sexta-feira, 4 de março de 2016

Reservas de Vagas - O Puzzle das Cotas Raciais no Brasil.

Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

Não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico”. Rosa Maria Pires Weber



            Atualmente, várias universidades oferecem a reserva de vagas como meio de acesso facilitado para alguns grupos de candidatos. As também chamadas cotas são carteiras destinadas a determinados segmentos sociais definidos pela instituição de ensino. O conceito de cotas como ação afirmativa surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos. No Brasil, o sistema demorou a chegar, as reservas de vagas surgiram com a Constituição Brasileira de 1988, garantindo um percentual dos cargos e empregos públicos aos portadores de deficiência física. Nas universidades, a adoção de reserva de vagas começou no ano 2000, com a aprovação de uma Lei Estadual no Rio de Janeiro, que garantia a reserva de 50% das carteiras para estudantes das redes públicas de ensino. Mas,  a lei só foi aplicada em 2004, no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Em geral, o sistema favorece alunos regulares de escolas públicas, pessoas negras ou de etnia indígena, com deficiência física ou necessidades de educação especial. Com a Reforma Universitária, a maioria das Universidades Federais adotou a política de reserva de vagas. No último levantamento, 51% das universidades estaduais e 42% das federais, possuem sistemas de cotas. 
           A Lei de Cotas nas universidades completa três anos. Mas há algo mais a comemorar. As metas da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, têm sido atingidas antes mesmo do previsto pelas 128 instituições federais de ensino que participam do sistema. A lei reserva no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à presença desses grupos na população total da unidade da Federação onde fica a instituição. Em 2013, o percentual de vagas para cotistas foi de 33%, índice que aumentou para 40% em 2014. Para se ter uma ideia do avanço, a meta de atingir 50% está prevista para 2016. Do percentual de 2013, os negros ficaram com 17,25%. O número subiu para 21,51% em 2014. De acordo com projeção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a medida já abriu aproximadamente 150 mil vagas para negros. 
           A norma também garante que, das vagas reservadas a escolas públicas, metade será destinada a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo. A medida é resultado de uma longa mobilização dos movimentos sociais para ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Os números demonstram o bom andamento da política de inclusão. Além das cotas, os estudantes também têm acesso a outros instrumentos oferecidos pelo Governo Federal, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (ProUni), que auxiliam no ingresso e na permanência em instituições privadas de ensino superior. O Ministério de Educação e Cultura e a SEPPIR discutem uma política de cotas como tem ocorrido para a pós-graduação, seguindo o exemplo de experiências exitosas, como a instituição de cotas na pós-graduação criada pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
           As chamadas “cotas raciais” representam a reserva de vagas em instituições de nível superior públicas ou privadas para grupos específicos classificados por etnia, na maioria das vezes, negros e indígenas. Surgida nos Estados Unidos da América (EUA) na década de 1960, as cotas raciais são consideradas, pelo conceito original, antropologicamente “uma forma de ação afirmativa, algo para reverter o racismo histórico contra determinadas classes étnicas”. Apesar de muitos considerarem as cotas como “um sistema de inclusão social”, existem controvérsias quanto às suas consequências e constitucionalidade em muitos países. A validade de tais reservas para estudantes negros no Brasil foi votada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. O STF decidiu por unanimidade que as cotas são constitucionais. Diz respeito à Lei 10.558/2002, conhecida como “Lei de Cotas”, que “Cria o Programa Diversidade na Universidade, e dá outras providências”. A revista The Economist cita dados estatísticos de 2010, segundo os quais “apenas um décimo das cerca de [aproximadamente] 2,4 mil universidades no Brasil são públicas e três quartos são privadas e com fins lucrativos”.
            A Lei de Cotas determina o mínimo de aplicação das vagas, mas as universidades federais têm autonomia para, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas suplementares. O MEC oferecerá aos reitores das universidades federais planilha demonstrativa com as fórmulas para cálculo de implementação da Lei de Cotas. De acordo com texto do decreto, sempre que a aplicação dos percentuais para a apuração da reserva de vagas gerar um resultado com decimais, este será arredondado para o número inteiro imediatamente superior. O decreto ainda institui um comitê de acompanhamento e avaliação das reservas de vagas nas instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio. O grupo será composto por dois representantes do MEC, dois representantes da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, além de um membro da Fundação Nacional do Índio. Poderão ser convidados também representantes de movimentos sociais. De acordo com o ministro Mercadante, o MEC ainda está articulando com os reitores a política de acolhimento dos alunos cotistas, que deverá valer a partir de 2013. Um dos debates é em torno da política de tutoria e nivelamento, aplicada atualmente em algumas universidades que mantêm sistema de cotas.


