuição para descrever positivamente o
seu ser íntimo. Diz mesmo que o fato de exercermos uma preparação discursiva dá
à intuição uma nova Jeunesse. De maneira que aconselha a fecharmos os
olhos como uma forma de nos prepararmos para termos uma visão do ser. A
intuição será a via refletida de renunciar aos acidentes na história e
significa um recurso metafísico de compreensão “de si”. Interessa, então,
entendermos, comparativamente, a distinção entre a intuição trabalhada e
não a intuição imediata, a intuição que permite uma espécie de
“repouso”, mesmo sabendo que na ciência, esse “repouso” na intuição pode ser
“quebrado” pela dialética da necessidade de rigor metafísico e pela necessidade
de encadear mais forte as teorias sociais.
Em A Noite Sempre
Chega, uma mulher enfrenta o risco iminente de despejo em meio à crescente
especulação imobiliária de sua cidade. Com apenas uma noite para agir,
ela precisa reunir 25 mil dólares a qualquer custo para salvar sua casa e
garantir o sustento da família. A Noite Sempre Vem é um filme de
suspense policial estadunidense de 2025, dirigido por Benjamin Caron a partir
de um roteiro de Sarah Conradt, adaptando o romance de 2021, A Noite Sempre
Vem, de Willy Vlautin. É estrelado por Vanessa Kirby, Jennifer Jason Leigh,
Zack Gottsagen, Stephen James, Randall Park, Julia Fox, Michael Kelly e
Eli Roth. Night
Always Comes foi
lançado na Netflix em 15 de agosto de 2025. Lynette, uma mulher com múltiplos
empregos, incluindo acompanhante, tenta manter a casa onde passou a infância em
Portland para si, sua mãe, Doreen, e seu irmão mais velho, Kenny, que tem síndrome
de Down. No dia em que Lynette e Doreen devem assinar o contrato para
garantir a casa no banco, Doreen não aparece. Ao chegar em casa, Lynette
descobre que Doreen gastou os US$ 25.000 destinados à entrada em um carro
novo. Atormentada e desesperada, Lynette contata seu ex-cliente Scott,
faltando ao trabalho no bar para encontrá-lo. Ele se recusa a lhe emprestar o
dinheiro, mas ela dorme com ele mesmo assim. Depois, Scott dobra seus US$ 500
habituais como despedida definitiva.
Seu cliente
acidentalmente deixa as chaves do carro para trás, então Lynette impulsivamente
pega sua Mercedes. Ele liga e deixa mensagens de voz cada vez mais irritadas.
Ela estaciona o carro dele debaixo de uma ponte em pânico, deixando-o lá com
uma porta aberta e, em seguida, volta para o carro. Lynette então pede, sem
sucesso, à sua amiga Gloria, acompanhante e amante do senador, os US$ 3.000 que
lhe devem. Gloria, relutante, dá a Lynette US$ 500 de um cofre. Ao encontrar
Cody, um ex-presidiário e colega de trabalho do bar, Lynette o convence a dar
uma olhada no cofre e pegar US$ 400. Insistindo que o cofre deve ser aberto
fora do local, Cody pede o dobro. Depois de atravessar a cidade, o contato de
Cody usa uma marreta para destruí-lo. Dentro, há dinheiro, relógios Rolex e
pacotes de cocaína. Ele ameaça Lynette, que acaba confessando que o cofre
pertence à amiga. Como o contato se recusa a deixá-la sair, ela o fere
gravemente com uma de suas ferramentas. Cody e Lynette fogem para uma
lanchonete e contam o dinheiro, que acaba ficando US$ 6.000 a menos do que ela
precisa. Ela decide vender a Mercedes de Scott e buscar Kenny no caminho. Ao
localizar o carro, Cody se vira para Lynette, pegando a bolsa com tudo e as
chaves da Mercedes.
