“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Michel Foucault
Um escravo fora condenado à
forca “por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de
Pilar e sua mulher. O assassino recorreu ao imperador dom Pedro II, rogando que
a pena capital fosse comutada por uma punição mais branda, como a prisão
perpétua”. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves surgiram na
sequência da guerra de Portugal contra a França Napoleônica. O Príncipe
Regente, o futuro Rei D. João VI, com a sua incapacitada mãe, a Rainha Dona
Maria I de Portugal e a Corte Real transferiram-se para a sua brasileira, em
novembro de 1807. Com a derrota de Napoleão em 1815, houve apelos para o
retorno do Monarca português a Lisboa, o Príncipe Regente gostava da vida da
província no Rio de Janeiro, onde a monarquia era mais popular e onde ele tinha
demais liberdade, e foi assim, relutante em voltar para a Europa. No entanto,
aqueles que defendiam o regresso da Corte para Lisboa, argumentaram que o
Brasil era apenas uma colônia e que não era certo para Portugal ser governada a
partir de uma colônia. Por outro lado, o governante foi pressionado para elevar
politicamente o reino do Brasil a partir da posição de uma colônia, para
que eles pudessem desfrutar de todo o estado de ser cidadãos do país-mãe.
Nacionalistas brasileiros também apoiaram o movimento, pois é indicado que o
Brasil deixaria de ser submisso aos interesses de Portugal, mas seria em
igualdade de condições, dentro de uma Monarquia transatlântica.
A exploração do trabalho escravo torna possível a produção de grandes excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, e contribuiu para o desenvolvimento econômico e cultural que a humanidade reconheceu em dados espaços e momentos: grandes construções como diques e canais de irrigação, castelos, pontes e fortificações, exploração de minas e florestas, desenvolvimento da agricultura em larga escala, abertura de estradas, desenvolvimento das artes e letras. As monarquias existentes na Europa são constitucionais ou parlamentares, sendo que a liderança do governo é exercida por um Primeiro-Ministro ou o presidente de um Conselho de Ministros. Existem 13 monarquias nas Américas do Sul, América Central e América do Norte onde cada Estado representa uma monarquia constitucional, em que o soberano herda de seu cargo, geralmente mantendo-o até a morte ou que abdique, como no Brasil, e está vinculada por leis e costumes no exercício de seus poderes constituídos. Dez monarquias são Estados nacionais independentes, e compartilham com a Rainha Elizabeth II (1926-2022), que reside principalmente no Reino Unido: Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales. Tornando-os parte da poderosa rede global de agrupamento reconhecido como Reinos da Commonwealth, enquanto os três restantes são dependências políticas das monarquias Europeias. Nas monarquias nas Américas não tem um monarca que resida permanentemente. Essas Coroas continuam a história da monarquia nas Américas, que remonta ao despotismo antes da colonização.
A cidade de Pilar, na província de Alagoas, Nordeste do Brasil, amanheceu tumultuada em 28 de abril de 1876. Calcula-se em torno de dois mil pessoas o público aglomerado para assistir à execução do negro Francisco. Foi enforcado em praça pública na cidade alagoana de Pilar pelo assassinato de um respeitado oficial da Guarda Nacional. Esse episódio e todo o seu contexto histórico são esmiuçados na reportagem especial: “A pena de morte no Brasil: escravo criminoso é escravo enforcado”, que a Rádio Senado leva nesta sexta-feira (22), às 18 horas. O negro Francisco foi condenado com base numa Lei de 1835 que se destinava exclusivamente aos escravos. A lei era implacável: o cativo que matasse seu senhor e fosse condenado não teria alternativa senão a pena de morte. Nos 30 minutos do programa, o jornalista Ricardo Westin, que pesquisou documentos do Império guardados no Arquivo do Senado e entrevistou historiadores especializados na escravidão, demonstra que os senadores da época deram total apoio ao projeto que deu origem à Lei de 1835. Historicamente o Brasil vivia os turbulentos anos da Regência (1831-1840), marcados por uma sucessão de rebeliões — inclusive de escravos, como a Revolta de Carrancas (1833), no Sul de Minas, e a Revolta dos Malês (1835), em Salvador. Ao longo da Regência e do Segundo Reinado (1840), em torno de 350 escravos foram enforcados. As execuções só não foram mais numerosas porque o imperador dom Pedro II (1825-1891), contrariando a elite política rural, concedeu a graça imperial e substituiu várias das condenações à pena capital por punições mais brandas, como trabalhos forçados para o governo até o fim da vida. A região onde está localizado o município do Pilar já era povoada desde os tempos quinhentistas das chamadas Capitanias Hereditárias, quando pertencia à Capitania de Pernambuco, com os índios Cariris no complexo lagunar Mundaú-Manguaba.
As margens da Lagoa do Sul ou Manguaba formou-se uma pequena Vila de pescadores e no século XVII, Gabriel Soares da Cunha, fundou o Engenho Velho, que se denominava como São Gabriel, que em 1750 passou a pertencer ao português Mateus Casado de Lima, que também era proprietário de vários Engenhos, entre eles o Engenho Pilar, edificado nas terras do Engenho Velho e o Campinas, em Santa Luzia do Norte pertencente à região Metropolitana de Maceió. Foi a partir da implantação e desenvolvimento dos engenhos de açúcar que a vila chamada de Pilar começou a crescer. Esse engenho, que deu origem à cidade do Pilar ficava localizado nas proximidades da Igreja do Rosário, inaugurada em 1° de novembro de 1800, onde existia a Capela de São Mateus, que foi o primeiro padroeiro do lugar. Em 8 de maio de 1854, através da Lei Provincial nº 250, foi criada a freguesia de Nossa Senhora do Pilar e três anos depois, em 1° de maio de 1857, através da Lei Provincial nº 321, Pilar foi elevada a à categoria de Vila. Com o progresso econômico e social, em 16 de março de 1872, através da Lei nº 624, Pilar obteve sua autonomia administrativa, desligando-se do município Atalaia e a Lei nº 626 da mesma data, lhe outorga o foro de cidade. Em 1º de janeiro de 1944 passar a se chamar Manguaba, denominação que perdura até 17 de setembro de 1949, quando voltou a se chamar de forma consagrada Pilar pela Lei nº 1473. A escravatura, denominada também de escravidão, escravismo colonial, esclavagismo, ou escravagismo, representa a prática social em que “um ser humano assume direitos de propriedade sobre outro designado por escravo ou escravizado”, decorrente da violência física ou a violência discursiva empregada moralmente na colonização portuguesa no Brasil.
