quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A Vida dos Outros – Cinema, Degradação & Controle na Alemanha.

                       A sociedade não é de espetáculos, mas de vigilâncias”. Michel Foucault  

          A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) é um filme alemão, escrito e dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck, nascido na Colônia, em 2 de maio de 1973, é um diretor de cinema alemão, mais reconhecido por escrever e dirigir o filme A Vida dos Outros, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2006, e do blockbuster O Turista, nomeado a três Prêmios Globo de Ouro em 2010, estrelado por Angelina Jolie e Johnny Depp, estreando na direção cinematográfica de longas-metragens. A trama, sociologicamente falando, gira em torno do “monitoramento político de Berlim Oriental por agentes da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental”. Ulrich Mühe como o capitão da Stasi, Gerd Wiesler, Ulrich Tukur como seu superior, Anton Grubitz, Sebastian Koch como o dramaturgo Georg Dreyman e Martina Gedeck como a amante de Dreyman, uma atriz renomada chamada Christa-Maria Sieland. O filme foi lançado pela Buena Vista International na Alemanha em 23 de março de 2006. Ao mesmo tempo, o roteiro foi publicado pela Suhrkamp Verlag. The Lives of Others ganhou o Oscar de Melhor Longa-Metragem Internacional.  O filme já havia obtido 7 prêmios Deutscher Filmpreis, incluindo os de melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro, melhor ator e melhor coadjuvante, após um novo recorde com 11 indicações.

            A Stasi, forma abreviada de Ministério para a Segurança do Estado (Ministerium für Staatssicherheit) representava a principal organização política de polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã (RDA). Criada em 8 de fevereiro de 1950, centrava suas operações de espionagem terrorista na capital comunista, Berlim Oriental, onde mantinha um extenso complexo em Lichtenberg e outros menores dispersos pela cidade. Um filme biográfico ou cinebiografia – mutatis mutandis - também reconhecido no jargão cinematográfico sob o anglicismo biopic, tendo como contração a expressão inglesa: biographical motion picture, tem como representação social um filme que dramatiza a vida política de uma personalidade real. Na maioria das vezes, relata etnograficamente a vida de um personagem do passado, sem que necessariamente se trate de uma figura de importância histórica. Esses filmes demonstram uma personagem histórica e o nome verdadeiro do protagonista às vezes é usado. A Stasi é reconhecida como um dos serviços de inteligência mais efetivos do mundo globalizado. Seu principal objetivo era espionagem política sobre a população da Alemanha Oriental comunista, majoritariamente via uma enorme rede de espionagem de civis-informantes.

A repressão política representava uma dentre as prioridades, combatendo a oposição através de tortura psicológica de dissidentes, num método chamado Zersetzung, que é traduzido como “decomposição”. No total, mais de 250 000 alemães foram presos por razões políticas pela Stasi durante os 40 anos de sua existência. A antiga sede da Stasi em Berlim é o Stasimuseum, um museu onde realmente os visitantes podem inteirar-se das atividades de Aparelho Repressivo de Estado (ARE). A partir de 1990, vários funcionários da Stasi “foram levados a julgamento por crimes cometidos contra a sociedade civil. Após a reunificação da Alemanha, qualquer cidadão pode acessar seus dados coletados pela agência durante sua existência. A Zersetzung era um método de tortura psicológica usada pela inteligência da Alemanha Oriental. Era aplicada em opositores do governo do país entre as décadas de 1970 a 1980. Métodos eram definidos a Zersetzung, uma delas era “a manipulação e o controle abusivo para prevenir atividades antigovernamentais”. A Stasi utilizou psicologia operacional em sua extensa rede dentre 170 mil agentes e mais de 500 mil “colaboradores informais” (inoffizielle Mitarbeiter) para lançar ataques psicológicos planejados contra alvos para prejudicar sua saúde mental e reduzir as chances de ação política organizadas ou hostil ou de produção de efeitos de poder do Estado. Entre “colaboradores” estavam jovens de até 14 anos.       

A Zersetzung foi aprovada durante uma diretiva para revisar as ações finalistas do Ministério da Segurança do Estado. A diretiva nº 1/76, listava a Zersetzung, como “ação legalizada pela República Democrática Alemã” (RDA). A Diretiva nº 1/76 sobre o desenvolvimento e revisão dos procedimentos técnico-metodológicos operacionais, realizada em janeiro de 1976, delineava o Zersetzung como prática comum com utilidade de uso do Ministério da Segurança do Estado (Stasi). De acordo com os arquivos e dados estatísticos oficializados pela Stasi após o Wende, cerca de 10 mil pessoas foram vitimizadas e 5.000 tiveram danos irreversíveis, no qual desestabilizaram sua saúde psicológica, recebendo as pensões para o tratamento das vítimas do chamado Zersetzung. O número de solicitações para consultar os arquivos do Ministério da Segurança do Estado desde 1991 soma 7.353.885. Quase a metade (46%) veio de pessoas que queriam saber o que a polícia secreta da Alemanha Oriental, popularmente reconhecida como Stasi, sabia sobre elas, sua vida privada, suas opiniões políticas e até mesmo planos de fuga do país. Tudo isso e mais pode ser encontrado nos Relatórios dos Informantes, que em 40 anos de República Democrática Alemã (RDA) somam 111 km de arquivos.

