“Um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. Louis Pasteur
A fertilização in vitro é uma técnica de reprodução medicamente assistida que consiste na união do espermatozoide com o ovócito em ambiente laboratorial (in vitro). Pode ser realizada pela deposição de um número significativo de espermatozoides, 50 a 100 mil, ao redor dos ovócitos; ou pela inserção de um único espermatozoide no interior do ovócito, procurando obter embriões de boa qualidade que poderão ser congelados ou transferidos para a cavidade uterina. A técnica de fertilização in vitro iniciou uma nova Era da Medicina reprodutiva quando, em 1978, resultou no nascimento do primeiro “bebê de proveta”, no Reino Unido, realizada pelos médicos ingleses Patrick Steptoe e Robert Edwards. Desde então, o desenvolvimento tecnológico tem proporcionado taxas de sucesso progressivamente maiores, garantindo o sucesso na realização de muitos casais. Inicialmente restrita às mulheres com obstruções das trompas, hoje é utilizada como opção terapêutica para casais com fatores masculino, imunológico, ovariano e com endometriose, entre outras causas. A fertilização in vitro (FIV) é um dos tratamentos que compõem o grupo de tecnologias de reprodução assistida. Ela consiste em fecundar o óvulo fora do corpo, para somente depois que o embrião começar a se formar inseri-lo no útero, a fim de implantar-se e acontecer a gravidez.
Trata-se do tratamento completo em reprodução assistida, e com boas chances de sucesso, sendo em média estatística de 45%. Porém, esse número varia de acordo com a idade da mulher. É um método bastante difundido porque possui um bom custo-efetividade para quem deseja constituir família ou ter mais um filho, e não consegue por vias naturais. Isso em comparação com outros métodos de reprodução assistida. Para os tratamentos de reprodução assistida, antes de fazer a indicação de um deles o casal é instruído a tentar outras alternativas para conseguir a gravidez por vias naturais. O acompanhamento de um ou mais profissionais pode ajudar nessa tentativa. São realizados exames tanto na mulher como no homem, também indicados medicamentos, mudanças de hábitos e mesmo cirurgias quando preciso. E ainda é recomendado profissionalmente tentar o coito programado e a inseminação artificialmente. Se em nenhum desses casos aplicados ao casal conseguir a gravidez, a FIV é o tratamento mais provavelmente indicado. Também é preciso entender que um casal é considerado com problemas de fertilidade quando durante um ano não consegue a gravidez naturalmente, se a mulher tiver menos do que 35 anos ou 6 meses se tiver mais de 35. Louis Pasteur (1822-1895) iniciou seus estudos no Colégio Royal em Besançon, transferindo-se para a École Normale Supérieure de Paris em 1843, estudando química, física e cristalografia.
Foi na cristalogia que Louis fez suas primeiras descobertas. Descobriu em 1848 o dimorfismo do ácido tartárico, ao observar no microscópio que o ácido racêmico apresentava dois tipos de cristais, com simetria especular. Foi, portanto, o descobridor das formas dextrógiras e levógiras, comprovando que desviavam “o plano de polarização da luz no mesmo ângulo, porém em sentido contrário”. Esta descoberta científica valeu ao jovem químico, na época com 26 anos de idade, a concessão da Légion d`Honneur Francesa. Após licenciar-se e assistir às aulas do grande químico francês Jean-Baptiste Dumas (1800-1884), começou a se interessar pela química. Exerceu o cargo de professor de química em Dijon e depois em Estrasburgo. Casou-se com Marienne Laurent, filha do reitor da Academia. Em 1854 foi nomeado decano da Faculdade de Ciências na Universidade de Lille, é uma instituição pública multidisciplinar situada em Lille, Altos da França e arredores. A pedido dos vinicultores e cervejeiros da região, começou a investigar a razão pela qual azedavam os vinhos e a cerveja. Utilizando o microscópio, conseguiu identificar a bactéria responsável. Propôs eliminar o problema abstrato aquecendo a bebida até alcançar 48° C, matando, deste modo, as bactérias, e encerrando o líquido posteriormente em cubas hermeticamente seladas para evitar uma nova contaminação. O microscópio é um instrumento óptico com capacidade de ampliar imagens de objetos pequenos devido seu poder óptico de resolução técnica. Ele pode ser composto ou simples: o microscópio composto tem duas ou mais lentes associadas; o microscópio simples é constituído por apenas uma lente.
Acredita-se
que o microscópio tenha sido inventado no final do século XVI por Hans Janssen
e seu filho Zacharias, dois holandeses fabricantes de óculos. Tudo indica,
porém, que o primeiro a fazer observações microscópicas de materiais biológicos
foi o neerlandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723). Serve-se especialmente
para os cientistas qualificados, que utilizam este instrumento para estudar e
compreender os micro-organismos, ou seja, que não podem ser vistos a olho nu e
só são visíveis com o auxílio de um microscópio. São as menores formas de vida
existentes e estão presentes em todo o meio ambiente. Estes microscópios eram
dotados de uma única lente, pequena e quase esférica. Nesses aparelhos ele
identificou e observou detalhadamente diversos tipos de material biológico,
como embriões de plantas, os glóbulos vermelhos do sangue e os espermatozoides
presentes no sêmen dos animais. Foi também Leeuwenhoek quem descobriu a
existência dos micróbios, como eram antigamente chamados os seres
microscópicos, hoje conhecidos como micro-organismos. Os microscópios
dividem-se basicamente em duas categorias de utilidade de uso técnica e social.
