domingo, 3 de maio de 2020

Isto (não) é um cachimbo – A Semelhança do Objeto de Análise.

Ubiracy de Souza Braga & Giuliane de Alencar Braga

                   “A arte da conversa é a gravitação autônoma das coisas”. Michel Foucault



                       
          A questão colocada aqui pretende desvelar ou tornar consciente no plano compreensivo da interpretação, algo grandioso que permanece encoberto e  desconhecido por aquela disputa sobre os métodos, algo que, antes de inferir limites e restringir a ciência moderna e contemporânea, precede-a e em parte torna-a possível. Ou, no limite da tradição de gênero, se quisermos nos opor à “hipótese repressiva” basta recolocá-la numa economia geral dos discursos para determinar, em suma, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder-saber-prazer que sustenta entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana, para assim, compreendermos, “quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo”, que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma o “fato discursivo” global, e foucaultianamente dito e escrito e inevitável da “colocação do sexo em discurso”. Isto porque a colocação do sexo em discurso parece gerar técnicas normalizadoras e normatizadoras de controle, o qual se exerce não tanto através de proibições e punições, mas através de mecanismos, metodologias e práticas que visam a produzir sujeitos autodisciplinados no que se refere à maneira de viver sua sexualidade.
            Um fato memorável se dá com a biografia de Foucault escrita por Didier Eribon (1990), onde é belíssima a passagem que ilustra a conversa com Hegel para aquela geração de franceses da década de 1940. O professor que atrairá profundamente esse grupo é aquele encarregado de preparar a classe para a prova de filosofia. Khâgne é um termo em francês reconhecido como classes preparatórias literárias, ou seja, a classe preparada para grandes escolas dedicada à literatura e às humanidades. Chama-se Jean Hyppolite e seu nome reaparece mais de uma vez na caminhada que Michel Foucault escolhera. Jean d’Ormesson, que frequentou o Liceu dois anos antes, descreve esse homem redondo atrás da mesa, a palavra sorridente, farta, sonhadora, tímida, alongando o final das frases com patéticas aspirações, reluzindo de eloquência à força de recusá-la, exigindo o mesmo rigor nos métodos, a fim de reconstituir a sequência da filosofia, afirmando ainda “eu não compreendia nada”. Sem dúvida outros também não compreendiam. Hyppolite fascina os alunos. Ele comenta para os alunos a concepção contida na Fenomenologia do Espírito, de Hegel e a Geometria, de René Descartes. Um objeto abstrato não existe em nenhum momento, ou lugar particular, mas  como um tipo de representação (coisa) como uma ideia, ou abstração


                      
Mas é o curso acadêmico de Friedrich Hegel que impressionou-os e se grava na memória. Michel Foucault não fica imune a essa atração, ao contrário: “apaixonado por história, encontra-se aturdido pela tentação filosófica”. O professor lhe expõe justamente uma filosofia que faz o relato da história e narra o paciente caminho da Razão rumo a sua elevação. Sem dúvida Jean Hyppolite que se notabilizou por seus trabalhos sobre Hegel e outros filósofos alemães, além de ter sido mestre de alguns dos mais proeminentes pensadores franceses,  foi o iniciador de Foucault naquilo que se tornaria o seu destino. O próprio Foucault não deixou de proclamar sua dívida com Hyppolite, que alguns anos depois reencontrariam no quadro docente da École Normale e a quem sucederia no Collège de France. Quando Jean Hyppolite faleceu, em 1968, Foucault declarou: - “Os que estavam no Khâgne após a guerra se lembram das aulas de Hyppolite sobre a Fenomenologia do Espírito: naquela voz que não parava de se recompor como se meditasse no interior do próprio movimento que não ouvíamos apenas a voz do professor: ouvíamos algo da voz de Hegel e talvez da voz da própria filosofia. Não creio que seja possível esquecer a força daquela presença, nem a proximidade que ele pacientemente invocava” (cf. Eribon, 1990: 33).           