Perdendo o controle, ela impulsivamente o atropela com o carro, pegando a bolsa, mas deixando as chaves para ele. Kenny fica chateado, mas Lynette o convence a mudar de ideia depois de lhe trazer panquecas e falar sobre como eles precisam se manter unidos como família. Lynette acorda seu ex, Tommy, no meio da noite para tentar vender o que puder do saco para ele. Ele diz a Lynette que não tem dinheiro para pagá-la naquela noite, mas tem um contato que poderia comprar a cocaína por US$ 3.000. Lynette o confronta sobre tê-la forçado a se prostituir aos 16 anos, e Tommy diz a ela para nunca mais entrar em contato com ele. O comprador, Blake, mora no subúrbio e está dando uma festa até altas horas da noite. Quando ele tenta forçar Lynette a fazer sexo por parte do dinheiro, ela lhe dá um tapa na cabeça e procura Kenny freneticamente por todos os lados. Ela o encontra, mas todos tentam segurá-la quando Blake, ferido, a acusa de roubá-lo. Lynette cai através de uma mesa de vidro e é jogada para fora. Lynette e Kenny chegam em casa antes do nascer do Sol. Quando Doreen a confronta, ela explica que passou a noite toda repondo os US$ 25.000 que sua mãe havia gasto no dia anterior. Enquanto tira o vidro das costas da filha, Doreen não quer a casa, preferindo vê-la queimar. Lynette a confronta, chateada por ela ter trabalhado tanto por uma casa que sua mãe não quis manter. Doreen, por sua vez, lista os erros de Lynette, incluindo seu relacionamento anterior com Tommy aos 16 anos. Lynette, em lágrimas, pergunta por que ela não a protegeu contra o abuso dele, quando ela mais precisava dela.
Doreen informa friamente que está se mudando com Kenny para a casa de Mona. David liga para Lynette para contar que foi com outro comprador que ofereceu mais pela casa, pois havia dado chances demais à família dela. Ela se deita na cama com Kenny, dizendo que precisa se ausentar por um tempo, mas que o visitará mais tarde. Eles declaram seu amor um pelo outro, e ela vai. Lynette deixa algum dinheiro e um bilhete para Doreen, dizendo que lutou muito pela família, pedindo que ela cuide de Kenny e que ela continuará lutando. Antropologicamente a humanidade sempre atravessa estágios em que: a) opressão da individualidade é o ponto de passagem obrigatório de seu livre desabrochar superior, em que a pura exterioridade das condições de vida se torna a escola da interioridade, b) em que a violência da modelagem produz uma acumulação de energia, destinada, em seguida, a gerar toda a especificidade pessoal. Do alto desse ideal é que, c) a individualidade plenamente desenvolvida, tais períodos parecerão, é claro, grosseiros e indignos. Mas, para dizer a verdade, além de semear os germes positivos do progresso vindouro, já é em si uma manifestação do espírito exercendo uma dominação organizadora sobre a matéria-prima das impressões flutuantes, uma aplicação das personalidades especificamente humanas, procurando-as fixar suas normas de vida - do modo mais brutal, exterior ou, mesmo, estúpido que seja -, em vez de recebê-las das simples forças da natureza. A horda, uma estrutura social e militar histórica encontrada na estepe eurasiática “não protege mais a moça e rompe suas relações com ela, porque nenhuma contrapartida foi obtida por sua pessoa”.
Para Simmel diante do “conflito” (“Kampf”) os indivíduos vivem em relações sociais de cooperação, mas também de oposição, portanto, os conflitos são parte mesma da constituição da sociedade. É neste sentido que formam momentos de crise, um intervalo entre dois momentos de harmonia, vistos numa função positiva de superação das divergências. Fundamenta uma episteme em torno da ideia de movimento, da relação, da pluralidade, da inexorabilidade do conhecimento, de seu caráter construtivista, cuja dimensão central realça o fugidio, o fragmento e o imprevisto. Por isso, seu panteísmo estético, ancorado sob forma paradoxais de interpretação real, como episteme, no qual se entende que cada ponto, cada fragmento superficial e, portanto, fugaz é passível de significado estético absoluto, de compreender o sentido total, os traços significativos, do fragmento à totalidade. O significado sociológico do “conflito”, em princípio, nunca foi contestado. Conflito é admitido por causar ou modificar grupos de interesse, unificações, organizações. Por outro lado, pode parecer paradoxal na visão do senso comum se alguém pergunta se independentemente de quaisquer fenômenos que resultam de condenar ou que a acompanha, o conflito é uma forma de “sociação”.
