quinta-feira, 7 de maio de 2020

Naus das Cartas - História & Gênero Textual da Política Global.


            “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso”. Fernando Pessoa

                         
           Uma carta é um manuscrito social entre pessoas, de cunho particular, que descreve uma comunicação escrita de cunho particular. O manuscrito não deve ser confundido com outras formas de escrita através da utilização de uma máquina de escrever. A invenção do dispositivo de escrever mecanicamente é atribuída a Henry Mill em 1714. O italiano Pellegrino Turri introduziu, em 1808, o sistema de teclado. Posteriormente, o mecânico norte-americano Carlos Thuber criou um modelo aperfeiçoado, com maior rapidez de escrita (1843). O termo manuscrito é usado para o texto original de um escritor, poeta, ensaísta, político, em oposição ao texto técnico editado posteriormente por outras pessoas que não o autor. A circulação da carta exigiu a criação de serviço postal permanente, público ou privado, que conheceu um notável desenvolvimento desde a Roma antiga. Como gênero textual é pari passu um meio e processo de trabalho estruturado em comparação a outros meios de comunicação escrita. Na descrição o processo de trabalho e comunicação compõe-se de emissor=remetente, destinatário=receptor, de local de recepção, data de envio, saudação, corpo do manuscrito, despedida e assinatura. De acordo com seu propósito, pode ser classificada como carta pessoal, comercial, oficial, acadêmica, profissional e carta política, entre outras modalidades.
            Os escritos medievais consagraram um mito ilusório poderoso, as chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas, que representaram nas mitologias grega e céltica, o deleitável paraíso que para o poeta grego Hesíodo eram os lugares que acomodavam os Elísios, uma região abençoada, onde os heróis e as almas favorecidas eram recebidos pelos deuses após a morte. É um lugar praticado abençoado, onde reinam primavera eterna e juventude eterna, onde homens e animais convivem harmonicamente em paz. Essas ilhas, de acordo com as tradições fenícia e irlandesa, encontram-se a oeste do mundo ocidental reconhecido. Os fenícios as designaram com o nome Braaz e os monges irlandeses as chamaram de Hy Brazil. Entre 1325 e 1482, os mapas incluem a oeste da Irlanda e ao sul dos Açores a Insulla de Brazil ou Isola de Brazil, essa terra afortunada e bem-aventurada que a Carta de Pero Vaz de Caminha descreveu ao comunicar a El-Rei o achamento do Brasil. Um pouco mais tarde, historicamente virá surgir o nome do lugar e, com esse nome, se nomeia a primeira riqueza mercantil chamada pau-do-Brasil, pau-brasil. Foi achado o Brasil. A Carta de Pero Vaz de Caminha é o documento e gênero textual no qual Pero Vaz de Caminha registrou as suas impressões etnográficas sobre a terra que posteriormente viria a ser chamada de Brasil.  


       
É o primeiro documento escrito da história do Brasil. A carta conservou-se inédita por mais de dois séculos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Foi descoberta, em 1773 por José de Seabra da Silva e publicada pelo historiador Manuel Aires de Casal na sua Corografia Brasílica (1817), uma obra clássica da bibliografia brasiliana onde se imprimiu pela primeira vez a Carta de Pero Vaz de Caminha. Anunciada pela primeira vez na Gazeta do Rio de Janeiro em 1815, onde se fazia apelo aos subscritores, foi impressa com dificuldade, paga pelo seu autor, chegando mesmo a haver uma queixa escrita pelo Pe. Joaquim Damazo, diretor da Biblioteca Pública, pela demora e falta de interesse na publicação da obra. Costuma ser considerado o marco inicial da obra poética escrita sobre o Brasil, pois, para ser obra literária, precisaria ter características irreais, já que a Carta é fruto da imaginação individual (sonho) e coletiva (mito), mas também um documento histórico e político que descreve a realidade do território vista aos olhos do escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral. Caminha enviou a carta para o rei D. Manuel I (1469-1521) para comunicar-lhe, na ótica da conquista, o que se chamou “descobrimento” das terras. Datada de Porto Seguro, no litoral da Bahia de acordo com o historiador F. A. de Varnhagen, no dia 1° de maio de 1500, foi levada a Portugal por Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota.
