sábado, 6 de abril de 2019

Ideias Monarquistas - Fantasia & Suplício na História do Brasil.


                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

     “Se alguém da bancada do PSL cair na velha política, serei o primeiro a denunciar”. L. P. de Orléans e Bragança


            As monarquias existentes na Europa são constitucionais ou parlamentares, sendo que a liderança do governo é exercida por um Primeiro-Ministro ou o presidente de um Conselho de Ministros. Existem 13 monarquias nas Américas onde cada Estado representa uma monarquia constitucional, em que o soberano herda de seu cargo, geralmente mantendo-o até a morte ou que abdique, como no Brasil, e está vinculada por leis e costumes no exercício de seus poderes constituídos. Dez monarquias são Estados nacionais independentes, e compartilham com a Rainha Elizabeth II, que reside principalmente no Reino Unido. Assim, como seus respectivos soberanos, tornando-os parte de uma rede global de agrupamento reconhecido como Reinos da Commonwealth, enquanto os três restantes são dependências das monarquias Europeias. Como tal, nenhuma das monarquias nas Américas tem um monarca que resida permanentemente. Essas Coroas continuam a história da monarquia nas Américas, que remonta ao despotismo antes da colonização. A cidade de Pilar, na província de Alagoas, amanheceu tumultuada em 28 de abril de 1876. Calcula-se em torno de dois mil o público aglomerado para assistir à execução do negro Francisco.
            O escravo fora condenado à forca “por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher. O assassino recorreu ao imperador dom Pedro II, rogando que a pena capital fosse comutada por uma punição mais branda, como a prisão perpétua”. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves surgiram na sequência da guerra de Portugal contra a França Napoleônica. O Príncipe Regente, o futuro Rei D. João VI, com a sua incapacitada mãe, a Rainha Dona Maria I de Portugal e a Corte Real transferiram-se para a sua brasileira, em novembro de 1807. Com a derrota de Napoleão em 1815, houve apelos para o retorno do Monarca português a Lisboa, o Príncipe Regente gostava da vida da província no Rio de Janeiro, onde a monarquia era mais popular e onde ele tinha demais liberdade, e foi assim, relutante em voltar para a Europa. No entanto, aqueles que defendiam o regresso da Corte para Lisboa, argumentaram que o Brasil era apenas uma colônia e que não era certo para Portugal ser governada a partir de uma colônia. Por outro lado, o governante foi pressionado para elevar o Brasil a partir da posição de uma colônia, para que eles pudessem desfrutar de todo o estado de ser cidadãos do país-mãe. Nacionalistas brasileiros também apoiaram o movimento, pois é indicado que o Brasil deixaria de ser submisso aos interesses de Portugal, mas seria em igualdade de condições, dentro de uma Monarquia transatlântica.