Porém a dívida que Foucault proclamará a Hyppolite irá muito mais longe que a simples gratidão pela descoberta de uma vocação. Ao concluir sua tese de doutorado em 1960, Foucault dedica a alguns essa obra reconhecida sob o título Histoire de la Folie à l’âge Classique. Esses inspiradores aos quais agradece são Georges Dumézil, Georges Canguilhem e Jean Hyppolite. Na aula Inaugural no Collège de France (1970), dez anos após a redação do livro, Foucault presta nova homenagem ao seu professor no Khâgne: - “Toda nossa época, seja pela lógica, seja pela epistemologia, seja por Marx, seja por Nietzsche, procura escapar de Hegel. Mas escapar de Hegel pressupõe apreciar exatamente o que custa se afastar dele; pressupõe saber até onde Hegel, talvez de modo insidioso, se aproxima de nós; pressupõe saber o que é hegeliano mesmo naquilo que nos permite pensar contra Hegel; e avaliar em que nosso recurso contra ele ainda é, talvez, um artifício que ele coloca para nós e no fim do qual nos espera imóvel e alhures. Ora temos uma dívida com Jean Hyppolite é porque ele infatigavelmente percorreu por nós e antes de nós esse caminho pelo qual nos afastamos de Hegel, tomamos a distância e nos encontramos outra vez com ele, mas de outra forma, e novamente nos vemos forçados a deixá-lo”. 
        Se a Fenomenologia representa o itinerário da alma que se eleva ao espírito por meio da consciência, fora de dúvida a ideia de semelhante itinerário foi sugerida a Hegel pari passu com a convergência entre as obras literárias, como também aquelas que nos parecem referidas como novelas de cultura tendo em vista a leitura feita sobre o Emílio, de J.-J. Rousseau e que nela encontrava uma primeira história da consciência natural elevando-se por si mesma a liberdade, através das experiências que lhe são próprias e que são particularmente formadoras. Se me permitem uma digressão, na Lettre à d`Alembert, Rousseau, além de ignorar a distinção metodológica entre o “possível e o real”, também fornece uma teoria explícita dos limites da perfectibilidade do teatro. Assim, Rousseau inova, quando recorta do ponto de vista heurístico a ideia social de gênero de todo fundamento ideal-transcendente, deixando-a à deriva no elemento móvel no âmbito da historicidade. O campo do possível é constituído na historia: cada forma de sociabilidade, cada estilo de linguagem, escolhe, por assim dizer, os seus móveis possíveis; a cada abertura, esboçada por uma linguagem particular, corresponde um fechamento que lhe é indissociável. O gênio nada pode contra as regras que secreta cada estrutura histórica. 

Esta ideia foi suficiente ao desenho mais correto na inscrição como esta: “Isto não é um cachimbo”, para que logo a figura esteja obrigada a sair de si própria, isolar-se de seu próprio espaço e, finalmente, pôr-se a flutuar, longe ou perto de si mesma, não se sabe, se semelhante ou diferente de si. No oposto de Isto não é um cachimbo, L`Art de la conversation: numa paisagem de começo do mundo ou mesmo de gigantomaquia, dois personagens minúsculos estão falando: discurso inaudível, murmúrio que é logo retomado no silêncio das pedras, no silêncio dessa parede em desaprumo que domina, com seus blocos enormes, os dois tagarelas mudos; ora esses blocos amontoados em desordem uns sobre os outros, formam a sua base, um conjunto de letras onde é fácil decifrar a palavra: rêve – sonho que é possível, olhando melhor, completar com trêve, trégua, ou crêve, morte, ou morra, arrebente, como se todas essas palavras frágeis e sem peso tivessem recebido o poder de organizar o caos das pedras.