À primeira vista, isso soa como uma pergunta retórica. Se todas as interações entre os homens é uma sociação, o conflito, - afinal uma das interações mais vivas, que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo sozinho, - deve certamente ser considerado como “sociação”. E, de fato, os fatores de dissociação, tais como ódio, inveja, necessidade, desejo, são as causas da condenação, que irrompe em função deles. Conflito é, portanto, destinado a resolver dualismos divergentes, é a maneira de conseguir algum tipo de unidade, que seja através da aniquilação de uma das partes em litígio. A imagem está associada a conhecimentos pretéritos adquiridos e concernentes ao objeto que ela de fato representa. Ela não apreende nada além daquilo que nós podemos extrair da realidade durante o trabalho de percepção. A imagem não se relaciona com o mundo em si, filosoficamente falando, ela só depende do processo de como podemos descobrir algo sobre ela. Portanto, se existe uma possibilidade de se observar o objeto através da imaginação, mesmo assim essa possibilidade ainda não nos permite apreender nada de novo em relação ao objeto. A imagem, ato da consciência imaginante, é um elemento, identificado como o primeiro e incomunicável, como produto de uma atividade consciente atravessada de um extremo ao outro por uma corrente de “vontade criadora”. Trata-se, de dar-lhe à sua própria consciência um conteúdo de sentido imaginante, próximo da analogia weberiana da interpretação da ciência que recria para si os objetos afetivos espontaneamente ao seu redor: ela é criativa.
Daí a importância de se compreender no campo da imagem, de sua produção, recepção, influência, de sua relação com o sonho, o devaneio, a criação e a ficção, a substituição das mediações pelos meios de comunicação, posto que contenha em si uma possibilidade de violência, a partir da constituição do novo regime de ficção que hoje afeta, contamina e penetra a vida social. Ipso facto temos a sensação de sermos colonizados, mas sem saber precisamente por quem. Não é facilmente identificável e, a partir daí é normal questionar-se sobre o papel da cultura ou da ideia que fazemos dela. O etnólogo Marc Augé reitera que as “etnociências” se atribuem sempre dois objetivos, proposto por ele ao final em seu opúsculo “La Guerre des Rêves” (1997). Usado como prefixo, “etno” relativiza o termo que o segue e o faz depender da “etnia” ou da “cultura” que supõe ter práticas análogas às que chamamos “ciências”: medicina, botânica, zoologia etc. Desse ponto de vista, a etnociência tenta reconstituir o que serve de ciência aos outros, suas práticas sanitárias e do corpo, seus conhecimentos botânicos, mas também suas modalidades de classificação, de relacionamento etc. É claro que, a partir do momento em que se generaliza a etnociência muda de ponto de vista. Ela tenta emitir uma apreciação sobre os modelos locais, indígenas, e compará-los a outros e propor uma análise dos procedimentos cognitivos em ação num certo número de experiências. Ela leva então às vezes o nome de antropologia: fala-se assim em antropologia médica ou em uma antropologia cognitiva.
Em
verdade, quando Augé recoloca a questão: “que é nosso imaginário, hoje?”, por
outro lado, ele se indaga se nestes dias não estamos assistindo a uma generalização
do fenômeno de fascínio da consciência que nos pareceu característico da
situação colonial e de seus diferentes avatares? Trata-se de “exercícios de etnoficção”,
em analisar o estatuto da ficção ou as condições etnológicas de seu surgimento
numa sociedade, e ipso facto num momento histórico particular, em analisar os
diferentes gêneros que se irradiam sob formas ficcionais, sua relação com o
imaginário individual e coletivo, as representações da morte etc., em
diferentes sociedades ou conjunturas. Temos o que fica reservado como lugar de
representação do conhecimento, posto que bem entendido o nível ao qual se
aplica a pesquisa antropológica, ela tem por objeto interpretar a interpretação
que os outros fazem da categoria do outro, nos diferentes níveis que situam o
lugar dele e impõem sua necessidade. Melhor dizendo, tendo como representação
social etnia, tribo, aldeia, linhagem ou outro modo de agrupamento até o átomo
elementar de parentesco, do qual se sabe que submete a identidade da filiação à
necessidade da aliança, o individualismo, enfim; que todos os sistemas rituais
definem como compósito e pleno de alteridade, figura literalmente impensável,
como o são, em modalidades opostas, a do rei e a do feiticeiro. O fato social é que
deste ângulo há um princípio abrangente e primordial, porque norteador, analiticamente, pois
“toda antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que
neste âmbito, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido
para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o
observa”.
