James Brown - A Consagração do Grito Vem da Igreja Negra.
Ubiracy de Souza Braga
“Ele ouvia as coisas a respeito do evangelho e de Deus do jeito dele”. Robert J. Smith
A palavra igreja, ecclesia, a representação (αντιπροσώπευση) “casa de Deus” tem diversos significados nos livros Sagradas Escrituras, onde os cristãos se reúnem para cumprir seus deveres religiosos. O templo de Jerusalém era a casa de Deus e a casa de oração. O edifício dedicado pelos cristãos ao culto de Cristo, que os sacerdotes gregos chamavam “Kyriaké” (“a casa do senhor”), e, na língua inglesa, veio mais tarde a se chamar “Kirk” e “church”. Em Roma, essa assembleia denominada “Concio”, é aquela que falava “Ecclesiastes” e “Concionator”. No Novo Testamento, uma igreja é um grupo de cristãos que seguem a Cristo. A palavra pode ser usada para falar de todos aqueles que servem ao Senhor, não importa onde estejam (cf. Hebreus 12: 22-23). É frequentemente usada para descrever grupos locais de discípulos que se encontram para adorarem, para edificarem uns aos outros e para proclamarem o evangelho de Jesus. Nos domínios de engajamento social como práticas de lugares dos diversos príncipes em suas dinastias e Estados, existem cristãos, mas cada um deles se sujeita ao Estado do qual é membro, não podendo sujeitar-se às ordens de qualquer outra pessoa. É neste ambiente social de igrejas que encontramos homens escolhidos para supervisionar e guiar.
Os sistemas comuns de denominações, de ligas internacionais de igrejas e de hierarquias que ligam e governam milhares de igrejas locais, são invenções do homem. Não há modelo bíblico de tais arranjos. No Novo Testamento, os cristãos serviam juntos em congregações locais. Eles eram gratos pelos seus irmãos em outros lugares. Mas não tentavam criar laços de organização social onde os cristãos de um lugar pudessem dirigir ou governar o trabalho de discípulos de outro lugar. Este modelo claro se espraia se considerado o ensinamento específico sobre a organização social de uma igreja. É nesse sentido, para a etnografia de Hobbes (1991), que a Igreja pode ser entendida como uma pessoa, isto é, que ela “tenha o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação”. O soberano civil é o chefe dos pastores, segundo a lei natural. Embora o poder tanto do Estado quanto da religião estivesse nas mãos dos reis, nenhum deles deixou de ser fiscalizado em seu uso e suas atribuições, a não ser quando bem quistos por suas capacidades de irradiação naturais ou por sua fortuna de bens. Se não existir a autoridade de uma congregação legítima, qualquer ato praticado é individual de cada um dos presentes que contribuíram para a prática desse ato.
O corpo percorre a história da ciência e filosofia. De Platão a Bergson, passando por Descartes, Espinosa, Merleau-Ponty, Freud, Marx, Nietzsche, Weber e Foucault, a definição de corpo demonstra um puzzle. Quase todos reconhecem a profusão da visão dualista de Descartes, que define o corpo como uma substância extensa em oposição à substância pensante. Podemos perceber que seguindo este modo de compreensão, sobretudo com o advento da modernidade, o corpo foi facilmente associado a uma máquina. O corpo foi pensado como um mecanismo elaborado por determinados princípios que alimentam as engrenagens desta máquina promovendo o seu bom funcionamento. Isto quer dizer que através dos exercícios de abstinência e domínio que constituem a ascese necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz e do que é capaz de fazer – no cerne da constituição do sujeito moral. E, finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo.
Neste aspecto Foucault nos adverte sobre a questão abstrata da analítica do poder que se constitui o marco histórico e pontual de “docilidade dos corpos”. Para ele o soldado é, antes de tudo, alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia: e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas – essencialmente lutando – as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal de honra. Eis como ainda no início do século XVIII se descrevia a figura ideal do soldado. Mas na segunda metade deste século, o soldado se tornou algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas: lentamente uma coação calculada percorrer cada parte do corpo, assenhoreia-se dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”. Houve durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto de pensamento e, na prática, alvo de determinado sistema de poder. Encontraríamos sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo que se manipula, modela-se, treina-se, que obedece, responde, torna-se hábil ou cujas forças se multiplicam descrito como “homem-máquina”.
