“A música oferece às paixões o meio de obter prazer delas”. Friedrich Nietzsche
A história da filosofia determina três momentos principais na elaboração da univocidade do ser. O primeiro é representado pelo Beato João Duns Scot ou Scotus (1266-1308), teólogo e filósofo escocês, no Opus Oxoniense, o maior livro de ontologia pura, onde o ser é pensado como unívoco, mas o ser unívoco é pensado como neutro, neuter, indiferente ao infinito e ao finito, ao singular e ao universal, ao criado e ao incriado. Não por acaso merece, pois, o nome de “doutor sutil”, porque seu olhar discerne o ser aquém do entrecruzamento do universal e do singular. Para neutralizar as forças da analogia do juízo, ele toma a dianteira e neutraliza antes de tudo o ser num conceito abstrato. Eis por que ele somente pensou o ser unívoco. Vê-se o inimigo que se esforça por evitar, em conformidade com as exigências do cristianismo: o panteísmo, em que ele cairia se o ser comum não fosse neutro. Todavia, ele soube definir dois tipos de distinção que reportavam à diferença este ser neutro indiferente. A distinção formal, é real, pois é fundada no ser, ou na coisa, mas não é necessariamente uma distinção numérica, porque se estabelece entre essências ou sentidos, entre “razões formais”, que podem deixar subsistir a unidade do sujeito a que são atribuídas.
Não só a univocidade do ser em relação à Deus e às criaturas se prolonga na univocidade dos “atributos”, mas, sob a condição de sua infinitude, Deus pode possuir esses atributos unívocos distintos sem nada perder de sua unidade. O outro tipo de “distinção”, a distinção modal, se estabelece entre o ser ou os atributos, por um lado, e, por outro, as variações intensivas de que são capazes. Essas variações, comparativamente como os graus do branco, são modalidades individuantes das quais o infinito e o finito constituem precisamente as intensidades singulares. Do ponto de vista de sua própria neutralidade, o ser unívoco não implica, pois, somente formas qualitativas ou atributos distintos, eles mesmos unívocos, mas se reporta e os reporta a fatos intensivos ou graus individuantes que variam seu modo sem modificar-lhe a essência enquanto ser. Se é verdade que a distinção em geral reporta o ser à diferença, a distinção formal e a distinção modal sãos os dois tipos sob os quais o ser unívoco, em si mesmo, por si mesmo, se reporta à diferença. É com Espinosa de origem judaico-portuguesa, que o ser unívoco deixa de ser neutralizado, tornando-se expressivo, tornando-se uma verdadeira proposição expressiva de condição afirmativa.
Todavia, subsiste ainda uma indiferença entre a substância e os modos: a substância espinosista aparece independente dos modos, e os modos dependem da substância, mas de outra coisa. Seria preciso que a substância fosse dita dos modos e somente dos modos. Tal condição só pode ser preenchida à custa de uma subversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo e assim por diante. Que a identidade não é a primeira, que ela existe como princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que abre à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito geral já posto como idêntico. Com o eterno retorno, Nietzsche não queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o da vontade de potência) em que toda as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Revir é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz o mesmo retornar, mas o revir constitui o Mesmo que se torna. Revir é o devir-idêntico do devir. Revir é o ser disto que devém, revir é o ser do devir ele mesmo, o ser que se afirma do devir.
Revir
é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a
identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno
do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como
repetição. Do mesmo modo a repetição do eterno retorno consiste em pensar o
messo a partir do diferente. Mas esse pensamento já não é de modo algum uma
representação teórica: ele opera praticamente uma seleção das diferenças
segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova
do eterno retorno. A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da
repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição. Qual
a importância da questão do sentido para Deleuze? O que pode ser construído, em
filosofia, a partir dessa abordagem? É espantoso como Deleuze tende mais para
Meinong do que para Frege, o que de imediato nos leva a consideração do sentido
como entidade não existente, à tese capital do livro. No desenvolvimento
teórico dos conceitos de sua filosofia, contida no livro: Lógica do Sentido,
iremos compreender a afirmação natural de que a filosofia é uma disciplina que
trata da criação/e invenção de conceitos. A tese filosófica de Gilles Deleuze,
esquematicamente, isto é, explica a representação que o conceito remete ao
acontecimento. Devemos distinguir e compreender como se dá esta passagem do
livro Lógica do Sentido para o livro O que é a Filosofia? No
primeiro, a questão do sentido está diretamente relacionada a proposição; mas
no segundo, o sentido dá um passo mais adiante no entendimento remetendo ao
conceito.
O
rosto seduz de forma mais segura e ainda mais sutil do que as palavras e as
coisas. O rosto é objeto de um trabalho pessoal, indispensável à conversação e
ao comércio entre os homens. Jean-Jacques Courtine & Claudine Haroche, no
livro História do Rosto (2016) lembram que manuais de retórica, obras de
fisiognomonia, livros de civilidade e “artes da conversação” incansavelmente
que povoam as obras do século XVI ao XVIII que o rosto está fundamentalmente
situado no centro das chamadas “percepções de si, da sensibilidade ao outro,
dos rituais da sociedade civil, das formas do político”. Trata-se de um
privilégio antigo que reveste, porém, uma nova tonalidade a partir do início do
século XVI desde Maquiavel. Todos esses textos dizem e repetem que “o rosto fala”.