Sociologicamente falando o Zersetzung representou uma técnica de guerra psicológica usada pelo Ministério da Segurança do Estado para reprimir oponentes políticos na Alemanha Oriental durante aquelas décadas. Zersetzung serviu para combater dissidentes alegados e reais por meios secretos, usando métodos secretos de controle abusivo e manipulação psicológica para impedir atividades antigovernamentais. As pessoas eram comumente visadas de forma preventiva e preventivamente para limitar ou interromper atividades “politicamente incorretas que poderiam ter cometido”, e não com base em crimes que realmente cometeram. Os métodos de Zersetzung foram projetados para quebrar, minar e paralisar as pessoas por trás de “uma fachada de normalidade social” em uma forma de “repressão silenciosa”. A sucessão de Erich Honecker (1912-1994) a Walter Ulbricht (1893-1973) como Primeiro Secretário do Partido de Unidade Socialista da Alemanha em maio de 1971 viu uma evolução dos “procedimentos operacionais” (“Operative Vorgänge”) conduzidos pela Stasi longe do terror aberto da era Ulbricht em direção ao que veio a ser reconhecido como Zersetzung (“Anwendung von Maßnahmen der Zersetzung”), que foi praticamente formalizado pela Diretiva nº 1/76 sobre o chamado “Desenvolvimento e Revisão de Procedimentos Operacionais” em janeiro de 1976. 

Erich Honecker foi um político alemão, que serviu como presidente da Alemanha Oriental de 1976 até 1989. Em 1971 substituiu Willi Stoph no cargo de secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) e Walter Ulbricht no cargo do Presidente do Conselho Nacional de Defesa. Walter Ulbricht foi um político alemão, membro do Partido Comunista da Alemanha (KPD) e depois secretário-geral do Partido Socialista Unificado (SED), que resultou da fusão forçada pelos soviéticos do Partido Social-Democrata da Alemanha (SDP) com o Partido Comunista da Alemanha (KDP), na República Democrática Alemã. Ocupou o cargo de Presidente do Conselho de Estado da República Democrática Alemã entre 12 de setembro de 1960 e 1º de agosto de 1973. Foi o responsável por mandar construir o Muro de Berlim, embora dois meses antes tivesse negado tal intenção. Apoiou a intervenção soviética na Checoslováquia, durante a Primavera de Praga, mandando inclusive tropas da RDA para pôr fim ao levantamento liberal na Checoslováquia. Em 29 de outubro de 1976 foi eleito Presidente do Conselho de Estado pelo parlamento da República Democrática Alemã (RDA). Seu governo foi marcado por reformas econômicas e melhorias nas relações internacionais do país, incluindo aproximação com a República Alemã Ocidental, embora o Estado policial, encabeçado pela Stasi, tenha sido ampliado para suprimir a oposição política interna.

 

A partir da década de 1980, mesmo com o começo do colapso dos regimes comunistas na Europa Oriental e as reformas liberais na União Soviética, reconhecidas como perestroika (reestruturação), foi uma série de reformas políticas e econômicas implementadas na União Soviética durante a década de 1980, lideradas por Mikhail Gorbachev e glasnost, termo russo que significa “transparência” ou “abertura” lideradas por Gorbachev (1931-2022), Honecker permaneceu  irredutível e se recusava a realizar reformas políticas, mantendo um sistema totalitário de orientação stalinista. Mikhail Gorbachev foi o último líder da União Soviética, servindo como Secretário-Geral do Partido Comunista de 1985 a 1991 e como chefe de Estado até a dissolução do país em 1991. Ele implementou reformas políticas e econômicas como a Glasnost (transparência) e a Perestroika (reestruturação). Suas políticas foram cruciais para o fim da Guerra Fria e para a dissolução da União Soviética. Os protestos pedindo democracia e liberdade econômica se alastraram pela Alemanha Oriental. Honecker chegou a pedir para Gorbachev para intervir militarmente na Alemanha a fim de reprimir as manifestações anticomunistas, mas o premier soviético se recusou. Em outubro de 1989, Honecker perdeu apoio do Politburo alemão e foi forçado a renunciar pela liderança do partido. Menos de um ano após sua saída do poder, o regime comunista da Alemanha Oriental entraria em colapso. Em novembro de 1990, um mês após a reunificação da Alemanha, foi iniciado um inquérito oficial. Honecker foi preso e refugiou-se, depois de estadias num hospital militar das forças armadas soviéticas perto de Berlim, em Moscou, na União Soviética, em 13 de março de 1991. Devido à ordem de prisão existente, foi extraditado de volta para o território alemão em 29 de julho de 1992, onde foi preso e julgado por ser um dos responsáveis do Schießbefehl, representando politicamente a “ordem de atirar”, em todas as pessoas que tentavam cruzar o Muro de Berlim e a fronteira fortificada entre a Alemanha Ocidental e a Oriental. Devido a sofrer de câncer terminal, foi solto em 27 de agosto de 1993 e morreu no exílio, no Chile, em 29 de maio de 1994.

Florian Von Donnersmarck nasceu em 1973 em Colônia, Alemanha Ocidental, na família aristocrática católica romana Henckel von Donnersmarck e cresceu em Nova Iorque, Bruxelas, Frankfurt e Berlim Ocidental. É fluente em inglês, francês, russo e italiano. Depois de graduar na escola secundária clássica Evangelisches Gymnasium zum Grauen Kloster, estudou literatura russa em Leningrado por dois anos e passou no exame do estado Soviético para professores de russo como língua estrangeira. É bacharel em artes, filosofia, política e economia no New College, Oxford e possuí um diploma de direção de cinema da Universidade de Televisão e Cinema de Munique. Filho mais novo de Leo-Ferdinand (1935-2009), Conde Henckel von Donnersmarck, um ex-presidente da divisão alemã da Ordem de Malta, sua mãe, Anna Maria von Berg, nascida em 5 de março de 1940, é uma escoteira literária alemã, socióloga e ex-ativista política. Henckel von Donnersmarck nasceu Condessa Anna-Maria von Berg-Schönfeld em 5 de março de 1940 em Magdeburg, filho do Conde Karl Ludwig Hans-Hubert von Berg e da Condessa Barbara von der Asseburg-Neindorf. Foi ativa no movimento estudantil da Alemanha Ocidental membro da Sozialistischer Deutscher Studentenbund. Em 1945, quando tinha quatro anos, a sua família fugiu da sua casa na Saxónia durante a expulsão dos alemães pelo exército soviético e instalou-se em Berlim Ocidental com alguns dos seus parentes.