O
grande livro do homem-máquina foi descrito simultaneamente em dois
registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas
por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro,
técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares,
escolares, hospitalares e por processo empíricos e refletidos para controlar ou
corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois se tratava
ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo
útil, corpo inteligível. E, entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. “O
homem-máquina” de Julien Offray La Mettrie (1709-1751) é ao mesmo tempo uma
redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos
quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo
manipulável. Em sua significação específica é dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.
Contudo, os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de
ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de
poder: obsessão de Frederico II (1712-1786), rei minucioso das pequenas
máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios.
Para
Michel Foucault metodologicamente a questão a responder é a seguinte: Nesses
esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de
tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de
investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está
preso no interior de poderes mito apertados, que lhe impõem limitações,
proibições ou obrigações. Muitas coisas, entretanto, são novas nessas técnicas.
A escala, em primeiro lugar, do controle; não se trata de cuidar do corpo,
massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalha-lo
detalhadamente; de exercer sobre el uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo
nível prático da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder
infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou
mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas
a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz
mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente
importa é a do exercício. A modalidade, enfim, implica uma coerção
ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que
sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha
ao máximo em seu desenvolvimento o tempo, o espaço, os movimentos.
Esses
métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam
a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de
docilidade-utilidade, são o que podemos chamar disciplinas. Muitos processos
disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas
oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e
XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se
fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da
disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de
utilidade pelo menos igualmente grandes. Mas também ocorre que são diferentes
também da domesticidade, que é uma relação social de dominação constante,
global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma de vontade
de poder singular do patrão, sendo quase seu “capricho”. Diferentes da
vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua
e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do
trabalho e as marcas rituais de obediência. Diferentes do ascetismo e das
“disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do
que aumentos de utilidade e obediência, têm como fim um aumento do domínio de
cada um sobre seu próprio corpo.
O
momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter
o domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se
quer, mas ara que operem como se quer, com as técnicas segundo a rapidez e a
eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos dóceis. A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela associa
o poder do corpo; faz dele por um lado condicionando uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela
procura aumentar; e inverte, por outro lado a energia, a potência que poderia
resultar disso, e faz dela uma relação social de sujeição estrita. Se a exploração
econômica separa a força e o produto do trabalho, a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada.
Entendida
como consumo cultural, a prática do culto em geral ao corpo situa-se como preocupação
geral de mobilidade social, que perpassa a estratificação de classes sociais e
faixas etárias, apoiada num discurso clínico difuso que se refere tanto a
questão estética, quanto a preocupação alimentar com a saúde. Nas sociedades
contemporâneas há uma crescente apropriação do corpo, com a dieta alimentar e o
consumo excessivo de cosméticos, impulsionados pelo processo socsial de massificação da
propaganda/consumo a desde o desenvolvimento econômico dos anos 1980, onde o
corpo ganha mais espaço, principalmente nos meios midiáticos. Nesse sentido, as
fábricas de imagens estéticas do vencedor como o cinema, televisão,
publicidade, revistas etc., têm contribuído. Ipso facto, nos leva a
pensar que a imagem da eterna fonte de juventude, associada ao corpo perfeito e
ideal, ao sucesso na educação, no trabalho e na vida amorosa atravessa as
etnias e classes sociais, compondo de maneiras diferentes diversos estilos de
vida.
