sexta-feira, 14 de junho de 2019

Alexanderplatz - Narrativas & Vidas Nuas em Berlim.


                                                     Giuliane de Alencar e Ubiracy de Souza Braga

                                       Cabe ao cidadão não deixar de falar as coisas”. Günter Grass

                                  
            Alexanderplatz é uma das mais reconhecidas e provavelmente maior praça de Berlim. Já serviu de palco para protestos e cenas de diversos filmes, entre eles: “Good Bye Lenin”, dirigido por Wolfgang Becker (2003) e “A Supremacia Bourne”, dirigido por Paul Greengrass (2004). Originalmente no local havia uma feira de gado que se chamava Ochsen Markt ou Ochsenplatz. Em novembro de 1805, recebeu seu nome numa homenagem ao czar russo Alexander I que havia visitado a cidade em outubro daquele ano. Foi o Imperador da Rússia de 1801 até sua morte, em 1825, também sendo o primeiro russo Rei da Polônia e Grão-Duque da Finlândia. Era filho do imperador Paulo I e Sofia Doroteia de Württemberg, ascendendo ao trono após o assassinato do pai. A praça é chamada pelos moradores simplesmente devido à sua localização perto da Alexanderplatz. Mas a torre é apelidada de Alex, especialmente por visitantes de Berlim. Com a construção da estação de trem em 1882, o Mercado Central em 1886 e a loja de departamentos Tietz, torna-se um centro comercial. É, uma grande praça que funciona como terminal de transportes públicos no centro de Berlim, próximo do rio Spree e do Berliner Dom. É considerado o centro de Berlim desde a Idade Média. Nela começaram os protestos que dinamizaram a queda do Muro de Berlim em 1989.
            Embora no final da guerra a zona tenha ficado completamente destruída pelos bombardeios, durante as três décadas em que Berlim esteve dividida, Alexanderplatz representou o centro comunista Oriental. Entretanto, nessa região, como o rio Spree pertencia à Alemanha Oriental, havia apenas a barreira interna e Faixa da Morte, seguida do rio também vigiado. Na outra margem do rio Spree encontra-se o bairro de Kreuzberg. Após a queda do muro de Berlim (cf. Bobbio, 1990), o artista Thierry Noir, reconhecido “por ser o primeiro a usar o muro como grande tela, só que do lado ocidental, inicia uma ação de pintura no lado oriental do muro”. Como parte do plano para reformar a cidade, a República Democrática Alemã ampliou a Alexanderplatz e fez dela uma zona urbana para uso exclusivo destes pedestres. Para demonstrar o poder cotidianamente/persuasivo daquele governo, em 1969, levantaram a Torre de Televisão (“Berliner Fernsehturm”), que atualmente continua sendo uma das edificações mais altas da Europa. O acontecimento mais importante ocorrido na Alexanderplatz foram os protestos sociais de 4 de novembro de 1989. Nesse dia, meio milhão de pessoas se manifestaram pela unidade da zona com o governo comunista. Cinco dias depois, em 9 de novembro, o governo anunciou a liberdade para atravessar o Muro de Berlim.