         Ao contrário, pois por detrás da tagarelice despertada, mas logo perdida, dos homens, as coisas pudessem, em seu mutismo e em seu sono, compor uma palavra, estável que anda poderá apagar, palavra que designa a mais fugidia das imagens. Mas não é tudo: pois segundo Foucault, é no sonho que os homens, enfim, reduzida ao silêncio, comunicam com a significação das coisas, e se deixam impressionar por essas palavras enigmáticas, insistentes, que vem de outro lugar. Isto não é um cachimbo, era a incisão do discurso na forma das coisas, era seu poder ambíguo de negar e de desdobrar: A arte da conversa é a gratidão autônoma das coisas que forma as suas próprias palavras na indiferença dos homens, impondo a eles, sem mesmo que saibam, em sua tagarelice cotidiana. Para o que importa entre esses dois extremos, a obra de Magritte desdobra o jogo das palavras e imagens. Os títulos, frequentemente inventados a posteriori e por outrem, se inserem nas figuras onde o ponto em que podem se agarrar, estava se não marcado, autorizado de antemão, onde representam um ambíguo.
Foucault nos coloca em dupla condição diante de um complexo esboço filosófico sobre a arte que, ao mesmo tempo, é arte enquanto abstração. Dois sujeitos escapam ao marcado mundo das semelhanças: o leitor e o expectador. Este mesmo campo das semelhanças serve à representação e igualmente a ordena, enquanto a similitude se estabelece na incerteza e na flutuação. Tudo isso é necessário para afirmar que "em nenhum lugar há um cachimbo" (p. 34). O que importa saber para além da representação de Magritte é que os signos e as coisas, dois universos de semelhanças, estão unidos pelo mesmo jogo. A semelhança domina a trama do mundo das coisas. O que Foucault chamou de "um apagar do lugar-comum" não é mais que a ausência de espaço entre os signos da escrita e as linhas da imagem. A arte escreve algo em nós, discursa e apresenta enunciados de difícil compreensão.
Um objeto num quadro é um volume organizado e colorido de tal sorte que sua forma se reconhece logo e que não é necessário nomeá-lo, mas no objeto, a massa necessária é reabsorvida, o nome inútil é despedido; Magritte elide o objeto e deixa o nome imediatamente superposto à massa. O fuso substancial do objeto não e mais representado senão por seus dois pontos extremos, a massa que faz sombra e o nome que designa. L`Alphabet des révélations se opõe muito exatamente ao Personagem caminhando em direção do horizonte: para Foucault, um grande quadro de madeira dividido em dois painéis, à direitas, formas simples, perfeitamente reconhecíveis, um cachimbo , uma chave, uma folha, um copo; ora, embaixo do painel, a figuração de um rasgo mostra que essas formas não são nada além de recortes numa folha de papel sem espessura; sobre o outro painel, uma espécie de barbante torcido e inextricável não desenha nenhuma forma reconhecível. Sem massa, sem nome, forma e volume, recorte vazio, tal é o objeto, entenda-se, que havia desaparecido do quadro precedente.
            É preciso não se enganar: num espaço em que cada elemento parece obedecer ao único princípio de representação plástica e da semelhança, os sinais linguísticos, que pareciam excluídos, que rondavam de longe à volta da imagem, e que o arbitrário do título parecia ter afastado para sempre, se aproximaram sub-repticiamente: introduziram na solidez da imagem, uma desordem – uma ordem que só lhes pertence. Fizeram fugir o objeto, que revela a finura de sua película. Parece, grosso modo, que Magritte dissociou a semelhança da similitude e joga esta contra aquela. A semelhança tem um padrão impreciso, mas que funciona como elemento original que ordena e hierarquiza a partir de si todas as cópias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e classifica. O similar se desenvolve em séries que não tem começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem a nenhuma hierarquia, como num colegiado universitário, mas se propagam sob a forma de pequenas diferenças em inúteis pequenas diferenças.
           A semelhança serve à representação, que reina sobre ela; a similitude serve à repetição, que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível do simular ao simular. Na Décalcomanie (1966), uma cortina vermelha de largas dobras que ocupa dois terços do quadro subtrai ao olhar uma paisagem do céu, do mar e de areia. Ao lado da cortina, dando como de costume, as costas ao espectador, o homem com chapéu-coco olha para o perigo. A cortina se encontra recortada com uma forma que é exatamente a do homem: como se fosse ele próprio um pedaço de cortina cortado com a tesoura. Nessa larga abertura, vê-se a praia. O que se deve compreender? É o homem destacado da cortina e, ao se deslocar permite ver o que ele provavelmente estava olhando quando se misturava com a dobra da cortina? Decalcomania? Deslocamento e mudança de elementos similares, mas de modo algum reprodução semelhante: “corpo=cortina”, diz representação semelhante.