Não um ato conjunto, como se fosse de um só corpo. Nem um ato dos ausentes ou daqueles que, estando presentes, eram contra a sua prática. Uma Igreja pode ser definida “como um conjunto de pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa de um soberano, que ordena a reunião e que determina quando não deverá haver reunião”. Ipsofacto, politicamente distingue entre a condição da pessoa e o ofício. Enquanto historicamente Maquiavel discutia as virtudes e deveres dos príncipes, como para Louis XIV “o Estado sou eu”, Hobbes desafiou tal conceito afirmando insidiosamente que “o príncipe poderia ser legitimamente substituído”. Nos Estados semelhantes assembleias são ilegítimas, comparativamente se não são autorizadas pelo soberano civil. É admitida ilegítima, portanto, a reunião da Igreja ocorrida em qualquer Estado em que tiver sido proibida. A emancipação do tradicionalismo econômico aparece indubitavelmente como um fato de apoio à tendência de duvidar da santidade da tradição religiosa, e de todas as autoridades tradicionais. É necessário observar, todavia, algo que muitas vezes tem sido esquecido, o fato de a Reforma não ter implicado a eliminação do controle da Igreja sobre a vida cotidiana, mas a substituição do controle vigente por uma nova forma.
Isto significou, segundo Max Weber (2002), o repúdio a um controle que era muito tênue na época, dificilmente perceptível na prática, e pouco mais do que formal, em favor de uma regulamentação de toda uma conduta, que, penetrando em todos os setores da vida pública e privada, era infinitamente onerosa e seriamente cumprida. O domínio da Igreja Católica, “punindo o herege, mas perdoando o pecador”, nasceu entre as mais ricas e economicamente mais avançadas nações, por volta do século XV. O domínio do Calvinismo, como o introduzido no século no século XVI, em Genebra e a na Escócia, na passagem do século XVI para o XVII, em grande parte dos países Baixos, no século XVII na Nova Inglaterra, seria a forma mais insuportável de controle eclesiástico do indivíduo que até então pode existir, o que coincide na forma de uma definição conceitual, embora provisória, do que se entende por “espírito do capitalismo”.
James Joseph Brown Jr. (1933-2006) foi um cantor, dançarino, compositor e produtor musical norte-americano reconhecido como uma das figuras mais influentes do século XX na música. Em vida, vendeu mais de 100 milhões de álbuns e é reconhecido como um dos maiores artistas de todos os tempos. Como um prolífico cantor, compositor, dançarino e bandleader, James Brown representou uma força fundamental na indústria cultural sobretudo, o modo de produzir culturalmente a música negra. Deixou sua marca e talento em diversos artistas ao redor do mundo ocidental, incluindo o Rei do Pop Michael Jackson, influenciando até mesmo os ritmos da música popular africana, como o afrobeat, juju e mbalax e forneceu o modelo para todo um subgênero do funk, o go-go. Brown começou sua carreira profissional em 1956 e fez fama no fim da década de 1950 e começo da década de 1960 com a força de suas apresentações ao vivo e várias canções de sucesso. Apesar de vários problemas pessoais, continuou fazendo sucesso durante os anos 1980. Além de sucesso como músico, teve presença nas questões políticas dos Estados Unidos da América durante os anos 1960 e 1970.
A carreira artística de James Brown atravessou décadas e influenciou profundamente o desenvolvimento de diferentes gêneros musicais, fazendo apresentações em concertos, primeiro na região Sul dos Estados Unidos, depois por toda a América do Norte e então pelo mundo ocidental, além de se apresentar em shows de televisão e filmes. Embora tenha contribuído com a música por seus vários sucessos, curiosamente sem nunca atingir o número um da parada de sucessos. Entrou nas paradas apenas no começo dos anos 1960, mas com sucessos como a cover “Night Train” em 1962. Enquanto os singles de Brown eram grandes hits no chamado “chitlin' circuit”, no Sul dos Estados Unidos e na parada R&B Top Ten, ele o grupo “Famous Flames” não tinham sucesso nacionalmente até a apresentação ao vivo gravada no LP de 1963 “Live at the Apollo”, lançado pela King Records com objeções do dono da gravadora Syd Nathan, que não viu potencial comercial em um álbum ao vivo sem nenhuma canção nova. Apesar das expectativas contrárias de Nathan, o álbum ficou nas paradas pop por meses, atingindo o número 2. Em 1963 Brown revelou uma versão da balada “Prisoner of Love”, seu primeiro sucesso a atingir o Top 20, quando fundou sob os olhos da King Records a incipiente Try Me Records, primeira tentativa do artista em gerenciar uma gravadora.