 

     A Universidade do Estado do Rio de Janeiro é uma das maiores e mais prestigiadas universidades do Rio de Janeiro e do Brasil. A universidade está dentre uma das 35 melhores da América Latina segundo o “QS World University Rankings”, de 2013. Tem sua origem na  Universidade do Distrito Federal, com a fusão de quatro faculdades fundadoras: como a Faculdade de Ciências Jurídicas, a futura Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Faculdade de Ciências Econômicas e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Seu primeiro reitor, Rollando Monteiro, um dos fundadores da Faculdade de Ciências Médicas, tomou posse em 15 de fevereiro de 1952. Após a mudança da capital para Brasília, seu nome passou a ser Universidade do Estado da Guanabara - UEG. Em 1975, com a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, passou a ter a denominação atual. Criada a partir da fusão da Faculdade de Ciências Econômicas do Rio de Janeiro, da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, da Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette e da Faculdade de Ciências Médicas, a Universidade cresceu, incorporando e criando novas unidades com o passar dos anos. Às faculdades fundadoras uniram-se instituições como a Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), o Hospital Geral Pedro Ernesto (HUPE), a Escola de Enfermagem Raquel Haddock Lobo, entre outras. Além disso, novas unidades foram criadas para atender às demandas da Universidade e da comunidade, como o Instituto de Aplicação (CAP) e a Editora da UERJ (EDUERJ), entre outros. Nesses sessenta anos de história, a Universidade cresceu em tamanho, estrutura e importância nos cenários regional, nacional e internacional. O campus Francisco Negrão de Lima, no bairro Maracanã, zona norte do Rio de Janeiro, foi erguido no local da antiga Favela do Esqueleto, reconhecida por esse nome, pois lá existia a estrutura abandonada da construção de um hospital público que, após sua conclusão, passou a ser o Pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha.