Henckel von Donnersmarck foi ativa no movimento estudantil da Alemanha Ocidental, um movimento social de esquerda que consistia em protestos estudantis em massa na Alemanha Ocidental que rejeitavam o tradicionalismo e se opunham à inclusão de ex-oficiais nazistas no governo pela autoridade política alemã. Ela se juntou ao Sozialistischer Deutscher Studentenbund, anteriormente o braço colegiado do Partido Social-Democrata da Alemanha, que se tornou afiliado à Außerparlamentarische Opposition, que clamava pela liberdade constitucional de opinião e imprensa, pela liberdade de reunião e pela democratização da política universitária. Durante esse tempo, ela visitou Wolf Biermann enquanto ele estava em prisão domiciliar. É uma descendente direta do General Von Blücher, Príncipe de Wahlstatt, que juntamente com o Duque de Wellington, derrotou Napoleão em Waterloo. Ele detém a cidadania alemã e austríaca. Seu tio, Gregor Henckel-Donnersmarck, é o abade emérito em Heiligenkreuz Abbey, um mosteiro cisterciense nos bosques de Viena, onde Florian passou um mês escrevendo o primeiro rascunho de A Vida dos Outros. Henckel von Donnersmarck é casado com Christiane Asschenfeldt, ex-Diretora Executiva Internacional da Creative Commons. Eles têm três filhos que vivem em Los Angeles. Em 1977, enquanto ainda era criança em Nova Iorque, ele assistiu o seu primeiro filme no Museu de Arte Moderna. Ele esperava assistir Doctor Doolittle, mas ao invés disso foi exposto ao melodrama alemão Varieté (1925). Ipso facto, “ele cita esta experiência como o início de seu interesse por cinema”.

  

Em 1996, ele ganhou um estágio de direção com Richard Attenborough no filme In Love and War, e depois foi estudar na aula de direção de ficção da Universidade de Televisão e Cinema de Munique (Hochschule für Fernsehen und Film München), Alemanha, alma mater de diretores tão diversos como Wim Wenders e Roland Emmerich. Seu primeiro curta-metragem, Dobermann (que ele escreveu, produziu, dirigiu e editou), quebrou o recorde da escola do número de prêmios conquistados por uma produção estudantil. Tornou-se uma sensação em festivais internacionais, Donnersmarck viajou o circuito de festivais por mais de um ano. Seu primeiro longa-metragem foi Das Leben der Anderen (A Vida dos Outros), quando Donnersmarck passou três anos escrevendo, dirigindo e finalizando. O filme conquistou prêmios no European Film Award de melhor filme, melhor ator e melhor roteiro em 2006. Donnersmarck ganhou o prêmio da Los Angeles Film Critics Association de melhor filme estrangeiro, foi nomeado para o Golden Globe Awards (que foi premiado a Clint Eastwood) e em 25 de fevereiro de 2007 ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Seu filme seguinte, O Turista, foi reescrito, dirigido e concluído por Donnersmarck em menos de 11 meses (dizendo a Charlie Rose que ele queria um tempo depois de ter escrito um roteiro obscuro sobre suicídio), um thriller romântico, estrelado por Angelina Jolie e Johnny Depp. Foi nomeado a três Globos de Ouro: Melhor musical ou comédia, Depp para Ator de musical ou comédia e Jolie para Atriz de musical ou comédia. Ganhou também três nomeações ao Teen Choice Awards, vencendo os dois prêmios de atuação; e o prêmio Redbox Movie Award de filme de drama mais alugado na temporada de 2011. Até agora, arrecadou US$ 278,3 milhões nas bilheterias em todo o mundo, levando o The Hollywood Reporter, a proclamá-lo como um “hit internacional”. Em 2007, Donnersmarck foi um dos 115 novos membros a serem convidados para a associação na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Os pais de Florian Henckel von Donnersmarck eram ambos da Alemanha Oriental. Originalmente eram do Leste; os von Donnersmarcks pertenciam à nobreza da Silésia, mas a região foi transferida da Alemanha para a Polônia após a 2ª Guerra Mundial. Ele disse que, em visitas lá quando criança, antes da queda do Muro de Berlim, ele podia sentir o medo que eles tinham como súditos do estado. E que a ideia do filme surgiu quando tentava criar um roteiro para uma aula de cinema. Ele estava ouvindo música e se lembrou de Máximo Gorki dizendo que a peça musical favorita de Lenin era Appassionata, de Beethoven. Gorki relatou uma conversa com Lenin: E, apertando os olhos e rindo baixinho, [Lênin] acrescentou sem alegria: Mas não consigo ouvir música com frequência, mexe com meus nervos, me dá vontade de dizer coisas doces e dar tapinhas na cabeça de pessoas que, vivendo num inferno imundo, conseguem criar tamanha beleza. Mas hoje não devemos dar tapinhas na cabeça de ninguém, senão teremos a mão arrancada; temos que bater na cabeça deles, bater sem piedade, embora, idealmente, sejamos contra qualquer violência contra as pessoas. Donnersmarck disse a um repórter do New York Times: - - “De repente, tive a imagem de uma pessoa sentada em uma sala deprimente com fones de ouvido na cabeça e ouvindo o que ele supõe ser o inimigo do estado e o inimigo de suas ideias, e o que ele está realmente ouvindo é uma bela música que o toca. Sentei-me e em algumas horas escrevi o tratamento”.  O roteiro foi escrito durante uma longa visita ao mosteiro de seu tio, a Abadia de Heiligenkreuz. É o mais antigo mosteiro cisterciense continuamente ocupado do mundo.