Nos Estados Unidos da América, os adultos negros têm quase duas vezes mais hábitos do que qualquer outro grupo étnico de ler a Bíblia durante uma semana típica. Os negros são mais propensos a evangelizar e compartilhar sua fé. Os adultos negros são 50% mais crentes do que os adultos brancos em afirmar que a Bíblia é totalmente precisa em tudo o que ensina. Como resultado destas e outras tendências, há mais grandes igrejas de etnia negra com 2.000 membros ou mais do que qualquer outra etnia. A influência da igreja negra sobre os norte-americanos não é algo novo. Os negros, historicamente, têm feito um grande impacto espiritual: Durante o “Grande Despertar” da década de 1740, os negros vieram a Cristo aos milhares. Os negros deram à luz ao jazz e o blues, algumas das poucas formas originais da música negra que ajudou à criação da música gospel. Homens da igreja formal, principalmente no ativismo, o reverendo Martin Luther King Jr. e muitos outros que estavam por trás demonstravam as reivindicações da igreja negra a toda massiva sociedade norte-americana.
Robert J. Smith (2012) observa que o grito é algo que vem da igreja negra; durante os últimos cem anos, em que outro lugar um homem negro podia gritar assim em público a não ser numa igreja? Onde mais não teria ele sido açoitado, ou submetido à lei ou colocado à margem por ter feito os sons que James Brown faz com exuberância dentro do teatro Apollo? É um grito ativado pela igreja, mas que não vem dela, um grito que é um agente de mudança. O grito: é um som agressivo, sempre foi. Brown espelhava-o por todo o Apollo, fazendo-o ecoar pela espiral ascendente e descendente de “Lost Someone” e estendendo-o por dez minutos, transformando a música numa viagem em que os gritos marcam nosso avanço. Ele constrói um universo de gritos, um universo que não é só dele: - “I`m not singing a song myself, now/I`m singing it for you, too”. É uma agressividade transformada em processo de comunicação que ele joga em cima da plateia e que receber de volta. Brown tinha raízes no mundo da música gospel, mas não frequentava muito à igreja. Quando garoto, ele observava os pastores e “tinha vontade de ser como eles; só não queria ser um deles”.
Em suas próprias palavras, não ia muito à missa, e quando o fazia, era cada hora numa igreja diferente, sem se filiar a nenhuma. Mais do que Tom Dorsey ou Ray Charles, ou qualquer um exceto Aretha Franklin, ele era um músico que colocava o som e o sentimento da fé negra na arena popular, demonstrando a todos que não existe o que chamamos de frequentador de igreja. Era possível identificar com maior facilidade as reivindicações nos cantores negros, e é por isso que Brown e Aretha Franklin e muitos outros depois deles eram vistos com toda a razão como pessoas que traziam o gospel para o mercado – mesmo pessoas brancas que nunca haviam estado dentro de uma igreja negra não podiam deixar de ver a obviedade nisso. Eram chamados de cantores “soul”. Os vocalistas chamavam mais atenção, mas na verdade todo um estilo de se apresentar estava passando do púlpito para o Apollo por meio dos ritmos santificados em que os melhores bateristas tocavam. Mas de uma forma envolvente partindo dos movimentos corporais que indicavam a presença de forças maiores, da crença de que o artifício devia ser posto de lado. E, além disso, que o caminho à frente era iluminado por uma verdade direta que vinha de dentro, do interior, mas que não tinha origem lá. E isto porque todos se encontravam numa reunião diferente, sintonizados no momento, um momento histórico para os afro-americanos.