Em
algumas sociedades, desde os tempos mais remotos, os escravos eram legalmente
definidos como uma mercadoria ou como despojos de guerra. Os preços variavam
conforme as condições físicas, habilidades profissionais, idade, procedência e
destino. O dono ou comerciante pode comprar, vender, dar ou trocar por uma
dívida, sem que o escravo possa exercer qualquer direito e objeção pessoal ou
legal, mas isso não é regra. Não era em todas as sociedades que o escravo era
visto como mercadoria: na Idade Antiga, haja vista que os escravos de Esparta,
os hilotas, não podiam ser vendidos, trocados ou comprados, isto pois eles eram
propriedade do Estado espartano, que podia conceder a proprietários o direito
de uso de alguns hilotas; mas eles não eram propriedade particular, não eram
pertencentes a alguém, era o Estado que tinha poder sobre eles. A escravidão da
era moderna está baseada num forte preconceito racial, segundo o qual o grupo
étnico ao qual pertence o comerciante é considerado superior; embora já na
Antiguidade as diferenças étnicas fossem bastante exaltadas entre os povos
escravizadores, principalmente quando havia fortes disparidades fenotípicas. Na Antiguidade também foi comum a escravização de povos conquistados em guerras
entre nações. Enquanto modo de produção, a escravidão assenta na exploração do
trabalho forçado e da mão de obra escravizada. Os senhores alimentam os seus
escravos e apropriam-se do produto restante do trabalho destes simulacros da
própria escravidão.
O Cais do Valongo - mutatis mutandis - construído em 1811
foi local de desembarque e comércio de escravos africanos que durante vinte
anos de sua operação mercantil desembarcaram até 1831, entre 500 mil e 1 milhão
de escravos mesmo com a proibição do tráfico transatlântico. Era o maior porto
escravagista da história da humanidade. Um mercado que se intensificou a partir
da construção do Cais, porta de entrada de mais de 500 mil africanos, em sua
maioria, vindos do Congo e de Angola, Centro-Oeste africano. O desembarque ocorria no porto, ponto nobre
do Rio de Janeiro Imperial. Em 1843, o cais foi reformado para o desembarque da
princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, que viria a se casar com o
imperador D. Pedro II, alcunhado o Magnânimo, foi o segundo e último Imperador
do reinado do Brasil durante 48 anos, de 1840 até sua deposição em 1889.
Nascido no Rio de Janeiro foi o filho mais novo do imperador Pedro I (1798-1834) do Brasil
e da imperatriz Dona Maria Leopoldina (1797-1826) de Áustria e, portanto, membro legítimo
do ramo brasileiro da Casa de Bragança. A abdicação do pai e sua viagem para a
Europa tornaram Pedro imperador com apenas cinco anos, perdendo a maior parte
de sua infância e adolescência estudando a arte do poder em preparação para
imperar. Suas experiências com as intrigas e disputas políticas tiveram grande
impacto social na formação de seu caráter.
Um decreto do vice-rei, marquês do
Lavradio, ordenou então a construção de um cais no Valongo para os navios
negreiros porque a visão dos negros desembarcados perturbava os moradores
racistas. O título nobiliárquico de Marquês de Lavradio, de juro e herdade e
com Honras de Parente da Casa Real, foi criado por D. José I, por carta de 18
de Outubro de 1753, em favor de D. António de Almeida Soares Portugal, 1.º
Conde de Lavradio e 4º Conde de Avintes, e bisneto do primeiro conde deste
último título. Os Marqueses de Lavradio herdaram a representação dos Duques de
Aveiro e Duques de Torres Novas, Marqueses de Torres Novas e Marqueses de
Gouveia, Condes de Portalegre e de Santa Cruz e Condes de Torres Vedras, pela
morte do 8.º Duque de Aveiro, envolvido na conspiração dos Távoras. As origens
e genealogias destes títulos foram descritas, entre outros, por D. António
Caetano de Sousa nas referidas Memorias Históricas e Genealógicas dos Grandes
de Portugal. Anselmo Braamcamp Freire, no Vol. II da sua obra: Brasões da Sala
de Sintra dedica o capítulo XVI aos Almeidas, descrevendo ao longo de centena e
meia de páginas a linhagem, que deu origem a várias casas e títulos, que ipso
facto serviram de estrutura, no sentido marxista do termo, ao processo
náutico de comunicação social da colonização portuguesa nos séculos XIV-XVI. O atracadouro passou então a chamar-se “cais
da Imperatriz”. Entre 1850 e 1920, a zona tornou-se espaço utilizado
por ex-escravos de diversas nações, e que Heitor dos Prazeres, um dos
fundadores da escola de samba quando mais tarde originou-se Grêmio Recreativo
Escola de Samba Portela, no Rio de Janeiro, chamou de “Pequena África”.
Heitor dos Prazeres começou a trabalhar cedo na oficina do pai que era marceneiro. Talentoso, no trabalho e na imaginação musical, dominava o clarinete e o cavaquinho e seus sambas e marchinhas alcançaram projeção nacional. No local surgiu da terra testemunhos surpreendentes da história do Brasil, e particularmente da cidade do Rio de Janeiro: o chamado “Cais da Imperatriz”. Essa decisão implicou no alargamento e na compra de propriedades, no embelezamento e no melhoramento da região, projeto do famoso paisagista Grandjean de Montigny (cf. Bittencourt; Gautherot, 1967). Este era um cais de triste história, marcada pelo sofrimento e dor chamado de “Cais do Valongo”, pois constituiu a porta de entrada do tráfico de escravos. O Cais do Valongo foi substituído pelo Cais da Imperatriz, para tentar apagar a memória do porto da história nacional. Percebam o nível de ignorância simbólica dos defensores da casta monárquica brasileira. O Brasil traficou cerca de 4 milhões de escravos nos mais de 3 séculos de duração do regime de trabalho escravagista, o que equivale a 40% de todos os africanos que chegaram vivos nas três Américas entre os séculos XVI e XIX. Destes, aproximadamente 60% entraram pelo Rio de Janeiro, sendo que cerca de 1 milhão deles pelo Cais do Valongo. O título de patrimônio histórico da humanidade tem o objetivo de reconhecer a importância do local dos africanos que lá desembarcavam para a formação social e econômica do Brasil.
O assédio moral está presente desde as primeiras formas sociais de relação de trabalho e constitui-se em um problema teórico, histórico e ideológico profundo, que ocorre tanto no setor público, como no setor da vida privada. No assédio moral, não se observa mais uma relação simétrica como no conflito. Mas uma relação perversa da imaginação entre dominante-dominado, na qual aquela parte que comanda a burocracia das relações sociais procura submeter o outro até fazê-lo perder a própria identidade. Quando isto se passa no âmbito da trapaça e ato de insubordinação, velada, não se transforma em um abuso de poder hierárquico, e a autoridade legítima sobre um subordinado se torna a dominação da casta burocrática. A prática do assédio moral não possui uma legislação específica, mas vem seguida da extinção do modelo fordista de organização da produção. Sua conduta pode ser analisada através da legislação, cujos fundamentos encontram-se hic et nunc na Constituição, no Código Civil, no Código Penal, e na mortificada Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O conceito de assédio moral organizacional foi desenvolvido, em 2006, pela Procuradora Regional do Trabalho, Adriane Reis de Araújo, como uma “tecnologia de gestão globalizada” que se caracteriza pelo emprego de condutas abusivas de qualquer natureza.