            Há 520 anos, o navegador português e tripulação enfrentaram tormentas, calmarias e doenças. Dos 1,5 mil homens que zarparam de Portugal, apenas 500 conseguiram voltar sãos e salvos para casa. - A praia das lágrimas para os que vão. A terra do prazer para os que voltam. - É assim que os portugueses costumam se referir ao Porto do Restelo, em Lisboa, de onde partiram as expedições de Vasco da Gama, em 1497, e de Pedro Álvares Cabral, em 1500. A América não estava aqui à espera de Colombo - afirma Chauí (2003), assim como o Brasil não estava aqui à espera de Cabral. Não são “descobertas” ou, como se dizia no século XVI, são “achamentos”. São invenções históricas e construções culturais. Sem dúvida, uma terra não vista nem visitada estava aqui. Mas, tanto o  Brasil como a América é uma criação dos conquistadores europeus. O Brasil foi instituído como colônia de Portugal e inventado como “terra abençoada por Deus”, à qual, se dermos crédito a Pero Vaz de Caminha, “Nosso Senhor não nos trouxe sem causa”, palavras que ecoarão nas de Afonso Celso, quando quatro séculos depois escreveu: - “Se Deus aquinhoou o Brasil de modo especialmente magnânimo, é porque lhe reserva alevantados destinos”.  
É essa construção teórico-sociológica que estamos designando como mito fundador. Nesta conjuntura colonialista do Brasil surgem os principais elementos para a constituição de um mito fundador. O primeiro constituinte é, para usarmos a clássica expressão de Sérgio Buarque de Holanda, a “visão do paraíso” e o que chamaremos aqui de elaboração mítica do símbolo “Oriente”. O segundo é oferecido, de um lado, pela história teológica providencial, elaborada pela ortodoxia teológica cristã, e, de outro, pela história profética herética cristã, ou seja, o milenarismo de Joaquim de Fiori. O terceiro é proveniente da elaboração jurídico-teocêntrica da figura do governante como rei pela graça de Deus, a partir da teoria medieval do direito natural objetivo e subjetivo e de sua interpretação pelos teólogos e juristas de Coimbra para os fundamentos das monarquias absolutas ibéricas. Esses três componentes aparecem, nos séculos XVI e XVII, sob a forma das três operações que respondem pelo Brasil: a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra de Deus, isto é, a história, e a vontade de Deus, isto é, o Estado. O mito fundador é o que o filósofo Baruch de Espinosa designa a principal consequência da interpretação da Bíblia, em que ele propôs: a separação entre fé e razão, entre teologia e filosofia, com o conceito de poder teológico-político.

 O erro de Deus e do divino é a ausência. Mas a ausência não é um nada. Ausência é precisamente a vigência apropriada da plenitude velada do ter-sido e assim do que é, reunido no modo do ter-sido, vige e é. Ausência é a vigência do divino para os gregos, para os judeus profetas, para a pregação de Jesus. Esse não-mais é, em si, um ainda-não do advento velado de seu vigor inesgotável. Uma vez que ser nunca é apenas o real dado, vigília do ser não pode, de forma alguma, equiparar-se à função de um vigia, que protege os tesouros conservados num imóvel contra os possíveis assaltantes. A vigília do ser não está siderada pelo simplesmente dado. Heidegger (2007) observa que no simplesmente dado, quando tomado em si mesmo, nunca se encontra um anúncio do ser. A vigília é uma vigilância, um zelo pelo destino de ser, já sempre resguardado e adiantado, já tendo sido e sendo porvir. É um estado ordinário de consciência, complementar ao estado de sono, ocorrente no ser humano e, comparativamente em outros seres vivos, em que há máxima ou plena manifestação da atividade perceptivo-sensorial e motora voluntária. É vigilância social, sobretudo a partir de um pensamento cuidadoso que sempre se renova, que presta atenção ao aceno em que ser se acena. No destino de ser não há jamais mera sucessão: agora armação e com-posição, depois mundo e coisa, sem entrelaçamento e simultaneidade do anterior e do posterior.
