“A ânsia de poder não é originada da força, mas da fraqueza”. Erich Fromm (1975)
Concordamos
com o filósofo Louis Althusser (1977) que infere Charles-Louis de Secondat - Montesquieu (1689-1755), o fundador da ciência
política, sendo uma verdade adquirida. Disse-o o fundador da Sociologia Auguste Comte, repetiu-o Émile Durkheim
e nunca ninguém contestou seriamente tal afirmação. Mas talvez seja preciso
recuar um pouco para distingui-lo de seus predecessores e compreender
exatamente o que o distingue deles. Desnecessário dizer que todo o
pensamento político antigo viveu sob a convicção não de que uma ciência do
político era possível, o que é uma convicção crítica, mas de que era
necessário fazê-la. E os pensadores modernos na esteira desse debate, retomaram
esta tese que vemos em Bodin, Hobbes, Spinoza e Grotius. Acho que se deve
recusar aos antigos, não a pretensão de refletirem sobre a política, mas a
ilusão de lhe terem construído a ciência. Porque a ideia que faziam da ciência
provinha diretamente dos conhecimentos que detinham. E estes, para além de certas
regiões matemáticas não unificadas na história antes de Euclides, não passavam
de visões imediatas ou de projeções da filosofia nas coisas, eram estranhos à
nossa ideia de ciência, visto que não lhe conheciam ainda o exemplo. A questão
filosófica posta por Althusser é a seguinte: Como explicar que o espírito de um
Jean Bodin, de Nicolau Maquiavel, de Thomas Hobbes ou de um Baruch Spinoza, contemporâneo das
disciplinas já rigorosas que triunfavam em matemática e em física, tinha podido
permanecer cego ante o modelo do conhecimento que herdamos?
O projeto de constituir uma ciência da política e da história supõe que a política e a história podem ser objeto de uma ciência, isto é, contém uma necessidade que a ciência pretende descobrir. Logo, é preciso destruir a ideia cética de que a história da humanidade não é senão a história dos seus erros, de que um só princípio pode unir a prodigiosa e desencorajante diversidade dos costumes: a fraqueza humana; de quem uma só razão pode esclarecer esta desordem infinita: a irracionalidade do homem. É necessário dizer: Comecei por examinar os homens e conclui que na infinita diversidade das leis e dos costumes, não eram conduzidos apenas pelas suas fantasias, mas por uma razão profunda que, embora nem sempre razoável, é pelo menos sempre racional; por uma necessidade cujo poder é tão forte que nela entram não só instituições bizarras, mas até o próprio acaso que faz com que se perca ou ganhe uma batalha e pode determinar uma conjuntura qualquer. Através desta necessidade racional é rejeitada, com o ceticismo que lhe serve de pretexto, toda a tentação apologética pascaliana que procura a todo o transe na desrazão humana a prova de uma razão divina; e todo o recurso a princípios que no homem passam por cima do homem, como a religião, ou lhe impõem fins, como ocorre em análise comparada sociologicamente com a moral.
Não é à teologia que cabe enunciar a verdade dos fatos da política. Velha querela, esta. Mas hoje imaginamos dificilmente quanto pesava sobre a história o decreto da Igreja. Basta lermos Bossuet em guerra aberta contra Spinoza, culpada de ter esboçado uma história do povo judeu e da Bíblia, ou contra Richard Simon, que concebeu o mesmo projeto no seio da própria Igreja, para termos uma ideia da violência do conflito entre a teologia e a história. Este conflito ocupa toda a Défense de l` Esprit des Lois. Acusam Montesquieu de ateísmo, de deísmo; de ter calado o pecado original; justificado a poligamia, etc.; numa palavra, de ter “reduzido as leis a causas puramente humanas”. Montesquieu responde: introduzir a teologia em história, é confundir as ordens e misturar as ciências, o que é o meio mais seguro para as deixar na infância. Não, o seu propósito não é fazer de teólogo; não é teólogo, mas jurisconsulto e político. Está de acordo em que todos os objetos da ciência política possam ter também um sentido religioso, que se possa discutir o celibato, a usura, a poligamia, como teólogo. Mas todos estes fatos revelam também e antes de mais de uma ordem estranha à teologia, de uma ordem autônoma que tem os seus princípios próprios. Deixem-no, pois, em paz. Não proíbe que se ajuíze como teólogo. Cedam-lhe, portanto, em troca disso o direito de ajuizar como político. E não se procure teologia na sua política. Há tanto de teologia na sua política como de campanário de aldeia no óculo através do qual um cura vê a Lua. A religião não pode impedir a história de tomar foros de ciência ou da moral.