James Meredith representava um movimento de uma só pessoa. Quando o homem do Mississippi partiu pela Highway 51 num protesto que ele chamou de marcha, estava sozinho. Mesmo sem um seguidor sequer, ele não se importou em marchar sozinho. Mas Meredith foi bem-sucedido em seu intento de se tornar o primeiro afro-americano a ser admitido na Universidade do Mississippi, e sua provação, o abuso e as ameaças que suportou, fizeram dele notícia em todo o país em 1962. Para os habitantes do Mississippi, era um líder negro tão importante quanto Martin Luther King Jr. Em 1966, Meredith anunciou sua “Marcha Contra o Medo”, indo de Memphis até a capital do estado de Mississippi, Jackson, a fim de demonstrar que os defensores da supremacia branca não podiam impedir o registro de eleitores negros. A marcha teve início em 5 de junho de 1966. Foi interrompida em 6 de junho, depois de Meredith te sido baleado por um homem branco com um revólver na periferia de Hernando, na própria Mississippi. Nos dias que se seguiram, Meredith ficou num hospital de Memphis, recuperando-se.
A marcha foi retomada do ponto em que Meredith tombara dessa vez com pessoas provenientes da Southern Christian LeadershipConference, de Martin Luther King, do Congress of Racial Equality e do Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC). Em sua marcha pela Higway 51 em direção a Jackson, os ativistas acampavam à beira da estrada. Quando na cidade de Greenwood, Mississippi, Stokely Carmichael andava passo a passo com agentes da lei. Eleito presidente do SNCC um mês antes, ele era um dos mais inflamados líderes da marcha retomada. Os brancos locais e as forças policiais cercaram os manifestantes, e agressores brancos estavam sendo identificados pela multidão. Carmichael chamou a atenção para um policial violento que agia no local. Foi então detido e levado à cadeia de Greenwood. Ao ser solto, uma multidão de talvez mil pessoas haviam se reunido para ouvir o discurso de Carmichael. – “Esta foi a vigésima sétima vez que fui preso. Não pretendo mais ir para a cadeia”. Nesta hora, ele pronunciou um novo slogan que havia testado por acaso com as pessoas à sua volta. Agora seria o grande teste. – “Queremos Black Power sem nos envergonhar disso”.
A informação de que James Brown estava chegando espalhou-se entre as pessoas. Haviam sido feito apelos a celebridades para que demonstrassem seu apoio, e um homem do Sul, um superastro cuja música conotava negritude, não teria como não se sentir impelido a participar. Talvez Brown tivesse uma afinidade pessoal com Meredith, outro touro, outro individualista que não se sentia à vontade com filiações a grupos. James Meredith, 1º negro a se formar na Universidade do Mississipi. No final de seu primeiro semestre na “Ole Miss”, Meredith havia dado uma coletiva de imprensa anunciando que “o Negro não deverá voltar”. Ele então acrescentou: - “No entanto, decidi que eu J. H. Meredith vou me matricular no segundo semestre”. Como Brown, ele insistia em ser visto como uma pessoa, não como uma categoria, e era um solitário com um traço de grandiosidade. Havia sido uma procissão longa, contundente, até o fim dela. Em Canton, em 24 de junho, Luther King estava discursando para os manifestantes da marcha quando soldados do estado soltaram gás lacrimogênio na multidão, e os participantes correram em todas as direções.
James Meredith
Muitos se lançaram em valas para poder respirar o ar perto do chão. Ali foram espancados pelos soldados, que os agrediram com a coronha dos rifles. No dia seguinte, chegaram às portas de Jackson e se detiveram no Tougaloo College, uma instituição negra logo à saída da cidade. À tarde, King e outros líderes se reuniram na casa do reitor para avaliar a situação e planejar uma programação que marcasse o final da marcha. Harry Belafonte havia organizado a programação, que também incluía Sammy Davis Jr. e Marlon Brando, mas Brown era indiscutivelmente o grande astro. Ele havia reunido uma versão de sete membros de sua banda em Cincinnati, colocou-os no seu Learjet e voou até Jackson. Para poder chegar ao palco, Brown foi guiado através da multidão aglomerada pelo ativista barbudo do SNCC, Cleveland Sellers; a revista Jet disse que ele parecia Moisés dividindo as águas do Mar Vermelho. Imagens filmadas do dia mostram Brown e a banda numa plataforma no alto do morro, com uma floresta atrás deles. Eles parecem pequenos e sérios, diminutos em relação ao seu entorno.