Os navios da esquadra de Cabral que estiveram nas costas brasileiras em 1500 eram algumas das mais sofisticadas máquinas disponíveis à humanidade. Tinham uma complexa tecnologia propulsora baseada em um conjunto de mastros e velas que proporcionava boa capacidade de manobra e movimentação em mar alto. Equipamentos de navegação como bússola e astrolábio facilitavam ao navio se afastar das costas. O armazenamento de víveres permitia um planejamento para que se percorressem longas distâncias. O armamento de canhões de carregar pela boca com pólvora e balas esféricas dava um poder de fogo sem rival no resto do planeta. As grandes navegações incluíam a mística da cruzada cristã com interesse mercantil. Para o empreendimento dar certo, era necessária uma base tecnológica adequada. Todos esses fatores estavam representados entre os cerca de 1.500 homens que tripulavam os 13 navios da frota cabralina. A maneira como esses navios eram habitados, navegados e comandados resumia-se em um  universo múltiplo e fechado do empreendimento civilizatório português. No comando supremo estavam os fidalgos aristocratas. Religiosos embarcados cuidavam de manter a bordo o enorme poder que a Igreja tinha em Portugal. Havia técnicos especializados em navegação, como os pilotos, que eram as pessoas mais importantes a bordo depois do capitão e ninguém podia interferir no seu julgamento sobre as manobras do navio. Seu local de trabalho era uma cadeira que ficava ao lado da “agulha de marear” (a bússola).
          Historicamente na baixa Idade Média, mais precisamente entre o século XIII e a primeira metade do século XV, as naus oceânicas, ainda tecnicamente longe daquilo que seriam nos Descobrimentos, serviam essencialmente para transportar mercadorias que provinham dos portos do Flandres, no norte da Europa, para a península Itálica, no mar Mediterrâneo, e vice-versa. Desde Fernando I de Portugal as naus desenvolveram-se em termos náuticos e multiplicaram-se de forma assinalável em Portugal. Devido à pirataria que assolava a costa portuguesa e ao esforço nacional de criação de uma armada para combatê-las, as naus passaram a ser utilizadas também na marinha de guerra. Nesta conjuntura política, foram introduzidas as bocas-de-fogo, que levaram à classificação das naus segundo o poder de artilharia: naus de três pontas (100 a 120 bocas) e naus de duas pontas e meia (80 bocas). A capacidade de transporte das naus também aumentou, alcançando as duzentas toneladas no século XV, e, as quinhentas, no século seguinte. Com a passagem das navegações costeiras às oceânicas, houve necessidade de adaptar as embarcações aos novos conhecimentos náuticos e geográficos. À medida que se foi desenvolvendo o comércio marítimo e se tornou necessário aumentar a capacidade do transporte de mercadorias, armamento, marinheiros e soldados foram sendo modificadas as características dos navios utilizados. Surgiam então as caravelas (cf. Braga, 1997) de armada e, posteriormente, as naus. Em 1492, Cristóvão Colombo parte das Ilhas Canárias rumo à América com a nau Santa Maria, a caravela redonda Pinta e a caravela latina Niña. Em 1497 Vasco da Gama partiu para a Índia engajado com três naus e uma caravela.
            Sendo insígnia é um sinal ou marca que identifica uma instituição, um cargo ou o estatuto social de uma determinada pessoa. A Carta de Caminha é um documento histórico e político no qual se registrou tanto as impressões etnográficas de nascimento, quanto da história do Brasil, descrevendo a realidade do território vista aos olhos de um narrador. No capítulo final de Raymundo Faoro, na obra: Os Donos do Poder (2012), numa viagem de seis séculos, segundo o autor, uma estrutura política que resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo politicamente orientado, centro espetacular da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo – liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em diretrizes que se demarcam e desenvolvem gradualmente. O súdito se compreende no âmbito de um aparelhamento a sobreexplorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo cuja legitimidade assenta no tradicionalismo.