Ou, mais precisamente pelo rosto é o indivíduo que se exprime. Um laço se
esboça e depois é traçado mais nitidamente entre sujeito, linguagem e rosto, um
laço crucial para a elucidação da personalidade moderna. Isto é,
historicamente, as percepções do rosto são lentamente deslocadas, as
sensibilidades à expressão se desenvolvem progressivamente. É um dos traços
essenciais do avanço do individualismo depreendido nas mentalidades. Um
“individualismo dos costumes” que Philippe Ariès atribui a um processo geral de
privatização. E que logo que vai transformar profundamente a identidade
individual entre aqueles séculos, e transformar de maneira paradoxal as
relações entre comportamento públicos e privados afirmar a preeminência do
indivíduo e incitar à expressão pessoal.
O
indivíduo é a expressão socialmente singular de representação do seu rosto. Mas que, dialeticamente, esse mesmo movimento que o incita a se exprimir
leva-o ao mesmo tempo a se apagar, ao mascaramento de seu próprio rosto, a
encobrir a repressão. Os ensaios de sociologia Norbert Elias (1897-1990) e de Max Weber (1864-1920) singularizam-se sob a denominação geral de “civilização dos costumes” e de
“racionalização dos comportamentos práticos” que um e outro, respectivamente,
pensaram esse processo metodologicamente, de afirmação individual e, mais
ainda, de autocontrole, de repressão dos impulsos, de contenção. Elementos
desses paradoxos de consequências não intencionais, estão no quadro de
pensamento da sociedade cortesã e do desenvolvimento da civilização, para
Elias, e daquilo que para Max Weber “equivale aos fatores religiosos na gênese
de uma psicologia burguesa e capitalista”. Por outro lado, Michel Foucault (1926-1984), tendo
como escopo a analítica do poder resgata a noção disciplinar destes séculos situando
também que o desenvolvimento deste conjunto de práticas e saberes
disciplinares, implica novas formas de “individualização”: transposição ao
espaço político de uma forma de poder nascidas, não por acaso, nas instituições
primus inter pares das condições sociais escolares cristãs. Poder
penetrante sobre o corpo, os gestos, que penetram as almas
com o objetivo de vigilância sobre a questão da intimidade.
Enfim,
o processo de concentração física de força pública se acompanhada de uma
desmobilização da violência ordinária. A violência física só pode ser aplicada
por um agrupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim,
claramente identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um
agrupamento simbólico, centralizado e disciplinado. A noção de disciplina,
sobre a qual Max Weber escreveu páginas magníficas, é capital: não se pode
concentrar a força física sem, ao mesmo tempo, controla-la, do contrário é o
desvio da violência física, e o desvio da violência física está para a
violência física assim como o desvio de capitais está para a dimensão
econômica: é o equivalente da concussão. A violência física pode ser
concentrada num corpo formado para esse fim, claramente identificado em nome da
sociedade pelo uniforme simbólico, especializado e disciplinado, isto é, capaz
de obedecer como um só homem a uma ordem central que, em si mesma, não é
geradora de nenhuma ordem. O conjunto das instituições mandatadas para garantir
a ordem, a saber, as forças públicas e de justiça, são, portanto, separadas
pouco a pouco do mundo social corrente. Essa concentração do capital físico se
realiza em um duplo contexto. Para uns, o desenvolvimento do exército
profissional está ligado à guerra, assim como o imposto; mas há também a guerra
interior, a guerra civil, a arrecadação do imposto como uma espécie de guerra
civil.
O esclarecimento exprime o movimento real da sociedade burguesa como um todo sob o aspecto da encarnação de sua Ideia em pessoas e instituições, assim também a verdade não significa meramente a consciência relacional, mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva. O medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos – fatos esses que, no entanto, já estão pré-moldados como clichês na própria percepção pelas usanças dominantes na ciência, nos negócios e na política – é exatamente o mesmo medo do “desvio social”. Essas usanças também definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem se conformar. Ao tachar de compilação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira. É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper. A “falsa clareza”, a ilusão em relação à realidade em si é apenas uma outra expressão do mito. Este na história social e política da humanidade sempre foi obscuro e iluminante ao mesmo tempo. Suas credenciais tem sido desde sempre a familiaridade e o fato de dispensar o trabalho característico do conceito.
A aporia com que defrontamos em nosso trabalho cotidiano revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma, afirmavam Adorno e Horkheimer (1985) – e nisso reside nossa petitio principi - de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecido. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonado a seus inimigos e reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também a sua relação social com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo, sua afinidade autodestrutiva com a paranoia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta socialmente fraqueza e a dúvida sobre o poder de compreensão do pensamento teórico, e portanto, abstrato no âmbito científico. A causa da recaída do esclarecimento não deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa recaída, mas no próprio esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.