      A semelhança comporta uma única asserção, sempre a mesma. A similitude as afirmações diferentes, que dançam juntas, apoiando-se e caindo umas em cima das outras. Expulsa do espaço do quadro, excluída da relação entre as coisas que reenviam uma à outa, a semelhança desaparece. Mas não era para reinar em outro lugar, onde estaria liberta do jogo indefinido da similitude. Não cabe à semelhança ser a soberania que faz surgir. A semelhança, que não é uma propriedade das coisas, não é própria ao pensamento? “Só ao pensamento”, diz Magritte, “é dado ser semelhante; ele assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece; torna-se o que o mundo oferece”. O pensamento assemelha sem similitude, tornando-se ele próprio essas coisas cuja similitude entre si exclui a semelhança. A pintura é esse ponto onde está na vertical um pensamento que está sob o modo da semelhança e das coisas que estão nas relações de similitude. Isto não é um cachimbo é suficiente para a questão: quem fala a enunciação? Ou antes, de fazer falar, os elementos dispostos, seja deles mesmo: “Isto não é um cachimbo”. Ela inaugura um jogo de transferências que correm, proliferam, se propagam, se respondem, no plano do quadro sem nada afirmar, nem representar nesses jogos da similitude.

            Em Les Liaisons dangereuses uma mulher nua mantém diante de si um espelho que a esconde quase inteiramente: tem os dois olhos quase fechados, baixa a cabeça, que volta para a esquerda como se quisesse não ser vista e não ver que é vista. Esse espelho, que se encontra exatamente no plano do quadro e de frente para o espectador, envia a imagem da própria mulher que se esconde: a face refletidora do espelho faz ver essa parte do corpo (dos ombros à coxas) que a face cega esconde. O espelho funciona um pouco ao modo de uma tela radioscópica. Mas com todo um jogo de diferenças. A mulher é ali vista de perfil, inteiramente voltada para a direita, o corpo ligeiramente inclinado para a frente, o braço não estendido para carregar o espelho pesado, mas dobrado sobre os seios; a longa cabeleira que deve mergulhar por trás do espelho, à direita, escorre, na imagem do espelho, à esquerda, ligeiramente interrompida pela moldura do espelho, no momento desse ângulo brusco. A imagem é notavelmente menor do que a própria mulher, indicando assim, entre o espelho e o que ele reflete, uma certa distância que a atitude da mulher contesta, ou é por ela contestada, apertando o espelho contra seu próprio corpo para melhor escondê-lo. Esse pouco de distância por trás do espelho é manifestado ainda pela extrema proximidade da parede. Entre a parede e o espalho, o corpo escondido foi eliminado e a superfície opaca da parede, que recebe apenas sombras, não há nada. Em todos esses planos, escorregam-se similitudes que nenhuma referência vem fixar; translações sem ponto de partida nem suporte. Dia virá no qual a própria imagem, com o nome que traz, é que será desidentificada pela relação social de similitude indefinidamente transferida numa série. Isto quer dizer que o objeto abstrato: “Isto não é um cachimbo”, silenciosamente escondido na representação semelhante, tornou-se o “Isto não é um cachimbo” das similitudes em circulação.                                  
           Michel Foucault com o único fim de estabelecer os efeitos sociais a partir de tais relações sociais e políticas desloca-se deste ponto de vista para trabalhar com algumas séries de noções: “formações discursivas”, “positividade”, “arquivo”, definindo um domínio. Os enunciados, o campo enunciativo, as práticas discursivas, revelam a especificidade de um método de análise que não seria “nem formalizador, nem interpretativo”, pois já existem muitos métodos capazes de descrever e analisar a linguagem, para que não seja presunção querer acrescentar-lhes outro. Ele já havia mantido “sob suspeita”, expressão que utiliza hic et nunc, em unidades de discurso como o livro ou a obra porque desconfiava que não fosse tão imediata e evidente quanto pareciam: será razoável opor-lhes unidades estabelecidas à custa de tal esforço, depois de tantas hesitações e segundo princípios tão obscuros que foram necessárias centenas de páginas para elucidá-los? O que pode oferecer essa arqueologia? Qual é a recompensa de tão árdua empresa?  A arqueologia metodologicamente procura ordenar, classificar, averiguar e compreender os fatos sociais e históricos ocorridos.                                     