            O Cais do Valongo construído em 1811 foi local de desembarque e comércio de escravos africanos que durante vinte anos de sua operação mercantil desembarcaram até 1831, entre 500 mil e 1 milhão de escravos mesmo com a proibição do tráfico transatlântico. Era o maior porto escravagista da história da humanidade. Um mercado que se intensificou a partir da construção do Cais, porta de entrada de mais de 500 mil africanos, em sua maioria, vindos do Congo e de Angola, Centro-Oeste africano.  O desembarque ocorria no porto, ponto nobre do Rio de Janeiro Imperial. Em 1843, o cais foi reformado para o desembarque da princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, que viria a se casar com o imperador D. Pedro II, alcunhado o Magnânimo, foi o segundo e último Imperador do reinado do Brasil durante 48 anos, de 1840 até sua deposição em 1889. Nascido no Rio de Janeiro foi o filho mais novo do imperador Pedro I do Brasil e da imperatriz Dona Maria Leopoldina de Áustria e, portanto, membro legítimo do ramo brasileiro da Casa de Bragança. A abdicação do pai e sua viagem para a Europa tornaram Pedro imperador com apenas cinco anos, perdendo a maior parte de sua infância e adolescência estudando a arte do poder em preparação para imperar. Suas experiências com as intrigas e disputas políticas tiveram grande impacto na formação de seu caráter.         
            Um decreto do vice-rei, marquês do Lavradio, ordenou então a construção de um cais no Valongo para os navios negreiros porque a visão dos negros desembarcados perturbava os moradores racistas. O título nobiliárquico de Marquês de Lavradio, de juro e herdade e com Honras de Parente da Casa Real, foi criado por D. José I, por carta de 18 de Outubro de 1753, em favor de D. António de Almeida Soares Portugal, 1.º Conde de Lavradio e 4.º Conde de Avintes, e bisneto do primeiro conde deste último título. Os Marqueses de Lavradio herdaram a representação dos Duques de Aveiro e Duques de Torres Novas, Marqueses de Torres Novas e Marqueses de Gouveia, Condes de Portalegre e de Santa Cruz e Condes de Torres Vedras, pela morte do 8.º Duque de Aveiro, envolvido na conspiração dos Távoras. As origens e genealogias destes títulos foram descritas, entre outros, por D. António Caetano de Sousa nas referidas Memorias Históricas e Genealógicas dos Grandes de Portugal. Anselmo Braamcamp Freire, no Vol. II da sua obra: Brasões da Sala de Sintra dedica o capítulo XVI aos Almeidas, descrevendo ao longo de centena e meia de páginas a linhagem, que deu origem a várias  casas e títulos, que ipso facto serviram de estrutura, no sentido marxista, ao processo náutico de comunicação social da colonização portuguesa nos séculos XIV-XVI.
            O atracadouro passou então a chamar-se “cais da Imperatriz”. Entre 1850 e 1920, a zona tornou-se espaço público utilizado por ex-escravos de diversas nações, área que Heitor dos Prazeres, um dos fundadores da escola de samba quando mais tarde originou-se Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, chamou de “Pequena África”. Heitor dos Prazeres começou a trabalhar cedo na oficina do pai que era marceneiro. Talentoso, no trabalho e na imaginação musical, dominava o clarinete e o cavaquinho e seus sambas e marchinhas alcançaram projeção nacional. No local surgiu da terra testemunhos surpreendentes da história do Brasil, e particularmente da cidade do Rio de Janeiro: o chamado “Cais da Imperatriz”. Essa decisão implicou no alargamento e na compra de propriedades, no embelezamento e no melhoramento da região, projeto do famoso paisagista Grandjean de Montigny. Este era um cais de triste história, marcada pelo sofrimento e dor chamado de “Cais do Valongo”, pois constituiu a porta de entrada do tráfico de escravos. O Cais do Valongo foi substituído pelo Cais da Imperatriz, para  tentar apagar a memória do porto da história nacional. 