Mas
a que nos referimos especificamente quando falamos sobre a circuncisão da
pedagogia escolar na cena pública? Construída sob o signo de ruptura, a obra de
Michel Foucault subverteu, transformou, amplificou nossa relação com o saber e
a verdade institucionalizada. Será preciso balizar: a perversidade da economia
do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos
seus reformadores. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce
uma arte do corpo humano, que visa unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Forma-se então uma política de coerções que são um trabalho sobre
o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o desarticula
e o recompõe. A divisão do trabalho na universidade contemporânea não visa o aprofundamento
das relações técnicas, mas a penas seu quadriculamento: uma disciplina linear
das pesquisas.
Mesmo
de corte etnográfico, fabrica corpos submissos e exercitados, os chamados
“corpos dóceis”. A disciplina aumenta as forças em termos econômicos de
utilidade e diminuem essas mesmas forças em termos políticos de obediência
programada. É neste sentido que Michel Foucault ressalta que o espaço
disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há
a repartir. A disciplina organiza o espaço analítico. Lugares determinados se
definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as
comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil, um dispositivo que
afixa e quadricula, decompondo a confusão da ilegalidade e do princípio do mal.
Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo
lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade
não é, portanto, nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade
de residência), mas a posição na fila, o lugar que alguém ocupa numa
classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo
numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, segundo
Foucault, arte de dispor em fila, e da técnica, para a transformação dos
arranjos, individualiza os corpos pela localização que implanta, mas distribui e os faz circular na rede de relações.
A
organização de um espaço serial representou uma das grandes modificações
técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional: um
aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem
vigilância o grupo confuso dos que estão esperando. Determinando lugares
individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de
todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o
espaço escolar como uma “máquina de ensinar”, mas também de vigiar, de
hierarquizar, de recompensar. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os
controles minuciosos do poder. O controle disciplinar não consiste simplesmente
em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre
um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de
rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada
deve ficar ocioso: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido.
Um corpo disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto dos
recursos multimodais, melhor dizendo, referente aos aspectos verbais,
gestos, corpo e matéria, com rigor abrangendo por inteiro, da ponta do
pé à extremidade do indicador.
A
aprendizagem corporativa com a utilização de bolsistas, introduzidas pelas
castas que formam pequenos grupos de pesquisas nas universidades públicas,
surgiu originalmente em 1667, confiados durante certo tempo a um mestre que
devia realizar “sua educação e instrução”, depois colocados para a aprendizagem
junto aos diversos mestres tapeceiros da manufatura; após seis anos de
aprendizagem, quatro anos de serviço e uma prova qualificatória, tinham direito
a “erguer e manter loja” em qualquer cidade do reino. Encontramos aí a divisão
técnica do trabalho corporativo: relação de dependência ao mesmo tempo
individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se
conclui com uma prova qualificatória, mas que não se decompõe segundo um
programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o
aprendiz que deve trazer seus serviços, sua ajuda mútua e muitas vezes uma
retribuição. A forma de domesticidade se mistura a uma transferência de
conhecimento. A escola é dividida em três classes. A primeira para os que não
têm nenhuma noção de desenho; a segunda para os que já têm alguns princípios e,
na terceira, aprendem as cores, fazem pastel, iniciam-se na teoria e na prática
do tingimento. Regularmente, no âmbito disciplinar, os alunos fazem deveres
individuais: cada um desses exercícios, marcado com o nome e a data da
execução, é depositado nas mãos do professor. Os melhores são recompensados,
reunidos no fim do ano e comparados entre eles, permitem estabelecer os
progressos, o valor atualmnee, o lugar relativo de cada aluno, e os que podem prosseguir no processo de aprendizagem corporativa para a classe superior.
Em
resumo, pode-se dizer historicamente que a disciplina produz, a partir dos
corpos que controla quatro tipos de individualidade, ou antes, uma
individualidade dotada de quatro características: é celular, pelo jogo da
repartição espacial, é orgânica, pela codificação das atividades, é genética,
pela acumulação do tempo, é combinatória, pela composição das forças. E, para
tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras;
impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza
táticas. Esta representa a arte de construir, com os corpos localizados,
atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das
diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem
dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. Uma técnica extensiva
utilizada nos laboratórios das universidades. É possível que a guerra como
estratégia seja a continuação da política. A política, como técnica da paz e da
ordem interna, procurou por em funcionamento o dispositivo do exército
perfeito, da massa disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento na manobra
e no exercício. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há
uma série exército-política que passa pela tática. A vigilância se torna um
operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna
no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.
Na
essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo
penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis
próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas
instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infrapenalidade”,
quadriculam um espaço deixado pelas leis, qualificam e reprimem um conjunto de
comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa
indiferença. Na oficina, na escola, no exército, funciona como repressora toda
uma “micropenalidade” do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas),
da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser
(grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo
(atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade
(imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, uma
série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e
a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações
mais tênues de conduta social, e de dar uma função punitiva aos elementos
aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que
tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre
preso numa universalidade punível-punidora.
Mas
a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um
modelo reduzido do tribunal. O que pertence à penalidade disciplinar é a
inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela,
os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não conforme. O
regulamento da infantaria prussiana impunha tratar com “todo o rigor possível”
o soldado que não tivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil. O castigo
disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto, ser
essencialmente corretivo. De modo que o efeito corretivo que dela se espera
apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é
diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar. Ipso
facto, o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que
normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite
qualificar, classificar, punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade
através da qual eles são diferenciados e sancionados. Em todos os dispositivos
de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia
do poder. A forma da experiência, a demonstração da força e da verdade. O indivíduo é o átomo fictício de uma representação social. É fabricado pela tecnologia específica de poder: a disciplina.
O
panóptico de Bentham, representa uma máquina de dissociara questão em torno do
o par-ser-visto: no anel periférico, se é totalmente, se é totalmente visto,
sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto, pois é a
figura arquitetural dessa composição. O princípio é reconhecido: na periferia
uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas
que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida
em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas
janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então
colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
um condenado, um operário ou um estudante. Pelo efeito da contraluz, pode-se
perceber a torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas
silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos
teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e
constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que
permitem “ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da
masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e
esconder – só se conserva a primeira e se suprime duas. A plena luz e o olhar
de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade
é uma armadilha” (cf. Foucault, 2014: 194).