    

Embora a cena de abertura se passe na prisão de Hohenschönhausen, que agora é o local de um memorial dedicado às vítimas da opressão da Stasi, o filme não pôde ser rodado lá porque Hubertus Knabe, o diretor do memorial, recusou-se a dar permissão a Donnersmarck. Knabe se opôs a “transformar o homem da Stasi em um herói” e tentou persuadir Donnersmarck a mudar o filme. Donnersmarck citou A Lista de Schindler como um exemplo de tal desenvolvimento de enredo sendo possível. A resposta de Knabe: “Mas essa é exatamente a diferença. Havia um Schindler. Não havia nenhum Wiesler”. Donnersmarck uniu-se ao diretor de fotografia Hagen Bogdanski para dar vida à história social. Ao descrever sua inspiração para a paleta de cores cinza brechtiana do filme, o diretor de fotografia Bogdanski relembra as ruas de Berlim Oriental da época: “Elas eram muito escuras. Tudo acontecia lá dentro, em privado”. O filme foi recebido com grande aclamação. O site agregador de filmes Rotten Tomatoes relata uma classificação de 92%, com base em 149 críticas positivas de 163, e uma classificação média de 8,31/10. O consenso crítico do site afirma: “Ao contrário de filmes de espionagem mais tradicionais, The Lives of Others não sacrifica o personagem por perseguições de capa e espada, e as performances (notavelmente a do falecido Ulrich Muhe) permanecem com você”. Ele tem uma pontuação de 89 de 100 no Metacritic, com base em 39 críticos.

Construída sob o signo de ruptura, a obra analítica de Michel Foucault subverteu, transformou, amplificou nossa relação com o saber e a verdade institucionalizada. Será preciso balizar: a perversidade da economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos seus reformadores. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o desarticula e o recompõe. A divisão do trabalho na universidade não visa o aprofundamento das relações técnicas, mas a penas seu quadriculamento: uma disciplina linear das pesquisas. Mesmo de corte etnográfico, fabrica corpos submissos e exercitados, os chamados “corpos dóceis”. A disciplina aumenta as forças em termos econômicos de utilidade e diminuem essas mesmas forças em termos políticos de obediência programada. É neste sentido que Michel Foucault ressalta que o espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. A disciplina organiza o espaço analítico. Lugares determinados se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, de criar um espaço útil, um dispositivo que afixa e quadricula, decompondo a confusão da ilegalidade e do princípio do mal.

Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é, portanto, nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila, o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica, para a transformação dos arranjos, individualiza os corpos pela localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações. A organização de um espaço serial representou uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional: um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando. Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma “máquina de ensinar”, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder. O controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso: tudo deve ser chamado a formar o suporte requerido. Um corpo disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto dos recursos multimodais, por exemplo: a conjunção de aspectos verbais, gestos, corpo e mundo material) com rigor abrangendo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador.

A aprendizagem corporativa com a utilização de bolsistas, introduzidas pelas castas que formam pequenos grupos de pesquisas nas universidades públicas, surgiu originalmente em 1667, confiados durante certo tempo a um mestre que devia realizar “sua educação e instrução”, depois colocados para a aprendizagem junto aos diversos mestres tapeceiros da manufatura; após seis anos de aprendizagem, quatro anos de serviço e uma prova qualificatória, tinham direito a “erguer e manter loja” em qualquer cidade do reino. Encontramos aí a divisão técnica do trabalho corporativo: relação de dependência ao mesmo tempo individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória, mas que não se decompõe segundo um programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve trazer seus serviços, sua ajuda mútua e muitas vezes uma retribuição. A forma de domesticidade se mistura a uma transferência claramente do processo de conhecimento. A escola é dividida em três classes. A primeira para os que não têm nenhuma noção de desenho; a segunda para os que já têm alguns princípios e, na terceira, aprendem as cores, fazem pastel, iniciam-se na teoria e na prática do tingimento. Regularmente, os alunos fazem deveres individuais: cada um desses exercícios, marcado com o nome e a data da execução, é depositado nas mãos do professor. Os melhores são recompensados, reunidos no fim do ano e comparados entre eles, permitem estabelecer os progressos, o valor atualmente, a representação do lugar relativo de cada aluno, e os que podem seguir para a classe superior.

Pode-se dizer historicamente que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla quatro tipos de individualidade, ou antes, uma individualidade dotada de quatro características: é celular, pelo jogo da repartição espacial, é orgânica, pela codificação das atividades, é genética, pela acumulação do tempo, é combinatória, pela composição das forças. E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza táticas. Esta representa a arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. Uma técnica extensiva utilizada nos laboratórios das universidades. É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. A política, como técnica da paz e da ordem interna, procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento na manobra e no exercício. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há uma série exército-política que passa pela tática. A vigilância se torna um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica em torno das relações do poder disciplinar.

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma infrapenalidade, quadriculam um espaço deixado pelas leis, qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença. Na oficina, na escola, no exército, funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues de conduta social, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.

Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um modelo reduzido do tribunal. O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não conforme. O regulamento da infantaria prussiana impunha tratar com “todo o rigor possível” o soldado que não tivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil. O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto, ser essencialmente corretivo. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar. Ipso facto, o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar, punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. Em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder. A forma da experiência, a demonstração da força; estabelecimento da verdade. O indivíduo é o átomo fictício de uma representação social. A realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder: a disciplina.

   

O panóptico de Bentham, é uma máquina de dissociar o par-ser-visto: no anel periférico, se é totalmente, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto, pois é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é reconhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber a torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem “ver sem parar e reconhecer imediatamente. O princípio da masmorra é invertido; ou, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e se suprime duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha” (cf. Foucault, 2014: 194).