Essa inteligibilidade, ao que nos parece antever, fornece e propõe no âmbito de apropriação dos saberes que as condições de uma antropologia da contemporaneidade devem ser deslocadas do método para o objeto. E além disso, que se deve estar atento às mudanças que afetaram as grandes categorias por meio das quais os homens pensam sua identidade e suas relações recíprocas em termos espaciais. Assim, se um lugar de análise pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um na etnologia da solidão de Marc Augé, o que ele denominou analiticamente de “não-lugar”. A hipótese adjudicada na teoria, e, portanto, no pensamento, é o que o autor chama de surmodernité conquanto produtora de não-lugares, de espaços que não são em si lugares (tradicionais) antropológicos. Isto é importante. Estas características comuns podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem, de certo modo, as formas elementares de compreensão do espaço social. Trata-se de aspectos gerais e que se identificam enquanto itinerários ou eixos ou caminhos que, do ponto de vista etnológico conduzem de um lugar a outro. Mas em cruzamentos e praças, que satisfazem por assim dizer esferas de ação social, que nos mercados definem necessidades do intercâmbio econômico e, nesta progressão, centros mais ou menos monumentais. Sejam eles religiosos ou políticos construídos por certos homens e mulheres e que definem como outros, em relação a outros centros e espaços sociais.
Por outro lado, no
estudo da relação entre genealogia e poder, observava Michel Foucault que a
primeira característica do que ocorria de forma nebulosa dizia respeito ao
caráter local da crítica, uma espécie de produção teórica autônoma, não
centralizada, isto é, que não tem necessidade, para estabelecer sua validade,
da concordância de um sistema comum. Esta crítica local se efetuou através do
que se poderia chamar de “retorno do saber”. Em um caso como no outro, no saber
da erudição como naquele desqualificado, nestas duas formas de saber sepultado
ou dominado, se tratava na realidade de saber histórico da luta. Nos domínios
especializados da erudição como nos saberes desqualificados das pessoas jazia a
memória dos combates, exatamente aquela que até então havia sido subordinada.
Delineou-se o que se poderia chamar uma genealogia, ou, pesquisas genealógicas
múltiplas: a redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E esta
genealogia, como acoplamento do saber acadêmico e do saber das pessoas, só será
possível se for eliminada a tirania dos colegiados (cf. Mitzman, 1976), com
suas hierarquias e os privilégios de sua posição que permeia o discurso
religioso/científico em saberes regionais.
Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não
legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los,
hierarquiza-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos
direitos da concepção de ciência detida por alguns.
Trata-se da insurreição
dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma
ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de
poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um
discurso científico organizado no interior da sociedade. Não se trata de
estudos de caso, mas com a pesquisa efetiva, torna-los capazes de oposição e de
luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico.
Poderíamos lançar o desafio: - “Tentem colonizar-nos”. A burocracia engendrou o
intelectual específico nas universidades públicas, através das atividades
regulares necessárias aos objetivos da estrutura governada burocraticamente,
que por sua vez são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais que contém
uma orientação, mas podem mudar de forma e sentido. A autoridade de dar ordens
necessárias à execução desses deveres oficiais se distribui de forma estável,
sendo rigorosamente delimitada pelas normas relacionadas com os meios de
trabalho e de coerção, físicos, sacerdotais ou outros, que possam ser colocados
à disposição dos funcionários ou autoridades. O princípio da autoridade
hierárquica de cargo encontra-se em todas as organizações burocráticas. Não
importa, para o caráter da burocracia, que sua autoridade seja compreendida
como privada ou pública. É o que tenta demonstrar, de forma hilária, o escritor
Luís Fernando Veríssimo em uma série de ensaios temáticos. Quando o cargo está
desenvolvido, a atividade oficial exige a plena capacidade de trabalho, a despeito do fato de ser rigoroso, delimitado o tempo de
permanência na repartição, que lhe é exigido. O desempenho do cargo segue
regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, e que podem
ser apreendidas.
O conhecimento dessas
regras representa um aprendizado técnico especial, a que se submetem esses
funcionários. Envolve jurisprudência, ou administração pública e privada. A
redução do cargo a regras está profundamente arraigada à sua própria natureza.