Em primeiro lugar, o microscópio ótico
funciona com conjunto de lentes (ocular e objetiva) que ampliam a imagem
transpassada por um feixe de luz que pode ser utilizada no microscópio de campo
claro; microscópio de campo escuro; microscópio de contraste de fase;
microscópio de contraste interferencial. Há os microscópios de varredura
de ponta que trabalham com uma larga variedade de efeitos físicos em torno de processos mecânicos,
ópticos, magnéticos, elétricos. Um tipo de artefasto tecnológico, com utilidade de uso especialmente de microscópio
eletrônico de varredura é por tunelamento, capaz de oferecer aumentos reais de até 100 milhões de vezes, possibilitando a observação da superfície de algumas
macromoléculas, como é o caso do ácido desoxirribonucleico.
A citologia é dependente de equipamentos que permitem toda a visualização das células humanas, pois a maioria delas são tão pequenas que não podem ser observadas sem o auxílio de instrumentos óticos de ampliação. O olho humano tem um limite de resolução de 0,2 mm. Abaixo desse valor, não é possível enxergar os objetos sem o auxílio de instrumentos, como lupas e, principalmente, o microscópio. O crédito da invenção do microscópio é discutível, mas sabe-se que em 1590 os irmãos neerlandeses Franz, Johan e Zacarias Janssen compuseram um artefato rudimentar munido de um sistema de lentes, que permitia a ampliação e a observação de pequenas estruturas e objetos com razoável nitidez. O aparelho foi denominado de microscópio e constituiu a principal janela da ciência para o mundo além da capacidade de resolução do olho humano. Em 1665, o inglês Robert Hooke (1635-1703) usou um microscópio para observar imediatamente de uma grande variedade de pequenos objetos, além de animais e plantas que ele mesmo representava através da intepretação de fiéis ilustrações. Hooke percebeu além que a casca do carvalho era formada por uma grande quantidade de alvéolos vazios, semelhantes visivelmente à estrutura dos favos de uma colmeia. Naquela época, Hooke não tinha noção de que estava observando apenas contornos de células vegetais mortas. Publicou as suas descrições e ilustrações em uma obra denominada Micrographia, em que usa a designação “pequenas caixas ou celas” (“little boxes or cells”) para denominar os alvéolos observados, originando o termo célula. O termo acabou tornando-se definitivo.
Este processo originou atualmente a técnica de pasteurização dos alimentos. Demonstrou, desta forma, que todo processo de fermentação e decomposição orgânica ocorre devido à ação de organismos vivos. Na Inglaterra, em 1865, o cirurgião Joseph Lister aplicou os conhecimentos de Pasteur para eliminar os micro-organismos vivos em feridas e incisões cirúrgicas. Em 1871, o próprio Pasteur obrigou os médicos dos hospitais militares a ferver o instrumental e as bandagens que seriam utilizados nos procedimentos médicos. Expôs a “teoria germinal das enfermidades infecciosas”, segundo a qual toda enfermidade infecciosa tem sua causa (etiologia) num micróbio com capacidade de propagar-se entre as pessoas. Deve-se buscar o micróbio responsável por cada enfermidade para se determinar um modo de combatê-lo. Pasteur passou a investigar os microscópicos agentes patogênicos, terminando por descobrir vacinas, em especial a antirrábica, que utilizou com sucesso em 1885 para tratar Joseph Meister, “um garoto de 9 anos que fora mordido por um cão infectado pela raiva”, utilizando-se de injeções por 13 dias seguidos, clinicamente com vírus cada vez menos atenuados.
Meister nunca contraiu a raiva, felizmente, pois Pasteur, por não ser médico, arriscou-se a ser processado, caso o tratamento não tivesse sucesso. Fundou em 1887 o Instituto Pasteur, um dos mais famosos centros de pesquisa da atualidade. Pasteur foi quem derrubou definitivamente a ideia da “geração espontânea” aristotélica, com a utilização de uma vidraria chamada pescoço de cisne. Pasteur colocou um caldo nutritivo em um balão de vidro, de pescoço curvo. Ferveu o caldo existente no balão, o suficiente para matar todos os possíveis microrganismos que poderiam existir nele. Cessado o aquecimento, vapores da água proveniente do caldo condensaram-se no pescoço do balão e se depositaram, sob forma líquida, na sua curvatura inferior. Como os frascos ficavam abertos, não se podia falar da impossibilidade da entrada do “princípio ativo” do ar. Com a curvatura do gargalo, os micro-organismos do ar ficavam retidos na superfície interna úmida e não alcançavam o caldo nutritivo. Quando Pasteur quebrou o pescoço do balão, permitindo o contato do caldo dentro com o ar, constatou analogamente que o caldo se contaminou com os microrganismos provenientes do ar.