É este, no entanto, o problema da reflexão política de seu tempo, e se a sua forma é estranha, a sua lógica é profunda. Para se demonstrar a origem radical da sociedade, pense em Leibniz querendo captar “a origem radical das coisas”, é preciso tomar os homens antes da sociedade, isto é, in statu nascendi. Saindo da terra como abóboras, diz Hobbes. Como nus, dirá Rousseau. Despidos não só de todos os meios da arte, mas sobretudo de todos os laços humanos. E toma-los num estado que seja como que o nada de sociedade. Este estado original recebe traços diferentes segundo os autores. Hobbes e Spinoza vêm nele o reino do estado de guerra, o triunfo do forte sobre o fraco. Locke, a paz. Rousseau, a solidão absoluta. Os diferentes traçados do estado natural ora se lançam no desenho das razões que os homens tiveram para sair dele, ora esboçam as forças geradoras do estado social que está para vir e o ideal das relações humanas. Paradoxalmente, este estado ignorante de todo o tipo de sociedade, contém e prefigura o ideal de uma sociedade a criar. É o fim da história inscrito na origem. Assim, a ideia de “liberdade” do indivíduo em Hobbes, Spinoza e Locke. Assim a igualdade e a independência do homem em Rousseau. Mas todos estes autores fundamentaram o que têm em comum o mesmo conceito e o mesmo problema: o estado natural é apenas a representação da origem de uma sociedade de que querem descrever a gênese. É o contrato social que assegura a passagem do nada de sociedade a sociedade existente.
É bem verdade que, a partir de meados do século XVI, se assiste ao nascimento e ao desenvolvimento, num movimento conjunto, de uma primeira física matemática e à exigência de uma segunda a que depressa se chamará física moral ou política, e que aspirará ao rigor da primeira. É que a oposição entre as ciências da natureza e as ciências do homem não surgiu claramente ainda. Os mais metafísicos exilam em Deus essa ciência da política ou da história que apontas o conjunto dos acidentes da fortuna, ou dos decretos da liberdade humana: tal Leibniz (1646-1716), um proeminente polímata e filósofo alemão e figura central na história da matemática e na história da filosofia. Mas segundo Althusser, só se põem nas mãos de Deus os defeitos da mão do homem e ele confiava de fato a Deus a ideia humana de uma ciência do homem. Quanto aos positivistas, moralistas, filósofos do direito e ao próprio Spinoza, não duvidam nem por um instante que as relações humanas possam ser tratadas como relações físicas. Thomas Hobbes só vê entre as matemáticas e as ciências sociais uma diferença: as primeiras unem os homens; as segundas dividem-nos. Daí decorre a tese de oposição dialética que nas primeiras, a verdade e o interesse dos homens não se encontram em oposição, enquanto nas segundas sempre que a razão é contrária ao homem e o homem é contrário à razão.
Como pretender que Montesquieu tenha aberto vias que encontramos antes? Na verdade, se ele parece seguir vias já reconhecidas, não vai ao mesmo objeto. Helvetius diz que Montesquieu tem a “sutileza” de Montaigne. Possui a mesma curiosidade e tem a mesma maneira de refletir. Como Montaigne e todos os seus discípulos, compiladores de exemplos e de fatos inquiridos em todos os lugares e em todos os tempos, tinha por objeto a história inteira de todos os homens que viveram. E não foi por acaso que teve essa ideia. Pensemos no fato duplo da revolução que abala o mundo entre os séculos XV e XVI. Uma revolução no espaço do mundo. Uma revolução na sua estrutura. É o tempo da Terra descoberta, das grandes explorações que abrem à Europa o conhecimento e a exploração das Índias do Oriente e do Ocidente, e da África o chamado continente negro. Os viajantes trazem então nos seus cofres as especiarias e o ouro e, na memória, o relato dos costumes e de instituições que abalam todas as verdades estabelecidas. Mas este escândalo não teria provocado mais que um rumor de curiosidade nos próprios países que assim lançavam os seus navios em busca de novas terras. Outros acontecimentos não tivessem também resolvido os fundamentos destas convicções estabelecidas: guerras civis, revolução religiosa da Reforma, guerras de religião, transformação da estrutura tradicional do Estado, ascensão dos plebeus, decadência dos grandes – transformações cujo eco se ouve em todas as obras deste tempo, conferem à matemática dos escandalosos relatos trazidos de além-mar a dignidade contagiosa de fatos reais e plenos de sensos.