E ainda a sua relevância para toda a humanidade como símbolo da violência que a escravidão representa. O Cais do Valongo foi o único sítio inscrito pelo Brasil para concorrer ao título. A candidatura foi apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela prefeitura do Rio de Janeiro e aceita pelo comitê em 2015. Na oportunidade, foi apresentado dossiê (cf. Sela, 2006) com detalhes da história do tráfico negreiro e o que o trabalho escravo significou para a economia entre os séculos XVI e XIX. O trabalho, coordenado pelo antropólogo Milton Guran (2000), demonstrou que o sítio arqueológico não está ligado apenas aos afrodescendentes, mas a complexidade histórica da sociedade brasileira. Na ideologia dominante do colonizador português, o mundo escravo, o mundo do trabalho escravagista, deveria ser transparente e numerosamente silencioso. Os cativos representavam de metade a dois quintos do total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro no decurso do século XIX. A corte reunia em 1851, a maior concentração urbana de escravos existente no mundo ocidental desde o final do Império romano: 110 mil escravos em 266 mil habitantes. Tal volume de cativos levava a uma divisão fundamental: de um lado, a rua do Ouvidor, com seus hábitos requintados e europeus; de outro, uma quase cidade negra em suas diversificadas etnias e hábitos díspares africanos. No núcleo urbano do município formado por nove paróquias centrais, as porcentagens eram menores, mas o impacto da presença negra era ainda maior. Esse constituía o centro per se nervoso da corte, sede dos principais edifícios públicos, praças e do comércio mais importante do II Reinado (1840-1888).
Do
total de 206 mil habitantes que moravam na área, 38% eram escravos. Dividindo
espaços, a corte da rua do Ouvidor tentava fazer da escravidão um impossível
cenário invisível, diante da ameaça previsível e constante à estabilidade da
monarquia que contrastava com a utopia do processo civilizatório. O monarca,
poucos dias antes de partir para uma temporada a passeio fora do Brasil,
assinou o despacho de execução penal, segundo o qual “não haveria clemência
imperial”. Acorrentado ao carrasco e com a corda já no pescoço, Francisco
percorreu as ruelas da cidade num cortejo funesto até o ponto em que a forca
estava armada com a presença cativa de seu público. Na plateia havia escravos,
levados forçados por seus senhores para que o caso lhes servisse de exemplo. A
ordenação de 1670 regeu, até à Revolução, as formas gerais da prática penal.
Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos: A morte, a questão com reserva
de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. As penas
físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, a natureza dos
crimes, o status dos condenados as faziam variar ainda mais. Não só, mas
grandes e solenes execuções, é que o suplício, manifestava a parte
significativa que tinha na penalidade qualquer pena um pouco séria devia ter
alguma coisa do suplício. O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado
aos extemos de “uma raiva sem lei”. Uma pena, para ser um suplício, deve
obedecer a três critérios: em primeiro lugar, produzir certa quantidade de sofrimento
que se possa, se não medir, ao menos visivelmente apreciar, comparar
e hierarquizar. Mapa do ouro nas Reais Casas de Fundição em Minas Gerais, de
julho e setembro de 1767.
A
morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do
direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de
sofrimento de sofrimentos. Na realidade o suplício, segundo Foucault (2014)
repousa na arte quantitativa de sofrimento. Mas não é só: esta produção é
regulada. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso,
deve ser constatado por todos, um pouco como seu trunfo. O próprio excesso das
violências cometidas é uma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer
ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o
próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso sem
dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres
queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à
beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento
possível. O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal. Trata-se sensivelmente de uma produção diferenciada de sofrimentos, que
ocorre através de um ritual organizado para a marcação das vítimas e a
manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma
justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle.
Nos
“excessos” dos suplícios se investe toda a economia do poder. E ipso facto,
diante da justiça do soberano, todas as vozes devem se calar. Temos então uma
aritmética penal meticulosa em muitos pontos. Chegamos historicamente ao dia em
que a singularidade dessa verdade judicial parece escandalosa: como se a
justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum: que se diria de
uma meia-prova nas ciências demonstráveis? Não devemos esquecer que essas
exigências formais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder
absoluto e exclusivo do saber. Há exatos 140 anos, essa foi a última pena
capital oficial executada no Brasil. Depois de Francisco, nenhum “criminoso”
perdeu a vida por ordem judicial. Encerrava uma prática autoritária que vinha
desde a invasão e colonização portuguesa, chamada pela literatura oficial
“descobrimento”. Basta rememorar o caso do índio Tupinambá que o
governador-geral Tomé de Souza “mandou explodir à boca de um canhão em 1549”,
ou, em Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enforcado e esquartejado em
1792 em praça pública, ou ainda, no liberal radical frei Caneca, fuzilado em
1825. A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas
provas, a regras rigorosas da justiça penal, é uma máquina que pode produzir a
verdade na ausência do acusado. E por essa mesma razão, igualmente, embora no
estrito direito isso não seja mais necessário, esse procedimento não requer
mais necessariamente tender à confissão. Entretanto, há uma filosofia religiosa
sincrética e dualística fundada e propagada por Maniqueu, filósofo
heresiarca do século III, que divide o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e
Mau, ou Diabo.
Antes,
a única maneira para que esse procedimento perca tudo o que tem de autoridade
unívoca, e se torne efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado, a
única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso
tome sobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente
construído pela informação. Daí a importância dada à confissão por todo esse
processo de tipo inquisitorial. Daí também as ambiguidades de seu papel. Por um
lado, tenta-se fazê-lo entrar no cálculo geral das provas; ressalta-se que ela
não passa de uma delas; ela não é a evidentia rei; assim como a mais
forte das provas, ela sozinha não pode levar à condenação, deve ser acompanhada
de indícios anexos, e de presunções; pois já houve acusados que se declararam
culpados de crimes que não tinha cometido; o juiz deverá então fazer pesquisas
complementares, se só estiver de posse da confissão regular do culpado. No fim
do século XVIII, a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma
outra época: marca de uma selvageria denunciada como “gótica”. É verdade que a
prática da tortura remonta à Inquisição, históricamente e processual, é claro, e mais longe ainda do
suplício dos escravos. Mas ela não figura no direito clássico como sua
característica ou mancha na sociedade de seu tempo.
Ela
tem lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo
inquisitorial tem um lastro de elementos dos sistema acusatório, em que a
demonstração escrita precisa de um correlato oral; em que as técnicas de prova
administrada pelos magistrados se misturam com os procedimentos de provas que
eram desafios ao acusado; em que lhe é pedido – se necessário pela coação mais
violenta – que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário; em que se
trata em suma de produzir a verdade por um mecanismo de dois elementos – o do
inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato realizado
ritualmente pelo acusado. O corpo do acusado, “corpo que fala” e, se
necessário, sofre, serve de engrenagem aos dois mecanismos; é por isso que,
enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá
muito poucas críticas radicais da tortura. O interrogatório é um meio perigoso
de chegar ao conhecimento da verdade; por isso os juízes não devem recorrer a
ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Pode-se daí encontrar o
funcionamento do interrogatório como suplício da verdade. Em primeiro lugar, o
interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é
absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel,
certamente, mas não selvagem.
Trata-se
de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem-definido, com
momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos
chumbos, número das cunhas, intervenções do magistrado que interroga tudo
segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente codificados, a tortura, ao
contrário, é um jogo judiciário estrito. Daí o hábito, que se introduzira para
os casos mais graves, de impor suplício do interrogatório “com reserva de
provas”. A esta primeira ambiguidade se sobrepõe uma segunda: investiga-se de
novo a confissão como prova particularmente forte, que exige para levar à
condenação apenas alguns indícios suplementares, que reduzem ao mínimo o
trabalho de informação e a mecânica de demonstração; todas as formas possíveis
de coerção serão utilizadas para obtê-la. Mas embora ela deva ser no processo,
a contrapartida viva e oral da informação escrita, a réplica desta, e como que
sua autenticação por parte do acusado será cercada de garantias e formalidades.