            Assim é, afirma Faoro, “porque sempre foi”, o comércio dá o caráter à expansão, que em sua démarche inaugura em linha estabilizadora, do patrimonialismo, forma mais flexível do que o patriarcalismo e menos arbitrária que o sultanismo. No molde comercial da atividade econômica se desenvolveu a lavoura de exportação, da colônia à República, bem como a indústria, seja no manufaturismo pombalino, no delírio do encilhamento, quer nas estufas criadas depois de 1930. Seguindo o curso dos anos sem conta, o patrimonialismo estatal, incentivando o setor especulativo da economia e predominantemente voltado à devoção do lucro como jogo e aventura, ou, na outra face, interessado no desenvolvimento econômico sob o comando político, para satisfazer imperativos ditados pelas regras sociais e estamentais do quadro administrativo, com seu componente civil e militar. Todos os Estados têm igual objeto: manter a sua integridade; mas sob esse aspecto geral, há outros, de natureza particular, como o Brasil. No outro extremo, num Estado assaz diverso, uma nação haveria a Inglaterra, que se constituirá na fiadora da liberdade política. No rigorismo da doutrina sociológica de Weber sobre o primado do irracional com técnicas racionais. 
            Ipso facto, a estranheza do corpo teórico e histórico, longamente persistente, assume proporções de fantasmagoria em virtude da mudança para uma nova ótica, nascente no tempo de Montesquieu. Ao capitalismo político sucedeu, em algumas faixas da Terra, o capitalismo moderno, racional e industrial. Na transição de uma estrutura à outra temos a passagem correspondente entre o indivíduo, que de súdito passa a cidadão, com a correspondente conversão configurada no Estado de senhor a servidor, guardando a autonomia do homem livre naquela ordem escravocrata. A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar assume o primeiro papel, enquanto dogma de direito natural ou da soberania popular, reduzindo o aparelhamento estatal ao mecanismo de garantia do indivíduo. Somente a lei, como expressão da vontade geral, limitado o Estado a  interferência previstas e mensuráveis na esfera individual, legitima as relações entre os dois setores, agora rigidamente separados, controláveis pelas leis e pelos juízes. É o que se chamou, em expressão que fez carreira no mundo jurídico e político, de Estado burguês de direito, que traduz o esquema de legitimidade do liberalismo capitalista.
            Entre os dois típicos modelos, um teria se tornado o obsoleto, o retrógrado, o anacrônico, enquanto o Estado de liberal consagraria o ideal a atingir, numa bela utopia construída apenas pela ilusão da doutrina. De outro lado, para maior desmoralização da forma antiga, o chamado progresso se combinou com o liberalismo,  enquanto as velhas nações européias, imobilizadas nos sarcófagos de suas tradições, desacertaram o passo no ritmo ascensional. Temos aí um paradoxo de consequências não intencionais: à crítica de fonte liberal se junta neste paradoxo quase o mesmo sentido, a crítica marxista. Neste caso, observa Marx, na 1ª edição de O Capital (1867), o país industrialmente desenvolvido oferece a imagem do futuro ao menos desenvolvido. Comparativamente, apressava-se em esclarecer que os países da Europa continental, inadequados ao ritmo da Inglaterra condutora do mundo, sofriam não apenas a pressão atormentadora de fora, mas as insuficiências do desenvolvimento incompleto. “Aos modernos males”, dizia aos seus interlocutores alemães, “uma série ampla de males herdados nos oprimem, emergentes da sobrevivência passiva de antiquados modos de produção, com a sequela inevitável de relações do anacronismo social e político. Nós sofremos não apenas dos vivos, mas também dos mortos. Le mort saisi le vif”, na expressão do velho Auguste Comte.
             A crítica liberal e a marxista, adverte Faoro (2012: 821), ao admitirem a realidade histórica do Estado patrimonial, com sua alma no “capitalismo politicamente orientado”, partem do pressuposto da transitoriedade do fenômeno, quer como resíduo anacrônico, quer como fase de transição. Ambas, na verdade, comparam a estátua imperfeita a um tipo ideal, este, em termos de distância histórica, de existência mais curta, de cores mais embaralhadas que a clara visão de seus ideólogos. O ponto de referência é o capitalismo moderno, tal como decantado por Adam Smith, na economia e Marx e Weber, na ciência política, são tratados os estilos divergentes como se fossem desvios, atalhos sombreados, revivescências deformadoras, vestígios evanescentes. Sobre um mundo acabado, completo, ou em via de atingir sua perfeição última e próxima, a vista mergulha no passado, para reconstruí-lo, conferindo-lhe um sentido retrospectivo, numa concepção linear da história. O passado tem, entretanto, suas próprias pautas, seu curso, não caprichoso, obra dos homens e de circunstâncias sociais.