                     
            Por mais de 28 anos, o Muro de Berlim foi o símbolo da divisão das duas Alemanhas. A fortaleza se estendia por 155 quilômetros e separava Berlim Ocidental de Berlim Oriental. Muito maior era a fronteira interna alemã, isto é, entre a República Federal da Alemanha (RFA) e a República Democrática Alemã (RDA), de regime comunista. Ela somava 1400 km, indo da baía de Lübeck, no norte, até Hof, no sul, na fronteira com a antiga Tchecoslováquia. Somente na região metropolitana de Berlim, o Muro tinha mais de 43 quilômetros de comprimento. Ao longo de seu percurso na cidade, ele interrompia oito linhas de trens urbanos, quatro de metrô e 193 ruas e avenidas. Em sua extensão, o “gigante de concreto” atravessava 24 quilômetros de rios e cruzava 30 km de bosques. A fronteira de Berlim, cujas instalações incluíam o muro, era controlada 24 horas por dia. Soldados armados, em mais de 300 torres de observação, vigiavam constantemente para evitar fugas a Berlim Ocidental. A área da fronteira tinha 100 metros de largura, com diversos tipos de obstáculos. Esse território era reconhecido como “Faixa da Morte”. Muitos tentaram atravessar o muro apesar do perigo de vida. Nos 28 anos do Muro erigido sob a vigilância panotípica, ou seja, um mecanismo arquitetural, utilizado para o domínio da distribuição de corpos em diversificadas superfícies, destacadamente entre prisões, manicômios, escolas, fábricas, houve em torno de 5075 fugas humanas bem-sucedidas. Os estratagemas usados foram diversos desde túneis através da cidade, veículos que passassem debaixo das traves, caminhões pesados para arrebentar os obstáculos, barcos, ultraleves, balões e aviões de voos leves improvisados.
             Também houve quem fugisse agilmente de trem, ou simplesmente confiasse em documentos falsificados e veículos preparados para esconder pessoas, obtidos graças à ajuda solidária de grupos da RFA que se dedicavam a organizar politicamente a fuga de alemães do Leste. Historicamente era uma feira de gado, que recebeu seu nome em homenagem de visita à Berlim pelo czar Alexandre I da Rússia em 25 de outubro de 1805. O termo praça remete à palavra platea, ou, alargamento. Os gregos a chamavam ágora, enquanto função comunicativa de conhecimento e das decisões políticas. Comparativamente, na sociedade romana, as praças eram chamadas de Fórum e, também rememorando como as cidades representavam a união de vários povos, e nesses lugares foram usados para assembleias, disputas atléticas e gladiadoras. Alexanderplatz ganhou projeção em fins do século XIX com a construção da estação e do mercado público, tornando-se um centro comercial. Sua plenitude ocorreu em 1920 (cf. Blikstein, 2003) com a Potsdamer  Platz, antigo centro de Berlim é  uma zona (zone) concentrando o maior número de moradias como práticas de lugares da cidade.
Com a divisão política da Alemanha no pós-guerra pelos aliados em setores de ocupação, o meio da ponte acabou formando a fronteira entre lado Oriental e lado Ocidental – Potsdam é uma cidade que fazia parte da Alemanha Oriental e o bairro de Wannsee fazia parte de Berlim Ocidental. A partir de 1952 o trânsito de carros particulares na ponte é proibido e à partir de julho de 1953 é proibido também o trânsito de pedestres civis, sendo permitida a passagem somente para os membros das forças aliadas. E é justamente neste período da chamada Guerra Fria, que a ponte vai ganhar fama de “ponte dos espiões”, denominação dada pela espetacularização da imprensa. Enforma o coração da vida noturna de Berlim. Inspira o romance de 1929: “Berlin Alexanderplatz” com filmes baseados nele, de Piel Jutzi em 1931, e a adaptação da TV de 15 Horas e Meia, realizada pelo mestre Rainer Werner Fassbinder, em 1980. Na dramatis personae de signos urbanos, no espaço público de uso comum surgem os pedestres nas ruas onde fazem caminhar as florestas de seus desejos e interesses. 
A vontade de ver e olhar a cidade precedeu os meios de satisfazê-la. As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que, no entanto jamais existiria até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho celeste. Fazia deuses. E as coisas se passam de outro modo, agora que processos técnicos organizaram um poder “onividente”, perguntava-se o fenomenólogo Michel de Certeau. O olho totalizador imaginado pelos pintores de antanho sobrevive as nossas realizações. A mesma pulsão escópica frequenta os usuários das produções arquitetônicas materializado na utopia ontem apenas pintada. A torre de 400 metros que serve de proa a Manhattan continua construindo a ficção que cria leitores, que muda em legibilidade a complexidade da cidade e fixa um texto transparente a sua opaca mobilidade. A cidade-panorama é um simulacro, um quadro com possibilidade um esquecimento e um desconhecimento de práticas.               