A
naturalização dos homens não é dissociável do progresso social. O aumento da
produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais
justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o
controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se
vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes
elevam o poder a sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado.
Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o indivíduo se vê, ao mesmo
tempo, melhor do que nunca provido por ele. Numa situação injusta, a impotência
e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela per se
destinados. A elevação do padrão de vida das classes subalternas, materialmente
considerável e socialmente lastimável, reflete-se da difusão hipócrita do
espírito. Sua verdadeira aspiração é a negação da reificação. Mas ele
necessariamente se esvai quando se vê concretizando em um bem cultural e
distribuído paras fins de consumo. A enxurrada de informações precisas e
diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo. O que está
em questão não é a cultura como valor. A questão é que o esclarecimento deve
tomar consciência de si mesmo, se os homens não forem traídos. Não se trata da
conservação/superação hegeliana do passado, mas de resgate-esperança. O passado
se prolonga como sua própria destruição.
No
trajeto social para a concepção de ciência moderna, os homens renunciaram ao
sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela
probabilidade. A causa representou apenas o último conceito filosófico que
serviu de padrão para a crítica científica, porque ela era, por assim dizer,
dentre todas as ideias antigas, o único conceito que a ela ainda se
apresentava, derradeira secularização do princípio criador. Com as Ideias de
Platão, finalmente, também os deuses patriarcais do Olimpo foram capturados
pelo logos filosófico. O esclarecimento, porém, reconheceu as antigas potências
no legado platônico e aristotélico da metafísica e instaurou um processo contra
a pretensão de verdade dos universais, acusando-a de superstição. Na autoridade
dos conceitos universais ele crê enxergar ainda o medo pelos demônios, cujas
imagens eram o meio, de que serviam os homens, no ritual mágico, para tentar
influenciar a natureza. Doravante, a matéria era dominada sem o recurso
ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O
que não submete ao critério da calculabilidade e da utilidade de uso torna-se
suspeito para o esclarecimento. Mas cada resistência cultural que ele encontra
serve apenas para aumentar a sua força social. Isso se deve ao fato de que o
esclarecimento ainda se reconhece a si mesmo nos próprios mitos. Quaisquer que
sejam os mitos de que possam se valer a resistência, o simples fato social de
que eles se tornam argumentos por uma tal oposição significa que eles adotam o
princípio da racionalidade decerto corrosiva da qual acusam o esclarecimento. O
esclarecimento é totalitário. Para ele, o elemento social e humano básico do
mito foi o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza.
A
cultura respeitável constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço
era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espaço higiênico da
fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho
gigantesco. Talvez não fosse um preço tão alto, como acreditam alguns
defensores da cultura, se a venda em liquidação da cultura não contribuísse
para a conversão das conquistas econômicas em seu contrário. Nas condições
atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em elementos de infortúnio.
Enquanto no período passado a massa desse bens, na falta de um sujeito social,
resultava na chamada superprodução, em meio às crises da economia interna, ela
produz com a entronização dos grupos que
detém o poder no lugar desse sujeito social, a ameaça internacional do
monopólio ligado aos grupos econômicos, com a entronização do grupos que detêm
o poder no lugar desse sujeito social que procura tornar inteligível o
entrelaçamento da racionalidade e da realidade social, bem como o entrelaçamento,
inseparável do primeiro, da natureza e da dominação da natureza. No centro
estão os conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais revelam tanto a
diferença quanto a unidade da natureza mítica e do domínio esclarecido da
natureza. Ele mostra como a submissão que é natural ao sujeito autocrático
culmina exato no domínio da natureza e objetividade cegas. Essa tendência,
segundo Adorno e Horkheimer, aplaina as antinomias do pensamento liberal, em
especial a do rigor moral e absoluta amoralidade.
O
Estado se constitui em relação a um duplo contexto: de um lado, em
relação a outros Estados atuais ou potenciais, isto é, os princípios
concorrentes – precisam concentrar “capital de força física” para
travar a guerra pela terra, pelos territórios; de outro lado, em relação a um
contexto interno, a contrapoderes, isto é, príncipes concorrentes ou classes
dominadas que resistem à arrecadação do imposto ou ao recrutamento de soldados.
Esses dois fatores favorecem a criação de exércitos poderosos dentro dos quais
se distinguem progressivamente forças propriamente militares e forças
propriamente policiais destinadas à manutenção da ordem interna. Essa distinção
exército/polícia, evidente hoje, tem uma genealogia extremamente lenta, as duas
forças têm sido por muito tempo confundido. O desenvolvimento do imposto está
ligado às despesas de guerra. O nascimento do imposto é simultâneo a uma
acumulação de capital detido pelos profissionais da gestão burocrática e à
cumulação de um imenso capital informacional. É o vínculo entre Estado e a sua
relação poderosa e incontestável Estatística, posto que a necessidade férrea do
Estado se associa ao nascimento e conhecimento racional da sociologia. A
institucionalização do imposto é realmente o desfecho de uma “guerra interior
travada pelos agentes do Estado contra as resistências dos sujeitos”. Os
historiadores se perguntam, com razão, em que momento aparece o
sentimento de pertencer a um determinado Estado, que não é necessariamente o
que se chama na vida de patriotismo, o sentimento de ser um dos sujeitos do
Estado.