            A realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição crível, em fase progressiva, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar. Para o que nos interessa, insistindo na tese teórica de Raymundo Faoro, o domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do chefe, junto à casa real, que se estende sobre o largo território, subordinando muitas unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume o caráter patriarcal, identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituída pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, na luta pelos cargos, numa confusão entre o público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de poderes, separando-se o fiscal do pessoal. O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças reais.  
            O patrimonialismo é a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, quando adota o mercantilismo como sua técnica de operação da economia. Daí se arma o “capitalismo politicamente orientado”, não calculável nas suas operações, enquanto uma das chaves da compreensão da historicidade do Estado português, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado nos mercados condutores numa pressão hegemônica de fora prá dentro ou do centro à periferia. Este curso histórico leva à admissão de um sistema de forças políticas, que sociólogos e historiadores relutam em reconhecer, atemorizados pelo paradoxo, em nome de premissas teóricas de vária índole. Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma cama social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores.
Não impera ainda a burocracia, a camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração, mas o estamento político. A burocracia, se comparada á máquina, é um aparelhamento neutro, pois a posição do funcionário tem a natureza de um dever, que também se coloca num sentido específico, sob o princípio do sine ira ac studio, em qualquer tipo de Estado, ou sob qualquer forma de poder. Seu domínio será compatível com a monarquia absoluta, mas pode caracterizar-se pela redução do chefe supremo a uma figura decorativa, espécie de primeiro magistrado. Não se converte o estamento político, entretanto, em governo da soberania popular, ajustando-se no máximo, à autocracia com técnicas democráticas. Na cúpula, graças ao equilíbrio ou à impotência de classes e interesses de empolgar o comando, o governo arma, sobre o equilíbrio das bases, o papel de árbitro, sem que se possa expandir na tirania aberta ou no despotismo sem medida e sem controle. Uma política econômica e financeira de teor particular, estatal e mercantilista, atua e vigia, se expande e se amplia, com sobranceria. A autonomia da esfera política, que se manifesta com objetivos próprios, organizando a nação a partir de uma unidade centralizadora, desenvolve mecanismos de controle e regulamentação específicos. O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar da administração e, dessa base estrutural, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira.
O conteúdo do Estado molda a fisionomia do chefe de governo, gerado e limitado pelo quadro que o cerca. À medida que o estamento se desaristocratiza e se burocratiza, apura-se o sistema monocrático, com o retraimento dos colégios de poder. Como realidade, e, em muitos momentos, mais como símbolo do que como realidade, o chefe provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e incentivos, distribui mercês e cargos, dele se espera que faça justiça sem atenção ás normas objetivas e impessoais. No soberano concentram-se todas as esperanças, de pobres e ricos, porque o Estado reflete como espelho o polo condutor da sociedade. O súdito quer a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores  de riqueza, na ambiguidade essencial ao tipo de domínio. Não se submete o chefe à aristocracia territorial, ao senhor de terras, à burguesia, governando, em nome de uma camada, diretamente sobre a nação. Ele fala ao povo, não aos intermediários por este criados, do palácio à sociedade, em planos separados. Ele é o pai do povo, não como mito carismático, nem como herói, nem como governo constitucional e legal, mas o bom príncipe - dom João I, dom Pedro II ou Getúlio Vargas -, empreendendo, em certas circunstâncias, uma política social de bem-estar, para assegurar a adesão das massas.   