Bentham não diz se se inspirou, em seu projeto, no zoológico que Le Vaux construíra em Versalhes: primeiro zoológico cujos elementos não estão, como tradicionalmente, espalhados em um parque: no centro, um pavilhão octogonal que, no primeiro andar, só comportava uma peça, o salão do rei; todos os lados se abriam com largas janelas, sobre sete jaulas (o oitavo lado estava reservado para a entrada), onde encerradas diversas espécies de animais. O panóptico descrito pela analítica do poder, é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. Fora essa diferença, o Panóptico, também, faz um trabalho de naturalista. Permite estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação dos miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças, anotar os desempenhos (sem que haja limitação ou cópia), perceber as aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em relação a uma evolução normal, distinguir o que é “preguiça ou teimosia” do que é “imbecilidade incurável”; nos operários, anotar as aptidões de cada um, comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia, calcular seu salário em vista disso. Mas o panóptico pode ser utilizado como uma “máquina de fazer experiências”, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios e verificar seus efeitos. Tentar diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes.

Ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor. Tentar experiências pedagógicas – e particularmente abordas o famoso problema da educação reclusa, usando crianças encontradas ; ver-se-ia o que acontece quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram; poder-se-ia acompanhar “a genealogia de qualquer ideia observável”; criar diversas crianças em diversos sistemas  de pensamento, fazer alguns acreditarem que dois e dois são quatro e que a lua é um queijo, depois de juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro: haveria pelo menos ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica. O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. Mais do que isso: pode até se constituir em aparelho de controle, pois em sua torre, o diretor pode inspecionar todos os empregados submetidos a seu serviço; poderá julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado. O Panóptico funciona categoricamente como uma espécie de Laboratório de poder. Através da observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no corpo dos homens: um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies de saber-poder.

Para sermos breves, em cada uma de suas aplicações, na esfera da ação individual e coletiva, permite aperfeiçoar o exercício do poder de várias maneiras: porque pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido. Permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam cometidos. Porque, nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído. É construir um mecanismo de efeitos em cadeia. Porque é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos. É uma maneira astuciosa de obter poder. É uma espécie de “ovo de Colombo” na ordem da política. Ele cria dispositivos discursivos com efeitos de vir se integrar a uma função qualquer, de educação, de terapêutica, de produção, de castigo; de aumentar essa função, ligando-se intimamente a ela; de construir um mecanismo misto no qual as relações de poder (e de saber) podem-se ajustar exatamente, e até nos detalhes, aos processos que é preciso controlar; de estabelecer uma proporção direta entre o “mais-poder” e a “mais produção”. 

Enfim, o dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira. Um local de trocas simbólicas e experimentais entre um mecanismo de poder e uma função. É capaz de reformar a moral, preservar a saúde, revigorar a indústria, difundir a instrução, aliviar os encargos públicos, estabelecer a economia como que sobre um rochedo, desfazer, em vez de cortar, tudo isso com uma simples ideia arquitetural. Na realidade, qualquer instituição panóptica, mesmo que seja tão cuidadosamente fechada quanto aquelas controladas por uma casta, poderá sem dificuldade ser submetida ser submetida a essas inspeções ao mesmo tempo aleatórias e incessantes: e isso não só por parte dos controladores designados, mas por parte do público, que pode ser agregado à analítica do poder, como membro da sociedade com direito de vir constatar com seus olhos como funcionam as universidades, os hospitais, as fábricas, as prisões. Não há, consequentemente, risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania, pois a máquina de ver é uma espécie de câmara escura em que se espionam os indivíduos; ela se torna um edifício transparente onde o exercício do poder disciplinar poderá ser democraticamente controlado, com a redução de mandato colocaria em xeque como função estabelecer as diretrizes, objetivos e metas de médio prazo da administração pública. Não queremos perder de vista que o panoptismo é o princípio geral de uma nova “anatomia política”, cujo objeto e fim não são as relações de soberania do Eu. São relações de disciplina-bloco, na constituição de uma instituição fechada, entorpecida pelo ódio e pré-estabelecida à margem, mormente  voltada para funções negativas: realizar para o mal, romper as comunicações, suspender o tempo.    

Uma crítica no Daily Variety por Derek Elley descreveu o filme como “um drama soberbamente escalado”, que “equilibra os muitos fios dramáticos e emocionais entre os jogadores com equilíbrio e clareza”. Richard Corliss da revista Time nomeou o filme um dos 10 melhores filmes de 2007, classificando-o em segundo lugar e elogiando um “thriller comovente e perturbador”. O crítico de cinema Roger Ebert deu ao filme quatro de quatro, descrevendo-o como “um filme poderoso, mas silencioso, construído de pensamentos ocultos e desejos secretos”. AO Scott, analisando o filme no The New York Times, escreveu que Lives é bem planejado e acrescentou: “O suspense vem não apenas da estrutura e do ritmo das cenas, mas também, mais profundamente, da sensação de que, mesmo em uma sociedade opressora, os indivíduos são sobrecarregados com o livre-arbítrio. Você nunca sabe, de um momento para o outro, qual curso qualquer um dos personagens escolherá”. O crítico do Los Angeles Times, Kenneth Turan, concordou que a tensão vem de ser “meticulosamente planejado” e que “coloca seus personagens principais em situações difíceis onde o que eles são forçados a apostar é seu talento, suas próprias vidas, até mesmo suas almas”. O filme “demonstra de forma convincente que, quando bem feito, dilemas morais e políticos podem ser os dilemas mais intensamente dramáticos de todos”. O comentarista americano John Podhoretz chamou o filme de “um dos maiores filmes já feitos e certamente o melhor filme desta década”.