A experiência de pertencimento a uma unidade [territorial] definida está muito fortemente ligada à experiência da tributação. Nós nos descobrimos como sujeitos descobrindo-nos como tributáveis, contribuintes. Há uma invenção extraordinária de medidas jurídico-policiais destinadas a fazer pagarem os maus pagadores, que são a ordem de prisão e a responsabilidade in solidum. Enfim, a metáfora de Norbert Elias dizendo que o Estado não passa de uma extorsão legítima é mais que uma metáfora. Tendo em vista que se trata de criar um corpo de agentes encarregados da coleta e capazes de operá-la sem desviá-la em proveito próprio. Era preciso que os agentes e os métodos de cobrança fossem facilmente identificados com a pessoa, a dignidade do poder, fosse legado da cidade, do senhor ou do soberano. Os meirinhos precisavam usar sua libré, ter autorização de portar seus emblemas, notificar suas ordens em nome dele. Precisavam ser percebidos como mandatários tendo a plena potentia agendi, e que essa delegação se manifestasse não só por uma ordem assinada como também por uma libré que expressasse a dignidade e, ao mesmo tempo, a legitimidade de sua função. Essa delegação, que é problemática – todo mandatário pode desviar os proveitos que pode tirar do poder que lhe foi delegado -, implica controle dos mandatários; de controladores dos cobradores de impostos. Para que os mandatários exerçam seu ofício sem ter de recorrer cada vez mais à violência física, mais a autoridade simbólica deles precisa ser reconhecida; faz referência tácita à ideia de que a cobrança econômica do imposto é legítima; a autoridade de quem mandata as pessoas exercendo essas extorsões políticas deve ser legítima, mesmo quando essas extorsões de fundos parecem ser de fato injusta.
Historicamente
a ideia de acontecimento dá ao conceito um aspecto diferente daquele
pensado por Aristóteles. Desta maneira, o pensamento filosófico contemporâneo
de Gilles Deleuze procura indicar novas saídas para a filosofia. É neste
sentido que nossa apreensão do mundo, dando-se através da superfície das
coisas, nos faria apreender além das coisas e suas imagens, os acontecimentos
que as envolvem. Deleuze quer tornar relevante a ideia praticada de que a
linguagem e a superfície estão relacionadas. O que pensamos e falamos sobre as
coisas passa pela superfície. O estatuto da ideia é superficial. A linguagem,
somente atinge a significação quando se dá na superfície. A significação
somente é possível pelo sentido que a envolve. O acontecimento sinaliza para o
sentido como a proposição para a linguagem. O que deve ser esclarecido é que
Deleuze particularmente aposta no conceito filosófico como incorporal. Há
também um fascínio de consciência do autor da Lógica do Sentido pela
obra de Lewis Carroll (1832-1898); diante desta, procura demonstrar que a obra lógica
de Carroll difere de sua obra fantástica exatamente pelo tratamento dado
ao sentido. A obra de Lewis Carroll
representa um jogo do sentido, do não senso, um caos-cosmos. O sentido é uma
entidade não existente, ele com o “não-senso” tem relações particulares. Lewis
Carroll promoveu encenações do paradoxo, o que se aproxima dos estoicos na
constituição paradoxal com o sentido. “Alice e do outro lado do espelho” tratam
dos acontecimentos, dos acontecimentos puros.
Simultaneidade
do devir – maiores do que éramos e menores do que nos tornamos, na medida em
que se furta o presente: o devir não suporta a cisão nem a diferença do antes
(passado) e do depois (futuro). A essência do devir é “puxar” nos dois sentidos
ao mesmo tempo. O bom senso é uma afirmação de um sentido determinável em todas
as coisas – o paradoxo, que afirma os dois sentidos ao mesmo tempo. O puro
devir é o ilimitado, matéria do simulacro, quando se furta a ação da ideia,
quando contesta ao mesmo tempo o modelo e a cópia: as coisas medidas se acham
nas ideias. O paradoxo desse puro devir quando é capaz de furtar-se ao presente
é a identidade do infinito de dois sentidos simultâneos: a) Alice - contestação
da identidade de pessoal, na aventura da perda do nome próprio, que é garantido
por um saber; b) o “eu” pessoal tem necessidade de Deus e do mundo. Os
substantivos e os adjetivos estão fundidos, paradas e repousos arrastados pelos
verbos de puro devir, que desliza na linguagem dos acontecimentos, em que a
identidade se perde para o eu, o mundo e Deus; c) o paradoxo destrói o bom
senso como único sentido, destrói o senso comum como designação das identidades
fixas.
Enfim,
o estatuto do sentido, a partir da filosofia estoica, tem no exprimível,
no “lekton”, seu ponto de partida. Os estoicos acreditavam que a prática da
virtude era suficiente para alcançar a eudaimonia: uma vida bem vivida.
