domingo, 2 de junho de 2019

Graciliano Ramos - Literatura & Sofrimento Relacional da Angústia.


                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga

                                        Acho medonho alguém viver sem paixões”. Graciliano Ramos
  
                       
            Graciliano Ramos nasceu em Quebrangulo, município do estado de Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Primeiro de dezesseis irmãos viveu os primeiros anos em diversas cidades nordestinas, como Buíque, Pernambuco, Viçosa e Maceió. Terminado o 2° grau em Maceió, seguiu para o Rio de Janeiro, onde passou um tempo trabalhando no ofício de jornalista. Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta o convívio com o pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios (Xucurus), Alagoas. Entre 1928 e 1930 a prefeitura foi exercida pelo escritor Graciliano Ramos, que etnograficamente incluiu o cotidiano da cidade em seu primeiro romance, Caetés (1933). Casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos. Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios pelo extinto Partido Democrata (cf. Lima, 1971; Ramos, 1992). Sua gestão tornou-se reconhecida regionalmente pela vontade política e zelo com o dinheiro público. Reconhecido pela sisudez, sua candidatura foi resultado de uma articulação política envolvendo os chefes do poder local. Eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, toma posse em 1928, mas renuncia em 10 de abril de 1930.  
            No Nordeste o primeiro transporte urbano foi o bonde de burros, numa época em que a indústria automobilística experimentava o sistema ideológico fordista, sendo poucas as famílias, que dispunham de automóvel, importados da França, Inglaterra, Itália, Alemanha e Estados Unidos. O bonde de burro era um transporte de classe média, particularmente em Maceió, cidade nascida do vilarejo de um pequeno engenho, o Massayo, com áreas urbanas reduzidas, apesar de seu progresso crescente e densidade demográfica. O registro mais antigo sobre Maceió é de 25 de novembro de 1611, quando foi lavrada a escritura em que o alcaide-mor de Santa Maria Madalena, Diogo Soares, doa uma sesmaria a Manuel Antônio Duro medindo 800 braças e se estendendo até encontrar o Rio Mundaú. O beneficiário já era morador da Pajuçara, onde tinha uma “Casa de telha” e, pelos critérios adotados pela corte portuguesa, deve ter sido pessoa de posses para explorar e investir na posse da sesmaria (sexta parte).
 

           
O primeiro núcleo urbano surge no início do século XVIII a partir do Engenho Massayo, do qual não se sabe quem era o seu proprietário e nem a sua exata localização topográfica, que pode ter sido na atual Praça D. Pedro II ou em uma área mais próxima do Riacho Massayo, o sofrido Salgadinho. A população pobre que ali se estabeleceu andava a pé, só apanhando o bonde de burros em casos de extrema necessidade, ou mesmo por motivo de doença. Nas tardes de domingos e feriados os bondes de burros tinham grande movimentação. Os cidadãos respeitáveis, as senhoras da sociedade, as melindrosas e almofadinhas, que constituíam a geração de seu tempo, na primeira e segunda década do século XIX, utilizavam o bonde para ligeiros passeios, e claro, para ir e vir das matinês dos cinemas Floriano e Capitólio que iniciavam o sistema sonoro com a Melodia da Broadway e a Marcha dos Granadeiros. O Odeon, Delícia e o Ideal continuavam a exibir os filmes mudos, decerto, com orquestras de pianos e violinos tocando nas belas salas de espera dos cinemas. Depois, passando às salas de projeções para execução de partituras musicais, mas adaptadas ao enredo dos filmes em exibição. As famílias utilizavam o bonde de burros para comparecer às procissões, atos cívicos, comícios políticos e encontros nas casas de chá, sorveterias e restaurantes.
            A cidade vivia um período atribulado: o prefeito anterior, Lauro de Almeida Lima, fora assassinado a tiros um ano antes, após desentender-se com um fiscal de tributos. Este, por sua vez, foi fuzilado em seguida pelo delegado de polícia. O banho de sangue traumatizou a população urbana da cidade. O vice-prefeito Manuel Sampaio Luz cumpriu o resto do mandato. Com a proximidade das eleições, os políticos começaram a articulação para escolher o membro sucessor tentando dissipar o clima de comunicação político sombrio. Era um ambiente inóspito, típico da República das oligarquias quando os partidos interferiam pouco nas eleições. Contudo, o que demandava valor de troca era a representação dos caciques políticos, geralmente fazendeiros. Em Palmeira dos Índios, a política das últimas quatro décadas era dominada pela família Cavalcanti, aliados do governador alagoano Pedro da Costa Rego do Partido Democrata. Após negociações, a cúpula indicou Graciliano Ramos, comerciante que beirava os 35 anos, com fama de honesto, culto, austero e, principalmente, amigo dos caciques do partido. Aliado ao bom trânsito político havia sido bem sucedido como presidente da Junta Escolar na gestão anterior, uma espécie de secretário municipal da educação. Chamado para uma reunião, Graciliano reagiu bem ao aprovar o projeto de torná-lo prefeito.    