William F. Buckley Jr. escreveu em sua coluna distribuída que, depois que o filme acabou, “me virei para meu companheiro e disse: Acho que este é o melhor filme que já vi”. John J. Miller, da National Review Online, o nomeou número um em sua lista dos “Melhores Filmes Conservadores” dos últimos 25 anos. Vários críticos apontaram a sutil construção de detalhes do filme como um de seus principais pontos fortes. O filme é construído “em camadas de textura emocional”, escreveu Stephanie Zacharek na revista online Salon. Josh Rosenblatt, escrevendo no Austin Chronicle, chamou o filme de “um triunfo de grandeza silenciosa”. Lisa Schwarzbaum, escrevendo na Entertainment Weekly, indicou que parte da sutileza se deve ao fato de que seus “momentos mais tensos acontecem com o mínimo de ação”, mas que o diretor ainda “transmite tudo o que ele quer que saibamos sobre escolha, medo, dúvida, covardia e heroísmo”. Um artigo no First Things faz um argumento filosófico em defesa da transformação de Wiesler. O compositor dissidente da Alemanha Oriental, Wolf Biermann, demonstrou-se cautelosamente entusiasmado com o filme, escrevendo num artigo de março de 2006 no Die Welt: “O tom político é autêntico, fiquei comovido com o enredo. Mas porquê? Talvez eu tenha sido conquistado apenas sentimentalmente, devido à sedutora massa de detalhes que parecem ter sido retirados do meu próprio passado entre a proibição total do meu trabalho em 1965 e a desnaturalização em 1976”. Anna Funder, autora do livro Stasiland, em uma crítica ao The Guardian, chamou The Lives of Others de um “filme soberbo”, apesar de não ser fiel à realidade. Ela afirma que não era possível para um agente da Stasi ter ocultado informações de seus superiores, pois os próprios funcionários da Stasi eram vigiados e quase sempre operavam em equipes. Em uma pesquisa da BBC de 2016, os críticos votaram no filme como o 32º melhor desde 2000. Em 2025, o filme ficou em 48º lugar na lista do The New York Times dos “100 melhores filmes do século 21” e foi um dos filmes votados para a edição “Escolha dos leitores” da lista, terminando em 107º lugar.

De acordo com o autor alemão Christoph Hein, o filme é vagamente baseado em sua história de vida. Em um artigo de 2019, ele lembra que Donnersmarck o entrevistou em 2002 e que seu nome foi mencionado nos créditos de abertura da estreia. Na opinião de Hein, os eventos excessivamente dramáticos do filme têm pouca semelhança com sua experiência de vida, e é por isso que ele pediu a Donnersmarck que apagasse seu nome dos créditos. Nas palavras de Hein, “o filme não retrata a década de 1980 na RDA”, mas é um “conto assustador que se passa em uma terra de fantasia, comparável à Terra-média de Tolkien”.  Também ganhou o Prêmio BAFTA, a sigla para Academia Britânica de Artes do Cinema e Televisão (British Academy of Film and Television Arts). É uma organização britânica que concede prêmios anuais para excelência em filmes, televisão e jogos. O BAFTA é frequentemente comparado ao Oscar nos Estados Unidos da América e é considerado o equivalente britânico ao prêmio de cinema de Melhor Filme Não em Língua Inglesa e o Prêmio de Cinema Europeu de Melhor Filme, enquanto foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. O filme The Lives of Others custou US$ 2 milhões e arrecadou mais de US$ 77 milhões em todo o mundo. Lançado 17 anos após a queda do Muro de Berlim, marcando o fim da República Democrática Alemã, foi o primeiro filme dramático notável sobre o assunto após uma série de comédias como Adeus, Lenin! e Sonnenallee.  Essa abordagem foi amplamente aplaudida na Alemanha, e o filme foi elogiado por sua interpretação e análise social precisa, apesar de algumas críticas de que o personagem de Wiesler foi retratado de forma irrealista e com simpatia indevida. A autenticidade do filme foi considerada louvável, visto que o diretor cresceu fora da Alemanha Oriental e tinha 16 anos quando ocorreu a queda do Muro de Berlim.

Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, a República Democrática termina e, com ela, a sua nova vida. Criada em 8 de fevereiro de 1950, centrava suas operações na capital comunista, Berlim Oriental, onde mantinha um extenso complexo em Lichtenberg, uma cidade da Alemanha, localizado no distrito de Holf, no estado de Baviera e outros menores dispersos pela cidade. A Stasi é reconhecida na esfera política como um dos serviços políticos públicos de inteligência mais efetivos do mundo. Seu principal objetivo era espionar a população da Alemanha Oriental, via uma enorme rede de espionagem de civis-informantes. A repressão política era uma das prioridades, combatendo a oposição através de tortura psicológica de dissidentes, num método chamado eficaz chamado Zersetzung, que é traduzido como “decomposição”. No total, mais de 250 000 alemães foram presos por razões políticas pela Stasi durante os 40 anos de sua existência. A antiga sede da Stasi em Berlim representa o Stasimuseum, um museu onde “os visitantes podem inteirar-se das atividades”. A partir de 1990, vários funcionários da Stasi foram levados a julgamento por crimes cometidos contra a população em geral. Após a reunificação da Alemanha, ocorrida no final década de 1980, principalmente com a queda do Muro de Berlim e a crise do regime socialista, chamada por Habermas (1990) de Revolução retificada (Rectying Revolution), pode-se acessar dados estatísticos coletados pela agência durante sua existência.