As funções sociais e de comunicação das praças nem sempre foram idênticas. A ideia de espaço de encontro com fins culturais, políticos e comerciais, não prevaleceu durante a história social da Idade Média. Nesse período, elas serviram como espaços públicos de rituais de execuções, funerais e ritos religiosos. Historicamente sempre que surgia uma cidade, existia também uma praça. Isso acontecia porque as comunidades necessitavam fazer comércio e se relacionar através da troca e consumo de mercadorias. É por isso que em cidades maiores, com a formação de mercado, a área concentrar-se em torno de edificações comerciais e de estruturas públicas de poder municipal. Etnograficamente existem três tipos de praças: as úmidas, as mistas e as secas. As praças úmidas são aquelas com grande presença de arborização. Seu surgimento tem relação com a criação dos passeios e jardins públicos no final do século XVIII, quando estes espaços deixaram de ser usados para fins comerciais, mas para encontros sociais.
A ideia prevalente era atender uma demanda da sociedade e, só depois, em  meados do século XIX, é que elas assumiram papel unicamente social e estético. No entanto, consideram-se úmidas aquelas com pouca pavimentação e que, muitas vezes, são lugares de preservação da natureza no cenário urbano. As formações mistas aquelas que apresentam pavimentação e arborização, assim como os passeios públicos. São bastante comuns, pois apresentam padrão estético, paisagismo e embelezamento da cidade. Além disso, desperta a função social de proporcionar um ato de caminhar mais confortável, pela sombra das árvores, que absorvem gás carbônico e liberam oxigênio, contribuindo para a diminuição da poluição. Por fim, surgem as praças secas, que não apresentam grande arborização e são as mais antigas, com a função original mantida nas sociedades contemporâneas. Elas apareceram com intensidade após o século XIX em que os arquitetos de vanguarda transplantaram esse conceito ecológico nas cidades europeias. A ideia permanente é que o ambiente natural fosse usado para arte e cultura, evidenciando monumentos, uma estética minimalista e elementos de concreto.
Mas embaixo, nos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários do âmago da cidade. Forma elementar de experiências são os caminhantes, pedestres, Wandersmänner, cujo corpo obedece aos planos cheios e vazios de um texto urbano que escrevem sem lê-lo. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas que cada corpo é um elemento animado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como uma espécie de cegueira caracterizada nas práticas organizadoras da forma habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla. Sem autor nem espectador, tombada em fragmentos de trajetórias, em alterações de espaços. Mas com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, e sempre noutra. Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de operações. Noutra espacialidade e numa mobilidade social opaca que cega a cidade na forma de per si habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível. O World Trade Center foi a mais monumental das figuras do urbanismo ocidental. Agora é outro corpo, no alto que foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade, de autores ou espectadores que podem ignorar as astúcias que se transfiguram em voyeur.
    A cidade, á maneira de um nome próprio, oferece a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operações especulativas e classificatórias combinam-se práticas de gestão e eliminação. De um lado, existem uma diferenciação e uma redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos etc. De outro, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui, portanto, os detritos da administração limitada, funcionalista. Certamente, o progresso permite reintroduzir uma proporção sempre maior de detritos nos circuitos da gestão e meios de densificar as redes da ordem. Mas, de fato, não cessa de produzir efeitos perversos, aquilo que visa o sistema do lucro e gera uma perda que sob as múltiplas formas da miséria fora e do desperdício dentro dele, inverte constantemente a produção em gasto ou despesa. Além disso, a racionalização da cidade acarreta a sua mitificação nos discursos estratégicos, cálculos baseados na hipótese ou na necessidade de sua destruição por uma decisão final. A organização funcionalista, privilegiando o progresso esquece sua condição de possibilidade, o próprio espaço, não pensado de uma tecnologia científica e política. A Cidade-conceito pode plugar redes de transformações técnicas e sociais, planejar reapropriações, objeto de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: a maquinaria e o herói da modernidade.
A Cidade-conceito se degrada. Isto significaria que a enfermidade que afeta a razão que a instaurou e seus profissionais é igualmente presente na conjuntura de uma contradição entre o modo coletivo da gestão e o modo individual de uma reapropriação, nem por isso essa questão deixa de ser essencial, caso se admita que as práticas do espaço tecem com efeito as condições determinantes da vida social. Essa narrativa, para Certeau, começa ao rés do chão, com passos. São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode conta-lo, porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo etnograficamente: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica. Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares praticados. Elas não se localizam, mas são elas que se especializam. Noutras palavras, a descrição oscila ente os termos de uma alternativa: ou ver (é um conhecimento da ordem dos lugares), ou ir, (são ações espacializante). Ou então apresentará um quadro (“existe”) ou organizará movimentos (“você entra”, “você atravessa”). Qual é a coordenação entre um fazer e um ver, nesta linguagem ordinária onde o primeiro domina de maneira tão evidente? A relação entre o itinerário (uma série discursiva de operações) e o mapa (uma descrição redutora totalizante das observações), isto é, entre duas linguagens simbólicas e antropológicas do espaço. São dois polos da experiência que se passa de um para outro, da cultura ordinária ao discurso científico.