O filme Joy tem como representação social um drama biográfico britânico, estrelado por Bill Nighy, Thomasin McKenzie e James Norton. Dirigido por Ben Taylor (2024), é a história realmente da primeira bebê de fertilização in vitro do mundo contemporâneo, Louise Brown. In vitro (“em vidro”) é uma expressão latina que designa do ponto de vista técnico-metodológico todos os processos biológicos que têm lugar fora dos sistemas vivos, no ambiente controlado e fechado de um laboratório clínico e que são realizados normalmente em recipientes de vidro. Foi popularizada pelas técnicas de reprodução assistida (“fertilização in vitro”). O roteiro de Joy é de Jack Thorne, que desenvolveu a história com sua esposa Rachel Mason e Emma Gordon & Shaun Topp. É produzido pela Wildgaze e Pathé para a Netflix. O ex-executivo da Pathé Len Rowles se junta à Wildgaze Films de Finola Dwyer e Amanda Posey. A produtora do Brooklyn Wildgaze Films nomeou o ex-executivo criativo da Pathé UK Len Rowles para o cargo de chefe de desenvolvimento, cinema e TV. Baseado em eventos ocorridos das décadas de 1960 e 1970, a enfermeira Jean Purdy, o visionário Dr. Robert Edwards e o cirurgião inovador Patrick Steptoe trabalham para desenvolver clinicamente o primeiro “bebê de proveta”. O filme foi lançado mundialmente na Netflix em 22 de novembro de 2024.
Em
1904 ocorreu biologicamente o primeiro cultivo “in vitro” de crucíferas
observando a necessidade de suplementação do meio mineral com sacarose para a
germinação dos embriões bem como demonstrando o efeito social das diferentes
fontes de nitrogênio sobre sua morfologia. Em 1968, a enfermeira Jean Purdy é
contratada em Cambridge para um cargo de gerente de laboratório, pelo cientista
Dr. Robert Edwards. Juntos, eles recrutam o obstetra e cirurgião inovador
Patrick Steptoe para se juntar a eles na pesquisa de reprodução, em conjunto
para combater a infertilidade em mulheres. O primeiro trabalho que relatou
sucesso na regeneração de plantas de Eucalyptus através do uso da cultura de
células e de tecidos foi em 1969 usando explantes de E. citriodora. Em 1972
observou a produção de massas produzindo gemas e raízes que podiam ser
subcultivadas produzindo plantas inteiras. Em 1975 obteve-se a partir de calos
provenientes de explamplantes de hipocólito de E.alba. Em 1974 obteve-se clones
de E.grandis a partir de explantes nodais. Em 1975 obteve-se clones a partir de
expantes nodais de material juvenil e adulto. A cultura in vitro, dentre outras
utilidades científicas e sociais, consiste em multiplicar assexuadamente partes
de plantas (células, tecidos, órgãos ou propágulos), originando indivíduos
geneticamente idênticos à planta mãe. É uma técnica adotada mundialmente por
sua maior efetividade em capturar os ganhos genéticos obtidos por programas de
melhoramento. Dentre as principais vantagens da pesquisa científica podemos
citar a formação de “plantios clonais” de alta produtividade e uniformidade.
Dentre as principais desvantagens na realização da pesquisa geralmente podem
ser citadas o risco de estreitamento da base genética dos plantios clonais.
Robert espera criar um procedimento que se desenvolva em fertilização in vitro. Patrick os lembra que o governo, a igreja e provavelmente todos se oporão a eles por limitações científicas. Jean e sua mãe são mostradas como frequentadoras regulares da igreja. Elas têm um relacionamento próximo com seu vigário, o reverendo Paulson, e se voluntariam ativamente para ajudar. Como a equipe tem pouco financiamento, Jean e Robert precisam se deslocar para Oldham quatro horas por dia. Ele explica como eles têm trabalhado com pequenos roedores com algum sucesso. Eles fertilizam seu primeiro óvulo humano no ano seguinte. Conforme eles progridem, o The Daily Mirror “logo chama Robert de Dr. Frankenstein”. The Daily Mirror, normalmente reconhecido como simplesmente The Mirror, é um tabloide diário britânico, fundado em 1903. Durante alguns períodos em sua história de 1985 a 1987 e de 1997 a 2002, The Mirror era o nome usado na capa. O tabloide ganhou notoriedade em novembro de 2004 ao publicar uma edição cuja capa estampava o presidente reeleito dos Estados Unidos George W. Bush, com os dizeres: “Como 59,054,087 pessoas podem ser tão idiotas?”). É proprietário do jornal escocês Daily Record, desde 1985. A notícia se espalha, e logo a mãe de Jean a confronta, insistindo que a pesquisa que estão fazendo é brincar de deus. O reverendo Paulson pede para ela não comparecer aos seus serviços. Sua mãe prossegue dizendo para ela não a visitar se continuar seu trabalho. Jean passa um tempo mal-humorada, por ser excluída de comunidade e de sua mãe. A enfermeira-chefe Muriel pode criticá-la por seu tratamento frio com as mulheres que participam do estudo.