O estamento, implantado na realidade estatal do patrimonialismo, não se confunde com a elite, ou a chamada classe política, mesmo quando esta se esclerosa incapaz de renovar-se. A minoria governa sempre, em todos os tempos, em todos os sistemas políticos. A astúcia, a habilidade, a sagaz manipulação de documentos são qualidades psicológicas ajustadas ao comando elitista, enquanto nos estamentos prevalece a decisão de utilizar a violência, a direção voltada à eficiência, o cálculo nas intervenções sobre o mecanismo jurídico. A elite das democracias não pode se consolidar num estrato privilegiado, mutável nas pessoas, mas fechado estruturalmente. As instituições, normativamente operantes, trituram suas veleidades autonomizadoras, veleidades sempre discerníveis na burocracia. No patrimonialismo, no momento da emergência das classes, procuram estas nacionalizar o poder, apropria-lo, para que dilua na elite. O conflito sociológico está presente nesse tipo de estrutura. A elite política do patrimonialismo é o estamento, estrato social, com efetivo comando político. Se a linha divisória é impingida com firmeza, em relação ás elites, na sua conexão com o sistema político, nem sempre será possível evitar o lábil, ambíguo, equívoco das conjunções entre burocracia e controle popular, sobretudo nos países de formação nacional recente.  
A dinâmica do mercado aberto, congenial ao liberalismo, se altera em direção ao mercado administrativo, com demandas políticas seletivas, de caráter militar e político. A emergência de tais ritmos ou veleidades tecnocráticas opera, no campo internacional, para enfraquecer a força material de atração do imã do capitalismo liberal, acelerando a convicção dos caminhos próprios de desenvolvimento, excêntricos ao modelo clássico, que reduz os tipos universais divergentes a estágios de um padrão único. O estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta social ante a mudança interna e no ajustamento à ordem imperativa internacional. Gravitando em órbita própria não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo do antagonismo e complementaridade das classes sociais. Em lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica a autoritariamente as reservas para seus quadros, cooptando-os, com a marca de seu cunho tradicional. O brasileiro que se distingue há de ter prestado sua colaboração ao aparelho estatal, não na empresa particular, no êxito dos negócios, nas contribuições à cultura, mas numa ética do bom servidor, com carreira administrativa e curriculum vitae aprovada de cima para baixo. O capitalismo clássico, de caráter puritano e anglo-americano, formado por grupos ligados a diferentes ramos do protestantismo, baseia-se em valores de todo estranho ao curso da estrutura  de seiscentos anos, deslumbrada, com estilos diferentes, pelo golpe militar das caravelas na Índia. A nação e o Estado, nessa dissonância de ecos profundos, cindem-se em realidades diversas, estranhas, opostas, desconhecidas.

                  O divórcio dos mundos estanques, ao tempo que marginaliza a consciência do dirigente, criando um conflito íntimo, em um de seus mais expressivos representantes traduziu na fórmula do sentimento brasileiro e a imaginação europeia, impõe, em outro plano, o cuidado de construir a própria realidade. Construir com a lei bem elaborada num momento, e noutro, vítima de pressupostos diversos com o planejamento, tão decorativo, como a ordenança meticulosa. A legalidade teórica apresenta, ressalvada a elegância da frase, conteúdo diferente dos costumes, da tradição e das necessidades dos destinatários das normas. A vida social será antecipada pelas reformas legislativas, esteticamente sedutoras, assim como a atividade econômica será criada a partir do esquema, do papel para a realidade. Caminho este, antagônico ao pragmatismo político, ao florescimento espontâneo da árvore. A incolumidade do contexto de poder não significa que ele impeça a mudança social, quer no acomodamento ao internacional, quer no desenvolvimento interno. A permanência da estrutura exige o movimento, a incorporação contínua de contribuições externas, adquiridas enquanto aspecto representado pela abstração, no sentido que Marx emprega sobre o antiintelectualismo, ou no contato social com as civilizações desenvolvidas. 