Ela conserva alguma coisa de uma transação; por isso exige-se que seja
“espontânea”, que seja formulada diante do tribunal competente, que seja feita
com toda consciência, que não trate de coisas impossíveis etc. Pela confissão,
o acusado se compromete em relação ao processo; ele assina a verdade da contida
na própria revelação da informação. Essa dupla ambiguidade da confissão:
elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de coação e transação
semi-voluntária, explica os dois grandes meios que o direito utiliza para
obtê-la: por um lado o juramento que se pede ao acusado antes do
interrogatório; por outro a tortura, violência física para arrancar uma
verdade que, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos
juízes, o que produz imediatamernte uma forma de humilhação, mas a título de “confissão espontânea”.
A
tortura judiciária no século XVIII funciona nessa estranha economia em que o
ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O
corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o
lugar de extorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente
um elemento de inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da
tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução. Ora,
curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua mesmo
sendo feita a prova e formulada a sentença, na própria execução da pena. E o
corpo do condenado é novamente uma peça essencial de conteúdo de sentido no
cerimonial do castigo público. Cabe ao culpado levar à luz do dia sua
condenação e a verdade do crime que cometeu. O suplício tem então
simultaneamente tanto uma representação social assim como uma função
jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um
instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução
pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere na série dos grandes
rituais do poder eclipsado e restaurado: por cima do crime que desprezou o
soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força invencível.
Sua
finalidade é menos estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um
extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano
todo-poderoso que faz valer sua força. Se a reparação do dano privado
ocasionado pelo delito deve ser bem-proporcional, se a sentença deve ser justa,
a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do
desequilíbrio e do excesso; deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação
enfática do poder e, concomitantemente de sua superioridade intrínseca. E esta
superioridade não é simplesmente a do direito, mas a da força física do
soberano que se abre sobre o corpo de seu adversário e o domina; atacando a
lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela - ou pelo menos aqueles
a quem ele delegou sua força - se apodera do corpo do condenado para mostra-lo
marcado, vencido, quebrado. A cerimônia punitiva é aterrorizante. O suplício
não restabelecia a justiça; reativava o poder. Enfim, todo o seu aparato
repressivo de Estado se engrenava no funcionamento político da penalidade sobre
o criminoso. É uma questão que tem recorrência no plano teórico, histórico e
político-ideológico no Brasil. Não
queremos perder de vista, o caso ímpar em que o ex-presidente da
República Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), eleito
democraticamente, mas presentemente “foi processado, condenado e encarcerado
sem que tenha cometido crime, com o claro objetivo de interditá-lo
politicamente”, disse seu advogado Cristiano Zanin Martins.
No oceano da linguagem
progressivamente disseminado, mundo sem margens e sem âncoras (é duvidoso, e
logo improvável, que um Único sujeito se aproprie dele para fazê-lo falar),
cada discurso particular atesta a ausência do lugar que, no passado, era
atribuído pela organização de um cosmos e, portanto, a necessidade de cortar
para si um lugar por uma maneira própria de tratar um departamento por língua.
Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito.
O lugar que lhe era outrora fixado por uma língua cosmológica, ouvida como uma
vocação e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um nada, uma espécie de
vácuo, que obriga o sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se a si mesmo,
segundo Michel de Certeau (1968), “como um produtor da escritura”. A ideologia
dominante muda em técnica, tendo por programa essencial fazer uma linguagem
e não mais lê-la. A própria linguagem deve ser fabricada, “escrita”. Não há
direito que não se escreva sobre corpos. Ele domina o corpo. A própria ideia de
um indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade, sentida pela
justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo e, pelo direito
matrimonial, de corpos que se devem marcar com um preço nas transações sociais
e afetivas entre coletividades. Do nascimento ao luto, o direito se apodera dos
corpos para fazê-los seu texto. Sempre é verdade que a lei se
escreve sobre os corpos.
O termo ideologia aparece
pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt de Tracy, Eléments d`ldéologie.
Juntamente com o médico Pierre-Jean-Georges Cabanis, De Gérando e Volney, De
Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias, tratando-as como
fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano enquanto organismo
com o ambiente. Elabora uma teoria sobre as faculdades sensíveis, responsáveis
pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão),
sentir (percepção) e recordar (memória). Nesses termos os
ideólogos franceses eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos.
Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso das ciências
experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na análise e síntese dos
dados observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e a uma nova moral. Contra
a educação religiosa e metafísica, que permite assegurar o poder político de um
monarca, De Tracy propõe o ensino das ciências físicas e químicas para “formar
um bom espírito”, isto é, um espírito capaz de observar, decompor e recompor os
fatos, sem se perder em vazias especulações. Cabanis pretende construir
ciências morais dotadas de tanta certeza quanto os naturais, capazes de trazer
a felicidade coletiva e de acabar com os dogmas, desde que a moralidade não
seja separada da fisiologia do corpo humano. Na parte dedicada ao estudo da
vontade, De Tracy procura analisar os efeitos de nossas ações voluntárias e
escreve, sobre economia, na medida em que os efeitos destas ações concernem à
nossa aptidão para prover necessidades materiais. Procura saber como atuam,
sobre o indivíduo e sobre a massa humana, o trabalho e as diferentes formas da
sociedade, isto é, a família, a corporação. Suas considerações, na verdade, são
glosas das análises do economista francês Jean-Baptiste Say (1767-1832), a respeito da
troca, da produção social, do objeto de valor, da indústria, da distribuição do consumo e
das próprias riquezas.
No ensaio: Influências do Moral sobre o Físico, Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808) procura determinar a influência do cérebro sobre o resto do organismo, no quadro puramente fisiológico. O ideólogo francês partilha do otimismo naturalista e materialista do século XVIII, acreditando que a Natureza tem, em si, as condições necessárias e suficientes para o progresso e que só graças a ela nossas inclinações e nossa inteligência adquirem uma direção e um sentido. Os ideólogos foram partidários de Napoleão e apoiaram o golpe de 18 Brumário, pois o julgava um liberal continuador dos ideais da Revolução Francesa. Enquanto Cônsul, Napoleão nomeou vários dos ideólogos como senadores ou tribunos. Todavia, logo se decepcionaram com Bonaparte, vendo nele o restaurador do Antigo Regime. Opõe-se às leis referentes à segurança do Estado e são por isso excluídos do Tribunado e sua Academia é fechada. Os decretos napoleônicos para a fundação da nova Universidade Francesa dão plenos poderes aos inimigos dos ideólogos, que passam, então, para o partido da oposição. O sentido pejorativo dos termos “ideologia” e “ideólogos” veio de uma declaração de Napoleão que, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, declarou: - “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história”. Napoleão Bonaparte invertia a imagem que os ideólogos tinham de si mesmos: eles, que se consideravam materialistas, realistas e antimetafísicos, foram chamados de “tenebrosos metafísicos”, ignorantes do realismo político que adapta as leis ao coração humano e às lições da história.