            Pedro da Costa Rego aprendeu as primeiras letras e cursou o primário com sua tia, Ana Oliveira e Silva, que era proprietária de uma escola particular. Em Maceió, frequentou o Liceu Alagoano até a morte do pai em 1897. Após esse curto período em Maceió, Costa Rego e seu irmão Rosalvo foram morar no Rio de Janeiro, na casa do tio e jornalista Antônio José de Oliveira e Silva, que era redator da Gazeta de Notícias publicado no Rio de Janeiro, circulou entre agosto de 1875 e 1942.  Após sete anos de estudos no Mosteiro de São Bento, localizado no Morro de São Bento, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. É um dos principais monumentos de arte colonial da cidade e do país. Costa Rego concluiu o curso ginasial em 1906. Contando com a ajuda do tio, Costa Rego começou a trabalhar no jornalismo. Cumpria uma tradição da família que já tinha na profissão os tios Pedro Amâncio da Costa Rego e Oliveira e Silva, os primos Zadir Índio, Otávio Brandão, Luiz Viveiros Costa (Lucas Viveiros), Rodolpho, Paulo e Pedro Motta Lima. No Correio da Manhã, teve um papel expressivo de trabalho como revisor, repórter-policial, cronista parlamentar e redator-chefe. Com o pseudônimo de Bárbaro Heliodoro, publica diariamente na coluna social: “Para ler no bonde”. O reconhecimento dos leitores o colocou dentre os principais jornalistas do país.

 
            Costa Rego chegou à política navegando a onda das “Salvações” iniciadas pelo marechal Hermes da Fonseca na presidência da República. O objetivo era o de enfraquecer politicamente oligarquias que insistiam em permanecer no poder durante a Primeira República. Essa política em Alagoas conduziu o coronel Clodoaldo da Fonseca ao poder. Era primo e cunhado do presidente da República e chefe do seu Gabinete Militar, Costa Rego, então com 23 anos, foi convocado para ser o secretário de Agricultura. Desentendeu-se com o governador, pediu exoneração do cargo. Voltou a trabalhar no Correio da Manhã, mas não se afastou da política. Com o apoio de Clodoaldo da Fonseca foi eleito deputado federal em Alagoas pelo Partido Democrata nas eleições de 30 de janeiro de 1915. Foi reeleito deputado federal por quatro períodos entre 1915-1928. Renunciou ao cargo em 1929 após ter sido eleito senador na vaga de Batista Acioly. Foi reeleito senador por mais duas legislaturas. Nas duas perdeu os mandatos por força da chamada Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1937.
Graciliano Ramos viveu em Maceió entre os anos 1930-36, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública. Em 1934 havia publicado São Bernardo, mas antes de publicar o próximo livro, foi preso com a chamada “Intentona Comunista” de 1935, uma conspiração de natureza político-militar de protesto político-institucional contra um governo autoritário, dentro do quadro dos movimentos tenentistas que se estendem no Brasil na década de 1920. Articularam-se estas reivindicações, à ideia de uma revolução “nacional-popular” contra as oligarquias, a abolição da dívida externa, a reforma agrária e o estabelecimento de um governo de base popular.  Esta confluência de movimento social corporificou-se na pessoa de seu principal líder, Luís Carlos Prestes, capitão do exército e líder tenentista comunista. Como dirigente organizou o levante tendo como estratégia a guerra de movimento da Internacional Comunista, e composta pela alemã Olga Benário, além do argentino Rodolfo Ghioldi, o alemão Arthur Ernest Ewert, Ranieri Gonzalez e  outros militantes ligados a elite do Comitê Executivo da Internacional Comunista.