Os estoicos identificaram o caminho para alcançá-lo com uma vida praticando as
quatro virtudes na vida quotidiana: sabedoria, coragem, temperança ou
moderação, e justiça, e vivendo de acordo com a natureza. Deleuze, na Lógica
do Sentido, procura demonstrar os filósofos que tratam o sentido de modo
direto, fazendo-o aparecer na fronteira entre as proposições e as coisas. Pela
via dos “incorporais”, ele acredita que temos um novo modo de pensar a lógica,
sobretudo pelo fato do princípio de “não contradição” não atingir os
incorporais. Desde Aristóteles, compreendemos que este princípio fundamenta e
garante a verdade das premissas. Consequentemente permite observar se, de
premissas verdadeiras, seguem-se necessariamente conclusões verdadeiras: a
prova da validade dos argumentos. Deleuze seguindo esta tradição também estabelece
uma relação entre o sentido e o tempo, destacando o presente – que pertence aos
corpos, o reino de Cronos -, e o tempo dos incorporais, denominado Aion,
quer dizer, através da compreensão da linguagem, o substantivo e os verbos
apareceriam relacionados as dimensões de apreensão do tempo.
O
fundamento da ética estoica é que o bem reside no próprio estado da alma, na sabedoria
e no autocontrole. É preciso, portanto, esforçar-se para estar livre
das paixões. Para os estoicos, a razão significava usar a lógica e compreender
os processos da natureza – o logos ou razão universal, inerente a todas as
coisas. A palavra grega páthos era um termo abrangente que indicava uma
imposição que alguém sofria. Os estoicos usaram a palavra para discutir muitas
emoções comuns, como raiva, medo e alegria excessiva. Uma paixão é uma força
perturbadora e enganadora na mente que ocorre devido a uma falha em raciocinar
corretamente. Para o estoico Crisipo, as paixões são julgamentos avaliativos.
Uma pessoa que experiencia tal emoção valorizou incorretamente uma coisa
indiferente. Uma falha de julgamento, alguma falsa noção do bem ou do mal, está
na raiz de cada paixão. O julgamento incorreto quanto a um bem presente dá
origem ao deleite, enquanto que a luxúria é uma estimativa errada sobre o
futuro. Imaginações irreais do mal causam angústia no presente ou medo no
futuro. O estoico ideal, em vez disso, mediria as coisas pelo seu valor real, e
veria que as paixões não são naturais. Estar livre das paixões é ter uma
felicidade autossuficiente. Não haveria nada a temer: a irracionalidade é o
único mal; não há motivo para raiva: outros não podem prejudicá-lo.
Gianna
Nannini, nascida em Siena, em 14 de junho de 1954 é uma cantora e compositora
italiana de rock. É irmã mais velha do ex-piloto de Fórmula 1 Alessandro
Nannini. Estudou piano em Lucca e composição em Milão. O seu primeiro sucesso ocorreu
em 1979, com o single America e o álbum California que representou
um sucesso em vários países europeus. O auge da carreira foi alcançado em 1984,
com a publicação do sexto álbum Puzzle. Este álbum atingiu o top 10
na Itália, Alemanha, Áustria e Suíça. Ela cantou para o videoclipe Fotoromanza,
realizado por Michelangelo Antonioni, venceu vários prêmios e iniciou uma tournée
pela Europa, incluindo uma participação no Festival de Jazz de Montreux.
Em 1986, o seu sucesso Bello e Impossible representou a consagração de
um sucesso e venceu vários prêmios em Itália, Alemanha, Áustria e Suíça. A sua
compilação Maschi e Altri do ponto de vista merceológico vendeu mais de
um milhão de cópias. Foi o nono álbum gravado de Gianna Nannini. Foi seu
primeiro álbum de compilação e foi lançado em 1987 na América do Sul, Coreia do
Sul, Israel, África do Sul e Austrália. Neste trabalho empreendedor Gianna
destaca alguns de seus singles de maior sucesso, incluindo “Profumo”,
que liderou as paradas gregas, “I Maschi” que estreou no World Popular Song
Festival em Tóquio e “Avventura”, que se tornou popular quando a Philips o
utilizou para um comercial publicitário de baterias metalalcalinas.
Giana Nannini não fez turnê para promover o álbum, mas participou de um show no Schauspielhaus em Hamburgo em 1º de maio de 1987, onde cantou uma seleção de músicas de Bertoldt Brecht (1898-1956) e Kurt Weill (1900-1950) ao lado de Sting e Jack Bruce. O álbum foi um sucesso comercial, tornando-se seu primeiro álbum a vender mais de um milhão de cópias somente no velho mundo europeu. A cinebiografia Bela e Rebelde (2024) pretende retratar a vida intimista de Gianna Nannini, nome (cf. Ginzburg, 1979; 1986; 1989) responsável por “uma das vozes mais incisivas e renomadas da música contemporânea”. O longa-metragem infere obras e passagens por um período de 30 anos da vida da cantora, começando pela infância e seguindo até o início da carreira, passando por um momento decisivo que dividiu a carreira da Gianna em duas partes. O filme quer demonstrar a questão tópica de “formação da personalidade” e como Gianna foi capaz de formar emoções através da música e da sua poesia. Em 1990 ela cantou Um`estate italiana, a canção oficial da Copa do Mundo FIFA de 1990, com Edoardo Bennato. Do ponto de vista da formação humanista Gianna Nannini licenciou-se no curso de graduação em Filosofia junto a Università degli Studi Di Siena em 1994, em Siena, Toscana que tem como representação socialmente uma das mais antigas universidades públicas da Itália. Quer dizer, originalmente chamada de Studium Senese, a Universidade de Siena foi fundada em 1240. Além disso, a universidade tem cerca de 20 mil estudantes, em torno de metade da população de Siena.