Roger Waters: “The Wall ainda é um ato de protesto”.
               
O tecido narrativo onde predominam os descritores de itinerários é, portanto pontuado de descritores do tipo mapa, que têm como função indicar ou um efeito obtido pelo percurso (“você vê...”), ou um dado que postula como seu limite (“há uma parede”), sua possibilidade (“há uma porta”) ou uma obrigação (“há um sentido único”) etc. A cadeia de operações espacializante parece toda pontilhada de referências ao que produz (uma representação de lugares) ou ao que implica (uma ordem local). Tem-se assim a estrutura do relato de viagem: histórias de caminhadas e gestas são marcadas pela “citação” dos lugares que daí resulta ou que as autorizam. Dessa maneira de ver, pode-se comparar a combinação dos “percursos” e dos “mapas” nos relatos cotidianos com a maneira como são, há quinhentos anos, imbricados, e depois lentamente dissociados nas representações literárias e científicas do espaço. Em particular, tomando-se o “mapa” sob a sua forma geográfica atual. Marcado pelo nascimento do discurso científico moderno, aos poucos separados do itinerário que constituíam a sua condição de possibilidade. O mapa fica só: as descrições de percurso desaparecem. 
Os processos do caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira a transcrever-lhes seus traços e suas trajetórias. Mas essas curvas em cheios ou em vazios remetem somente, como palavras, à ausência daquilo que passou. Os destaques de percursos perdem o que foi seu próprio ato de passar, mas também a operação de ir, vagar ou olhar as vitrines, noutras palavras: a atividade dos passantes é transposta em pontos que compõem sobe o plano de uma linha totalizante e reversível. Visível, tem como efeito tornar invisível a operação que a tornou possível, levando ao processo de esquecimento. O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (“o speech act”) está comparativamente para a língua ou para os enunciados proferidos. O ato de caminhar parece encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. Considerada através desse prisma, a enunciação pedestre apresenta três características que de saída a distinguem do sistema espacial: o presente, o descontínuo, o “fático”. Uma atividade narrativa, mesmo quando seja multiforme e não mais unitária, continua, portanto se desenvolvendo onde se trata de fronteiras e de relações com o estrangeiro. Fragmentada e disseminada, ela não cessa de efetuar operações de demarcação.
Em primeiro lugar, se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades (um local) e proibições (um muro que impede de prosseguir), o caminhante atualiza algumas quando ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. Cria assim algo descontínuo, seja efetuando triagens nos significantes da linguagem espacial, seja deslocando-os pelo uso através do qual se faz deles. Vota certos lugares à inércia ou ao desaparecimento e, como outros, compõe “torneios” espaciais “raros”, “acidentais” ou ilegítimos. Mas isso já introduz a uma retórica da caminhada. No quadro da enunciação, o caminhante constitui com relação à sua posição um próximo e um distante, um cá e um lá. Necessariamente implicada pelo ato de andar e indicativa de uma apropriação presente do espaço por um “eu”, tem igualmente por função implantar o outro relativo a esse “eu” e instaurar assim uma articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares.
A caminhada, que sucessivamente persegue e faz ao andar, o perseguir, cria uma organicidade móvel do ambiente, uma sucessão de topoi fáticos. E se a função fática,  esforço para assegurar a comunicação, já caracteriza a linguagem dos pedestres que se destaca assim de sua representação no papel se poderiam analisar as modalidades, isto é, os tipos de relação que mantém com os percursos (ou “enunciados”) atribuindo-lhes um valor de verdade, modalidades “aléticas” do necessário, do impossível, do possível ou do contingente, um valor cognitivo (modalidades epistêmicas do certo, do excluído, do plausível ou do contestável, ou enfim, um valor concernente a um dever-fazer (modalidades “deônticas”) do obrigatório, do proibido, do permitido ou do facultativo. Enfim, a caminhada afirma, emite suspeita, arrisca, transgride, respeita as trajetórias que “falam”. Todas as modalidades entram aí em jogo, mudando a cada passo, e repartidas em proporções, em sucessões, e com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos e os próprios caminhantes. Indefinida diversidade social dessas operações enunciadoras. Não seria, portanto, possível reduzi-las apenas ao seu traçado gráfico.
Um indício da relação que as práticas do espaço mantêm com essa ausência é precisamente fornecidos por seus jogos sobre e com os nomes próprios. As relações de sentido da caminhada com o sentido das palavras situam duas espécies de movimentos aparentemente contrários, um de exterioridade (caminhar é sair); o outro, interior (uma mobilidade sob a estabilidade do significante). Nos espaços brutalmente iluminados por uma razão estranha, os nomes próprios cavam reservas de significações escondidas e familiares. Esses nomes criam um não lugar nos lugares: mudam-nos em passagens. O que soletram? Postas em constelações que hierarquizam e ordenam semanticamente a superfície da cidade, operam arranjos cronológicos e legitimações históricas, estas palavras perdem aos poucos o seu valor gravado, como moedas gastas, mas a sua capacidade de significar sobrevive à sua determinação primeira. Ligando gestos e passos, abrindo rumos e direções, essas palavras operam ao mesmo título de um esvaziamento e de um desgaste do seu significado primário. O que as faz andar são relíquias de sentido e às vezes seus detritos, os restos invertidos de grandes ambições.