Dentre alguns dos principais promotores das pesquisas sobre o Brasil foi o naturalista Domingos
Vandelli (1735-1816), membro da Academia Real das Ciências de Lisboa,
professor de história natural e química da Universidade de Coimbra e diretor do
Jardim Botânico do Real Palácio da Ajuda. Vandelli formou toda uma geração de
naturalistas, muitos dos quais nascidos no Brasil. Foi ele quem indicou
Alexandre Rodrigues Ferreira como naturalista responsável pela expedição que
explorou o norte do Brasil, realizada entre 1783 e 1792. A Viagem Filosófica
pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, foi a mais
importante expedição realizada pelos luso-brasileiros no Brasil. Os comerciais interesses
gerais da expedição foram o reconhecimento medicinal das chamadas “drogas do
sertão”, passíveis de serem comercializadas e a legitimação da ocupação da
Amazônia pelos colonizadores, depois da conquista legal,
garantida e sacramentada pelo Tratado de Madri de 1750. A viagem de Alexandre Ferreira
é filosófica na medida em que se enquadra nos moldes das expedições do enciclopedismo.
Ele age segundo a lógica do “administrador colonial esclarecido”, como se julgava em tese, pelas luzes da ciência. É com esse espírito utilitário que o viajante nascido na Bahia descreve plantas, animais, regiões e aspectos físicos e culturais das diversas tribos e povos indígenas dentre os povoamentos brasileiros. Acompanharam-no o jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo e os desenhistas José Joaquim Freire e Joaquim Codina. O frei franciscano José Mariano da Conceição Velloso (1741-1808) foi um dos mais importantes executores da política científica ilustrada de fins do século XVIII e início do século XIX. Suas viagens pelo Rio de Janeiro, promovidas pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos (1742-1809), se realizaram entre 1782 e 1790, passando por Parati, Ilha Grande e chegando até São Paulo. A equipe, constituída, entre outros, pelos religiosos frei Francisco Solano, desenhista de história natural e frei Anastácio de Santa Inês, encarregado das descrições científicas, tinha por objetivo fazer o levantamento dos recursos naturais da capitania do Rio de Janeiro. Embora o material produzido por Velloso e seus ajudantes tenha sido executado com rigor e de acordo com os padrões científicos de seu tempo, a divulgação dos resultados da viagem foi demorada e incompleta. A Flora Fluminensis seria publicada com os textos e as pranchas a partir de 1827. Manuel Arruda da Câmara, natural da Paraíba, viajou pelo Nordeste em diversas ocasiões: entre 1794 e 1795 percorreu as províncias de Pernambuco e Piauí, de 1797 a 1799 esteve nas províncias da Paraíba e no Ceará e em 1799 e 1800, no Maranhão.
Algumas vezes pode contar com o espírito de colaboração do padre João Ribeiro Montenegro, afamado desenhista de plantas. Arruda da Câmara publicou alguns trabalhos de história natural e economia rural, sempre buscando divulgar novas técnicas agrícolas, além de refletir sobre aspectos filosóficas da natureza. Diversos outros homens de ciência realizaram expedições nesse período, como é o caso notável de João da Silva Feijó, José Vieira Couto e do próprio José Bonifácio de Andrada e Silva. Antes de assumir cargos públicos no Brasil, José Bonifácio havia estudado em Freiberg e em Paris e publicado artigos sobre mineralogia em periódicos científicos europeus. Além de ter empreendido expedições mineralógicas na Europa viajou pela província de São Paulo em 1820. A geração luso-brasileira identificada com o ideário iluminista apresenta, desse modo, uma certa homogeneidade de conduta, de mimetismo sociológico, onde a ciência pura é vista “como instrumento necessário à prosperidade econômica do Estado”. O período áureo das viagens científicas ao Brasil foi o século XIX. Com a migração da Corte e o fim das guerras napoleônicas, em 1815, houve um “novo descobrimento do Brasil”, segundo a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, que se tornou clássica.
Os
viajantes desse período são muito mais especializados do que os do século
anterior e, em geral, cumpriam missões com objetivos científicos bem definidos.
Data dessa época a relativa separação do campo científico da esfera de ação da
política. O cientista passa a ser, em muitas ocasiões, a figura principal das
expedições, em vez de subordinar-se a interesses políticos e militares. José
Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) foi um naturalista, estadista e poeta
brasileiro, reconhecido pelo epíteto de Patriarca da Independência por
seu papel na Independência do Brasil. Em 11 de janeiro de 2018, foi declarado
oficialmente Patrono da Independência do Brasil. Além de sua atuação
política, obviamente, teve destacada carreira como naturalista, notadamente no
campo da mineralogia, “tendo recebido reconhecimento internacional em vida”.
Descobriu 4 minerais, incluindo a petalita, que permitiria a descoberta do
elemento lítio, e a andradita, “batizada em sua homenagem”. Na esfera
política, foi ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros de janeiro de 1822
a julho de 1823, e, desde o início do cargo, colocou-se em apoio à regência de
D. Pedro de Alcântara. Proclamada a Independência, comandou uma política
centralizadora e organizou a ação militar contra os focos de resistência à
separação de Portugal. Nos debates da Assembleia Constituinte, deu-se o
rompimento dele e de seus irmãos Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio
Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva com o já imperador Pedro I.