            Com ajuda de amigos letrados, entre os quais José Lins do Rego, que, ao lado de Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, figuram como um dos romancistas regionalistas mais prestigiosos da literatura nacional consegue publicar Angústia (1936), considerada por muitos analistas críticos como sua melhor obra.  Graciliano Ramos, ao subjugar a personagem Luís da Silva à crueldade de uma evocação que apenas acentua seu desespero, indica pistas para a recorrência sociológica temática cujas personagens são marcadas pela amargura e pela miséria, ipso facto, para a sua própria angustia. Em 1938 publicou Vidas Secas. Em seguida estabeleceu-se no Rio de Janeiro, como inspetor federal de ensino. Em 1945 ingressou no histórico Partido Comunista que na década de 1960 dividiu-se entre PCB e PC do B, sob a liderança do marxista Luís Carlos Prestes. Nos anos seguintes, Graciliano realizaria viagens a países europeus, com a segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos, inferindo relatos descritos no livro: Viagem (1954). Ainda em 1945, publicou Infância, relato autobiográfico. Adoeceu gravemente em 1952. No começo de 1953 foi internado,  falecendo em 20 de março de 1953, aos 60 anos, vítima de câncer no pulmão contraído pelo tabagismo.
1930 - Maceió a Coluna vindo de Recife.
Quando Antônio Candido analisou a obra de Graciliano Ramos, em 1945, pouco havia além das resenhas surgidas por ocasião da edição ou eventual reedição dos livros, num tempo em que a polarização ideológica entre fascistas e comunistas dividia os intelectuais de forma radical. É considerado um dos grandes expoentes da crítica literária brasileira pelo fato de suas obras terem se tornado base essencial para o debate da formação literária nacional associada a uma construção sociológica e ao humanismo. De método dialético, comparatista e sociológico, antecipou a interdisciplinaridade para entender a literatura como expressão da cultura brasileira. Como militante político, foi um dos vários precursores do socialismo no Brasil. O cuidado de empreender uma leitura do conjunto da obra, como é muito compreensível, dada a sua novidade social, ainda estava por ser realizado. Somente em 1947, com o lançamento conjunto pelo editor José Olympio dos cinco volumes até ali escritos pelo angustiado alagoano – Caetés é o primeiro livro do escritor publicado em 1933; S. Bernardo, publicado em 1934, está situado na segunda etapa do modernismo brasileiro, quando narra a história do grande amor desencontrado de Paulo Honório por Madalena. A obra consiste na história social como representação da sociologia do homem simples, mas ambicioso que acaba por se transformar num poderoso fazendeiro do sertão de Alagoas.
Casa-se com Madalena para conseguir um herdeiro, mas incapaz de entender a forma humanitária de Madalena ver o mundo, ele tenta anulá-la com seu particularismo. É o que é decorrente per si em Angústia (1936), quando Graciliano Ramos estava preso no governo da fase autoritária de Getúlio Vargas (cf. Silva, 2014; Vale, 2016) e solidarizou com amigos para sua publicação. Os liberais se organizaram para constituir um movimento social amplo em favor das eleições livres, direito ao voto, da liberdade de organização dos partidos e de expressão da democracia. É precisamente a retórica discursiva antiliberal que fundamentou o papel atribuído ao intelectual (cf. Costa, 2015). Estava em curso um processo social de hegemonia política em que o Estado se transformava no “pai da intelectualidade”, ao se identificar com as forças sociais e políticas. O intelectual deveria se “converter” politicamente em seu fiel colaborador. Assim, ele passaria a ter um papel e dever para com a ideia de nacionalidade, incluindo o escritor Graciliano Ramos que não hesitou, assim, em unir um protesto social sem concessões com uma técnica dostoievskiana de representação dos subterrâneos da alma.  