Entre análise arqueológica e história das ideias, os pontos de separação são numerosos, mas que simplificadamente, para o filósofo, apresentam quatro distinções: 1ª) A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos; mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras sociais. Ela não trata o discurso como documento, mas onde se mantém a parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não busca um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”; 2ª) A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. O problema dela é, pelo contrário, definir a tópica dos discursos em sua especificidade, sintoma e precariedade dada.  Mostrando em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los.
Ela não vai à progressão lenta do campo do confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência; não é uma “doxologia”, mas uma análise diferencial das modalidades de discurso; 3ª) A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou no horizonte anônimo. Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro. Ela não é nem psicologia, nem sociologia, nem, num sentido mais geral, a ideia de “antropologia da criação”. A obra não é para ele um recorte metodológico acadêmico pertinente, mesmo se se tratasse de recolocá-la em seu contexto mais global, ou na rede das causalidades positivistas que a sustentam. Ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais. Embora muitas vezes as comandasse inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape, no sentido panoptista. Mas sem dúvida em outras vezes, que só lhes rege uma parte referida à instância do sujeito e princípio de sua unidade que ao que parece lhes são estranhas.   
Mas Michel Foucault entende que a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso. Ela não se propõe a recolher esse núcleo aparente e fugidio onde Autor e obra trocam de identidade. Onde o pensamento permanece ainda o mais próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial sucessiva do discurso. Não tenta repetir o que parece que foi dito, reencontrando-o em sua própria identidade. Não se pretende apagar na modéstia ambígua de uma leitura que deixaria voltar, em sua pureza, a luz longínqua, precária, quase extinta da origem. Menos que nada e diferente de uma “reescrita”. É na forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio “segredo da origem”; é descrição de um discurso-objeto.                                       
É neste sentido que no livro: As Palavras e as Coisas (2016), Michel Foucault  indica-nos pistas e propõe metodologicamente uma forma peculiar de descrever a imagem, sobre a técnica de interpretação através da pintura do quadro Las Meninas, de 1656 de Diego Velásquez, o principal artista do século de ouro espanhol havendo sido reconhecida como uma das pinturas mais importantes na história da arte ocidental. Não por acaso o pintor barroco Luca Giordano afirmou que ela representa a “teologia da pintura”, com o presidente da Academia Real Inglesa ou Royal Academy School of Arts: Sir Thomas Lawrence descrevendo a obra em 1827 para David Wilkie refere-se a ela como “a verdadeira filosofia da arte”. Seguindo esta direção interpretativa a obra foi descrita magistralmente ainda como a “realização suprema de Velásquez, uma demonstração bem consciente e calculada sobre o que uma pintura pode alcançar”. Artista celebrado e prolífico, tinha o cognome de Luca Fapresto pelos seus contemporâneos pela inusitada rapidez com que pintava. Uma tela da igreja de Santa Maria do Pranto, Nápoles, teria sido pintada em 48 horas. O número de obras a ele atribuído ascende à casa dos cinco mil títulos, mas a maioria de nível medíocre.
            Na análise o pintor está ligeiramente afastado do quadro, com um olhar em direção ao modelo e acrescentar um último toque, mas é possível também que o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado. O braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores. Essa mão hábil particular do ofício de pintor está pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu volume. Não sem um sistema sutil de evasivas. Distanciando-se um pouco, o pintor colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que para o espectador que olha, ele está à direita de seu quadro, o qual ocupa toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador o quadro volta às costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que o sustenta como se fosse um arco da representação e captura da imagem. É perfeitamente visível em toda a sua estatura.