       Percebam o nível de ignorância simbólica dos defensores da casta monárquica brasileira. O Brasil traficou cerca de 4 milhões de escravos nos mais de 3 séculos de duração do regime de trabalho escravagista, o que equivale a 40% de todos os africanos que chegaram vivos nas três Américas entre os séculos XVI e XIX. Destes, aproximadamente 60% entraram pelo Rio de Janeiro, sendo que cerca de 1 milhão deles pelo Cais do Valongo. O título de patrimônio histórico da humanidade tem o objetivo de reconhecer a importância do local dos africanos que lá desembarcavam para a formação cultural, social e econômica do Brasil. E ainda a sua relevância para toda a humanidade como símbolo da violência que a escravidão representa. O Cais do Valongo foi o único sítio inscrito pelo Brasil para concorrer ao título. A candidatura foi apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela prefeitura do Rio de Janeiro e aceita pelo comitê em 2015. Na oportunidade, foi apresentado dossiê (cf. Sela, 2006) com detalhes da história do tráfico negreiro e o que o trabalho escravo significou para a economia entre os séculos XVI e XIX. O trabalho, coordenado pelo antropólogo Milton Guran (2000), demonstrou que o sítio arqueológico não está ligado apenas aos afrodescendentes, mas a complexidade histórica da sociedade brasileira.
            Na ideologia dominante do colonizador português, o mundo escravo, o mundo do trabalho escravagista, deveria ser transparente e numerosamente silencioso. Os cativos representavam de metade a dois quintos do total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro no decurso do século XIX. A corte reunia em 1851, a maior concentração urbana de escravos existente no mundo ocidental desde o final do Império romano: 110 mil escravos em 266 mil habitantes. Tal volume de cativos levava a uma divisão fundamental: de um lado, a rua do Ouvidor, com seus hábitos requintados e europeus; de outro, uma quase cidade negra em suas diversificadas etnias e hábitos díspares africanos. No núcleo urbano do município formado por nove paróquias centrais, as porcentagens eram menores, mas o impacto da presença negra era ainda maior. Esse constituía o centro nervoso da corte, sede dos principais edifícios públicos, praças e do comércio mais importante do II Reinado. Do total de 206 mil habitantes que moravam na área, 38% eram escravos. Dividindo espaços, a corte da rua do Ouvidor tentava fazer da escravidão um impossível cenário invisível, diante da ameaça previsível e constante à estabilidade da monarquia que contrastava com a utopia do processo civilizatório.
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O monarca, poucos dias antes de partir para uma temporada a passeio fora do Brasil, assinou o despacho de execução penal, segundo o qual “não haveria clemência imperial”. Acorrentado ao carrasco e com a corda já no pescoço, Francisco percorreu as ruelas da cidade num cortejo funesto até o ponto em que a forca estava armada com a presença cativa de seu público. Na plateia havia escravos, levados forçados por seus senhores para que o caso lhes servisse de exemplo. A ordenação de 1670 regeu, até à Revolução, as formas gerais da prática penal. Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos: A morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. As penas físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos condenados as faziam variar ainda mais. Não só mas grandes e solenes execuções, é que o suplício, manifestava a parte significativa que tinha na penalidade qualquer pena  um pouco séria devia ter alguma coisa do suplício. O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extemos de “uma raiva sem lei”. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios: em primeiro lugar, produzir certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos visivelmente apreciar, comparar e hierarquizar. Mapa do ouro nas Reais Casas de Fundição em Minas Gerais, de julho e setembro de 1767. Arquivo Nacional. 
A morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação  do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimento de sofrimentos. Na realidade o suplício repousa na arte quantitativa de sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu trunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível. O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal. De acordo com Foucault, é uma produção diferenciada de sofrimentos, que ocorre através de um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle.
Nos “excessos” dos suplícios se investe toda a economia do poder. E ipso facto, diante da justiça do soberano, todas as vozes devem se calar. Temos então uma aritmética penal meticulosa em muitos pontos. Chegamos historicamente ao dia em que a singularidade dessa verdade judicial parece escandalosa: como se a justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum: que se diria de uma meia-prova nas ciências demonstráveis? Não devemos esquecer que essas exigências formais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder absoluto e exclusivo do saber. Há exatos 140 anos, essa foi a última pena capital oficial executada no Brasil. Depois de Francisco, nenhum “criminoso” perdeu a vida por ordem judicial. Encerrava uma prática autoritária que vinha desde a invasão e colonização portuguesa, chamada pela literatura oficial “descobrimento”. Basta rememorar o caso do índio Tupinambá que o governador-geral Tomé de Souza “mandou explodir à boca de um canhão em 1549”, ou, em Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enforcado e esquartejado em 1792 em praça pública, ou ainda, no liberal radical frei Caneca, fuzilado em 1825.
Cais do Valongo, Rio de Janeiro.
A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras rigorosas, é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado. E por essa mesma razão, embora no estrito direito isso não seja necessário, esse procedimento não requer mais necessariamente tender à confissão. Antes, a única maneira para que esse procedimento perca tudo o que tem de autoridade unívoca, e se torne efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado, a única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso tome sobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente construído pela informação. Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial. Daí também as ambiguidades de seu papel. Por um lado, tenta-se fazê-lo entrar no cálculo geral das provas; ressalta-se que ela não passa de uma delas; ela não é a evidentia rei; assim como a mais forte das provas, ela sozinha não pode levar à condenação, deve ser acompanhada de indícios anexos, e de presunções; pois já houve acusados que se declararam culpados de crimes que não tinha cometido; o juiz deverá então fazer pesquisas complementares, se só estiver de posse da confissão regular do culpado.
No fim do século XVIII, a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de uma selvageria denunciada como “gótica”. É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição, é claro, e mais longe ainda do suplício dos escravos. Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha. Ela tem lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos dos sistema acusatório, em que a demonstração escrita precisa de um correlato oral; em que as técnicas de prova administrada pelos magistrados se misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado; em que lhe é pedido – se necessário pela coação mais violenta – que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário; em que se trata em suma de produzir a verdade por um mecanismo de dois elementos – o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato realizado ritualmente pelo acusado.
O corpo do acusado, “corpo que fala” e, se necessário, sofre, serve de engrenagem aos dois mecanismos; é por isso que, enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito poucas críticas radicais da tortura. O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade; por isso os juízes não devem recorrer a ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Pode-se a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplício da verdade. Em primeiro lugar, o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem-definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos chumbos, número das cunhas, intervenções do magistrado que interroga tudo segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente codificados, a tortura, ao contrário, é um jogo judiciário estrito. Daí o hábito, que se introduzira para os casos mais graves, de impor suplício do interrogatório “com reserva de provas”.