   

Nunca é demais repetir a distinção apontada por Jürgen Habermas do ponto de vista da sociedade capitalista, quando estuda as relações entre “técnica e ciência como ideologias”. Isto é importante. Diz Habermas, “quero distinguir entre 1) enquadramento institucional de uma sociedade ou de um mundo vital sociocultural, e, 2) os subsistemas de ação racional relativa a fins que incrustam nesse enquadramento. Na medida em que as ações são determinadas pelo marco institucional são ao mesmo tempo dirigidas e exigidas mediante expectativas de comportamento, sancionadas e recíprocas. Na medida em que são determinadas pelos subsistemas de ação racional teleológica, regulam-se por modelos de ação instrumental ou estratégica. A garantia de que elas sejam com suficiente probabilidade determinadas regras técnicas e as estratégias esperadas só pode obter-se mediante a institucionalização, e com isto obtém-se a distinção do conceito weberiano de racionalização”.  Neste sentido, a superioridade do modo de produção capitalista sobre os anteriores, funda-se nas duas questões seguintes: a) na instauração de um mecanismo econômico que garante em longo prazo a ampliação dos subsistemas de ação racional teleológica, e b) na criação de uma legitimação econômica sob a qual o sistema de dominação pode adaptar-se às novas exigências de racionalidade desses subsistemas progressivamente. Max Weber concebe esse processo social de adaptação como “racionalização” e em 1904/05 afirmava o seguinte: - Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão ou se, um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e ideias, ou ainda se nenhuma dessas duas – a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsora espécie de autojustificação. Estes podem ser designados como “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.

Habermas distingue ainda duas tendências, uma racionalização “partir de baixo” e uma racionalização “a partir de cima”. No primeiro caso, surge uma permanente pressão adaptativa logo que, com a institucionalização de um intercâmbio territorial de bens e da força de trabalho, por um lado, e da empresa capitalista, por outro, se impõe à nova forma de produção. No sistema de trabalho social, fica assegurado o progresso cumulativo das forças produtivas e, assim, uma expansão horizontal dos subsistemas de ação racional teleológica – sem dúvida, à custa de crimes econômicos.  Por este meio, as formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às condições da racionalidade instrumental ou estratégica: a organização do trabalho e do tráfico econômico, a rede de transportes, de notícias e de comunicação, as instituições do Direito privado e, partindo da administração das finanças, a burocracia estatal. Surge deste modo, a infraestrutura de uma sociedade sob a coação à modernização. Ela apodera-se, pouco a pouco de todas as esferas vitais: da defesa do sistema escolar, da saúde e até da família, e impõe tanto na cidade como no campo uma urbanização da forma de vida, i, é, subculturas que ensinam o indivíduo a poder “deslocar-se” de um contexto de interação para a ação racional teleológica. À pressão para a racionalização a partir de cima, pois, as tradições que legitimam a dominação e orientam a ação, em especial as interpretações cosmológicas do mundo, esvaziam o caráter vinculante com a imposição da racionalidade teleológica.

Assim, as legitimações enfraquecidas são substituídas por outras novas que, por seu turno, nascem da crítica à dogmática das interpretações tradicionais do mundo e pretendem possuir um caráter científico, e que por outro lado, mantém funções legitimadoras e subtraem as relações de poder existentes tanto à análise como à consciência pública. Só assim surge ideologias em sentido estrito. Substituem as legitimações tradicionais da dominação, ao apresentarem-se com a pretensão da ciência moderna e ao justificarem-se a partir da crítica às ideologias. O pensador alemão tem como escopo de sua análise os chamados “países capitalistas avançados” que desde o último quartel do século XIX apresentam duas tendências evolutivas: 1) um incremento da atividade intervencionista do Estado, que deve assegurar a estabilidade do sistema e, 2) uma crescente interdependência de investigação técnica, que transformou as ciências na primeira força produtiva. Ambas as tendências destroem aquela constelação de marco institucional e subsistemas de ação racional dirigida a fins, pela qual se caracteriza o capitalismo de tipo liberal. Por isso mesmo, é que não se cumprem, assim, condições relevantes de aplicação para a economia política na versão que Marx, com razão, lhe dera relativamente ao capitalismo liberal, ou seja, já não pode também desenvolver-se uma teoria crítica da sociedade na “forma exclusiva de uma crítica da economia política”. Na medida em que a atividade estatal visa à estabilidade, crescimento do sistema econômico, a política assume peculiar caráter negativo: orienta-se para prevenção das disfuncionalidades, evitamento dos riscos que possam ameaçar o sistema; a política visa não a realização de fins práticos, mas a resolução de questões técnicas.

Enfim, o filme “A Vida dos Outros” (2006), dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck, é um drama alemão que se passa em Berlim Oriental, em 1984, durante a chamada Guerra Fria. O filme acompanha a vida do capitão Gerd Wiesler, um agente da Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental), que é designado para espionar o dramaturgo Georg Dreyman e sua amante, a atriz Christa-Maria Sieland. A análise do filme revela uma crítica contundente ao regime socialista e à vigilância constante imposta pela Stasi, além de explorar temas como a perda da privacidade, a manipulação da informação e a busca por liberdade e autenticidade. O filme retrata de forma realista o ambiente opressivo da Alemanha Oriental, onde a Stasi exercia um controle absoluto sobre a vida dos cidadãos. A vigilância constante, a falta de liberdade de expressão e a paranoia eram características marcantes desse período. Gerd Wiesler, inicialmente, um agente frio e dedicado à sua função, se transforma ao longo da história, desenvolvendo uma certa empatia por Dreyman e sua arte. A atuação de Ulrich Mühe, que interpreta Wiesler, é magistral, transmitindo a complexidade de seu personagem. Georg Dreyman, dramaturgo renomado, Dreyman representa a resistência cultural e intelectual contra o regime. Sua arte se torna um símbolo de liberdade e esperança para aqueles que vivem sob a opressão. Christa-Maria Sieland, uma atriz talentosa, mas atormentada por seus próprios demônios e pressões externas, Sieland se vê dividida afetivamente entre sua lealdade a Dreyman e a sua necessidade de sobreviver em um ambiente hostil.