A obra apresenta o narrador, um funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida que acaba se envolvendo afetivamente com sua vizinha. Com traços existencialistas, mistura fatos do passado e do presente, narrando num ritmo frenético como um grande monólogo interior. Vidas Secas é seu quarto romance, escrito entre 1937 e 1938, de título original: Um Mundo Coberto de Penas, mas que o editor José Olympio e seu irmão Daniel, sabiamente convenceram-no a mudar o título um pouco longo para Vidas Secas. E deu certo. O livro vendeu 10 milhões de exemplares e foi traduzido para três idiomas. A obra é inspirada em muitas histórias de vida que Graciliano Ramos acompanhou na infância sobre a vida de retirantes. Nesta narrativa, o pai de família Fabiano e a cadela Baleia são considerados personagens mais famosos no âmbito da literatura brasileira. Sobre a narrativa no livro: Infância e Insônia – é tema que Álvaro Lins fez análise comparada daquela obra, e surgiria um ensaio mais longo, com pretensões teóricas mais eloquentes e avançadas, de Floriano Gonçalves, publicado em Caetés (1933), como apresentação à obra reunida. Os textos de Antônio Candido, publicados em jornal quando do lançamento de Infância em 1945, que, acrescidos e refundidos, viriam a compor o ensaio Ficção e Confissão (1992), são pioneiros em traduzir e expressar os motivos centrais da obra de Graciliano Ramos. Além disso, pertencem ao que o brilhante escritor reconhece ser obra basilar pelo seu engajamento político afetivo, com a tendência ideal de irradiar o social com a liberdade do leitor.
Não há razão para crer que só os intelectuais tenham compleição imaginária definida. Ocorre em seu caso uma relação imaginária de força produtiva reconhecida, cujo relacionamento com o processo histórico e social é objeto de debate público. Mas, sem dúvida, impressiona-nos a fixação que Graciliano Ramos tem pela morte. – “O conto sensacional de seu Ramalho era o seguinte. Um moleque de bagaceira tinha arrancado os tampos da filha do senhor de engenho. Sabendo a patifaria, o senhor de engenho mandara amarrar o cabra e à boca da noite começara a furá-lo devagar, com ponta de faca. De madrugada o paciente ainda bulia, mas todo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e mexeram-lhes pela garganta, a punhal. Em seguida tiraram-lhe os beiços. E afinal abriram-lhe a veia do pescoço, porque vinha amanhecendo e era impossível continuar a tortura. No dia seguinte reproduziria o mesmo caso: o moleque morreria lentamente, sem beiços, a boca enchumaçada, por causa dos gritos. Fazia pausas para recordar os fatos com segurança, batia na testa, interrogava-se a cada instante e acusava-se quando avançava uma informação inverídica: - 1910. Minto, 1911, Manoel? As datas produziam-lhe aflição. Nunca pode fixar-se em nenhuma.
Nunca pode saber com precisão a data da morte do moleque. Isto não tinha importância: não guardo números, e a angustiada confusão de seu Ramalho irritava-me. Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos de agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho. – ai, ai! Suspirou seu Ramalho. Vou chegando ao serviço. Ergueu-se como se levantasse da cadeira um peso enorme. E, descontente, arfando, um ombro alto, outro baixo, o cachimbo entre os dentes, lá se foi para a usina elétrica. Rangia os dentes e dizia baixinho: - Que estupidez! Que estupidez! Mas a figura deitada continuava a escabujar no chão. Agora não era preta nem estava nua. Pouco a pouco ia embranquecendo e engordando, o sangue estancava, as feridas saravam. E o homem arquejava no calçamento, os olhos abotoados, a cara roxa, os dentes à mostra, a língua fora da boca.                       
Alguns dias achava-me no banheiro, nu, fumando, fantasiando maluqueiras, o que sempre me acontece. Fico assim duas horas, sentado no cimento. Tomo uma xícara de café às seis horas e entro no banheiro. Saio às oito, depois das oito. Visto-me à pressa e corro para a repartição. Enquanto estou fumando, nu, as pernas estiradas, dão-se grandes revoluções na minha vida. Faço um livro, livro notável, um romance. Os jornais gritam, uns me atacam, outros e defendem. O diretor olha-me com raiva, mas sei perfeitamente que aquilo é ciúme e não me incomodo. Vou crescer muito. Quando o homem me repreender por causa da informação errada, compreenderei que se zanga porque o meu livro é comentado nas cidades grandes. E ouvirei as censuras resignado. Um sujeito me dirá: - Meus parabéns, seu Silva. O senhor escreveu uma obra excelente. Está aqui a opinião dos críticos. De ordinário fico no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas umas das outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luís da Silva. O banheiro na casa de seu Ramalho é junto, separado do meu por uma porta estreita. Sentado no cimento, brincando com a formiga ou pensando no livro, distingo as pessoas que se banham lá. Seu Ramalho chega tossindo, escarra e bate a porta com força. O banho é um conjunto de gestos, palavras e formalidades,  imbuídos de um valor simbólico, usualmente de forma prescrita e codificada.