A teoria da moderna administração pública, sustenta que a autoridade para
ordenar certos assuntos através decretos não dá à repartição o direito de
regular o assunto através de normas expelidas em cada caso, mas na prática,
converte-se em relações através dos privilégios individuais e concessão de
favores, que domina de forma absoluta as relações entre indivíduos no âmbito do
patrimonialismo. A ocupação de um cargo
é considerada uma profissionalização, com a exigência de um treinamento rígido,
que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período de tempo e
nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. A posição
de um funcionário tem a natureza de um dever, sendo a lealdade dedicada a
finalidades impessoais e funcionais. Sua posição social é assegurada pelas
normas que se referem à hierarquia ocupada. A posse de diplomas educacionais
está habitualmente ligada à qualificação técnica para o cargo. O tipo puro
sociológico de funcionário burocrático é nomeado por uma autoridade superior.
Mas uma autoridade eleita pelos governados não é como tal, uma figura
exclusivamente burocrática. A nomeação independe dos estatutos legais, mas da
forma pela qual funciona o sistema. Em todas as circunstâncias, a designação de
funcionários por meio de uma eleição entre os governados modifica o rigor da
subordinação hierárquica.
O funcionário se prepara para uma carreira por concurso público, o que não impede que ocorra por determinado tempo a vigilância hierárquica para o cargo no serviço público. Foi esse tipo específico de poder que Michel Foucault chamou de “disciplina” ou “poder disciplinar”. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestra-lo. O que lhe interessa não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controla-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. É um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: principalmente a partir de seu aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos sociais de contrapoder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir expressivamente a sua força política. Situemos as suas características básicas. Em primeiro lugar, a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma técnica metodológica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório.
Isola em um espaço
fechado, portanto, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções
diferentes segundo o objetivo específico que deles se exige. Mas, como relações
de poder disciplinar não necessitam de espaço fechado para se realizar, é essa
sua característica menos importante. Em segundo lugar, e mais fundamentalmente,
a disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabelece uma sujeição do
corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de
eficácia. Em terceiro lugar, a vigilância é um dos seus principais instrumentos
de controle. Não uma vigilância que reconhecidamente se exerce de modo
fragmentar e descontínuo; mas que é ou precisa ser vista pelos indivíduos que a
ela estão expostos como forma contínua, perpétua, permanente; que não tenha
limites, penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda extensão
do espaço. Olhar invisível que permite impregnar quem é vigiado de tal modo que
este adquira de si mesmo a visão panóptica de quem o olha. A disciplina,
de fato, implica um registro contínuo de conhecimento. O olhar que observa para
controlar não é o mesmo que transfere as informações para os pontos mais altos
da hierarquia do poder? Seu objetivo econômico e político é tornar o homem útil
e dócil.
Basta lembrarmos a importância estratégica que as relações de poder disciplinar desempenham nas sociedades modernas depois do século XIX, vem justamente do fato delas não serem negativas. Mas positivas, quando tiramos desses termos qualquer juízo de valor moral ou político e pensarmos unicamente na tecnologia empregada. É então, que, segundo Foucault, surge uma das teses fundamentais da genealogia: “o poder é produtor de individualidade”. O indivíduo é uma produção do poder e do saber. Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo do poder. Michel Foucault entende que nascimento da prisão em fins do século XVIII, não representou a massificação com relação ao modo como anteriormente se era encarcerado. O nascimento do hospício não destruiu a especificidade da loucura. É o hospício, ao contrário, que produz o louco como doente mental. Um personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares. E antes da constituição das ciências humanas, no século XIX, a organização das paróquias, a institucionalização do exame de consciência e da direção espiritual e a reorganização do sacramento da confissão, que aparecem como importantes dispositivos de individualização. Em suma, o poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importes efeitos.
O objetivo é neutralizar a ideia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações reais ou imaginárias de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições reais de existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria a sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado, é apropriado por ele, que dele se serve como instrumento de dominação, descaracterizando seu núcleo essencial. Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder. O fundamental da análise teórica é que saber e poder se implicam mutuamente; não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. É assim que o hospital não é apenas local de cura, mas também instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber.
Do mesmo modo que a escola está na origem da pedagogia, a prisão da criminologia, o hospício da psiquiatria. Mas a relação ainda é mais intrínseca: é o saber tal que se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber funciona dotado de poder. E enquanto é saber tem poder. A configuração do que Foucault denomina de “intelectual específico” se desenvolveu na 2ª grande guerra, e talvez o físico atômico tenha sido quem fez a articulação entre intelectual universal e intelectual específico. É porque tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha; mas já que a ameaça atômica concernia todo o gênero humano e o destino do mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal. Sob a proteção deste protesto que dizia respeito a todos, o cientista atômico desenvolveu uma posição específica na ordem do saber. E admite Foucault, pela primeira vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é neste nível que ele se constituía como um perigo político. Mas o intelectual específico deriva de uma figura muito pobre e diversa do “jurista-notável”. O “cientista-perito”. O importante é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. A verdade é deste mundo, produzida nele graças a múltiplas coerções que produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, seus tipos de discursos que faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados, sob nosso olhar, para a obtenção da verdade.