Como consequência, em 16 de julho de 1823, o imperador demitiu-o do posto de ministro, e José Bonifácio passou à oposição. Após o fechamento da Constituinte, em 11 de novembro de 1823, José Bonifácio foi banido e exilou-se na França por seis anos. De volta ao Brasil, e reconciliado com o imperador, quando de sua atitude política de abdicação, em 1831, assumiu tutoria de seu filho. Permaneceu como tutor do futuro Pedro II até 1833, quando “foi demitido pelo governo da Regência, devido a disputas por poder dentre as facções que o compunham”. Do ponto de vista de sua formação em São Paulo, frequentou aulas de gramática, retórica e filosofia, nos cursos abertos por Dom Frei Manuel da Ressurreição (1718-1789), dono de boa biblioteca. Era o ensino preparatório para o ingresso na universidade em Coimbra, para onde iam os brasileiros com recursos financeiros e boa conduta em termos de relações internacionais. Tinha 16 anos quando, com seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco, José Bonifácio requereu habilitação de genere, passo indispensável à carreira eclesiástica. Não havia universidades no Brasil nem qualquer prelo. Em 1783, viajou da ciade do Rio de Janeiro para Portugal, matriculando-se na Universidade de Coimbra e iniciando curso de estudos jurídicos, acrescidos em outubro de 1784, dos cursos de matemática e filosofia natural.
Por mais simples que seja a linguagem e clara a sua exposição, sempre apresenta dificuldades específicas inevitáveis, porque dizem respeito à natureza própria da teoria, mais precisamente da produção do discurso teórico, e por isto produção. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste pois em que, por detrás do significado usual da palavra, é sempre preciso discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual. Um bom exemplo, ocorre quando o leitor pensa compreender imediatamente o que Marx quer dizer quando emprega uma palavra tão corrente como a palavra trabalho. No entanto, é preciso um grande esforço para discernir, por detrás da evidência familiar (ideológica) desta palavra, o conceito marxista de trabalho, e mais ainda, para ver que a palavra trabalho pode designar vários conceitos distintos: os conceitos de processo de trabalho, de trabalho concreto, de trabalho abstrato, etc. Quando uma terminologia teórica é boa, lembra Althusser, no ensaio: Sobre o Trabalho Teórico (1978), isto é, bem determinada e bem referenciável, ela assume a função precisa de impedir as confusões entre o significado usual das palavras e o significado teórico (conceptual) das mesmas palavras. Sua conjunção particular que produz significado novo, definido que é o que chamamos do ponto de vista científico de conceito teórico. Não pode haver discurso teórico sem a produção destas expressões específicas, que designam conceitos teóricos de determinada prática da teoria.
Isto quer dizer que a cultura, a
sociedade e a comunicação vêm articular-se a uma estrutura de relações sociais.
No escravagismo antigo, nada distingue, do ponto de vista abstrato da estrutura
do modo de produção (cf. Bartra, 1978), o escravo do agricultor
independente, proprietário privado individual. O que os distingue é a relação
com o trabalho. Se um se conduz como proprietário das condições materiais da
reprodução de sua existência, no outro caso é o mestre que se conduz como
proprietário das condições naturais da reprodução de sua existência material do
escravo. Pode-se fazer a mesma comparação e distinção entre o escravo moderno,
do século XIX, e o trabalhador agrícola no sistema técnico de trabalho, ao qual
se articulam relações sociais diferentes. A interligação dos processos de
trabalho é primeiramente de ordem técnica, na medida em que está contida nos
meios de trabalho e envolve imediatamente trabalhadores em situações específicas
de trabalho. Em seguida é de ordem social, basicamente quanto à escala e quanto
ao sentido de conjunto para satisfazer necessidades sociais. É, finalmente, de
ordem tecnológica, na medida em que a produção, circulação, uso, dos produtos
resultantes do processo de trabalho interligados, representam o próprio sistema
social no âmbito de determinada cultura e/ou sociedade. Produzindo e consumindo
determinados produtos/mercadoria os homens primeiro tecnologicamente (cf.
Leroi-Gourhan, 1984) produzem a sociedade e as relações sociais nela
existentes. Um sistema de trabalho é uma estrutura onde o que está em jogo como
atividade é o trabalho e a reprodução da vida.