Sendo cristã, Jean desaprova que Steptoe faça abortos. A visão religiosa sobre o aborto varia de acordo com a religião, podendo ser, no caso da Igreja Católica, o aborto um “pecado gravíssimo”, pois, segundo o magistério da Igreja, desde a fecundação já existe uma pessoa humana completa. O judaísmo defende o aborto como “uma questão de saúde”, permitindo-o e exigindo-o quando a vida da gestante está em risco. O islamismo condena o aborto, mas muitos aceitam a prática quando há risco para a vida da mãe. Entretanto, taoísmo e confucionismo, consideram o aborto “uma solução de recurso aceitável”, mas escolas taoístas influenciadas pelo budismo adotam visões contrárias. A enfermeira-chefe ressalta que o objetivo delas é dar às mulheres uma escolha segura. Os oponentes de suas pesquisas alegam “um risco maior de anormalidades e também temem a futura criação de humanos artificialmente como cientistas loucos”. Cada um dos pesquisadores sente a mancha em seus relacionamentos pessoais. Quando os participantes apontam seu tratamento impessoal a eles, Jean começa a interagir mais pessoalmente. Na história social e clinicamente após fertilizar um óvulo com sucesso, eles abordam o Medical Research Council no início de 1971 para obter financiamento. Eles fazem o melhor que podem para convencê-los da importância socialmente do seu trabalho científico, mas sua petição é rejeitada.
Na viagem de trem, todos expressam frustração, mas Jean insiste que eles devem seguir em frente. Conforme Jean conhece os participantes pessoalmente e pelo nome, eles se abrem. Eventualmente, Patrick pergunta a ela sobre seu investimento pessoal na pesquisa, e ela revela que sofre de endometriose grave. Ele se oferece para examiná-la para uma segunda opinião, mas ela recusa. Mais tarde, depois de dançar com o assistente de laboratório Arun, ele a propõe após mencionar ter filhos, mas Jean diz que não pode. No início de 1973, após outra aparição decididamente negativa na televisão, os pesquisadores começam a implantar embriões em algumas mulheres, mas que acabam falhando de várias maneiras. Em setembro, depois que todas as gestações falharam, Robert e Jean testam todo o seu material, descobrindo “parafina contaminada”. Ambos perdem o controle, com Jean desistindo para ir cuidar de sua mãe moribunda. Enquanto estava fora, Robert fecha o Laboratório de pesquisa. Um ano depois, o novo pai Arun esbarra em Jean, dizendo a ela que o laboratório foi fechado. Ela confronta Robert sobre esse aspecto, mas ele fala que ela desistiu primeiro. Pouco depois, sua mãe sucumbe à doença. Patrick e a Matrona Muriel vão ao funeral, e Jean descansada tem uma epifania para retomar sua pesquisa. Seguindo a ideia de Jean de retomar o estudo acompanhando o ciclo de cada mulher, no verão de 1978, eles ao final produzem o primeiro “bebê de proveta”. Anos mais tarde, em 2010, o Dr. Robert Edwards ganhou o Prêmio Nobel, enquanto Jean Purdy faleceu de câncer aos 39 anos e Patrick Steptoe de velhice.
A ação, representa a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas existentes ou da matéria, corresponde ipso facto à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam, o mundo. Isto que dizer o seguinte. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a esfera política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. Assim, o idioma dos romanos, talvez o povo mais político que conhecemos, empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). Mas em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até mesmo na Gênese (“macho e fêmea Ele os criou), se entendemos que esta versão da criação do homem diverge, em princípio, da outra segundo a qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – a ele, e não a eles, de sorte que a pluralidade dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação. Quer dizer, a ação, segundo Arendt (1993), seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, dotadas da mesma natureza e a essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana por sermos todos os mesmos, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.
Com a expressão vita activa,
Hannah Arendt designa metodologicamente três atividades humanas fundamentais, a
saber: labor, trabalho e ação. Trata-se de atividades fundamentais porque a
cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida
foi dada a o homem na Terra. O labor é atividade que corresponde ao processo
biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual
declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo
labor no processo de vida. A condição humana do labor é a própria vida. O
trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana,
existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e
cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial”
de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas
fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a
sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do
trabalho é a mundanidade. As três atividades e suas condições
têm a mínima relação com as condições mais gerais da existência humana. O labor
assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida plena da espécie.
O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade
à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo social humano.
A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história. O labor e o trabalho, bem como sua ação iniludível, têm também raízes na natalidade, na medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo humano para o constante influxo de recém-chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e leva-los em conta. Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possuía a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir de forma pragmática. A distinção politicamente que Arendt propõe entre labor e trabalho é inusitada. A evidência fenomenológica a favor dessa distinção é demasiada marcante para que se ignore; e, no entanto, é historicamente verdadeiro que, à parte certas observações esporádicas quase nada existe para corroborá-la na tradição pré-moderna do pensamento político ou no vasto corpo das modernas teorias do trabalho. Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de extração do excedente, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições de realização e prazer da vida humana. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente admitir como tendem a pensar pensadores modernos quando se afastam do extraordinário pensador dialético.