Por um paradoxo apenas aparente, o discurso que leva a crer é aquele que priva do que impõe. Muito longe de exprimir um vazio, de descrever uma falta, ele o cria. Dá lugar a um vazio. Deste modo, abre clareiras; permite que se faça o jogo num sistema de lugares definidos. Autoriza a produção de um espaço de jogo num tabuleiro analítico e classificador de identidades. Torna o espaço habitável. No fundo, os nomes próprios já são “autoridades locais”, ou “superstições”. Por isso costumam ser substituídos por números: não mais Opera, mas 073; não mais Calvados, mas 14. O mesmo se dá com os relatos e as lendas que povoam o espaço urbano como habitantes de mais ou a mais. São o objeto de caça às bruxas, somente pela lógica da tecnoestrutura. Mas esse extermínio de gestos e palavras faz da cidade uma simbólica em sofrimento. Existe anulação da cidade habitável. Pela possibilidade que oferecem de esconder ricos silêncios e desfiar histórias sem palavras, ou antes, por sua capacidade de criar em toda a parte adegas e celeiros, as legendas locais permitem saídas, meios de sair e entrar e, portanto, espaços de habitabilidade. Sem dúvida o ato de caminhar e de viajar suprem saídas, idas e vindas, garantidas por um legendário que agora falta aos lugares.            
Os relatos de lugares representam bricolagens. Tem-se assim a própria relação das práticas do espaço com a ordem construída. Em sua superfície, esta ordem se apresenta por toda a parte furada e cavada por elipses, variações e fugas de sentido: é uma ordem-coador. As relíquias verbais de que se compõe o relato, ligadas a histórias perdidas e a gestos opacos, segundo Michel de Certeau, são justapostas numa colagem em que suas relações não são pensadas e formam, por esse fato, um conjunto simbólico. Elas se articulam por lacunas. Pelos processos de disseminação que abrem, os relatos se opõem ao boato, porque o boato é sempre injuntivo, instaurador e consequência de um nivelamento do espaço, criador de movimentos comuns que reforçam uma ordem social acrescentando um fazer-crer ao fazer-fazer. Os relatos diversificam, mas os boatos totalizam, presente desde Aristóteles quando afirma: “o menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito à medida que avança”. Se há sempre oscilação de uns para os outros, parece que há estratificação, pois os relatos se privatizam e se escondem nos cantos dos bairros, das famílias ou dos indivíduos. Ao passo que a boataria dos meios, irradiadas pelos processos de comunicação, cobre tudo e, sob a figura da Cidade, palavra-chave de uma lei anônima, e substituto dos nomes próprios, que apaga ou combate as superstições culpadas, mas que ainda lhes pode conter ou fazer resistir.
A dispersão dos relatos indica já a do memorável. De fato a memória é o antimuseu: ela não é localizável. Dela saem clarões nas lendas. Os objetos também, e as palavras, são ocos. Aí dorme um passado, como nos gestos cotidianos de caminhar, comer, deitar-se, onde dormitam revoluções antigas. A lembrança é somente um príncipe encantado de passagem, que desperta, um momento, a Bela-Adormecida-no-Bosque de nossas histórias sem palavras. Os demonstrativos dizem do visível suas invisíveis identidades. Constitui a própria definição do lugar, com efeito, ser esta série de deslocamentos e de feitos entre os estratos partilhados que o compõem e jogar com essas espessuras em movimento contínuo. Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. O memorável é aquilo que se pode sonhar aa respeito do lugar. Já nesse lugar palimpsesto, a subjetividade se articula sobre a ausência que a estrutura como existência e a faz “ser-aí” (Dasein). Aí se deve reconhecer a repetição, em metáforas diversas, de uma experiência decisiva e originária. Aí se inaugura a possibilidade do espaço e de uma localização do sujeito. Praticar o espaço é, portanto repetir a experiência jubilatória e silenciosa da infância. É, no lugar, ser outro e passar ao outro.