Um bom exemplo, encontra-se em Marx (2013), na análise econômica e social da mercadoria em que o produto do fiandeiro de algodão – o fio – é a forma-mercadoria de seu capital; é, para ele, capital-mercadoria. O fio não pode voltar a funcionar como componente de seu capital produtivo, seja como material de trabalho, seja como meio de trabalho. Mas nas mãos do tecelão que o compra, ele é incorporado a seu capital produtivo como um de seus componentes líquidos. Para o fiandeiro, porém, o fio é o suporte do valor de uma parte tanto de seu capital fixo como de seu capital líquido (abstraindo do mais-valor). Assim, uma máquina, como produto do fabricante da maquinaria, é a forma-mercadoria de seu capital; ela é, para ele, capital-mercadoria e, enquanto permanece sob essa forma, não é capital líquido nem fixo. Se é vendida a um fabricante que a emprega, ela se converte em elemento fixo de um capital produtivo. Mesmo quando o produto, segundo sua forma útil, pode voltar a ser integrado como meio de produção no processo do qual saiu, como ocorre, por exemplo, com o carvão na produção carbonífera, a parte do produto destinada precisamente à venda não representa capital fixo nem circulante, mas simplesmente capital-mercadoria. Por outro lado, pode ocorrer que, dependendo de sua forma útil, o produto seja absolutamente inadequado para constituir qualquer elemento do capital produtivo, seja como material de trabalho, seja como meio de trabalho. É o que ocorre como qualquer meio de subsistência.
Excetuando-se sempre a parte do produto diretamente consumida como meios de produção por seus produtores, vale para a produção capitalista a tese geral: todos os produtos chegam ao mercado como mercadorias e, assim, circulam para o capitalista como a forma-mercadoria de seu capital, como capital-mercadoria, não importando se tais produtos , por sua forma natural, por seu valor de uso, devem ou podem funcionar como elementos do capital produtivo (do processo de produção) e, portanto, como elementos fixos ou circulantes deste último, ou se só podem servir como meios de consumo individual, e não do consumo produtivo. Todos os produtos são lançados ao mercado como mercadorias; por isso, todos os meios de produção e de consumo, todos os elementos do consumo produtivo e individual têm de ser novamente retirados do mercado como mercadorias, por meio da venda. Essa trivialidade está naturalmente correta. A máquina é, de fato, comprada no mercado, assim como o algodão. Mas, uma máquina de fiar não tem valor se não é utilizada para fiar, ou seja, se não funciona como elemento de produção e, do ponto de vista capitalista, não funciona como componente fixo de um capital produtivo. Mas a máquina de fiar é móvel. Ela pode ser exportada do país no qual foi produzida e ser diretamente vendida no estrangeiro, em troca de matérias-primas etc., ou de champagne. No país em que foi produzida ela funcionou apenas como capital-mercadoria, mas nunca nem mesmo depois de sua venda, como capital fixo.
Do
ponto de vista metodológico notou Norbert Elias (2006) que o conceito de
civilização se refere a uma grande variedade de fatos sociais: nível da
tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de
habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição
determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os
alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma
“civilizada” ou “incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas
palavras tudo o que se pode descrever como chave na civilização. Mas também não
significa a mesma coisa para diferentes nações ocidentais. Acima de tudo, é
grande a diferença entre a forma como ingleses e franceses empregam a palavra,
por um lado, e os alemães, por outro. Para os primeiros, o conceito resume em palavra seu orgulho pela importância de suas nações para o
progresso do Ocidente e da humanidade em geral.
O conceito de figuração distingue-se de outros conceitos teóricos da sociologia por incluir expressamente os seres humanos em sua formação social. Contrasta, portanto, decididamente com um tipo amplamente dominante de formação de conceitos que se desenvolve sobretudo na investigação de objetos sem vida, portanto no campo da física e da filosofia para ela orientada. Há figurações de estrelas, assim como de plantas e de animais. Mas apenas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modo de sua vida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular e sempre co-determinado pela transmissão de conhecimento de uma geração a outra, por tanto por meio do ingresso singular do mundo simbólico específico de uma figuração já existente de seres humanos. Às quatro dimensões espaço-temporais indissoluvelmente ligadas se soma, no caso dos seres humanos, uma quinta, a dos símbolos socialmente apreendidos. Sem sua apropriação, sem, por exemplo, o aprendizado de uma determinada língua especificamente social, os seres humanos não seriam capazes de se orientar no seu mundo nem de se comunicar uns com os outros. Um ser humano adulto, que não teve acesso aos símbolos da língua e do conhecimento de determinado grupo permanece fora de todas as figurações humanas, pois não é um ser humano.