A esta primeira ambiguidade se sobrepõe uma segunda: investiga-se de novo a confissão como prova particularmente forte, que exige para levar à condenação apenas alguns indícios suplementares, que reduzem ao mínimo o trabalho de informação e a mecânica de demonstração; todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtê-la. Mas embora ela deva ser no processo, a contrapartida viva e oral da informação escrita, a réplica desta, e como que sua autenticação por parte do acusado será cercada de garantias e formalidades. Ela conserva alguma coisa de uma transação; por isso exige-se que seja “espontânea”, que seja formulada diante do tribunal competente, que seja feita com toda consciência, que não trate de coisas impossíveis etc. Pela confissão, o acusado se compromete em relação ao processo; ele assina a verdade da informação. Essa dupla ambiguidade da confissão: elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de coação e transação semi-voluntária, explica os dois grandes meios que o direito utiliza para obtê-la: o juramento que se pede ao acusado antes do interrogatório; a tortura, violência física para arrancar uma verdade que, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juízes, a título de “confissão espontânea”.
A tortura judiciária no século XVIII funciona nessa estranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução. Ora, curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua, mesmo sendo feita a prova e formulada a  sentença, na própria execução da pena. E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial de conteúdo de sentido no cerimonial do castigo público. Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu. O suplício tem então simultaneamente tanto uma representação social assim como uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho.
A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado: por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força invencível. Sua finalidade é menos estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força. Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem-proporcional, se a sentença deve ser justa, a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso; deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca. E esta superioridade não é simplesmente a do direito, mas a da força física do soberano que se abre sobre o corpo de seu adversário e o domina; atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela - ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força - se apodera do corpo  do condenado para mostra-lo marcado, vencido, quebrado. A cerimônia punitiva é aterrorizante. O suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder. Enfim, todo o seu aparato repressivo de Estado se engrenava no funcionamento político da penalidade sobre o criminoso. É uma questão que tem recorrência no plano teórico, histórico e político-ideológico no Brasil.  O ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), presentemente “foi processado, condenado e encarcerado sem que tenha cometido crime, com o claro objetivo de interditá-lo politicamente”, disse seu advogado Cristiano Zanin Martins. 
             No oceano da linguagem progressivamente disseminado, mundo sem margens e sem âncoras  (é duvidoso, e logo improvável, que um Único sujeito se aproprie dele para fazê-lo falar), cada discurso particular atesta a ausência do lugar que, no passado, era atribuído pela organização de um cosmos e, portanto, a necessidade de cortar para si um lugar por uma maneira própria de tratar um departamento por língua. Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito. O lugar que lhe era outrora fixado por uma língua cosmológica, ouvida como uma vocação e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um nada, uma espécie de vácuo, que obriga o sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se a si mesmo, segundo Michel de Certeau (1968), “como um produtor da escritura“. A ideologia dominante muda em técnica, tendo por programa essencial fazer uma linguagem e não mais -la. A própria linguagem deve ser fabricada,  “escrita“. Não há direito que não se escreva sobre corpos. Ele domina o corpo. A própria ideia de um indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade, sentida pela justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um preço nas transações entre coletividades. Do nascimento ao luto, o direito se apodera dos corpos para fazê-los seu texto. Seja como for, sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos.  
Bibliografia geral consultada.
CERTEAU, Michel de, La Prise de Parole. Paris: Éditions du Seuil, 1968; FOUCAULT, Michel, Surveiller et Punir. Naissance de la Prison. Paris: Éditions Gallimard, 1975; BUARQUE de HOLANDA, Sérgio, Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997; AGAMBEN, Giorgio, Homo Sacer. Il Potero Sovrano e la Vita Nuda. Torino: Einaudi Editore, 1997; Idem, Stato di Eccezione. Turim: Bollati Boringhieri, 2003; NEDER, Gizlene, Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: Obediência e Submissão. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 2000; CARVALHO, José Murilo, A Construção da Ordem e Teatro de Sombras. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003; LYNCH, Christian Edward Cyril, O Momento Monárquico. O Poder Moderador e o Pensamento Político Imperial. Tese de Doutorado em Ciência Política. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro, 2007; ELSTER, Jon, Alexis de Tocqueville: the First Social Scientist. Cambridge: Cambridge University Press, 2009; MARTUCCELLI, Danilo, La Société Singulariste. Paris: Editeur Armand Colin, 2010; FERRAZ, Sérgio Eduardo, O Império Revisitado, Instabilidade Ministerial, Câmara dos Deputados e Poder Moderador (1840-1889). Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2012; PORTO, Márcio de Souza, Modernidade e Catolicismo: O Episcopado de Dom José de Medeiros Delgado no Ceará (1963-1973). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2014; CARVALHO FILHO, Luís Francisco, “A Revolução dos Cretinos”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/23/03/2019; FELLET, João, “Monarquistas ocupam Cargos em Brasília e Reabilitam Grupo Católico Ultraconservador”. Disponível em: https://www.bbc.com/04/04/2019; entre outros.       

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