O curioso, segundo Marilena Chauí, no opúsculo: O que é Ideologia (2017), é que se a acusação de Bonaparte é infundada com relação aos ideólogos franceses, não o seria se se dirigisse aos ideólogos alemães, criticados por Marx. Ou seja, Marx conservará o significado napoleônico do termo: o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as ideias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, dar por diante, um sistema de ideias condenadas a desconhecer sua relação real com o real. Entrementes, na década de 1820, Heinrich Marx parece ter prosperado. Após sua nomeação para o Tribunal de Apelação de Trier em 1818, ele redigiu outro relatório sobre a usura em 1821 e se tornou advogado público. Era, evidentemente, bem visto pelos colegas. A imponente casa perto da Porta Nigra adquirida em 1819 foi comprada de um colega jurista, e os padrinhos dos seus filhos eram, quase sempre, advogados em Trier. Edgar von Westphalen dizia que ele era um dos melhores advogados e um dos homens mais nobres da Renânia. E Heinrich não perdeu contato com a comunidade judaica. A família Marx continuou a compartilhar a propriedade de um vinhedo em Mertesdorf com o dr. Lion Bernkastel, destacado membro do Consistório, e a procurar sua assistência em assuntos médicos até os anos 1830. A família mantinha relação de amizade com a viúva do rabino Samuel Marx. Economicamente a crise dos viticultores prosseguiu nas décadas de 1830-1840, até chegar a um ponto em que sua miséria só podia ser comparada ao caso contemporâneo, internacionalmente notório, dos tecelões salesianos. O outro pilar da região, para a economia, era a floresta, e durante a primeira metade do século XIX houve um aumento da demanda por madeira, especialmente das forjas de ferro de Eifel e dos tanoeiros do mercado de vinho. Pobres camponeses do planalto se beneficiaram dessa demanda vendendo a madeira que coletavam no chão das florestas. A consolidação dos direitos de propriedade durante o período de domínio napoleônico e pelos Estados Provinciais nas décadas de 1820-30 ameaçaram os meios de subsistência ao contestar o direito natural de poder coletar árvores mortas.
A
Grande Fome, que atingiu a Ucrânia entre 1932-1933, reconhecida
como Holodomor. Outro sinal da ansiedade dos governantes prussianos foi
que no Ginásio de Tier que Karl Marx frequentou de 1830 a 1835, juntamente com
o diretor, Johan Hugo Wyttenbach, acentuadamente um conservador, Vitus Loers,
foi nomeado e incumbido da vigilância política da escola. Wyttenbach era
professor de história, além de diretor. Homem culto e progressista, certa vez
saudara a Queda da Bastilha como a aurora da liberdade, e suas crenças
religiosas foram influenciadas por Immanoel Kant. Heinrich lembrou ao filho. Quando ele
chegou ao fim do seu período no ginásio, que mandasse alguns versos agradecidos
a Wyttenbach – “eu disse a ele que você lhe tem a maior devoção”. Mas também
lhe informou que tinha sido convidado para um almoço oferecido por Loers, “que
ficou ressentido porque você não lhe fez uma visita de despedida”. Heinrich
tinha contado uma mentira para desculpar o desrespeito do filho”. Um judeu que
tinha ingressado na Igreja cristã evangélica - que representava a confissão
oficial da monarquia prussiana – em terra de católicos não pode de maneira
alguma, ser considerado típico. Mas Heinrich Marx compartilhava muitos valores
e condutas dos liberais renanos. Mesmo em assuntos religiosos, pelo menos até
que o conflito em torno dos casamentos se intensificasse subitamente no final
da década de 1830, havia uma sobreposição muito mais consensual de atitudes na
elite renana – fosse católica, protestante ou judaica – do que as divisões
confessionais sugerem. Os pontos e consenso eram políticos. Incluíam a
determinação de não destruir os benefícios de 20 anos de cominação francesa,
com o Código Civil, o sistema de júri e a abolição da aristocracia feudal.
Essas mudanças tinham sido acompanhadas pela aversão ao jacobinismo e ao
autoritarismo burocrático de Napoleão.
Havia
também uma antipatia e uma desconfiança generalizada contra o militarismo da
Prússia, um ressentimento com a política econômica prussiana, tida como
favorável às províncias orientais, e um desejo de um governo parlamentar
moderado, prometido pelo rei ainda em 1815. Para a geração de Heinrich, os anos
decisivos tinham sido de 1789 a 1791 – a promessa de uma assembleia
representativa, igualdade perante a lei, abolição dos Estados, direitos do
homem –, e para os judeus especialmente o ano de 1791 e a conquista de uma
emancipação incondicional. Eram essas as demandas que inspiravam os novos
líderes renanos, que ganharam renome na década de 1830 – Hansemann, Mevissen e
Camphausen – e que lideraram os ministérios liberais em Berlim e Frankfurt em
1848. Em 1830, quando Karl Marx tinha doze anos, depois de quinze anos de
severa repressão, voltou-se a falar em revolução, quando outra geração assistiu
de novo à ruína de um rei Bourbon em Paris. Regimes parlamentares foram
estabelecidos na França e na Bélgica, e o direito ao voto foi reformado na
Grã-Bretanha. Mas em toda a Europa havia uma pressão radical para impulsionar
mais as reformas, e desavenças começaram a surgir entre liberais e radicais,
monarquistas constitucionais e republicanos, bonapartistas, nacionalistas e
democratas. Na França e na Grã-Bretanha, diferenças se tornavam públicas e
explícitas quase que de ocorrência imediata.
Mas na Alemanha, para o que nos interessa onde as condições continuavam repressivas, divergências dentro do Bewegungspartei permaneciam implícitas e em surdina. Quando o partido em movimento é chamado na ciência política, um tipo de partido independente, ao contrário de outros tipos de partido (como o “partido pega-tudo”), é definido de maneira diferente. Via de regra, porém, as definições científicas do partido no movimento têm um enfoque particular nos movimentos sociais em comum. Dez anos depois, porém, em face da recusa da monarquia prussiana a fazer qualquer concessão à causa da reforma, essas divisões políticas se tornaram tão explícitas e polarizadas quanto em outras partes. Foi nessa conjuntura que Karl Marx com 24 anos de idade, surgiu como um dos mais distintos expoentes de uma nova forma de interpretação do real e peculiarmente alemã forma de radicalismo, muito diferente das cautelosas esperanças de seu pai. O que há de novo e precisa ser explicado refere-se as circunstâncias da família, a condição crítica da religião e da filosofia alemã e, acima de tudo as precisas ambições de teoria e método de análise e intelectuais do próprio Marx, para formar uma postura tão singular na história continental e de resto no mundo ocidental. Foi na primavera de 1845 que os jovens pensadores de filosofia e literatura Karl Marx e Friedrich Engels decidiram escrever juntos o extraordinário volume A Ideologia Alemã. Começaram a fazê-lo em setembro do mesmo ano, após terem se conhecido pesquisando na Biblioteca de Londres, terminando-a, praticamente no verão de 1846; na parte atinente ao conceito abstrato de Ludwig Feuerbach, o trabalho adentrou a metade do final do ano de 1846, sem que a tivessem concluída a obra.