A Universidade de Siena é também reconhecida por suas Escolas de Direito
e Medicina. O evento foi sediado na Itália, tendo partidas de futebol realizadas
nas cidades de Milão, Roma, Nápoles, Turim, Bari, Verona, Florença, Cagliari,
Bolonha, Údine, Palermo e Gênova. A Itália foi o segundo país a sediar a
competição por duas vezes, sendo o primeiro o México, quatro anos antes. Além
da anfitriã Itália e da então campeã mundial de 1986, a seleção Argentina, se
classificaram para o torneio a Alemanha Ocidental, que viria a se sagrar campeã
dessa edição, Bélgica, Inglaterra, Escócia, Áustria, Suécia, Iugoslávia,
Espanha, Países Baixos, União Soviética, Tchecoslováquia, Irlanda, Romênia,
Camarões, Egito, Emirados Árabes, Coreia do Sul, Uruguai, Colômbia, Brasil,
Costa Rica e Estados Unidos da América (EUA). Grandes estrelas do futebol
mundial desfilaram pelos gramados italianos, como Gary Lineker, Paul Gascoigne,
David Platt e Ian Wright da Inglaterra, Ronald Koeman, Frank Rijkaard, Marco
Van Basten e Ruud Gullit da Holanda e Bodo Illgner, Andreas Brehme, Lothar
Matthäus, Rudi Völler e Jürgen Klinsmann da Alemanha, Diego Maradona e Claudio
Caniggia da Argentina, e outros.
A
Copa do Mundo de 1990 entrou para a história social como uma Copa de “equipes
defensivas”, que jogavam para alcançar o resultado - a média de gols, de apenas
2,21, registrou “um recorde negativo que perdura até hoje”. Essa situação levou
à mudança de regras, mais notadamente a regra do recuo de bola, e
à adoção de três pontos por vitória. Apesar disso, também foi uma Copa de
grandes goleadas, como EUA 1-5 Tchecoslováquia e Alemanha 5-1 Emirados Árabes
Unidos, e de grandes surpresas, como a vitória de Camarões sobre a Argentina
logo na 1ª rodada do Mundial. A final da Copa do Mundo FIFA de 1990 foi
disputada pela Argentina, que havia eliminado a Itália, a Iugoslávia e o
Brasil; e a Alemanha Ocidental, que havia eliminado a Inglaterra, a
Tchecoslováquia e os Países Baixos. A partida foi realizada em 8 de julho às
20h, no Estádio Olímpico de Roma, com um público de 73 603 pessoas. Sob o apito
do árbitro mexicano Edgardo Codesal, Andreas Brehme converteu uma penalidade
aos 40 minutos do segundo tempo, trazendo o terceiro título da Alemanha
Ocidental em Copas do Mundo.
Curiosamente
foi a última copa disputada pelas talentosas seleções da União Soviética e
Tchecoslováquia. No ano seguinte – mutatis mutandis - Gianna Nannini participou
num protesto do Greenpeace junto à embaixada francesa contra a decisão
do governo de prosseguir com as experiências nucleares no Atol de Moruroa. Em
2004, publicou uma compilação com os seus sucessos, mas as suas canções foram
regravadas na ocasião. O compact disc Perle contém um número de antigos
êxitos com novos arranjos. Em fevereiro de 2006, foi publicado o álbum Grazie
que alcançou o número 1 no top italiano com o single Sei nell`anima.
Durante o verão de 2006, Nannini fez uma digressão por toda a Itália. O single IO
uma das faixas daquele compact disk foi enorme sucesso. Em setembro de
2006, gravou em dueto com Andrea Bocelli “Ama Credi e Vai” foi gravado como cd-single.
Nannini participou também num álbum de Alexander Hacke (um membro da banda Einstürzende
Neubauten), Sanctuary na faixa Per Sempre Butterfly. Em 2007,
gravou “Pia come la canto Io”, uma colecção de canções cantadas em estilo ópera
pop que seria interpretado em 2008. Este trabalho levou 11 anos a ser
concebido e baseou-se na personagem medieval toscana Pia de` Tolomei, mencionada
em Dante. Este álbum foi produzido por Wil Malone que também produzira Grazie.