Não
é surpreendente que a distinção entre labor e trabalho tenha sido ignorada na
antiguidade clássica. A diferenciação entre a casa privada e a esfera pública
política, entre o doméstico que era um escravo e o chefe da casa que era um
cidadão, entre as atividades que deviam ser escondidas na privatividade do lar
e aquelas que eram dignas de vir a público apagaram e predeterminaram todas as
outras distinções, até estar somente um critério: é na privatividade ou em público
que se gasta a maior parte do tempo e do esforço? A ocupação é motivada por “cura
privati negotii” ou “cura rei publicae”, para cuidar de negócios privados ou
para atender às coisas públicas? Com o advento da teoria política os filósofos
aboliram até mesmo estas distinções que, ao menos, haviam estabelecido uma
diferença entre as atividades, e opuseram a contemplação a todo e qualquer tipo
de atividade. Com eles, até mesmo a ocupação política foi rebaixada à posição
de necessidade; e esta, daí por diante, passou a ser o denominador comum de
todas as manifestações da vida activa. Nem podemos esperar o auxílio do
pensamento político cristão, que aceitou a distinção elaborada pelos filósofos
e refinou-a; e, como a religião destina-se à multidão, enquanto a filosofia é
somente para alguns poucos, deu-lhe validade geral, obrigatória para todos os
homens. À primeira vista, é surpreendente que a Era Moderna, tendo invertido
todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação como da contemplação
como a tradicional hierarquia dentro da própria vita activa, tendo
glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores, e tendo
promovido o animal laborans à posição tradicional ocupada pelo animal
rationale – e não tenha produzido uma teoria que distinguisse entre o animal laborans e o
homo faber, entre o “labor do nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”.
Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e finalmente, sobrepondo-se ambas por ser aparentemente de importância mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. Das três, porém, somente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão; e não foi por acaso, segundo Arendt, qua os dois grandes teoristas do assunto, Adam Smith e Karl Marx, basearam nela toda a estrutura do seu argumento. O próprio motivo da promoção do albor como trabalho na Era Moderna foi a sua produtividade; e a noção aparentemente blasfema de Marx de que o trabalho (e não Deus) criou o homem, ou de que o trabalho (e não a razão) distingue o homem analogamente dos outros animais, era apenas a formulação mais radicalmente e coerente de algo, ao que parece, com que toda a Era Moderna concordava. Parece que foi Hume, e não Marx, o primeiro a insistir em que o trabalho distingue o homem do animal. Como o trabalho não desempenha qualquer papel importante na filosofia do ceticismo de David Hume, este fato não tem interesse apenas histórico; para ele, essa característica não tornava a vida humana mais produtiva, mas somente mais árdua e mais dolorosa que a vida animal. Contudo, é interessante, neste contexto, notar com que cuidado Hume, dois séculos antes, insistia repetidamente que nem o pensamento nem o raciocínio distingue o homem do animal, e que a conduta dos animais demonstra que estes possuem as mesmas dificuldades. O ceticismo de Hume é a ideia de que o conhecimento dos fatos do mundo não pode ser justificado, pois depende de inferências causais e raciocínios indutivos que não podem ser justificados pela razão ou experiência. O filósofo escocês é reconhecido por levar o ceticismo ao extremo, suspendendo as certezas mesmo diante do que parecia ser simplesmente experimental. Ele considerava que o ceticismo era uma ferramenta para distinguir o que é passível de conhecimento do que deve ser abandonado.
Para
evitar erros de interpretação: a condição humana não é o mesmo que a natureza
humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que
correspondem à condição humana. Pois nem como o pensamento e a razão, e nem
mesmo a mais meticulosa enumeração de todas as ações, constituem elas
características essenciais da existência humana no sentido de que, sem elas,
essa existência deixaria de ser humana. A mudança mais radical da
condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra
para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível,
implicaria em que o homem teria que viver sob condições, feitas por ele mesmo,
inteiramente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho,
a ação e, na verdade, até mesmo o pensamento como o conhecemos deixariam de ter
sentido em tal eventualidade. Não obstante, até mesmo esses hipotéticos
viajores terrenos ainda seriam humanos; mas a única afirmativa que poderíamos
fazer quanto à sua “natureza” é que são ainda seres condicionados, embora sua
condição seja agora, em grande parte, produzida por eles mesmos. O problema da
natureza humana, a quaestio mihi factus sum de Agostinho, parece
insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido filosófico geral.
É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a
essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, venhamos a
ser capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular sobre
nossa própria sombra. Além disso, não nos autoriza a presumir que o homem tenha
uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas analogamente as
têm.
Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente, só um deus pode conhece-la e defini-la; e a condição prévia é que ela possa falar de um “quem” como se fosse um “que”. O problema é que as formas de cognição humana aplicáveis as coisas dotadas de qualidades naturais – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valem quando levantamos a hipótese: e quem somos nós? É por isto que as tentativas de definir a natureza humana levam quase invariavelmente à construção de alguma deidade, isto é, ao deus dos filósofos que, desde Platão, não passa, a uma análise mais profunda, de uma espécie de ideia platônica do homem. Naturalmente, desmascarar tais conceitos filosóficos da divindade como conceitualizações das capacidades e qualidades humanas não chega a ser uma demonstração da não-existência de Deus, e nem mesmo constitui argumento nesse sentido; mas o fato de que as tentativas de definir a natureza do homem levam tão facilmente a uma ideia de que nos parece definitivamente “sobre-humanos” e é, portanto, identificada com a divindade, pode lançar suspeitas sobre o próprio conceito sociológico de “natureza humana”. A moderna ciência natural deve os seus maiores triunfos ao fato de termos olhado e tratado a natureza terena de um ponto de vista verdadeiramente universal, isto é, de um ponto de vista arquimediano escolhido, voluntária e explicitamente fora da Terra. A expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. É tão velha quanto a nossa tradição de pensamento político, mas não mais velha que ela. E essa tradição, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas da humanidade ocidental, é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito irremediável entre o filósofo e a polis.