O Holodomor tem como real significado
“matar pela fome”, mas é também reconhecido como a Fome-Terror e por vezes
referido como a Grande Fome, foi uma fome na Ucrânia Soviética de 1932 a 1933
que causou a morte de milhões de ucranianos. O termo Holodomor enfatiza os
aspectos artificiais e intencionais da fome, tais como a rejeição da ajuda
externa, o confisco de todos os alimentos domésticos e a restrição do movimento
populacional. Como parte da mais vasta fome soviética de 1932-33 que afetou as
principais áreas produtoras de cereais do país, milhões de habitantes da
Ucrânia, a maioria dos quais eram ucranianos de etnia ucraniana, morreram de
fome numa catástrofe sem precedentes na história social da Ucrânia em tempo de
paz. A última grande fome a atingir a União Soviética começou em julho de 1946,
atingiu seu auge em fevereiro-agosto de 1947 e depois diminuiu rapidamente em
intensidade, embora ainda houvesse algumas mortes por fome em 1948. A situação
atingiu a maioria das regiões produtoras de grãos do país: Ucrânia, Moldávia e
partes da Rússia central.
As
condições sociais foram causadas pela seca, cujos efeitos específicos foram
exacerbados pela devastação causada pela 2ª guerra mundial (1940-45). A safra
de grãos em 1946 totalizou 39,6 milhões de toneladas de apenas 40% da produção
de 1940. Com a guerra, houve diminuição significativa no número de homens
rurais, recuando para os níveis históricos de 1931. Houve uma escassez de
máquinas agrícolas e cavalos. O governo soviético, com suas reservas de grãos,
forneceu alívio para as áreas rurais e apelou para as Nações Unidas em busca de
ajuda. A assistência também veio dos ucranianos, principalmente da diáspora
rutena e dos russos do leste da Ucrânia e da América do Norte, que minimizaram
a mortalidade. O economista Michael Ellman afirma que o Estado poderia ter
alimentado todos aqueles que morreram de fome. Ele argumenta que se as
políticas do regime soviético tivessem sido diferentes, talvez não houvesse nenhuma
fome ou uma muito menor. Ellman afirma que a fome resultou em uma estimativa de
1 a 1,5 milhões de vidas perdidas, além das perdas secundárias da população
devido à redução da fertilidade. O economista Steven Rosefielde afirma que o
governo soviético era responsável pelas condições. Robert Service argumenta que
Stalin pensou, em primeira instância, que quaisquer relatos de dificuldades
rurais eram o resultado de camponeses enganando as autoridades urbanas para que
os favorecessem.
Durante
a crise, a URSS continuou a exportar grãos, com a maioria indo para a zona
soviética da Alemanha ocupada, Polônia, Hungria e Tchecoslováquia para
consolidar o novo Bloco Oriental. Em parte, como resultado dessa fome, ao
contrário de países da Europa e da América, a União Soviética não passou por um
baby boom do pós-guerra. Impulsionado pela fome de 1946-47, o chamado “Grande
Plano para a Transformação da Natureza” consistiu da série de projetos
ambiciosos em melhoria do cultivo da terra. Desde 2006, o Holodomor é
reconhecido pela Ucrânia e outros 15 países como “um genocídio do povo
ucraniano levado a cabo pelo governo soviético”. As estimativas iniciais do
número de mortos por estudiosos e funcionários do governo variaram muito. De
acordo com estimativas mais elevadas, até 12 milhões de ucranianos étnicos
terão perecido em resultado da fome. Uma declaração conjunta Organização das
Nações Unidas (ONU), assinada por 25 países em 2003, declarou que 7-10 milhões
pereceram. Desde então, a investigação reduziu as estimativas para entre 3,3 e
7,5 milhões. Segundo as conclusões do Tribunal de Recurso de Kiev em 2010, as
perdas populacionais demográficas devidas à fome ascenderam a 10 milhões, com
3,9 milhões de mortes por fome direta, e mais 6,1 milhões de déficits de
natalidade. Se o Holodomor foi genocídio é ainda objeto de debate acadêmico,
tal como as causas da fome e da intencionalidade das mortes. Alguns estudiosos
acreditam que a fome foi planejada por Joseph Stalin para eliminar um movimento
social e político de Independência ucraniano.
Metodologicamente
considera-se habitualmente que o interesse social de Marx pelos problemas econômicos, enquanto distintos
no nível de análise dos problemas filosóficos e dos historiográficos, teve
início com a investigação dos camponeses das Mosela, à qual ele se dedicou
entre 1840 e 1843, quando dirigia a Rheinische Zeitung. Um estudo sério das
obras dos economistas, em particular, Smith, Ricardo, James Mill, McCuldoch e
Say, começou no período da estadia de paris, depois da transferência de Marx
para a capital francesa, ocorrida em 1843; um estudo que prosseguiu mais
intensamente no longo exílio londrino, uma vez concluídos os episódios
revolucionários hic et nunc no continente europeu nos anos de 1848. Os anos
1850 foram os anos da miséria de Marx, vividos nos apertados cômodos do Soho,
os anos das frequentes visitas às casas de penhor e da dependência econômica da
generosidade do amigo Friedrich Engels: foi o período no qual Marx utilizou a
sala de leitura do British Museum para os profundos e amplos estudos que
iriam encontrar seu coroamento, vinte anos depois na majestosa obra O
Capital. Fruto daquele período de intenso estudo e pesquisa foram os
volumosos manuscritos, que cobrem cerca de sete cadernos, aos quais se deu o
nome de Grundrisse der Kritik der Politischen Oekonomie (Rohentwurf)
e que só foram publicados em 1939-1941. Em troca, em 1859, oito anos antes da
publicação do Livro I de O Capital, foi publicado um trabalho menos
volumoso, intitulado: Zur Kritik der Politischen Oekonomie, onde Marx
expõe traços do método de análise. Essa obra introdutória foi chamada de
“prólogo” da Magnum opus de Marx, isto é, seu corte teórico é
predominante metodológico; no Livro I da extraordinária obra, ela começa
com uma análise da mercadoria, já distinguindo método de exposição de método de
análise.