As definições de controle social são demasiado amplas e vagas, e, portanto, seria legítimo indagar, escolhendo-as mais ou menos ao acaso, para inferir que resultam em termos de um controle, isto é, qualquer estímulo ou complexo de estímulos que provoca uma determinada reação. Assim, pois, todos os estímulos são controles, pois representam a direção do comportamento por influências grupais, estimulando ou inibindo a ação individual ou grupal. O controle social pode ser definido como a soma total ou, antes, o conjunto de padrões culturais, símbolos sociais, signos coletivos, valores culturais, ideias e idealidades, tanto como atos quanto como processos diretamente ligados a eles, pelo qual a sociedade inclusiva, cada grupo particular, e cada membro individual participante superam as tensões e os conflitos entre si, através do equilíbrio temporário, e se dispõem a novos esforços criativos. Ipso facto, em toda a dimensão da vida associativa deverá haver algum ajustamento de relações sociais tendentes a prevenir a interferência de direitos e privilégios entre os indivíduos. De maneira mais específica, são três as funções do estabelecidas pelo controle social: a obtenção e a manutenção da ordem social, da proteção social e da eficiência social. O seu emprego hic et nunc na investigação sociológica contribuiu consideravelmente para produzir uma simplificação ou redução na análise dos problemas sociais, conseguida proporcionalmente, graças à compreensão positiva da integração das contradições correspondentes no sistema de organização das sociedades e da importância relativa de cada um deles, como e enquanto expressão do jogo social. Embora obscuro e equívoco, em seu significado corrente na história contemporânea, o conceito de controle social é necessário à investigação sociológica encontraram um sistema de referências propício à sua crítica científica, seleção lógica e coordenação metódica.
O crescimento de um jovem convivendo e habitando comum em figurações humanas, como processo social e experiência, assim como o aprendizado de um determinado esquema de autorregulação na relação com os seres humanos, é condição indispensável ao desenvolvimento rumo à humanidade. Socialização e individualização de um ser humano, são nomes diferentes para o processo. Cada ser humano assemelha-se aos outros, e é, ao mesmo tempo, diferente de todos os outros. O mais das vezes, as teorias sociológicas deixam sem resolver o problema da relação entre indivíduo e sociedade. Quando se fala que uma criança se torna um indivíduo humano por meio da integração em determinadas figurações, como, por exemplo, em famílias, em classes escolares, em comunidades aldeãs ou em Estados, assim como mediante a apropriação e reelaboração de um patrimônio simbólico social, conduz-se o pensamento por entre dois grandes perigos da teoria e das ciências humanas: o perigo de partir de um indivíduo a-social, portanto como que de um agente que existe por si mesmo; e o perigo de postular um “sistema”, um “todo”, em suma, uma sociedade humana que existiria para além do ser humano singular, para além dos indivíduos. Embora não possuam um começo absoluto, não tendo nenhuma outra substância a não ser seres humanos gerados familiarmente por pais e mães, as sociedades humanas não são simplesmente um aglomerado cumulativo dessas pessoas. O convívio dos seres humanos em sociedades tem sempre, mesmo no caos, na desintegração, na maior desordem social, uma forma absolutamente determinada. É isso que o conceito de figuração exprime.
O
processo de concentração física de força pública se acompanhada de uma
desmobilização da violência ordinária. A violência física só pode ser aplicada
por um agrupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim,
claramente identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um
agrupamento simbólico, centralizado e disciplinado. A noção de disciplina,
sobre a qual Max Weber escreveu páginas magníficas, é capital: não se pode
concentrar a força física sem, ao mesmo tempo, controla-la, do contrário é o
desvio da violência física, e o desvio da violência física está para a
violência física assim como o desvio de capitais está para a dimensão
econômica: é o equivalente da concussão. A violência física pode ser
concentrada num corpo formado para esse fim, claramente identificado em nome da
sociedade pelo uniforme simbólico, especializado e disciplinado, isto é, capaz
de obedecer como um só homem a uma ordem central que, em si mesma, não é
geradora de nenhuma ordem. O conjunto das instituições mandatadas para garantir
a ordem, a saber, as forças públicas e de justiça, são, portanto, separadas
pouco a pouco do mundo social corrente. Essa concentração do capital físico se
realiza em um duplo contexto. Para uns, o desenvolvimento do exército
profissional está ligado à guerra, assim como o imposto; mas há também a guerra
interior, a guerra civil, a arrecadação do imposto como uma espécie de guerra
civil.