Mas, de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se entregará novamente a seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projeta para trás. Podemos vê-lo agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro são meios-termos entre o visível e o invisível: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos olhares, achar-se-á colocado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa região onde seu quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visível, sem sombra nem reticência. Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto, no quadro em que está representado, e ver, aquele em que se aplica representar, ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis. Quando se colocam o espectador no campo de seu olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangem-no a entrar no quadro, designam-lhe um lugar-tempo privilegiado, obrigatório, apropriam-se da espécie e projetam a superfície inacessível da tela virada. 
        Ele vê sua invisibilidade tornada visível ao pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisível a ele próprio. Surpresa que é multiplicada e tornada ainda mais inevitável por um estratagema marginal. Pensando bem, ele não faz ver nada do que o próprio quadro representa. Seu olhar imóvel vai captar à frente do quadro, nessa região necessariamente invisível que forma sua face exterior, as personagens que ali estão dispostas. Em vez de girar em torno de objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aí poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora do olhar. Mas essa invisibilidade que ele supera não é a do oculto, pretende ser ao que é invisível, ao mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como pintura. A negação que divorcia o nome do desenho dele próprio vai intercambiar imagem e texto. Essa negação não cessa, seguindo o ambíguo poder de negar e de desdobrar em outras questões. Em resumo, dizer “isto não é um cachimbo” significa a incisão do discurso na forma das coisas, assim,“(...) sabiamente dispostos sobre a folha de papel, os signos invocam, do exterior, pela margem que desenham, pelo recorte de sua massa no espaço vazio da página, a própria coisa de que falam. As significações são armadilhas inevitáveis”. Como podermos nos portar diante delas? Talvez como leitores e expectadores deslumbrados pelo universo dos discursos.
Bibliografia geral consultada.
BLAVIER, André, Ceci n’est pas une pipe. Contribuição furtive à l’étude d’un tableau de René Magritte. Ville de Verviers (Bélgica): Éditions Temps Mêlés, 1973; SCHNEEDE, Uwe, René Magritte. Barcelona: Ediciones Labor, 1978; FREEMAN, Judi, A Imagem Dada & Surrealista Word. Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art, de 1989; PAQUET, Marcel, Magritte: O Pensamento Tornado Visível. Colonia: Editora Benedikt Taschen, 1992; ERIBON, Didier, “Michel Foucault, 1926-1984”. In: Tempo Social. Revista de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo. Vol. 7, n˚ 1-2, out. 1995; LENAIN, Thierry (Org.), L`image: Deleuze, Foucault, Lyotard. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1997; FIGUEIREDO, Virgínia, “Isto é um cachimbo”. In: Kriterion vol.46, n°112. Belo Horizonte, dezembro de 2005; ALLMER, Patrícia, René Magritte: Beyond Painting. Manchester University Press, 2009; DEWEY, John, A Arte como experiência. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010; ARCHER, Michael, Arte Contemporânea. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013; TRINDADE, Flávia Ferreira, “A dicotomia figura x linguagem apresentada na obra Isto não é um cachimbo analisada sobre a ótica da semelhança”. In: Enciclopédia. Pelotas, vol. 5, 2016; DE SALVADOR AGRA, Saleta, “Viendo el Sentido: Similitudes y Juegos Sígnicos en Magritte”. In: Revista Signa. Universidade de Vigo, 27 (2018), pp. 1023-1042; ARAUJO, Manoel Deisson Xenofonte; BOTELHO, Adriana Barroso, O Pensamento Tornado Visível: O Surrealismo de Magritte no Design Gráfico de Thorgerson. In: Educação Gráfica. Vol. 19, n˚ 1, 2015; FOUCAULT, Michel, Ceci n`est pas une pipe: Sur Magritte. Montpellier: Éditions Fata Morgana, 1973; Idem, Isto não é um cachimbo. 7ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2016; Idem, As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2016; DE SALVADOR AGRA, Salete, “Viendo el Sentido: Similitudes y Juegos Sígnicos en Magritte”. In: Revista Signa, 27: 2018; pp. 1023-1042; FRANCO, Diogo Banzato, Foucault e o que fazer. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2020;  entre outros.

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