Günter Grass, na sua biblioteca ao norte da Alemanha, em 24 de outubro de 1997.
 
Ipso facto um lugar é a ordem segundo a qual se distribuem elementos sociais nas relações de coexistência. Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação real de estabilidade. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espaço estaria para o lugar representado como a palavra quando falada, isto é, quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades sucessivas. Diversamente do lugar, não tem, portanto nem univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Do mesmo modo, a “leitura o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos - um escrito” (cf. Certeau, 2014: 184). Merleau-Ponty já distinguia espaço geométrico outra espacialidade que denominava espaço antropológico. Esta perspectiva é determinada, com sabedoria, por uma fenomenologia do existir no mundo.   
Na relação dialética entre espaço e lugar os relatos efetuam um trabalho que, incessantemente, transforma lugares em espaços ou espaços em lugares. As descrições orais de lugares, narrados de um apartamento, relatos de rua, representam um primeiro e imenso corpus. Mas as manipulações de espaço ou percursos levam a melhor. Na maioria das vezes, essa forma de descritores determina o estilo inteiro da narração. Uma atividade narrativa, mesmo que seja multiforme e não mais unitária, continua se desenvolvendo onde se trata de fronteiras e de relações com o estrangeiro. Fragmentada e disseminada, ela não cessa de efetuar operações de demarcação. Não há direito que não se escreva sobre corpos. Ele domina o corpo. Do nascimento ao luto, o direito se apodera dos corpos para fazê-los seu texto. Os livros são apenas as metáforas do corpo. Em tempos de crise de hegemonia mundializada, o papel não basta para se tornar lei, e ela se escreve de novo nos corpos. O texto impresso remete a tudo aquilo que se imprime sobre o nosso corpo. Marca-o com o Nome e com a Lei. Altera-o com dor e prazer para fazer dele um símbolo do Outro: um dito, um chamado, um nomeado. O sofrimento inscrito vem estranhamente por um prazer de ser reconhecido. Mas não se sabe por quem. O de se tornar uma palavra identificável e legível numa língua social. E de ser mudado em fragmento de um texto anônimo. Por ser escrito numa simbólica, sem dono e sem autor.  

Bibliografia geral consultada:
BLIKSTEIN, Izidoro, Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade. São Paulo: Editora Cultrix, 1995; FREITAG, Bárbara, Teorias da Cidade. Campinas: Papirus Editora, 2006; DÖBLIN, Alfred, Berlin Alexanderplatz. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009; FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 36ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2009; PAES, Fabiano Pures, Elementos da Fundamentação do Trabalho em Herbert Marcuse e seus Efeitos na Lógica Social do Consumo Fundamentada por Jean Baudrillard. Tese de Doutorado em Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2010; BITENCOURT, Gabriela Siqueira, Fraturas da Metrópole: Objetividade e Crise do Romance Berlin Alexanderplatz. Dissertação de Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. São Paulo: Departamento de Letras. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2010; GRASS, Günter, Em Viagem de uma Alemanha à Outra. Tradução de Paulo Rêgo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2013; CERTEAU, Michel, A Invenção do Cotidiano. Volume 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 22ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; PEDRO, Elisandra de Souza, Simultaneidade Indissolúvel Entre o Factual e o Ficcional na Obra Beim Häuten der Zwiebel de Günter Grass. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã. Departamento de Letras. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2018; entre outros.

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