A
estratégia do passado que visava organizar novos espaços urbanos transformou-se
meramente em artifícios políticos e muito pouco em torno de reabilitação de
patrimônios. Depois de haver inconscientemente projetado a cidade futura,
torna-se uma cidade frequentada por sua estranheza, muito mais elevada aos
excessos que reduzem o presente, a nada mais que simples escombros como caixas
d`água que deixam escapar seu domínio do tempo. Mas os técnicos se denunciam já
no quadriculamento que atrapalhavam os planejadores funcionalistas que deviam
fazer tábula rasa das opacidades contidas nos projetos de cidades
transparentes. Afinal qual o urbanismo que não descontroem mais do que uma
guerra a questão da memória e da história aldeã, operária, com casas
desfiguradas, fábricas desativadas, universidades sem vida, cacos de histórias
naufragadas que hoje formam as ruínas de uma cidade fantasma ou fantasmas da
cidade, antes modernista, cidade de massa, homogênea, como os lapsos de uma
linguagem que se desconhece, quem sabe inconsciente. Mas elas surpreendem. O
imaginário individual (sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos), em
primeiro lugar, são as coisas que o soletram. Eles têm uma função social que
consiste em abrir uma profundidade no presente, mas não têm mais o conteúdo que
provê de sentido a estranheza do passado. Suas histórias deixam de ser
pedagógicas para inferir o trágico.
O
Estado se constitui, portanto, em relação à forma de governo um duplo contexto:
de um lado, efeitos de poder político em relação a outros Estados, atuais ou
potenciais, isto é, os princípios concorrentes – portanto, precisa concentrar
“capital de força física” para travar a guerra pela terra, pelos territórios;
de outro lado, em relação a um contexto interno, a contrapoderes, isto é,
príncipes concorrentes ou classes dominadas que resistem à arrecadação do
imposto ou ao recrutamento de soldados. Esses dois fatores favorecem a criação
de exércitos poderosos dentro dos quais se distinguem progressivamente forças
propriamente militares e forças propriamente policiais destinadas à manutenção
da ordem interna. Essa distinção exército/polícia, evidente hoje, tem uma
genealogia extremamente lenta, as duas forças têm sido por muito tempo
confundido. O desenvolvimento do imposto está ligado às despesas de guerra. O
nascimento do imposto é simultâneo a uma acumulação extraordinária de capital
detido pelos profissionais da gestão burocrática e à cumulação de um imenso
capital informacional. É o vínculo institucional entre Estado e estatística: o
Estado está associado a um conhecimento racional do mundo social e
governamental. A estatística em como representação o campo da matemática que
relaciona fatos sociais e números em que há um conjunto de métodos que nos possibilita
coletar dados e analisá-los, assim sendo possível realizar alguma interpretação
deles.
No âmbito da historiografia e em
filosofia da história, o progresso representa a ideia de que o mundo
pode se tornar gradativamente melhor no que diz respeito à ciência, tecnologia,
modernização, liberdade, democracia, qualidade de vida, etc. Embora ao
progresso esteja frequentemente associada a noção ocidental da mudança monótona
de uma tendência, em linha reta, no entanto concepções alternativas existem,
como a teoria cíclica do “eterno retorno” formulada por Friedrich Nietzsche, ou
“em forma de espiral” o progresso da dialética de Friedrich Hegel, Karl Marx e
outros. Noutras palavras, o progresso é entendido como um conceito que indica a
existência de um conteúdo de sentido de melhorar a vivência sobre a condição
humana. A consideração de possibilidade foi fundamental para a separação da rotinização
feudal medieval, baseada no teocentrismo cristão ou muçulmano e expresso na
escolástica. A partir desse ponto de vista o qual não é o único possível em
teologia, o progresso é sentido quando a história humana provém da queda do
homem (o pecado original) e o futuro tende ao ideário da salvação em Cristo.
A
história em si, interpretada como providencial, é um parêntesis na eternidade,
e o homem não deve ter esperança de participar em mais do que a divindade
concedida pelo Apocalipse. A crise medieval e renascentista, com o
antropocentrismo, resolvera o debate dos antigos e modernos, superando o Argumentum
ad verecundiam e revelação como fonte do conhecimento. Desde a crise da
consciência europeia do final do século XVII e da era do iluminismo do século
XVIII tornou-se banal expressar as ideias dominantes do capitalismo e da
ciência moderna. A segunda metade do século XIX foi o momento otimista de seu aparente
triunfo, com os avanços técnicos da Revolução Industrial, no qual o
imperialismo europeu estendeu o seu conceito de civilização para quase todo o
mundo. A sua expressão máxima foi o positivismo normativo de Auguste Comte.
Embora os percursores pudessem ser evidentes, até depois da 1ª grande guerra
(1914-1918), não houve um verdadeiro questionamento e um debate adequado sobre a ideia de progresso,
incluindo a questão tópica mudança do paradigma científico, as vanguardas na arte, e o reexame
da ordem econômico-social e política que envolveram a Revolução Russa de 1917,
a Grande Depressão e o fascismo e assim por diante.