O filme problematiza a moralidade da vigilância estatal e a invasão da privacidade dos cidadãos. A Stasi, com seu aparato de espionagem, controla todos os aspectos da vida das pessoas, criando um clima de desconfiança e medo. A Stasi utiliza a manipulação da informação para controlar a opinião pública e desacreditar seus inimigos. O filme mostra como a verdade pode ser distorcida e utilizada como arma pelo poder. A busca por liberdade e autenticidade é um tema central. Dreyman e Sieland lutam para manter sua integridade e expressar suas verdadeiras opiniões, mesmo sob a constante ameaça da Stasi. O filme sugere que mesmo em um ambiente tão opressor, é possível encontrar redenção. A mudança de Wiesler, de agente da Stasi para protetor de Dreyman, demonstra que a humanidade pode prevalecer mesmo nas situações mais difíceis. O filme é marcado por um estilo realista e minimalista, com uma atmosfera densa e tensa. A fotografia em tons frios e a trilha sonora melancólica contribuem para criar a sensação de opressão e isolamento. O filme: A Vida dos Outros foi aclamado pela crítica e pelo público, recebendo diversos prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O filme é considerado uma obra-prima do cinema alemão e uma reflexão poderosa sobre a história e a condição humana. É um filme de impacto social que aborda temas relevantes e atemporais. Sua análise revela a complexidade da natureza humana e a importância da liberdade, da privacidade e da busca pela verdade. O filme nos lembra que a luta pela liberdade e pela autenticidade, isto é, uma batalha constante, que exige coragem e determinação, mesmo em face da adversidade.

Sociologicamente falando o Zersetzung representou uma técnica de guerra psicológica usada pelo Ministério da Segurança do Estado para reprimir oponentes políticos na Alemanha Oriental durante aquelas décadas. Zersetzung serviu para combater dissidentes alegados e reais por meios secretos, usando métodos secretos de controle abusivo e manipulação psicológica para impedir atividades antigovernamentais. As pessoas eram comumente visadas de forma preventiva e preventivamente para limitar ou interromper atividades “politicamente incorretas que poderiam ter cometido”, e não com base em crimes que realmente cometeram. Os métodos de Zersetzung foram projetados para quebrar, minar e paralisar as pessoas por trás de “uma fachada de normalidade social” em uma forma de “repressão silenciosa”. A sucessão de Erich Honecker (1912-1994) a Walter Ulbricht (1893-1973) como Primeiro Secretário do Partido de Unidade Socialista da Alemanha em maio de 1971 viu uma evolução dos “procedimentos operacionais” (“Operative Vorgänge”) conduzidos pela Stasi longe do terror aberto da era Ulbricht em direção ao que veio a ser reconhecido como Zersetzung (“Anwendung von Maßnahmen der Zersetzung”), que foi praticamente formalizado pela Diretiva nº 1/76 sobre o chamado “Desenvolvimento e Revisão de Procedimentos Operacionais” em janeiro de 1976. 

Erich Honecker foi um político alemão, que serviu como presidente da Alemanha Oriental de 1976 até 1989. Em 1971 substituiu Willi Stoph no cargo de secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) e Walter Ulbricht no cargo do Presidente do Conselho Nacional de Defesa. Walter Ulbricht foi um político alemão, membro do Partido Comunista da Alemanha (KPD) e depois secretário-geral do Partido Socialista Unificado (SED), que resultou da fusão forçada pelos soviéticos do Partido Social-Democrata da Alemanha (SDP) com o Partido Comunista da Alemanha (KDP), na República Democrática Alemã. Ocupou o cargo de Presidente do Conselho de Estado da República Democrática Alemã entre 12 de setembro de 1960 e 1º de agosto de 1973. Foi o responsável por mandar construir o Muro de Berlim, embora dois meses antes tivesse negado tal intenção. Apoiou a intervenção soviética na Checoslováquia, durante a Primavera de Praga, mandando inclusive tropas da RDA para pôr fim ao levantamento liberal na Checoslováquia. Em 29 de outubro de 1976 foi eleito Presidente do Conselho de Estado pelo parlamento da República Democrática Alemã. Seu governo foi marcado por reformas econômicas e melhorias nas relações internacionais do país, incluindo uma aproximação com a República Alemã Ocidental, embora o Estado policial, encabeçado pela Stasi, tenha sido ampliado para suprimir a oposição política interna.

Bibliografia Geral Consultada.

ROSZAK, Theodore, A Contracultura: Reflexões sobre a Sociedade Tecnocrática e a Oposição Juvenil. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1972; BOUDON, Raymond, Effets Pervers et Ordre Social. Paris: Presses Universitaires de France, 1977; DURAND, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; SAINT-PIERRE, Héctor Luís, A Política Armada: Fundamentos da Guerra Revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2000; ABRÊU, João Azevêdo, A Questão Mente-corpo em A Interpretação dos Sonhos de Freud. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003; MAIGRET, Eric; MACÉ, Eric (Org.), Penser les Médiacultures. Nouvelles Pratiques et Nouvelles Approches de la Represéntation du Monde. Paris: Armand Colin, 2005; JAY, Martin, A Imaginação Dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; HABERMAS, Jürgen, Teoria do Agir Comunicativo. 1. Racionalidade da ação e Racionalização Social. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2012; FOUCAULT, Michel, El Orden del Discurso. Barcelona: Ediciones Tusquets, 1973; Idem, Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; PASQUALINO, Beatriz Buschel, A Rádio Rebelde como Arma de Guerrilha na Revolução Cubana. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2016; FREUD, Sigmund, A Interpretação dos Sonhos. Porto Alegre: L&PM Editor, 2017; CHRENCÍKOVÁ PARÍZKOVÁ, Nikola, República Tcheca (1989-2004): Reconfigurações Geopolíticas, Inserção Internacional e Papel da Mídia. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional. Instituto de Economia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023; MORAES, Felipe Moralles e, Neoconservadorismo: A Teoria da Injustiça de Jürgen Habermas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2024; HIRATUKA, Rafael Kenji, Análise da cultura participativa em produções da Netflix sobre sexualidade. Dissertação de Mestrado em Educação Sexual. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara: Universidade Estadual Paulista, 2025; entre outros. 

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