Quer dizer, depois de haver eliminado muitas
das experiências de um passado anterior que eram irrelevantes para suas
finalidades políticas, prosseguiu até o fim na obra de Marx, de modo altamente
seletivo. A própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução
consagrada do bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho
onde, como vita negotiosa ou actuosa, reflete anda o seu
significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos. Aristóteles
distinguia três modos de vida (bioi) que os homens podiam escolher
livremente, isto é, em inteira independência das necessidades da vida e das
relações delas decorrentes. Esta condição prévia de liberdade eliminava qualquer
modo de vida dedicado basicamente à sobrevivência do indivíduo – não apenas o
labor, que era o modo de vida do escravo, coagido pela necessidade de permanecer
vivo e pela tirania do senhor, mas também a vida de trabalho dos artesãos
livres e a vida aquisitiva do mercador. Excluía todos aqueles que, involuntária
ou voluntariamente, permanente ou temporariamente, já não podiam dispor em
liberdade dos seus movimentos e ações. Os três modos de vida restantes têm em
comum o fato de se ocuparem do “belo”, de
coisas que não eram necessárias e nem meramente úteis: a vida voltada para os
prazeres do corpo, na qual o belo é consumido como tal como é dado; a vida
dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos
feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das
coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência
produtiva do homem nem alterada através do consumo humano.
Com
o desaparecimento da antiga cidade-estado, Agostinho foi, aparentemente o
último a conhecer, pelo menos o que outrora significava ser um cidadão, a expressão
vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar
todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. Convém lembrar que isto
não queria dizer que o trabalho e o labor houvessem galgado posição mais elevada
na hierarquia das atividades humanas e fossem agora tão dignos quanto a vida
política. De fato, o posto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma
das necessidades da vida terrena, de sorte que a contemplação (o bios
theoretikos), ou vida contemplativa, era o único modo de vida
realmente livre. Contudo, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer
outro tipo de atividade, inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la
na filosofia política de Platão, onde toda a reorganização utópica da vida na polis
é não apenas dirigida pelo superior discernimento do filósofo, mas não tem
outra finalidade senão tornar possível o modo de vida filosófico. O próprio
enunciado aristotélico dos diferentes modos de vida, em cuja ordem a vida de
prazer tem papel secundário, inspira-se claramente no ideal da contemplação (theoria).
À antiga liberdade em relação às necessidades da vida e à compulsão alheia, os filósofos
acrescentaram a liberdade e a cessação de toda atividade política (skole),
de sorte que a posterior pretensão dos cristãos – des erem livres de envolvimento
em assuntos mundanos, livres de todas as coisas terrenas – foi precedida pela apolita
filosófica da última fase s antiguidade, e dela se originou. O que até então
havia sido exigido somente por alguns poucos agora era visto como direito de
todos.
A
expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e
definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde,
portanto, mais à askolia grega (“ocupação”, “desassossego”) com a qual
Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos dos gregos. Quer
dizer, desde Aristóteles a distinção ente quietude e ocupação, entre uma abstenção
quase estática do movimento físico externo e de qualquer tipo de atividade, é
mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e teórica, porque
pode vir a ocorrer em qualquer um dos três modos de vida. É como a diferença entre
a guerra e a paz, também todo tipo de atividade, até mesmo o processo de mero
pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplação. Todo movimento,
os movimentos do corpo e da alma, bem como o discurso e o raciocínio devem
cessar diante da verdade. Esta, seja a antiga verdade do Ser ou a verdade
cristã do Deus vivo, só pode revelar-se em meio a completa quietude.
Tradicionalmente, na história, e até o início da chamada Era Moderna, a
expressão vida activa jamais perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”,
nec-otium, a-skolia. Como tal permaneceu ligada à distinção grega,
ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as coisas
que devem ao homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as
coisas que são nomo. Isto é, o primado da contemplação sobre a atividade
baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar-se
em beleza e verdade o kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo,
em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja
humana ou divina. Esta eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os
movimentos e atividades humanas estão em completo repouso. Comparadas a este
aspecto da quietude, todas as diferenças e manifestações no âmbito da vida
activa desaparecem. Do ponto de vista da contemplação, filosoficamente falando, não importa o que
perturba a necessária quietude; o que importa na vida realmente é que ela seja perturbada.