Todavia,
se o livro A Sagrada Família (2011), comparativamente, é a primeira obra
em que Marx e Engels trabalham juntos, na pesquisa sobre a “ideologia
dominante”, nela a autoria de análise dos textos ainda é claramente dividida,
ao contrário do que acontece em A Ideologia Alemã. Pronta a obra, vários
editores acabaram por recusar sua impressão porque tinham, todo eles, contatos,
ou simpatizavam com algum dos seus representantes das tendências analisadas
criticamente pelos bravos pensadores através da explicitação da abertura do
dogma que emerge na origem da ideologia. A postura de Marx a respeito é
interessante, pois o filósofo diz ter abandonado o manuscrito tanto mais
prazerosamente “à crítica roedora dos ratos” por ter atingido junto com Engels,
um fim mais importante: ver claro dentro de si mesmos. E os autores de fato morreriam sem ver a
volumosa obra ser publicada. Apenas o capítulo IV do 2° volume seria publicado
na revista Westphalisches Dampfboot, em agosto e setembro de 1847. A Ideologia
Alemã foi publicada em 1932 e as “Teses sobre Feuerbach”, embora Engels
tenha publicado antes, mas num texto, segundo o filósofo Konder (2010), que continha “palavras
diferentes de Marx”.
Em
sua feição presente e definitiva seria publicada apenas em 1932, tendo sido
descoberta pelo historiador russo David Riazanov do Instituto Marx-Engels de
Moscou. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 também foram publicados em
1932. E os Grundrisse foram publicados em 1939, porém só circularam amplamente
para leitura em 1945. David Borisovich Goldendach, reconhecido como Riazanov
nasceu em 10 de março de 1870 em Odessa e morreu em 21 de janeiro de 1938.
Victor Serge, que era seu amigo, descreve-o assim: “traços fortes, corpulento,
barba e bigode espessos, olhar observador, testa olímpica, temperamento
tempestuoso, expressões irônicas”. Aos 15 anos, uniu-se aos populistas russos
do jornal Narodnaia Volia e foi logo preso. Ele passou cinco anos, isto
é, sua adolescência, na prisão. Foram anos de intenso estudo de economia e
história marxistas: a paixão pelo estudo e pela leitura foi um elemento
constante, regularmente de sua extraordinária vida. Várias testemunhas
lembram-se dele como constantemente mergulhado em alguma leitura a qualquer
hora do dia. Ele foi libertado, mas logo foi novamente preso e condenado a
quatro anos de prisão por ter organizado um círculo marxista em Odessa. Em
1900, Riazanov é a cabeça do grupo marxista Borba (Luta). Este é um ano que
marcará sua vida para sempre.
Ele
foi para Berlim, para ter acesso ao depósito onde o SPD - a seção alemã da
Segunda Internacional - conservava os manuscritos de Marx e Engels. O
historiador Riazanov fica espantado ao ver a desordem na qual textos de tal
importância histórica e social eram conservados. Fica sabendo que parte do
material está na casa de Eduard Bernstein, que é o executor testamentário de
Friedrich Engels e que, justamente naqueles anos, estava envolvido em
controversa revisão reformista do marxismo. Riazanov descobre com horror que as
bibliotecas pessoais de Marx e Engels não foram preservadas: centenas de livros
com anotações dos fundadores do marxismo foram perdidos. Voltando para a
Rússia, no II Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR),
ocorrido entre 30 de julho e 23 de agosto de 1903 que ficou famoso pela cisão
que se consumou entre bolcheviques e mencheviques, não toma partido por nenhuma
das duas frações e no Congresso, seu pequeno grupo, Borba, participa com apenas
um voto consultivo. Em 1905, vamos encontrá-lo em São Petersburgo, envolvido na
primeira experiência fundamental da Revolução Russa, sendo um dos fundadores do
sindicato dos trabalhadores ferroviários. Após a derrota, ele está entre os
condenados à deportação.
Depois
de cumprir sua pena, viaja pela Europa, onde alimenta aquela vontade insaciável
pelos textos de Marx e Engels, que seria a constante ao longo de toda sua vida.
Na Alemanha, tem acesso aos arquivos do SPD e inicia um estudo aprofundado
sobre a Primeira Internacional, sobre a qual passará a ser o principal
especialista. O nascimento do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD)
ocorreu numa época em que os trabalhadores, sem direitos garantidos, começaram
a se rebelar contra o patriarcado dos empresários. Ele torna-se amigo de Karl
Kautsky e Eduard Bernstein, que eram os principais teóricos da socialdemocracia
e foram os mais próximos colaboradores de Engels na última fase de sua vida,
depois da morte de Marx em 1883. Ele também conhece August Bebel, o líder do
SPD, que lhe garante o livre acesso ao arquivo do partido. Entre os novos
amigos, Riazanov conta, naqueles anos, também com Paul Lafargue e sua esposa
Laura, filha de Marx, que lhe fornecem vários textos da família. Nos arquivos
do SPD e nos da família de Marx, onde ele mergulha com entusiasmo, Riazanov
encontra importantes documentos inéditos. Kautsky, em 1910, notando a seriedade
do pesquisador, confia-lhe a tarefa de reconstruir a correspondência de Marx e
Engels com uma edição científica. Em 1911, Riazanov descobre as diferentes
versões da importante carta para a populista Vera Zasulich, na qual Marx se
pronuncia sobre o futuro da revolução russa. Tem a possibilidade de constatar
que Bernstein e Franz Mehring tinham, até então, publicado a correspondência de
Marx e Engels usando muitas vezes a tesoura ou mesmo alterando expressões que
eles julgavam muito fortes contra outros dirigentes.
O Instituto Marx-Engels-Lenin, estabelecido em Moscou em1919 como o Instituto Marx–Engels, era uma biblioteca e instituto de arquivamento Soviético anexado à Academia Comunista. O instituto foi posteriormente anexado ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e serviu como centro de pesquisa e editora de obras oficialmente publicadas da doutrina marxista. O Instituto Marx-Engels reuniu manuscritos não publicados de Karl Marx, Frederick Engels, V.I. Lenin, e outros importantes teóricos marxistas, além de coletar livros, panfletos e periódicos relacionados aos movimentos socialistas e trabalhistas organizados. Por volta de 1930, as instalações da empresa incluíam mais de 400.000 livros e periódicos e mais de 55.000 documentos originais e de fotocópias apenas de Marx e Engels, tornando-se uma das maiores e mais ricas propriedades de material socialista do mundo. Em fevereiro de 1931, o diretor do Instituto Marx-Engels, David Riazanov e outros funcionários foram expurgados por razões político-ideológicas. Em novembro do mesmo ano, o Instituto Marx-Engels foi fundido com o maior e, talvez, menos erudito Instituto Lenin, fundado em 1923 para formar o Instituto Marx-Engels-Lenin. O instituto era a autoridade coordenadora para a organização sistemática de documentos lançados nas obras em vários volumes Marx-Engels-Gesamtausgabe (Textos de Marx-Engels), a Lenin Polnoe Sobranie Sochineniia (Obras Completas), I.V. Stalin Sochineniia (Trabalhos) e numerosas outras publicações oficiais. O Instituto Marx-Engels-Lenin foi oficialmente encerrado em novembro de 1991, em função da “guerra de movimento” da reestruturação, com a maior parte de suas obras agora pertencendo a uma organização sucessora, o Arquivo estatal russo de história sócio-política.
Bibliografia Geral Consultada.
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