             O campus foi oficialmente inaugurado em 1976 e possui atualmente mais de 160 000 metros quadrados de área construída, 292 salas de aula, 12 bibliotecas, 24 auditórios e 111 laboratórios distribuídos entre o pavilhão João Lyra Filho e o pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha. O campus no Maracanã também abriga importantes espaços, enquanto lugares praticados, voltados para atividades artísticas e culturais, como o teatro Odylo Costa Filho - o segundo maior teatro do Rio de Janeiro, a galeria Cândido Portinari e a Concha Acústica. A universidade possui um Colégio de Aplicação tradicional, instituição de ensino fundamental e médio, que obteve, recentemente, destaque no Exame Nacional do Ensino Médio. A 200 metros do campus, em Vila Isabel, está localizado o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), unidade de saúde de alta complexidade vinculada à UERJ, sendo referência em Pediatria, Urologia, Reumatologia, Dermatologia, Medicina de Família e Comunidade, Psiquiatria e Doenças Infectoparasitárias. Neste terreno está sediada a Faculdade de Ciências Médicas (FCM). As faculdades de Enfermagem e Odontologia também sediadas em Vila Isabel, próximas ao Hospital Universitário Pedro Ernesto.
             Vanessa Daudt foi aprovada como “cotista” na UERJ após se declarar “negra” ou “índia” no vestibular de 2013. Seu principal campus é o Francisco Negrão de Lima, que está localizado no bairro do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. A universidade conta ainda com os campi de Duque de Caxias, Ilha Grande, Nova Friburgo, Resende, Teresópolis e São Gonçalo. Os cursos de Medicina e Direito da Universidade figuram entre os melhores do país, segundo o ranking do “Exame Nacional de Desempenho de Estudantes”, publicado em 2007 e dados referentes ao número de aprovações no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente, juntamente com o de Desenho Industrial. Os cursos de Engenharia, Geografia, Jornalismo, Letras e Economia também são referência no país, segundo publicação especializada. Sua Faculdade de Direito também já formou egrégios nomes como Ricardo Lira, Luiz Fux, Otávio Leite, Sérgio Campinho, Wadih Damous e Luís Roberto Barroso. Em um recente ranking elaborado pelo elitista jornal Folha de São Paulo, a universidade foi considerada a segunda melhor universidade do Estado do Rio de Janeiro e a décima primeira do Brasil.
           Para o que nos interessa objeto de reflexão sociológica, como cotista, Vanessa Daudt disputou 16 vagas com 34 candidatos - 2,19% interessados em cada cadeira. Na seleção normal, o processo seria bem mais apertado: teria que competir no âmbito do processo seletivo com 515 vestibulandos por 44 matrículas. O caso de Vanessa Daudt que foi aprovada como “cotista” na UERJ após se declarar “negra” ou “índia” no vestibular de 2013 é um dos mais de 60 casos sobre as mesas dos promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Desde 2007, denúncias anônimas e dos próprios estudantes avolumam-se em um inquérito de mais de 3.000 páginas dedicado a descobrir se o sistema de cotas na UERJ, que toma previamente 45% das vagas da instituição, “é usado como atalho ilegal para estudantes que se aproveitam das fragilidades da lei estadual 5.346 – a que dispõe sobre o sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio”. Como é sabido por todos os candidatos, basta declarar-se negro ou índio e apresentar comprovantes de baixa renda para ser avaliado como cotista, com absurdas vantagens sobre os demais concorrentes. Apesar da abundância de denúncias e de a lei determinar que “cabe à universidade criar mecanismos de combate à fraude”, a direção da UERJ não está preocupada com os “buracos” em seu sistema.
     Lei 5.346/08: “Lei Estadual sobre a Reserva de Vagas”. Art. 1º - Fica instituído, por dez anos, o sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais, adotado com a finalidade de assegurar seleção e classificação final nos exames vestibulares aos seguintes estudantes, desde que carentes: I - negros; II - indígenas; III - alunos da rede pública de ensino; IV - pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor; V - filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. § 1º Por estudante carente entende-se como sendo aquele assim definido pela universidade pública estadual, que deverá levar em consideração o nível socioeconômico do candidato e disciplinar como se fará a prova dessa condição, valendo-se, para tanto, dos indicadores socioeconômicos utilizados por órgãos públicos oficiais.