Tradicionalmente a vita activa deriva o seu significado da vida contemplativa; sua mui limitada dignidade deve-se ao fato de que serve `as necessidades e carências da contemplação num corpo vivo. O cristianismo, com sua crença num mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu a sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theoria) como faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição. Obviamente, são mais profundas que o momento histórico que motivou o conflito entre a polis e o filósofo, e com isso levou também, quase por acaso, à descoberta da contemplação como modo de vida do filósofo. Essas razões devem residir num aspecto inteiramente diferente da condição humana, cuja diversidade não é esgotada pelas várias manifestações da vita activa e, provavelmente, não seria esgotada mesmo que se lhe incluíssemos o pensamento e o movimento do raciocínio. Se o uso da expressão vita activa, está em manifesto conflito com a tradição, é que Hannah Arendt duvida não da validade da experiência que existe por trás dessa distinção, mas da ordem hierárquica que acompanha desde o início. Ela afirma que o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações cognitivas e intelectuais no âmbito da própria vita activa e que, a despeito das aparências, esta condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela eventual inversão na ordem hierárquica em Karl Marx e Friedrich Nietzsche.
Eric John Ernest Hobsbawm, nascido em Alexandria, em 9 de junho de 1917 e morto em Londres, em 1° de outubro de 2012, foi um extraordinário historiador marxista britânico reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século XX. Ao longo de toda a sua vida, Hobsbawm (1995) foi membro do Partido Comunista Britânico. Um aspecto fundamental de seus interesses como homme de seu tempo foi escrever e explicar o desenvolvimento das tradições. Seu trabalho tem como representação histórico-social um estudo da construção dessas tradições no contexto do Estado-nação. Argumentou que muitas vezes as tradições são inventadas por elites nacionais para justificar a existência e importância de suas respectivas nações. Como ele próprio infere, para os historiadores de minha geração e origem o passado é indestrutível, não apenas porque pertencemos à geração em que ruas e logradouros públicos ainda tinham nomes de homens e acontecimentos públicos (a estação Wilson de Praga de antes da guerra, a estação do metrô Stalingrado em paris), em que os tratados de paz ainda eram assinados e portanto tinham de ser identificados (Tratado de Versalhes) e os memoriais de guerra lembravam acontecimentos passados, como também porque os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas, tanto privadas como públicas. Mas não apenas o fato socialmente de que um velho historiador tem o passado como parte de seu presente permanentemente.
Em 28 de junho de1992 o presidente Mitterrand,
da França, apareceu de forma súbita, não anunciada e inesperada em Saravejo,
que já era o centro de uma guerra balcânica que iria custar cerca de 150 mil
vidas no decorrer daquele ano. Seu objetivo era lembrar à opinião pública
mundial a gravidade da crise bósnia. E, de fato, foi muito observada e admirada
a presença do conhecido estadista – idoso e visivelmente frágil sob o fogo das
armas portáteis e da artilharia. Um aspecto da visita de Mitterrand, contudo,
embora claramente fundamental, passou despercebido: a data. Por que o
presidente da França escolhera aquele dia específico para ir a Saravejo? Porque
28 de junho era o aniversário do assassinato, em Saravejo, em 1914, do
arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-Hungria, ato que em poucas semanas
levou á eclosão da primeira Guerra Mundial. Para qualquer europeu culto da geração
de Mitterrand, saltava aos olhos a ligação entre a data e lugar e a evocação de
uma catástrofe histórica precipitada por um erro político e de cálculo. Que
melhor maneira de dramatizar as implicações potenciais da crise bósnia que
escolhendo uma data assim tão simbólica? Mas quase ninguém captou a alusão,
exceto uns poucos historiadores profissionais e cidadãos muito idosos. A
memória histórica, observa Hobsbawm, já não estava viva. A destruição do passado
– ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à
das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do
final do século XX.
Em 1910, todos os físicos e químicos
alemães e britânicos juntos chegavam a talvez 8 mil pessoas. Em fins de 1980, o
número de cientistas e engenheiros de fato empenhados em pesquisa e
desenvolvimento experimental no mundo era estimado em cerca de 5 milhões,
dos quais quase 1 milhão se achava nos EUA, principal potência científica, e um
número ligeiramente maior nos Estados da Europa. Embora os cientistas
continuassem a formar uma minúscula fração técnico-científica da população, mesmo
nos países desenvolvidos, o número deles continuou a crescer de maneira impressionante,
mais ou menos dobrando nos vinte anos após 1970, mesmo nas economias avançadas.
Contudo, em fins da década de 1980 eles formavam a ponta de um iceberg muito
maior do que se poderia chamar de mão de obra científica e tecnológica
potencial, que refletia essencialmente a revolução educacional da segunda metade
do século. Ela representava talvez 2% da população global, e talvez 5% da
população norte-americana. Os cientistas de fato eram cada vez mais
selecionados por meio de uma “tese doutoral”, que se tornou o bilhete de entrada
para a profissão. No final da década de 1980, o país ocidental avançado típico
gerava alguma coisa do tipo 130, 140 desses doutorados por ano para cada milhão
de seus habitantes. Esses países também gastavam, sobretudo dos fundos públicos
– mesmo nos países mais capitalistas – somas bastante astronômicas em tais atividades. Na verdade, as formas mais caras de “grande ciência” estavam fora
do alcance de qualquer país individualmente a não ser até a década de 1990 especificamente nos
Estados Unidos da América.
Mas havia uma grande novidade.