Quem está de fora do poder, mas tem a capacidade analítica de interpretar o estatuto que delimita o seu campo de saber, percebe os efeitos de poder do que funciona como verdadeiro. É preciso repensar os problemas políticos dos intelectuais não mais em termos exclusivos da relação entre ciência e ideologia, mas sem abandoná-la, tendo em vista que a universidade pública é um domínio de casta, a forma natural pela qual costumam socializarem-se as comunidades étnicas que creem no parentesco de sangue com os membros de comunidades exteriores e o relacionamento social. Essa situação de casta é parte do fenômeno de povos párias e se encontra em todo o mundo, a análise pode ser religada na medida em que a questão da profissionalização, da divisão entre trabalho manual e intelectual, na esfera pública pode ser retomada. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e a reproduzem. Ipso facto, o problema político essencial para o intelectual não é apenas criticar os conteúdos ideológicos que privilegiam grupos no sistema educacional que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por métodos de inclusão democráticos. O que está em jogo num sistema de castas, que tomou o poder na universidade pública nos últimos 20 anos, é se podemos constituir uma nova arena política da verdade. Mas não se trata de libertar a verdade do sistema de poder, mas de desvincular o poder da verdade das formas com as quais ele legitima suas formas de saber. A genealogia analogamente exige a minúcia do saber, evidenciando um grande número de materiais acumulados.
Na universidade estes materiais se esgueiram como sombras. Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca do que lhe é originário, mas ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos projetos interrompidos pelos predecessores, prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro, num trabalho de escavação incessante no campus, nos arquivos, sem deixar-lhes o tempo emascular o labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob a guarda. É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas que dão conta dos atavismos e hereditariedades, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ter um espírito metafísico para encontrar na alma a idealidade distinta. A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo. Façamos a análise genealógica dos reitores universitários em sua atenção “desinteressada”, em sua ligação à objetividade. Longe de ser uma categoria de semelhança, tal origem permite ordenar, para coloca-las a parte, todas as marcas diferentes. O genealogista parte em busca do começo, esta marca quase apagada que não saberia enganar um olho, por pouco histórico que seja; a análise da proveniência permite dissocia o Eu e fazer pulular lugares e recantos de sua síntese vazia, entre acontecimentos aparentemente perdidos. A proveniência permite também reencontrar sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito a proliferação através dos quais eles se formaram.
Metodologicamente a genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde o início. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios, os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz do que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente do que ficou do passado para compreendermos o presente. Na vã política em geral e particularmente na gestão acadêmica o passado nos condena. A cena pública da verdade é sempre a mesma em que repetem indefinidamente os dominadores e os dominados. Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença de valores; classes dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade, homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força – e é o nascimento da lógica. Nem a relação de dominação é mais uma relação, nem o lugar onde ela se exerce é um lugar. E é por isto precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. A humanidade em geral não progride lenta de combate em combate, ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim num processo ad infinitum de dominação em dominação.
A sociologia francesa do trabalho como disciplina científica teve como objeto central o operário do sexo masculino da empresa industrial, como figura arquetípica considerada universal. Com o crescimento do mercado feminino e o desenvolvimento do terciário, setor majoritariamente feminino. As pesquisas sobre divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo, relações sociais de gênero demonstraram que uma análise de gênero muda quase que radicalmente as condições de produção dos conhecimentos sobre o trabalho. Os trabalhos masculino e feminino são comparáveis se partimos do conceito marxista de trabalho, enquanto trabalho formal e informal, profissional e doméstico, remunerado e não-remunerado. A introdução do conceito de gênero nas análises da sociologia clássica do trabalho, como o emprego, o desemprego, a qualificação, os movimentos sociais, os modelos produtivos ou a “especialização flexível”, desloca a ordem tradicional masculina e produz novos conhecimentos. Qualificação do trabalho não tem a mesma significação conjugada no masculino ou no feminino. O desemprego tem implicações contrastadas para homens e mulheres. Os processos de “requalificação” atingem os homens e muito pouco as mulheres na produção. O trabalho não representa apenas a produção de objetos-mercadoria, a força de trabalho não é mais apenas sujeita à inércia das coisas, o trabalho não é mais apenas o instrumento da sociedade procurando organizar a sobrevivência. Trabalho, força de trabalho, capacidade de trabalho e trabalhador tendem a unificar-se em pessoas que se produzem reproduzindo o mundo. E essa produção ocorre igualmente nos locais de trabalho, escolas, bares, estádios, viagens, teatros, concertos, jornais, livros, exposições, comunas, bairros, grupos de discussão e de luta, em suma em todos os lugares onde os indivíduos relacionam-se uns com os outros e produzem o universo das relações humanas.