     § 2º Por aluno oriundo da rede pública de ensino entende-se aquele que tenha cursado integralmente todas as séries do 2º ciclo do ensino fundamental e do ensino médio em escolas públicas de todo território nacional. § 3º O edital do processo de seleção, atendido ao princípio da igualdade, estabelecerá as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de autodeclararão para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, e da certidão de óbito, juntamente com a decisão administrativa que reconheceu a morte em razão do serviço, para filhos dos policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, cabendo à universidade criar mecanismos de combate à fraude. § 4º O candidato, no ato da inscrição, deverá optar por qual reserva de vagas estabelecidas no caput e nos incisos I ao V do presente artigo irá concorrer.
         O Ministério Público diante do volume de denúncias faz o que a instituição já deveria ter feito: evitar a farra que subverteu não só os critérios de meritocracia para ingresso na universidade, mas a própria lógica das cotas. Os “espertos” no âmbito da malandragem conseguem, com notas bem mais baixas, passar na frente de gente que estudou e recusou-se a recorrer ao engenhoso caminho da fraude. O descaso da universidade consegue algo inédito, que é unir gente a favor e contra as cotas. Afinal, um sistema de cotas raciais que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e não somente aos que, por lei – por pior que ela seja – teriam acesso legítimo ao benefício. Os promotores tentam, no âmbito criminal, encontrar uma saída para um problema criado por uma política social equivocada, que classifica pessoas segundo critérios raciais. Vitor Paulo de Souza Gilard (foto) foi aprovado como cotista após se declarar negro ou índio no vestibular de 2013 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 
     Malandragem define-se como um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinada situação muitas vezes ilícitas. Caracteriza-se pela engenhosidade e sutileza. Sua execução exige destreza, carisma, lábia e quaisquer características que permitam a manipulação de pessoas ou resultados, de forma a obter o melhor destes, e da maneira mais fácil possível. Contradiz a argumentação lógica, o labor e a honestidade, pois a dialética malandragem (cf. Assis, 1953; Schwarz, 1988; Candido, 1970; 1993) pressupõe que tais métodos são incapazes de gerar bons resultados. Aquele que pratica a malandragem, o “malandro”, age como no popular adágio brasileiro, imortalizado pelo nome de Lei do Gerson: “gosto de levar vantagem em tudo”. Junto ao “jeitinho” (cf. DaMatta, 1981), a malandragem pode ser considerado outro modo de “navegação social” tipicamente, mas não unicamente brasileiro.
     Porém, diferente do “jeitinho”, neste a integridade de instituições e de indivíduos é efetivamente lesada, e de forma juridicamente definível como dolosa. No entanto, a malandragem bem-sucedida pressupõe que se obtenham vantagens sem que sua ação se faça perceber. Em termos mais populares, o “malandro”, “engana” o “otário” (vítima) sem que este perceba ter sido enganado. A malandragem é descrita no imaginário individual (os sonhos) e coletivo brasileiro (os mitos, os ritos, os símbolos) como uma ideologia de justiça individual. Perante a força das instituições necessariamente opressoras, o indivíduo “malandro” é o curupira que só faz gol de calcanhar e sai comemorando de “moon Walker”. Tal como o “jeitinho brasileiro”, a malandragem é um recurso de esperteza, utilizado por indivíduos de pouca influência social, ou socialmente desfavorecidos. Isso não impede a malandragem de ser igualmente utilizada por indivíduos mais bem posicionados socialmente, sobre as políticas raciais e seus efeitos sociais e políticos. No Brasil, através da malandragem, obtêm-se vantagens ilícitas em jogos de azar, nos negócios e na vida social em sua totalidade.
     Pode-se considerar “malandro” o adúltero que convence a mulher de sua falsa fidelidade; o patrão que “dá um jeito” de não pagar os funcionários tal como deveria; o “jogador” que manipula as cartas e leva para si toda uma rodada de apostas, e assim por diante. Classificado na 166ª posição geral entre os vestibulandos de jornalismo, Gilard não teria conseguido uma das 50 vagas do curso em 2013 se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas. Na hora de comprovar a renda familiar, pode-se simplesmente omitir o rendimento de um ou mais integrantes da família. A lei 5.346 prevê um mecanismo para garantir que haja, pelo menos, algum controle sobre o que declara o candidato. O parágrafo 3º do artigo 1º estabelece que as universidades devam “criar mecanismos de combate à fraude”. De fato, existe na instituição uma “Comissão de Análise Socioeconômica”, formada por três servidoras públicas e 28 assistentes sociais. Após a análise da documentação, a comissão realiza, segundo a universidade, “visitas domiciliares a alguns candidatos para dirimir dúvidas”. Em 2010, foram realizadas 14 dessas visitas, segundo documento da UERJ enviado ao Ministério Público. Em 2011, foram três. Segundo declaração de Lena Medeiro de Menezes, Sub-Reitora de Graduação, não são feitas visitas fora do Estado do Rio. Ou seja, morar fora do território fluminense é garantia de que não haverá confirmação dos dados etnográficos e estatísticos apresentados como fundamento no critério de seleção.