Apesar de 90% dos trabalhos científicos (cujo número duplicava a cada dez anos)
serem publicados em quatro idiomas (inglês, russo, francês e alemão), a ciência
eurocêntrica se encerrou no século XX. A Era das Catástrofes, e sobretudo o
triunfo temporário do fascismo, transferiu seu centro de gravidade para os EUA,
onde permaneceu. Entre 1930 e 1933, só sete Prêmios Nobel de ciência forma
dados nos EUA; mas, entre 1933 e 1970, forma 77. Os outros países de
colonização europeia também se estabeleceram como centros de pesquisa
independentes: Canadá, Austrália, a muitas vezes subestimada Argentina, embora
alguns, por questões de tamanho e política, exportassem a maioria de seus
cientistas: Nova Zelândia, África do Sul. Ao mesmo tempo, foi impressionante o
surgimento de cientistas não europeus, sobretudo do Leste Asiático e do subcontinente
indiano. Antes do fim da Segunda Guerra Mundial, só um asiático conquistara um
Prêmio Nobel de ciência (C. Raman, em física, 1930); depois de 1946, tais
prêmios forma concedidos a mais de dez pesquisadores com nomes obviamente japoneses,
indianos e paquistaneses, e isso ainda subestima tão claramente a ascensão das
ciências asiáticas quanto o registro pré-1933 subestimava a ascensão da ciência
americana. Contudo, no fim do século, ainda havia partes do mundo que geravam
visivelmente poucos cientistas em termos absolutos, e ainda mais acentuadamente
em termos relativos, como por exemplo a África e a América Latina.
Contudo, um fato impressionante é
que (pelo menos) um terço dos laureados asiáticos não aparece representando seu
país de origem, mas como cientistas americanos. Na verdade, dos laureados
americanos, 27 são da primeira geração. Pois, num mundo cada vez mais
globalizado, o fato mesmo de as ciências naturais falarem uma única língua
universal e operarem sob uma única metodologia ajudou paradoxalmente a concentrá-las
nos relativamente poucos centros com recursos adequados para seu desenvolvimento,
isto é, nuns poucos Estados ricos altamente desenvolvidos, e acima de tudo nos
EUA. Os cérebros do mundo, que na Era das Catástrofes fugiram da Europa por
motivos políticos, desde 1945 foram drenados dos países pobres para os ricos
por motivos sobretudo econômicos. Isso é natural, pois nas décadas de 1970 e
1980 os países capitalistas desenvolvidos gastaram quase três quartos de todos
os orçamentos do mundo da pesquisa e desenvolvimento, enquanto os pobres (“em
desenvolvimento) não gastaram mais de 2% a 3%. Mesmo no mundo desenvolvido, a
ciência foi aos poucos perdendo dispersão, em parte por causa da concentração
de pessoas e recursos – por razões de eficiência – emm parte porque o enorme
aumento na educação superior inevitavelmente criou uma hierarquia entre seus
institutos. Nas décadas de 1950 e 1960, metade dos doutorados nos EUA vinha das
quinze universidades mais prestigiosas, para as quais, em consequência,
acorriam os jovens mais capazes. Num mundo democrático e populista, os
cientistas eram uma elite, concentrada nuns relativamente poucos centros
subsidiados. Na verdade, à medida que aumentava a especialização, mesmo os cientistas
precisavam de cada vez mais publicações para explicar uns aos outros o que se passava
fora de seus respectivos campos. O fato de que o século XX dependeu da ciência
dificilmente precisa de prova.
Em suma, a tecnologia com base na ciência
já se achava no âmago do mundo burguês do século XIX, embora as pessoas de espírito
prático não soubessem exatamente o que fazer socialmente com os triunfos da
teoria científica, a não ser, nos casos adequados, transformá-las em ideologias:
como o século XVIII fizera com Isaac Newton e o final do século XIX com Charles
Darwin. Apesar disso, vastas áreas da vida social e humana continuaram sendo
governadas, em sua maioria, apenas pelo rigor metódico e pela experiência, experimentação,
habilidade, bom-senso treinado e, na melhor das hipóteses, difusão sistemática
de conhecimento sobre as melhores práticas e técnicas preexistentes. Foi
visivelmente o que aconteceu com a agricultura, construção civil e medicina, e
na verdade com uma vasta gama de atividades que proporcionavam aos seres humanos
suas necessidade e luxos. Num determinado momento, no último terço do século, isso
começou a mudar. Na Era dos Impérios, começaram a tornar-se visíveis não apenas
os contornos da moderna tecnologia, só é preciso pensar nos automóveis, aviação,
rádio e cinema, mas os empreendimentos da moderna teoria científica:
relatividade, o quantum, e a genética. Além disso, via-se agora que as mais
esotéricas e revolucionárias descobertas da ciência tinham potencialmente tecnológico
imediato, da telegrafia sem fio ao uso médico dos raios X, ambos
baseados em descobertas da década de 1890. Apesar disso, embora a grande
ciência do Breve Século XX já fosse visível e de certa forma concebida em 1914, e embora a alta tecnologia
posterior já estivesse implicitamente nela, a grande ciência ainda não era uma
coisa sem a qual a vida diária em toda parte do globo seria inconcebível.
Bibliografia
Geral Consultada.
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