Acumulação
compulsiva, reconhecida como “transtorno de acumulação”, é um padrão de
comportamento que se caracteriza pelo excesso de aquisição de itens, e uma
incapacidade ou relutância para o descarte da grande quantidade de objetos que
cobre as áreas residenciais e causam significantes estresse e perda de função.
O comportamento de acumulação compulsiva está associado com riscos de saúde,
função danificada, peso econômico, e efeitos adversos em amigos e membros da
família. Apenas recentemente pesquisadores começaram a estudar a acumulação, e
por isto, foi definida como “doença mental” apenas na 5ª edição do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), resultado de mais de 10 anos
de pesquisa de especialistas do mundo, traz o que há de mais atual em termos de
classificação técnica e diagnóstico na área da saúde mental, constituindo-se em
recurso indispensável a estudantes, clínicos e pesquisadores.
As
taxas de prevalência têm sido estimadas entre 2% e 5% em adultos, embora a
condição geralmente se manifeste na “infância com sintomas de agravamento em
idade avançada”, ponto no qual os itens coletados chegaram a um total demasiado
excessivo, e os membros da família, que poderiam ajudar a manter e controlar os
níveis de desordem já morreram, ou se afastaram. O “comportamento acumulador”
é, com frequência, grave, pois os acumuladores não o reconhecem como um
problema, devido ao efeito Dunning–Kruger, geralmente explicado em
termos de habilidades metacognitivas. É muito mais difícil para a terapia
comportamental tratar com êxito os chamados “acumuladores compulsivos” que não
têm boa compreensão da própria doença. Os resultados de uma pesquisa de 2008 demonstram
que acumuladores têm bem menos probabilidade de ver um problema numa “situação
de acumulação” do que um amigo, familiar ou um parente. Marx lembra-nos que uma
jornada prolongada de trabalho parece ser o segredo do método racional e
salutar que elevará a condição de trabalhador, mediante o aperfeiçoamento de
suas aptidões intelectuais e morais, fazendo dele um consumidor racional. O que
ele entende por consumo racional se mostra claramente lá onde ele é tão
transigente que pratica diretamente o comércio dos artigos a serem consumidos
pelos seus trabalhadores: no truck system, do qual o fornecimento de
habitação – que faz com que o capitalista seja ao mesmo tempo o senhorio do
trabalhador – é apenas um ramo entre muitos.
Ipso
facto, todo esse movimento, parece girar num círculo
vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous
accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma
acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto
de partida. Essa acumulação primitiva desempenha na economia política
aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a
maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é
explicada como uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um
lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro,
uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a
legenda do capital original teológico nos conta como o homem foi condenado a
comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original
econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade
disso. Seja como for, vejamos.
Deu-se,
assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada
para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a
pobreza da grande massa, que ainda, apesar de todo seu trabalho, continua a não
possuir nada para vender a não ser a si mesma, e as riqueza dos poucos, que
cresce continuamente, embora há muito tenha deixado de trabalhar. São
trivialidades como essas que, por exemplo, o sr. Thiers, com a solenidade de um
estadista, continua a ruminar aos franceses, outrora tão sagazes, como apologia
da proprieté. Mas quando tão logo entra em jogo a questão da
propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha
infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de
desenvolvimento. Na história real, como afirma Marx, o papel principal e representado
pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência.
Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e
“trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento,
excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da
acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos admitidos como idílicos.
Num
primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios
de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas
essa transformação só pode operar-se em
determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso
que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e
estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e
meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem
por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livre,
vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de
trabalho. Trabalhadores livre no duplo sentido de que nem integram diretamente
os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os
meios de produção, no caso do camponês que trabalha por sua própria conta etc.,
mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa
polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais do processo da
produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os
trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Tão logo
a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva a separação, mas a
reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista
não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade
das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado,
transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por
outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.
A
assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte nada mais do
que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela
aparece como “primitiva” porque em análise histórica comparada constitui a
pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde
historicamente. A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da
estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os
elementos sociais daquela. O produtor direto, o trabalhador, só pode dispor de
sua pessoa depois que deixou de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou
enquanto vassalo de outra pessoa. Para converter-se em livre vendedor de força
de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde haja mercado para
ela, ele tinha além disso, de emancipar-se do jugo das corporações, de seus
regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do
trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em
trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses
trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que
existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses
recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes
terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as
garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam.
E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços
de sangue e fogo. Em síntese, os capitalistas industriais, esses novos
potentados, tiveram, por sua vez, de deslocar não apenas os mestres-artesãos
corporativos, mas também os senhores feudais, que detinham as fontes de
riquezas.
Bibliografia
geral consultada.
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