            O estamento forma o elo vinculador com o mundo externo, que pressiona pelo domínio de seus padrões, incorporando as novas forças sociais. Esse papel, reservado nos momentos de eclipse do sistema às elites, será desempenhado, em outras estruturas próximas ao mundo capitalista. Na peculiaridade histórica brasileira, a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal. Ao receber o impacto de novas forças sociais, a categoria estamental as amacia, domestica, embotando-lhes a agressividade transformadora, para incorporá-las a valores próprios, muitas vezes mediante a adoção de uma ideologia diversa, se compatível com o esquema de domínio. A mudança econômico-social, possível e ajustável à estrutura política, opera-se até esgotar-se o ânimo criador que inspirou a ascensão da dinastia de Avis no século XIV. O centro do mundo desloca-se, na consciência dos atores, para o pequeno palco lusitano, mas poderoso com a utilização da nau, com um mundo desconhecido aos seus pés. Este foi seu momento criador, envolvendo todos os quadrantes numa visão egocêntrica, suscitando imitadores e notáveis epígonos. De tal ânimo, já sombreado da saudade desesperada, infundindo pela tentativa que acabaria em pó e fumaça, vibra o poema: Os Lusíadas
 É uma obra de poesia épica do escritor português Luís Vaz de Camões, considerada a epopeia portuguesa por excelência. Provavelmente concluída em 1556, foi publicada pela primeira vez em 1572 no período literário do Humanismo, três anos após o regresso do autor do Oriente. A obra foi impressa pela primeira vez, em 1572 em Lisboa, tendo sido realizadas 34 obras que se encontram espalhadas por três continentes. O poema épico mais genuíno é o canto da construção duma nação com a ajuda de Deus ou dos deuses. Os Lusíadas, como já a Eneida, é uma epopeia moderna, em que o maravilhoso não passa dum artifício necessário, mas só literário. A fé única no Deus cristão é defendida por toda a obra. O poema pode ser lido numa perspectiva que já era antiga, mas a que factos recentes haviam dado acrescida atualidade, a da cruzada contra o mouro. As lutas no Oriente seriam a continuação das que já se haviam travado em Portugal e no Norte de África, dominando ou abatendo o poder do Islão. O próprio movimento civilizatório dos descobrimentos surgiu numa lógica de combate ao poderoso Império Otomano que ameaçava a Europa cristã, incapaz de vencer o inimigo em guerra aberta. Os objetivos passavam por fazer uma concorrência comercial aos muçulmanos, ao mesmo tempo ganhando proveitos e debilitando a economia dos rivais. Mas também se ambicionava encontrar aliados dos europeus nas novas terras, que poderiam ser eles mesmos cristãos, ou passíveis de conversão. Cada um dos tipos de discurso neste poema evidencia particularidades estilísticas concretas. Dependendo do assunto que tratam, no âmbito da sociedade ou política, o estilo literário pode ser heróico e exaltado, empolgante, lamentoso e melancólico, humorístico, admirador.  
Bibliografia geral consultada.
SANTOS, Milton,  A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996; BRAGA, Ubiracy de Souza, “De las Carabellas a los Autobuses Espaciales: La Trayectoria de la Información en el Capitalismo”. In: Info 97. Ponencias. Cuba: Universidad La Habana, 1997; CAMINHA, Pero Vaz de, A Carta de Pero Vaz de Caminha. Edição quadrilíngue e fac-símiles integrantes do Ciclo Comemorações dos 500 anos do Achamento do Brasil. Portugal: Editor Mar de Letras, 2000; CHAUÍ, Marilena, Brasil – Mito Fundador e Sociedade Autoritária. 1ª edição. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003; BRAGA, Fabio William Lopes, A Carta de Caminha e o Conceito de Literatura na Historiografia Literária Brasileira. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2009; DETIENNE, Marcel. L’Identité Nationale, une Énigme. Paris: Éditions Gallimard, 2010; FAORO, Raymundo, Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. 5ª edição. Prefácio de Gabriel Cohn. São Paulo: Editor Globo, 2012; VIEIRA, Andresa Cristina Corga, Por Terras de Vera Cruz, Os Olhares do Experenciado: Caminha, Mestre João e Piloto Anónimo. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Universidade Aberta, 2013; JACQUES, Tatiana de Alencar, O Descobrimento do Brasil (1934): Villa-Lobos e Humberto Mauro nas Dobras do Tempo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2014; BERNARDO, André, “Os Bastidores da Viagem de 44 dias que levou Pedro Álvares Cabral ao Brasil”. Disponível em: https://www.bbc.com/10/03/2020PAULO, Thiago Cardoso, As Implicações Filosófico-científicas da Relação entre Descoberta do Novo Mundo e Revolução Científica. Tese de Doutorado.  Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2020; entre outros.

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