Historicamente Pia de' Tolomei era uma nobre italiana de Siena identificada como “la Pia”, uma personagem secundária da Divina Comédia, de Dante, que foi assassinada pelo marido. Sua breve presença no poema inspirou muitas obras de arte, música, literatura e cinema. Sua personagem na Divina Comédia é reconhecida por sua compaixão e atende a um programa maior entre as personagens de seu canto, bem como as personagens femininas de todo o poema. De acordo com uma tradição registrada pelos primeiros comentaristas da Divina Comédia, a Pia de` Tolomei é identificada como “la Pia” no Canto V do Purgatório. Neste canto, Dante e Virgílio encontram almas que se arrependeram no momento de suas mortes violentas e agora residem na segunda divisão do Ante-Purgatório, que fica na base da montanha do Purgatório. O conto de La Pia segue as histórias violentas de Buonconte da Montefeltro (1250-1289) e Jacopo del Cassero (1260-1298), onde ela diz: - “Por favor, lembre-se de mim, que sou La Pia. Siena me fez, em Maremma eu fui destruído. Ele sabe como, aquele que, para casar comigo, deu primeiro o anel que segurava a sua pedra”. Pia conta a Dante que veio de Siena e dá a entender que seu marido a matou em Maremma. Ela pede a Dante que se lembre dela nas orações quando ele retornar à Terra, porque as orações podem encurtar seu tempo no Purgatório, já que ela sabe que ninguém mais na Terra orará por ela. La Pia enfatiza a importância da oração de Dante como forma imperativa de lembrar.
A oração é uma atividade conjunta de retorno a Deus que fortalece os vínculos humanos, que foi comparado a uma cidade; argumenta-se que a cidade de Siena é vista como uma cidade purgatorial onde sua população está em jornada para a salvação. Siena é ainda vista como um lugar onde os laços humanos são formados, enquanto Maremma é onde os laços são quebrados. A simetria calma de Pia no versículo 134 (que se traduz como “Siena me fez, me desfez Maremma”), a coloca em um plano de compreensão mais elevado do que seus dois antecessores. Esta linha também ecoa o epitáfio de Virgílio (“Mântua me deu à luz, a Calábria me tirou”) que destaca a natureza cíclica da vida de Pia, ao mesmo tempo em que enfatiza a brevidade de sua vida na Terra. Além disso, a notável capacidade de perdão de Pia é demonstrada na substituição do marido por Maremma como sujeito gramatical do seu assassinato. Esta compaixão justapõe a alusão à sua morte violenta, concluindo o canto com um sentimento de absolvição. Além disso, em sua última linha, Pia relembra seu casamento pela gema de sua aliança de casamento, que é gemma em italiano, possivelmente referindo-se à esposa de Dante, Gemma Di Manetto Donati.
Isto
postula a noção esperançosa de que Gemma pode perdoar Dante por deixá-la devido
ao seu exílio político de Florença. Esta absolvição abrangente contribui
para a compaixão abrangente que caracteriza este canto. Apesar da aparente
fragilidade de Pia, tem sido argumentado que ela é vitoriosa sobre o marido
através do amor, perdoando-o. A história de Pia ecoa a do ladrão penitente que,
na crença cristã, foi crucificado com Cristo. Ele se arrepende e faz um pedido
igualmente modesto a Cristo para ser lembrado por ele no Céu, adquirindo assim
a salvação eterna após sua morte violenta. No contexto do Canto V, as
narrativas das três almas encontradas são estruturadas de forma semelhante:
começam com captatio benevolentiae, todavia seguida da lembrança da
Terra e pedido de orações, depois explicam as circunstâncias de sua
morte e, por fim, contam Dante sobre sua morte violenta. Foi notado que as
mortes das almas neste canto são todas transmitidas pela desunião visual da
alma e do corpo; no caso de Pia, isso é demonstrado pelo corpo “desfeito”. Argumentou-se
que tem um tema transitório de várias maneiras: os relatos das almas destacam a
transição fluida entre a morte corporal e a vida espiritual e exploram a
identidade temporal no corpo corpóreo no momento da morte.
Pode
ainda ser construída uma transição entre a natureza delicada do corpo e o ego
corporal, mais especificamente a partir de uma perspectiva de género, à medida
que a narrativa avança do egoísmo masculino para a humildade feminina. Ao
contrário de seus antecessores, Pia troca o pronome de primeira pessoa por um
de terceira pessoa, inserindo o artigo definido feminino antes de seu nome; Pia
se desprende de seu ser terreno porque entende seu corpo corpóreo como objeto
temporal. Além disso, todos os personagens deste canto são sujeitos do
gerúndio, exceto la Pia, que opera como objeto no último verso, onde, em vez
disso, seu marido é o sujeito, demonstrando Pia como objeto de “construções
masculinas”. Além disso, todas as três almas neste canto morrem nas fronteiras
da terra e da água; Pia morre no pântano, retornando assim à Mãe Terra. Pia nos
desloca de Siena para Maremma, contrastando a respectiva cidade e pântano. A
imagem final do pântano atua como o mar materno que, em última análise, absorve
todos os egos, pois a volatilidade da água pode ser interpretada como a
volatilidade inerente aos humanos. Além disso, Maremma evoca o mar (mare), os
mares (maria), bem como a Virgem mãe (Maria, madre, mamma), cimentando
assim a sua natureza materna.