Molha-se com três baldes de água e nunca se esfrega. Bate a porta de novo, pronto. Aquilo dura um minuto. D. Amélia vem decentemente, lava-se docemente e canta baixinho: - Bendito, louvado seja. Marina entra com um estouvamento ruidoso. Entrava. Agora está reservada e silenciosa, mas o ano passado surgia como um pé de vento e despia-se às arrancadas, falando alto. Se os botões não sabiam logo das casas, dava um repelão na roupa e largava uma praga: - Com os diabos. Notavam-se todas as minudências do banho comprido. Gastava dez minutos escovando os dentes. Pancadas de água no cimento e o chiar da escova, interrompido por palavras soltas, que não tinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha a respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada longa que me tornava Marina preciosa. Mesmo depois que ela brigou comigo, nunca deixei de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada. Quando Marina se desnudou junto a mim, não experimentei prazer muito grande. Aquilo veio de supetão, atordoou-me. E a minha amiga opôs uma resistência desarrazoada: cerrava as coxas, curvava-se, cobria os peitos com as mãos, e não havia meio de estar quieta. Arrancava os botões, praguejava, escovava os dentes, mijava. Abria-se a torneira como repetição de um ritual: rumor de água, uns gritinhos, resfolegar de animal novo. A torneira se fechava – e era uma esfregação interminável.
Marina acabara-se numa resignação estúpida, entregara-se a Deus; dona Adélia não responsabilizara ninguém. Julião Tavares era como viga que tomba do andaime e racha a cabeça do transeunte. Aproveitando a solidão seduzira Marina. E azulara. Mostrava-se raramente, em visitas rápidas, com certeza receando que a moça cometesse um desatino e lhe atrapalhasse a vida. D. Adélia estava justificada: - “A senhora não nasceu assim. Era forte e bonita. Passou de carrapeta a bola de bilhar. A senhora é um pedaço de pano sujo”. Marina tinha sido julgada e absolvida. Provavelmente me deixei influenciar por leituras românticas. Esqueci que ela um ano antes invejava as meias de seda de dona Mercedes. Tinha tudo: meias, vestidos, um filho no bucho, um filho que sairia gordo, bochechudo e safado, como o pai, como o avô, o Tavares dos Tavares & Cia., uns ratos. Marina era instrumento e merecia compaixão. Julião Tavares era também, mas não senti pena dele. Senti foi o ódio que sempre me inspirou, agora aumentando. Necessário que ele morresse cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue.           
Depois que Julião Tavares tinha deixado de frequentar a casa vizinha, qualquer ausência de Marina me trazia a suspeita de que os dois iam encontrar-se. Tomava o chapéu e acompanhava-a, escondendo-me, encostando-me às paredes, recenado que a espionagem fosse descoberta. Evidentemente as relações dos dois estavam reatadas. O homem gordo ia virar uma esquina e dar o braço à amante, leva-la a uma casa de recurso. A evidência esmorecia. Marina andava como as outras mulheres, olhava as vitrinas, entrava  nas lojas. Ia espera-la no primeiro poste cintado de branco. Minutos depois a perseguição recomeçava até que ela se recolhia. Sentia-me a um tempo aliviado e lograda. Era claro que eles iam juntar-se em qualquer parte. Acusava-me de não ter prestado bastante atenção à rua. Com certeza tinha-me escapado uma porta meio aberta, uma escada sombria onde aquele sem-vergonha se atocaiava. O meu desejo era voltar, examinar os arredores, as esquinas. Estava certo de que, enquanto eu vigiava Marina, Julião Tavares me vigiava de longe, parando, escondendo-se. O meu desejo era dar um salto, passar uma daquelas voltas no pescoço do homem. O doutor chefe de polícia estava ali tomando café, de cabeça baixa, preocupado com alguma encrenca. Que é que me podia acontecer? A vida na prisão não seria pior não seria pior que a que eu tinha. 
Medo da opinião pública? Não existe opinião pública: há pedaços de opinião, contraditórios. Uns deles estariam de meu lado se eu matasse Julião Tavares, outros estariam contra mim. No júri metade dos juízes de fato lançaria na urna a bola branca, metade lançaria a bola preta. Qualquer ato que eu praticasse agitaria esses retalhos de opinião. Inútil esperar unanimidade. Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom, e o que é ruim, tão embotado vivemos. Eu não podia temer a opinião pública. E talvez temesse. Com certeza temia tudo isso. Era um medo antigo, medo que estava no sangue e em esfriava os dedos trêmulos e suados. A corda áspera ia-se amaciando por causa do suor das minhas mãos. E as mãos tremiam. O chicote do feitor num avô negro, há duzentos anos, a emboscada dos brancos a ouros avô, caboclo, em tempo mais remoto... Estudava-me ao espelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiços franzidos, dentes acavalados, os olhos sem brilho, a testa enrugada. Procurava vestígios de duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a vida amarga e me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolando e cheio de sonhos. 
Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Os livros enormes de lombos de couro e folhas rotas, os ofícios, a campainha do telefone e o tique-taque das máquinas de escrever me arrastavam para longe da terra. O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo não tem aqui nenhuma significação. Tudo é diferente. Respiramos um ar onde voam partículas de papel e de tinta e trabalhamos quase às escutas. A voz do diretor é doce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário comete uma falta, o diretor mostra o parágrafo e ao artigo adequado ao caso. Sucede que o funcionário se defende apontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e descontenta-se: compreende que o serviço não vai bem, diante do regulamento, admira e receia o empregado que soube encapar-se nele. Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maquinismo parasse, não daríamos por isto: continuaríamos com o bico da pena sobre folha molhada e rota, o cigarro apagado entre os dedos amarelos. O ambiente era impróprio à vida intensa que elas tinham mundo afora. Logo que se afastava da repartição tudo mudava.
Tropeçando no paralelepípedo, via meio encadeado pelo sol, os transeuntes juntarem e apartarem-se. Havia intenções reservadas nos homens que se acercavam das mulheres, havia promessas nos olhos das mulheres que se desviavam dos homens. Automóveis abertos exibiam casais, automóveis fechados passavam rápidos e óbvios:  adivinhava neles saias machucadas, gemidos, cheiros excitantes. Todos os veículos transportavam pecados. A cidade estava em cio, era como o chiqueiro do velho Trajano. Os relógios batiam, como alguém que na hora que você mais precisa, não te ajuda... Com certeza os machos olhavam os mostradores, pensando em entrevistas. Mas não se via a gente. Apenas maloqueiros cochilando, alguns mendigos, crianças barrigudas e amarelas. O resto devia estar no trabalho: os homens nas oficinas, nos estribos dos bondes da Nordeste, nos quartéis, em todos os infernos que há por aí; as mulheres lavando roupa, amando por dinheiro, preparando a comida ruim e insuficiente. Os filhos roídos pelos vermes, vagabundos mais tarde, dormiriam ao meio-dia nas portas das bodegas? Muitos agora tiritavam, batendo os dentes como porcos caititus, na maleita que a lama da lagoa oferece aos pobres. – “Proletários, uni-vos”.    
Bibliografia geral consultada.

ARAUJO, Bruno Rodrigo Tavares, Rebeldia com Causa: A Trajetória Política e Intelectual de Antônio Bernardo Canellas (1916-1920). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2015; COSTA, Arrisete Cleide Lemos, Maceió Medúsica: Uma Interpretação Histórica das Imagens da Diáspora de Intelectuais Alagoanos na Literatura - 1930-1940. Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas, 2015; DANTAS, Mariana Albuquerque, Dimensões da Participação Política Indígena na Formação do Estado Nacional Brasileiro: Revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese de Doutorado. Centro de Estudos Gerais. Programa de Pós-Graduação em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2015; VALE, Fabiano Ferreira Costa, Angústia, de Graciliano Ramos: Uma Narrativa de Tempos Sombrios. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Literatura. Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília:  Universidade de Brasília, 2016; SOUZA, Bruno Henrique Alvarenga, A Literatura Menor de Graciliano Ramos: Uma Cartografia da Infância. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2017; BARBOSA, Felipe da Silva, “Apontamentos para uma História da Historiografia de Alagoas”. In: Caeté. Revista de Ciências Humanas, vol. 1, nº 2, 2019; SILVA, João Paulo Omena, Entre o Soar dos Sinos e o Apito do Trem: Modos de Pensar o Museu Xucurus de Palmeira dos Índios/AL. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2017; MENDONÇA, Wellington Pascal de, A Consagração de Graciliano Ramos. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018; REIS, Diana Rodrigues, Vidas Secas, de Graciliano Ramos à Luz do Pós-Colonialismo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Nacional: Universidade Federal do Tocantins, 2019; entre outros.

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