         João Pedro Galiza Xavier (foto) foi aprovado como cotista no vestibular de 2013 no curso de Medicina. Classificado na 542ª posição geral entre os vestibulandos de Medicina, o estudante não teria conseguido uma das 94 vagas do curso naquele ano se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas. Como demonstra a ciência, não é possível classificar a descendência com base na cor da pele. Mas são estes – e os sinais inequívocos de condição social – os critérios que embasam denúncias dos próprios estudantes. A presença de cotistas brancos, com olhos claros, com celulares caros e aparelhos como iPads,  nome de um tablet produzido pela empresa Apple Inc. Pelo seu tamanho com tela de 9,7 polegadas e peso de cerca de 700 gramas, se situa entre um smartphone e um computador portátil. A questão da “cor da pele” tem revoltado universitários que precisaram estudar anos para conseguir uma vaga na UERJ. Alguns chegam a acusar a UERJ de “acobertar as fraudes”. O baixo número de sindicâncias instauradas é outro motivo de reclamações: foram apenas 17, naquele período. - “A UERJ está preenchendo vagas com pessoas que se dizem negras ou pobres sem comprovação válida. Apenas com uma declaração”, disse um dos denunciantes, em 2011.
     Pesquisa quantitativa do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificou que 60% dos brasileiros “que se julgam brancos têm sangue africano ou indígena nas veias”. O caso do sambista Luiz Antônio Feliciano Marcondes, o Neguinho da Escola de Samba Beija-Flor, por exemplo, pode ser considerado simbólico. Exame estatístico feito pelo laboratório de Pena identificou que ele tem 67,1% dos genes de origem na Europa e apenas 31,5% da África. No intervalo de uma das aulas do curso de enfermagem da UERJ, Vanessa Dodt, a estudante loira a qual nos referimos brevemente, defendeu seu direito ao benefício. Vanessa disse que sua documentação foi aceita, e que é “carente”. Como não existe cota “para quem é branco e carente”, declarou-se “negra ou índia”. - “Digo que sou da cor que eu quiser”. Ela acertou em cheio a origem do problema ideológico ou cultural do sistema das políticas raciais.
     Vale, para os efeitos legais, a “auto declaração” da cor da pele. De acordo com a legislação brasileira, não é função “do Estado determinar a raça de uma pessoa”. Ou seja: é negro ou índio quem decidir assim se classificar perante a instituição. Quando a universidade tenta interferir, a confusão é imensa, como comprovou o caso dos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha – o primeiro classificado como branco e, o segundo, como negro pela Universidade de Brasília (UnB). O disparate no enquadramento de pessoas geneticamente idênticas levou a UnB a modificar o ingresso dos cotistas. Em vez da simples declaração do estudante, há uma entrevista pessoal com o candidato – algo que, obviamente, não corrige uma política torta, mas afugenta quem tenta se aproveitar de brechas legais. Para o sociólogo Demétrio Magnoli, do “Grupo de Análises de Conjuntura Internacional” (Gacint) da USP, são claros os sinais de que os critérios raciais são um erro, e não atendem o objetivo de promover igualdade social. – “Polícias raciais dividem o país em grupos e produzem atritos, o que é perigosíssimo em qualquer sociedade. É preciso abolir o princípio da autodeclaração, para o bem do funcionamento do sistema”.
     O sociólogo Simon Schwartzman, um dos autores do livro: “Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo” (2007) avalia que os critérios de cotas dificilmente serão ajustados simplesmente por um aperto no controle. O mais adequado, afirma, seria que as instituições de ensino originassem soluções para privilegiar alunos carentes, em vez de tentar uma segregação. – “O sistema inteiro de cotas tem problemas. Todos os critérios são muito grosseiros. A solução não é apertar o controle, mas uma política mais inteligente de preferências, que amplie o sistema de apoio para quem realmente precisa”. A lei estadual fluminense que instituiu o sistema de cotas exige que pelo menos duas condições estejam atendidas. Baixa renda é o critério indispensável. A segunda condição pode ser étnica: declarar-se indígena ou negro, ou ser filho de policiais mortos em serviço ou inválidos ou, tratar-se de pessoa com deficiência física. O critério de renda é burlável. O candidato cotista deve comprovar renda familiar per capita bruta de até R$ 960.