As discussões sobre o sentido do movimento BlackPower iriam dividir muitos afro-americanos durante os anos seguintes. Muitas pessoas que iriam se ver no centro da discussão estavam presentes em Tougaloo. Muitas iriam seguir Carmichael e perder sua fé na não violência e na crença de que brancos e negros poderiam construir juntos uma igualdade.King e aqueles por trás dele iriam fazer um apelo moral à América, um apelo baseado em interesses compartilhados. No espaço entre eles estava Brown. Eles e tornou, de acordo com Robert Smith, “um político cultural” no exato momento em que desembarcou do avião em Jackson. Quando deixou a cidade, ele descobriu que seu portfólio havia ficado bem mais complicado. Brown canta: “It`s a man`s world, but it wouldn`t be nothing without a woman or a girl”. Curiosamente, a música começa com uma declaração orgulhosa, e depois tudo passa para uma confissão. Ao final da letra, o homem nesse mundo dos homens está “perdido no deserto, perdido na amargura, perdido em algum lugar da sua solidão”. É uma exaltação muito peculiar da virilidade: uma promessa de que irá deixa-lo sozinho, corrompido e uivando como um jacal.
A canção não seria nada sem uma mulher em particular, Betty Jean Newsome, que teve grande participação na sua composição, e que passou vários anos lutando para que seu nome fosse creditado na autoria da música. Brown conheceu Newsome da maneira usual: estava cantando no Apollo Theatre em 1965, viu um rosto bonito na plateia e mandou um assistente trazer a mulher até o camarim. Eles começaram a viajar juntos. Era um relacionamento turbulento. Ele insistia em que as coisas fossem de um certo modo, e ela tampouco era fácil. Talvez fosse parte da atração. – “Ele queria que as mulheres dele carregassem cãezinhos pequenos no colo”, disse Newsome. – “Eu não vou carregar nenhum cachorrinho dele no colo. Nem bebês. – Quando estávamos indo para o sul na Limousine, alguém comentou que a maioria das mulheres de Brown tinha tido filhos dele - ´Por que você não quer ter filhos dele? - ´Por que me pergunta isso? – Eu não pretendo ter nenhum desses filhos dele com cara de macaco`. Eles acharam que ele ia me atirar a tapa para fora da Limousine depois do que eu disse.
Um mês depois do concerto de Tougaloo, a imprensa negra estava cheia de notícias de que Brown havia sido agredido por seu cabeleireiro. Havia sido atingido tão brutalmente que talvez não pudesse trabalhar devido aos ferimentos – tão graves que ele entrara com um processo contra o agressor. Algumas pessoas ficavam imaginando como é que um cabeleireiro tinha conseguido bate num ex-boxeador. Outros caíam no sarcasmo. – “Apesar de gostar de usar capas esvoaçantes como as do Batman sapatos de verniz, maquiagem com pacake, cílios postiços e sombra nos olhos, nada no histórico de James Brown faz crer que seja afeminado”, escreveu o colunista do ThePhiladelphia Tribune. Brown estava processando seu antigo cabeleireiro, Frank McRae, sob a alegação e ter sido agredido por ele. O evento que precipitou isso havia ocorrido váios anos antes, em Los Angeles, depois que os haviam bebido no Tommy Tucker`s Playroom. McRae, Brown e sua namorada subiram no Fleetwood roxo e prateado de Brown e dirigiram até a Dolphin`s of Hollywood, uma loja de discos junto à Central Avenue. O cantor foi até a loja e McRae estava indo estacionar o Fleetwood quando foi parado por um carro da polícia. McRae tinha hálito de bebida. Um dos policiais chamou-o de “preto” e de outras coisas, enquanto o colega ficava coma mão no revólver. McRae estava escolado nesse tipo de situação por ter viajado pelo Sul com Brown, por isso disse apenas “sim senhor”. Eles o multaram e foram embora.
Enfim, em março de 1966, ele fez sua primeira visita à Inglaterra e á França. No mês seguinte, a revista Time disse que sua “ascensão no mercado de massas é sinal de que a música racial está talvez finalmente se tornando inter-racial”. As coisas agora aconteciam com rapidez, e continuariam assim durante muitos anos. O tempo aparentemente se acelerava, o planeta se encurtara com a utilização das tecnologias, mas o sucesso individual e coletivo era como uma joia pressionada contra a palma da mão, com muitas decisões a serem tomadas ao mesmo tempo, e com muitos eventos a serem enfrentados com a explosão do mercado fonográfico. Em meados da década de 1960, nenhum concorrente significava tanto para James Brown como Jackie Wilson. Um competente cantor de Detroit, que também havia sido um bom boxeador e um ótimo dançarino, e também era empresariado por Ben Bart. Portanto, ambos tinham muito em comum, o que já era problema suficiente. Mas havia muita coisa que não era igual entre eles, e talvez isso fosse pior ainda. Wilson tinha a pele clara, era bonito e fazia sucesso com as mulheres sem se esforçar, e Brown se ressentia dele em muitos aspectos. – “Por ser mulato, ele não tinha a mesma energia e força que eu”, Brown declarou mais tarde. – “O que fez Jackie ter sucesso foi sua cor de pele. Naquela época, se você tinha a pele clara, você se dava bem. Fui eu que tornei as pessoas de pele escuras populares”.
Bibliografia geral consultada.
FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 187; HOBBES, Thomas, Leviatano. Tradutore Giuseppe Micheli. Biblioteca Universale Rizzoli, 1991; WEBER, Max, La Ética Protestante y el Espiritu delCapitalismo. Madrid: Mestas Ediciones, 2002; ESSINGER, Silvio, Batidão: Uma História do Funk. Rio de Janeiro: Editor Record, 2005; RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição, Identidade e Resistência no Urbano: O Quarteirão do Soul em Belo Horizonte. Tese de Doutorado. Departamento de Geografia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2008; GUIMARÃES, Celso, Banda Black Rio e Samba-Funk: Um Estudo de Caso. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Música. Centro de Letras e Artes. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008; SMITH, Robert Joseph, James Brown, sua vida, sua música. Tradução de Luís Reyes Gil. São Paulo: Editora Leya, 2012; ALBUQUERQUE, Carlos, “O Gênio Indomável e Indecifrável de James Brown”. Disponível em:https://oglobo.globo.com/08/07/2012; TAVARES, Ana Cristina, “James Brown, Pai do Soul e Lenda da Música Pop, pôs Gerações para Dançar”. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/08/12/2012; PASSOS, Enrico Marques Ferreira, Funk Ostentação. O Luxo da Periferia. Dissertação de Mestrado em Estudos Culturais Contemporâneos. Belo Horizonte: Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e da Saúde. Universidade FUMEC, 2016; FELIZARDO JUNIOR, Luiz Carlos, Na Encruzilhada do Soul: Lazer, Educação, Dança e Transgeracionalidade na Metrópole. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer. Escola de Educação Física, Fisioterapia de Terapia Ocupacional. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2017; CARVALHO, Paula, A Encruzilhada do Rap - Produção de Rap em São Paulo entre 1987 a 1998 e seus Projetos de Viabilidade Artística. Dissertação de Mestrado. Departamento de Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019; PATRICK, Arnoldt Jason, Transformações no Funk Carioca (1980-2017): Cenário Sócio-histórico e Cultural. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Música. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019; entre outros.
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