Cada vez mais, essa produção tende a fazer parte integrante não somente da produção do homem, mas da reprodução necessariamente ampliada da própria força de trabalho. O desenvolvimento internacional e intercontinental das trocas; a divisão do trabalho em escala de espaços econômicos cada vez mais vastos; a tendência às especializações regionais e nacionais; a rapidez das comunicações massivas, põem cada atividade produtiva, através do jogo das mediações, cada vez mais numerosas com o universo inteiro e tendem à sua unificação prática. Não queremos perder de vista que a disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individual classificatório e combinatório. A disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. No século XVII, nas oficinas de tipo corporativo, o que se exigia do companheiro ou do mestre era que fabricasse um produto com determinadas qualidades. A maneira de fabricá-lo dependia da transmissão em geração. Se ensinava o soldado a lutar, a ser mais forte do que o adversário na luta individual da batalha. A partir do século XVIII, se desenvolve uma arte do corpo humano. Observa-se de que maneira os gestos são feitos, qual o mais eficaz, rápido e melhor ajustado. Nas oficinas aparece o famoso e sinistro personagem do contramestre, destinado não só a observar se o trabalho foi feito, mas como é feito, como pode ser mais rapidamente realizado e com gestos melhor adaptados. O famoso Regulamento da Infantaria Prussiana, que assegurou as vitórias de Frederico da Prússia, consiste em mecanismos de gestão disciplinar dos corpos.
A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua “pirâmide de olhares”. Mas a disciplina implica um registro contínuo. Anotação do indivíduo e transferência da informação de baixo para cima, de modo que, no cume da pirâmide disciplinar escape a esse saber. No sistema clássico o exercício do poder era confuso, global e descontínuo, do soberano sobre grupos constituídos por famílias, cidades, paróquias, isto é, por unidades globais, e não um poder contínuo atuando sobre o indivíduo. A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do exame, a individualidade torna-se um elemento de uso pertinente para o exercício do poder. A invenção dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um presunçoso método geral. Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares no que podem ter cada uma de singular: 1) ambas, neste caso, são instituições públicas gerenciadas por uma casta no poder; 2) Existe uma série de exemplos de algumas das técnicas essenciais empregadas que, de uma à outra, se generalizaram mais facilmente.
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, são dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza (assédio moral), são eles, entretanto que levaram à mutação do regime punitivo contemporâneo; 3) Descrevê-los metodicamente, nominalmente, implicará a demora sobre o detalhe da corrupção do pensamento e a atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; recoloca-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática; 4) Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono, no sentido freudiano, e dá coerência ao insignificante quando da atenta malevolência que de tudo alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe. O que nos interessa é a racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político. A regra das localizações funcionais no tempo e no espaço, vai pouco a pouco codificar um espaço que a arquitetura, lembra Foucault, deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. Temos assim, um dispositivo que asfixia e quadricula; tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegalidade e do mal.
Essa gente, através do impedimento de elementos intercambiáveis, conquistados a duras penas, quer através da vigilância e punição, da prevaricação e do ressentimento acadêmico, quer individualizar corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa série de relações. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num procedimento que lhe é específico. A vigilância se torna um operador decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem especial do poder disciplinar. A arte de punir, no regime de poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto de práticas e saberes sociais, que é ao mesmo tempo campos de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a natureza humana dos indivíduos em sociedade. Fazer funcionar, através dessa medida valorizadora negativamente, a coação de uma conformidade a realizar. E por último, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do “anormal”. A penalidade que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
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