          Enfim, paternalismo, em sentido lato, é um sistema de relações sociais e trabalhistas, unidos por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas fundadas na valorização positiva da pessoa do patriarca. Em sentido estrito, o paternalismo é uma modalidade de autoritarismo, na qual uma pessoa exerce o poder sobre outra combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, com elementos sentimentais e concessões graciosas. Do ponto de vista político é a forma mais sofisticada de dominação. Atua com aparência de solidariedade e bondade. Entretanto, parte de premissa de que o amparado encontra-se em nível inferior ao pretenso protetor, que obviamente não deseja seu crescimento para continuar a submissão. A cultura brasileira é impregnada de paternalismo apresentado como face aparentemente simpática do povo. Essa característica vem da colonia dominada pela escravatura, em que “homens livres” somente eram bem tratados pela bondade das “sinhás moças”, e não por dignidade. Difundiu-se a ideia de que trabalho é atividade indigna a ser exercida pelos socialmente ditos inferiores. Hoje, em alguns círculos sociais privilegiados, ainda é grande essa rejeição à atividade laboral. As novelas da TV Globo exploram de forma sadista esse aspecto cultural e político no Brasil. 

Bibliografia geral consultada.

GIANOTTI, José Arthur, A Universidade em Ritmo de Barbárie. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987; GOTO, Roberto, Malandragem Revisitada. Campinas: Pontes Editora, 1988; CUNHA, Luiz Antonio, Qual Universidade? São Paulo: Editora Cortez, 1989; SCHWARZ, Roberto, Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos inícios do Romance Brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1988; CANDIDO, Antônio, “Dialética da Malandragem”. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993; SCHWARTZMAN, Simon, “Fora de Foco: Diversidade e Identidades Étnicas no Brasil”. In: Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo, v. 55, pp. 83-96, 1999; OLIVEIRA, Gesner, “Populismo das Cotas”. In: Folha de S. Paulo, 08.07.2006; ARBACHE, Ana Paula Ribeiro Bastos, A Política de Cotas Raciais na Universidade Pública Brasileira: Um Desafio Ético. Tese de Doutorado em Educação. Programa de Estudos Pós-Graduados. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006; FRY, Peter, MAGGIE, Yvonne, MONTEIRO, Simone e SANTOS, Ricardo Ventura, Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007; SOUZA, Marcilene Garcia de, Ações Afirmativas e Inclusão de Negros por Cotas Raciais nos Serviços Públicos do Paraná. Tese de Doutorado.  Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Universidade Estadual Paulista, 2010; ALENCAR, Rafael Augusto da Costa, Ações Afirmativas no Brasil: Um Estudo de Caso sobre o Estatuto da Igualdade Racial. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2010; ARAÚJO, Ionete Eunice de, Análise Socioeconômica das Qualidades de Cotas para Negros na Universidade de Brasília. Dissertação de Mestrado Profissional em Economia do Setor Público. Brasília: Universidade de Brasília, 2013; RIBEIRO, Gustavo Cezar, Modos da Soberania e a Questão Contemporânea do Poder. Rio de Janeiro: IESP/UERJ. Universidade de Paris, 2014; PETIT, Sandra Haydée, Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroancestral e Tradição Oral. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2015;  entre outros.

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