Portanto,
argumenta-se que la Pia tem a maior compreensão das três almas neste canto
sobre o retorno final de todos os seres físicos, linguísticos e racionais
através da água para a Mãe Terra e, portanto, para a vida espiritual
após a morte. O relato de Pia também se destaca de seus dois antecessores: ao
tom intenso de Jacopo é seguido pelo turbulento de Buonconte, terminando no tom
de lamento de Pia, formando uma espécie de sonata. Sua narrativa também é
singularmente inespecífica, mas ainda faz uma acusação, embora menos hostil.
Seu modesto pedido de oração também é único, pois ela primeiro deseja que Dante
descanse depois que ele retornar à Terra antes de pedir sua oração, e ela
também não pede a Dante para contar sua história na Terra, ao contrário da maioria
das almas em Purgatório. Jacopo e Buonconte confessam seus pecados, mas Pia não
o faz, deixando desconhecida a causa de seu estado no Purgatório. Foi sugerido
que Pia ainda insiste na traição de seu marido, e é por isso que ela ainda está
no Purgatório. Além disso, a morte de Pia é o resultado de um relacionamento
pessoal diferente de seus antecessores, cujas narrativas giram em torno de
circunstâncias políticas. Em última análise, argumenta-se que o discurso
piedoso de Pia conclui humilde um canto gráfico. Pia junta-se a Francesca da
Rimini e Piccarda Donati como “vítima de violência doméstica” cujo encontro com
Dante é caracterizado pela representação da compaixão.
Comparações
foram feitas entre la Pia e Francesca, já que contam cortesmente a Dante sobre
suas mortes violentas cometidas por seus maridos. Tem sido argumentado que
Francesca, no entanto, sofre porque a sua morte pôs fim ao seu caso, não por
causa do seu estado condenado, o que é demonstrado pela sua longa narração do
seu primeiro encontro com o seu amante. Por outro lado, o relato etnográfico de
la Pia demonstra a questão da punição, quer dizer, o erro de Francesca ao não
se voltar para Deus; O arrependimento de Pia a libertou do casamento que lhe
rendeu a salvação, privilégio que Francesca não tem. Todas as três narrações
são, portanto, argumentadas para demonstrar graus de compreensão do amor no
curso para Deus. As visões ortodoxas
consideram Pia uma vítima virtuosa morta pelas mãos de seu marido malicioso,
uma mulher sedutora que levou seu marido ao limite ou uma mulher assassinada
por seu marido por um delito específico. Essas opiniões concluem que a
narrativa gentil de la Pia recupera um senso de propriedade após os relatos
gráficos de seus dois antecessores. No entanto, as opiniões revisionistas
afirmam que contribuem para uma compreensão sentimentalizada de Pia e
argumentam que o relato de Pia é poderoso na compreensão espiritual a que ela
chegou, através da qual ela contrasta a sua curta vida na Terra com a ligação
imortal entre a sua alma e Deus. Esta visão também afirma que seu relato
enfatiza a importância das orações para que as almas do Purgatório
ascendam e que seu nome está relacionado à piedade, o que reforça sua
compreensão espiritual da graça divina.
Bibliografia
Geral Consultada.
CHAUÍ, Marilena, Repressão Sexual - Essa Nossa (Des) conhecida. 10ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987; MANNHEIM, Karl, “El Problema de las Generaciones”. In: Revista Española de Investigaciones Sociológicas, n° 62, pp. 193-242; 1993; ELIAS, Norbert, A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994; GIDDENS, Anthony, A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. 2ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2003; CROMBERG, Renata Udle, O Amor que Ousa Dizer seu Nome: Sabina Spielrein - Pioneira da Psicanálise. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. São Paulo: Universidade do Trabalho, 2008; GOFFMAN, Erving, Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editor Livros Técnicos e Científico, 2008; CANEVACCI, Massimo, Antropologia da Comunicação Visual. 1ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009; DELEUZE, Gilles, O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2010; STHEPAN, Cassiana Lopes, Michel Foucault e Pierre Hadot: Um Diálogo Contemporâneo sobre a Concepção Estóica de Si Mesmo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Setor de Ciências Humanas. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2015; COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine, História do Rosto. Exprimir e Calar as Emoções (Do século 16 ao começo do século 19). Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2016; MIRANDA, Rafael Tadeu, Diálogos com a Cultura Pop: Possibilidades de Relação entre a Cena e o Universo Jovem. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018; BUSSOTTI, Luca, “A Representação da Diversidade na Mídia e na Indústria Cultural Italiana”. In: Estudos Contemporâneos em Jornalismo. Org. Juarez Ferraz de Maia, Rosana Maria Ribeiro Borges, Salvio Juliano Peixoto Farias. – Goiânia: Centro Editorial Gráfico; Universidade Federal de Goiás, 2021; ADORNO, Theodor, Indústria Cultural e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 2021; Artigo: “Prefeitura do Rio Homenageia Personalidades Femininas no Prêmio Nise da Silveira 2024”. In: https://prefeitura.rio/politicas-promocao-mulher/07/03/2024; entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário