sábado, 17 de junho de 2023

O Último Samurai – Feudalismo, Classe Guerreira, Esvendramento.

                                                   “Eu pertenço ao guerreiro no qual o velho estilo juntou-se ao novo”.  Nathan Algren

                                                 

Argumentava com razão o historiador Perry Anderson (1984), que os teóricos marxistas, persuadidos da universalidade das sucessivas fases do desenvolvimento socioeconômico registradas na Europa, têm afirmado, pelo contrário, que o feudalismo foi um fenômeno de proporções mundiais, que abrangeu os Estados africanos e de países asiáticos tanto quanto os europeus. Distinguiu-se e estudou-se o feudalismo otomano, egípcio, marroquino, persa, indiano, mongol ou chinês. A reação política contra a superioridade das ideologias europeias conduziu a uma extensão intelectual dos conceitos historiográficos consequentemente derivados do passado de um continente para explicar a evolução per se análoga dos outros Estados. Nenhum outro termo sofreu uma difusão tão lata e indiscriminada como “feudalismo” o qual foi muitas vezes aplicado na prática a qualquer formação social situada entre os polos de identidade tribal e capitalista, não marcada pelo escravagismo. O modo de produção feudal, é assim definido como a combinação da grande propriedade com a pequena produção camponesa, em que a classe exploradora extrai um excedente ao produtor imediato pelas habituais formas extraeconômicas de coerção como as corveias, prestações em espécie, ou em numerário em que a troca de mercadorias e a mobilidade são assim restritas.  

Nesta perspectiva teórica e histórica, o tipo de propriedade agrária, a natureza da classe possuidora e a matriz do Estado podem variar enormemente, sobre uma ordem rural comum que constitui a base de toda a formação social. Em particular, a soberania parcelarizada, a hierarquia vassálica e o sistema de feudo da Europa medieval deixam de ser, sob qualquer aspecto, características essenciais ou originais do feudalismo. A sua completa ausência é compatível com a presença de uma formação feudal, desde que se verifique a combinação de exploração agrária em grande escala com a produção camponesa, baseada em relações extraeconômicas de coerção e dependência. Assim, a China dos Ming, a Turquia seldjúcida, a Mongólia de Gengis Khan (1162-1227), a Pérsia dos Safávidas, a Índia dos Mogols, e Egito dos Telúnidas, o Marrocos almorávida e a Arábia wahhabita, todos são igualmente susceptíveis de serem classificados em categorias feudais, a par da França de Hugo Capeto (cf. Duby, 1992), da Inglaterra normanda ou da Alemanha Hohenstaufen. As confederações nômadas dos Tártaros, o império bizantino e o sultanato otomano foram designados Estados feudais por teóricos qualificados na história respectiva, com o argumento de que as divergências superestruturais (jurídico-político-ideológico), evidentes em relação às normas ocidentais, ocultam uma convergência subjacente de relações de produção infraestruturais. O privilégio do desenvolvimento ocidental tende a desaparecer, no processo multiforme da história do mundo secretamente una à partida. Na historiografia materialista, o feudalismo torna-se um oceano de absolvição no qual quase todas as sociedades podem receber o batismo.

A invalidade científica deste “ecumenismo teórico” na análise crítica marxista de Perry Anderson (1984) fica demonstrada pelo paradoxo lógico que dele resulta. Isto é, se o conceito de modo de produção feudal pode definir-se independentemente das várias superestruturas jurídicas e políticas que o acompanham, de tal modo que a sua presença pode registrar-se em todo o globo, onde quer que as formações sociais primitivas e tribais foram superadas, põe-se o problema: como explicar esse dinamismo único no teatro europeu do feudalismo internacional? Ao que parece nenhum historiador afirmou que o capitalismo industrial se desenvolveu espontaneamente em qualquer região exterior à Europa e sua extensão americana, que precisamente então conquistava o resto do mundo em virtude do seu primado econômico que bloqueava um implantava o modo de produção capitalista noutros países, segundo as necessidades e tendências do seu sistema imperial. Se existia uma base econômica comum ao feudalismo de toda essa massa territorial desde o Atlântico até ao Pacífico, apenas interrompida por formas jurídicas, e no entanto, só uma zona produziu a revolução industrial que levaria à transformação das sociedades do mundo, há que procurar a determinante deste sucesso nas superestruturas políticas e jurídicas, únicas que as diferenciam socialmente.                                                                       

Um modo de produção pré-capitalista só pode ser definido por via das suas superestruturas políticas, jurídicas e ideológicas, uma vez que são estas que condicionam o tipo social de coerção extraeconômica que lhes é específico. As formas jurídicas exatas de dependência, de propriedade e de soberania que caracterizam uma formação social pré-capitalista, longe de serem apenas epifenômenos acessórios ou contingentes, constituem pelo contrário os índices principais do modo de produção determinado que nelas domina. Uma taxonomia escrupulosa e exata é um pressuposto para a elaboração de uma exaustiva tipologia dos modos de produção pré-capitalista. É evidente que a complexa imbricação de exploração econômica com instituições e ideologias extraeconômicas cria modos de produção possíveis antes do capitalismo do que pode deduzir-se da generalidade relativamente simples e massiva do próprio modo de produção capitalista, que acabou por ser, com a época do imperialismo industrial, o seu terminus ad quem comum e involuntário. Neste sentido, as condições e possibilidades de uma pluralidade de modos de produção pré-capitalistas posteriores ao tribalismo e ao escravagismo é inerente ao seu mecanismo de extração de excedentes. Não é por acaso, afirma Anderson (1984: 474), a uma profunda análise das formas de propriedade agrária em modos de produção contemporâneos na Europa, na Ásia e na América refere-se a mudança social no caráter e na posição de propriedade e as suas relações interligadas com os sistemas políticos, do tribalismo primitivo ao capitalismo.  

Como categoria analítica social e histórica, o feudalismo foi cunhado pelas Luzes. Mas não restam dúvidas que Montesquieu, dotado de um sentido histórico muito mais profundo, andava mais perto da verdade. A investigação moderna descobriu apenas uma grande região do mundo onde vingou inegavelmente um modo de produção comparável ao da Europa. No outro extremo da massa continental eurasiana, para além dos impérios orientais familiares ao Iluminismo, as ilhas do Japão haviam de revelar um panorama social vivamente evocador do passado medieval para os viajantes e observadores europeus do final do século XIX, depois que a chegada do comodoro Perry à baía de Yokoama, em 853, por fim ao seu longo isolamento do mundo exterior. Pouco mais de uma década passada, é o próprio Marx que comenta em O Capital, publicado ante da restauração Meiji: - “O Japão, com sua organização puramente feudal de propriedade fundiária, e a sua petite culture desenvolvida, dá-nos um retrato mais fiel da Idade Média europeia do que todos os nossos livros de história”. A opinião sociológica dos teóricos concorda quase que unanimemente em considerar que o Japão foi lugar histórico de um autêntico feudalismo. O interesse feudal do Extremo Oriente reside na análise comparativa desde a sua distinta combinação de similaridades estruturais e divergências relativamente à evolução em conjunto da sociedade europeia. 

O feudalismo japonês, que surgiu como um modo de produção desenvolvido a partir do século XIX-XV e após um longo período de incubação, caracterizava-se essencialmente pela mesma conexão fundamental do feudalismo europeu: a fusão de vassalagem, benfeitoria e imunidade num sistema de feudo que constituía a estrutura político-jurídica de base que permitia a extração ao produtor direto de um sobre-trabalho. As relações sociais entre serviço militar, propriedade fundiária condicional e jurisdicional senhorial reproduziram-se fielmente no Japão. Igualmente perante a hierarquia escalonada entre senhor, vassalo e sub-vassalo, constituindo uma cadeia de suserania e dependência. A classe dirigente hereditária, era formada por uma aristocracia de cavaleiros; o campesinato encontrava-se juridicamente vinculado ao solo, numa réplica próxima da servidão da gleba. Naturalmente, o feudalismo japonês possuía também características próprias locais, que contrastavam com o feudalismo europeu. As condições técnicas da cultura do arroz ditavam uma estrutura diferente das aldeias, de que era ausente o sistema se assolamento trienal. Por sua vez, o domínio senhorial japonês raramente continha uma reserva ou residência. O pacto feudal era menos contratual e específico do que na Europa: os deveres do vassalo eram mais imperativos.

Dentro do peculiar equilíbrio entre honra e subordinação, reciprocidade e desigualdade, que marcava a ligação feudal, a variante japonesa pendia acentuadamente para o segundo termo. Embora a organização clânica estivesse ultrapassada, como em todas as verdadeiras formações sociais feudais, o expressivo “código” da relação senhor-vassalo era ditado pela linguagem de parentesco, mais do que por elementos da lei: a autoridade do senhor sobre o seu subalterno era mais patriarcal e indiscutível do que na Europa. Era-lhe estranho o conceito de felonia senhorial; não havia tribunais de vassalos; e o sistema jurídico manteve-se de uma maneira geral, muito limitado. A mais importante das consequências gerais do maior autoritarismo e do conteúdo assimétrico das relações hierárquicas entre os senhores no Japão foi a ausência de um sistema de cortes, quer a nível regional, que a nível nacional. É esta sem dúvida a mais importante linha divisória ente os feudalismos japonês e europeus, considerados enquanto estruturas fechadas. Na realidade, essa parcelarização da soberania atingiu no Japão Tokugawa uma forma mais organizada, estável e sistemática do que jamais conheceu qualquer país da Europa; e a propriedade privada escalonada da terra foi universal no Japão do que na Europa medieval, já que o Japão rural desconhecia os alódios. O paralelismo de base entre as duas grandes experiências, nos extremos opostos do continente eurasiano, havia de receber a confirmação mais convincente do destino de cada uma delas. Os caracteres históricos e sociais que compõem o nome Japão significam “Origem do Sol”, razão pela qual o Japão é muitas vezes identificado como a “Terra do Sol Nascente”. O nome japonês Nippon é usado de forma oficial tradicional, inclusive no dinheiro japonês, selos postais e para muitos eventos esportivos internacionais. Nihon é um termo percebido senso mais casual e mais frequentemente utilizados no discurso contemporâneo. 

Tanto Nippon quanto Nihon, significam “origem do Sol” e muitas vezes são traduzidos como a “Terra do Sol Nascente”. Esta nomenclatura vem das missões do Império com a dinastia chinesa Sui e refere-se à posição a Leste do Japão em relação à China. Foi durante o século XVI que comerciantes e missionários portugueses chegaram ao Japão pela primeira vez, dando início a um intenso período de trocas linguísticas, culturais e comerciais. No Japão, os portugueses praticaram pari passu o comércio e a evangelização. Os missionários, principalmente os sacerdotes da Companhia de Jesus, levaram a cabo um intenso trabalho disciplinar de missão em cerca de 100 anos de presença portuguesa no Japão. Em 1582 a comunidade cristã no país chegou a ascender a 150 mil cristãos no Japão e 200 igrejas. Toyotomi Hideyoshi deu continuidade ao governo de Oda Nobunaga e unificou o país em 1590. Depois da morte de Hideyoshi, o regente Tokugawa Ieyasu aproveitou-se de sua posição para ganhar apoio político e militar. Quando a oposição deu início a uma guerra, ele a venceu em 1603 na Batalha de Sekigahara. Tokugawa fundou um novo xogunato, um sistema de governo predominante no Japão de 1192 a 1867, com capital em Edo e expulsou os portugueses e restantes estrangeiros, dando início à perseguição dos católicos no país, tidos como subversivos, com uma política reconhecida como sakoku, a política externa isolacionista japonesa. A perseguição aos cristãos japoneses fez parte desta política, levando esta comunidade à conversão forçada ou mesmo à morte, como é o caso dos 26 Mártires do Japão. Neste período o Japão era uma sociedade feudal bem desenvolvida com tecnologia pré-industrial. Era mais povoado do que qualquer país ocidental e tinha no século XVI  26 milhões de habitantes. 

Um fato social ainda mais revelador, é que o Japão do fim do feudalismo reconheceu um nível de urbanização sem equivalente, exceto na Europa contemporânea: no princípio do século XVIII, a sua capital, Edo, era maior do que Londres ou Paris, e talvez um em cada dez japoneses vivia em cidades de mais de 10 mil habitantes. E há que notar também que o esforço educacional do país suportava bem a comparação com as mais desenvolvidas nações da Europa ocidental: no limiar da “abertura” japonesa ao Ocidente, cerca de 40% a 50% da população masculina adulta estava alfabetizada. O êxito e a rapidez impressionantes com que o capitalismo industrial foi implantado no Japão pela restauração Meiji tiveram os seus pressupostos históricos determinados no avanço ímpar da sociedade que foi herdeira do feudalismo de Tokugawa. Quando a esquadra da Perry aportou a Yokohama, em, 1853, o fosso histórico entre o Japão e as potências euro-americanas que o ameaçavam era, apesar de tudo, enorme. A agricultura japonesa encontrava-se notavelmente comercializada ao nível da distribuição, mas muito menos ao nível da própria produção. Os tributos feudais, coletados em espécie, contavam ainda para o total do sobre-produto, embora acabassem por ser convertidos em moeda: a produção agrícola direta para o mercado era subsidiária dentro da economia. sistema de governo predominante no Japão de 1192 a 1867, baseado na crescente autoridade do xógum, supremo líder militar, que terminaria por submeter até mesmo a autoridade do imperador. A retomada do poder imperial determinou o encerramento do feudalismo baseado no xogunato, a abertura do país ao exterior e o início de sua ocidentalização.

Em outras palavras, nada de comparável ao Renascimento tocar em terra japonesa. É lógico que a estrutura do Estado tivesse uma forma rígida e fragmentária. O Japão teve uma longa e rica experiência de feudalismo, mas nunca produziu um absolutismo no sentido conceitual. O shogunato Tokugawa, que governou as ilhas durante os últimos duzentos e cinquenta anos da sua existência, até a intrusão do ocidente industrializado, assegurou uma paz prolongada e manteve uma ordem disciplinar rigorosa: o seu regime era, porém, a negação do Estado absolutista. O shogunato não mantinha monopólios coercivos no Japão: os senhores regionais mantinham os seus próprios exércitos, cujo total era superior aos das tropas da casa Tokugawa. Não impunha uma legislação uniforme, os seus decretos cobriam apenas um quinto ou um quarto do território. Não possuía uma administração competente para o total da sua área de suserania: todos os feudos importantes tinham as suas próprias administrações separadas e autônomas. Não coletava impostos nacionais, estando três quartos do território fora do seu alcance fiscal. Não tinha diplomacia, pois o isolamento oficial e social impedia o estabelecimento de relações com o mundo exterior. Exército, fisco, administração, direito, diplomacia, comparados, faltavam no Japão todos esses complexos institucionais que são chave explicativa e processual do contexto do absolutismo europeu. A distância política neste aspecto histórico e social entre o Japão e o continente europeu as duas pátrias do feudalismo, manifestava e simbolizava a profunda divergência nas suas evoluções históricas. Torna-se necessária e instrutiva uma comparação teórica e histórica não da “natureza”, mas da “posição” do feudalismo em cada uma destas trajetórias sociais e políticas.  

O filme: The Last Samurai (2003) é um épico de guerra norte-americano dirigido e coproduzido por Edward Zwick, nascido em Chicago, em 8 de outubro de 1952. É um realizador, produtor e roteirista norte-americano que também escreveu o roteiro com John Logan. O filme é estrelado por Tom Cruise, que também o produziu, assim como Ken Watanabe, Shin Koyamada, Tony Goldwyn, Hiroyuki Sanada, Timothy Spall e Billy Connolly. Inspirado por um projeto de Vincent Ward, que Zwick se interessou, com Ward servindo como produtor executivo. A produção do filme foi adiante instalando-se no país nativo de Ward, Nova Zelândia. The Last Samurai foi bem recebido em seu lançamento, com uma bilheteria mundial total de $456 milhões. Foi nomeado para vários prêmios, incluindo quatro Oscar, três Globos de Ouro e dois National Board of Review Awards. O filme narra a história do Capitão Nathan Algren (Tom Cruise), veterano dos etnogenocídio nos Estados Unidos da América. Algren é convidado por seu ex-comandante para participar com ele do treinamento do recém criado Exército Imperial Japonês. Após a volta do Imperador ao poder central no Japão, o governo passou a contratar generais e engenheiros ocidentais para treinar e programar seu exército para exterminar os Samurais (Restauração Meiji). Após o treinamento dos soldados do Exército Imperial, Algren percebe que não estão prontos para lutar e não podem vencer mesmo com armas de fogo. Seu comandante, o Coronel Bagley, insiste em enviá-los para a batalha campal.

Durante o combate, vendo o exército ser massacrado pelos samurais, o Coronel Bagley foge da frente de batalha, pois na verdade não tinha o dever de lutar bravamente mesmo. Ao contrário de seu comandante, Algren fica e luta bravamente até ser rendido pelo líder dos Samurais, que ficam impressionados com a bravura de seu adversário, poupando-lhe assim a vida, mas politicamente relevando-o como prisioneiro de guerra. Durante sua estadia com os Samurais, Algren acaba se apaixonando não só pela cultura encarnada pelos valores dos guerreiros, mas num processo de adesão, passa a apoiá-los contra as Forças Imperiais e a ocidentalização e processo difusionista desenfreado no país. Dado que o xogunato foi incapaz de controlar tais incidentes, países estrangeiros como Estados Unidos da América (EUA), Reino Unido, França e Países Baixos, tomaram a iniciativa com represálias contra o insurgente movimento nacionalista. Em 16 de julho de 1863, teve ocorrência a batalha de Shimonoseki entre os Estados Unidos e o domínio de Chōshū. Quatro dias depois a França bombardeou Shimonoseki, que foi seguidamente bombardeada pelos aliados da coligação a 5 e 6 de setembro de 1864, resultando na derrota iminente de Chōshū. Em agosto de 1863, o Reino Unido bombardeou Kagoshima, derrotando o domínio extraterritorial e político de Satsuma. Entre meados de 1864 e início de 1865 combateu os samurais e seguidores do sonnō jōi na chamada rebelião de Mito, na qual o xogunato realmente saiu vitorioso.

Durante a extraordinária rebelião Hamaguri, ocorrida a 20 de agosto de 1864, defensores do sonnō jōi e membros do domínio Chōshū tentaram apoderar-se do Palácio Imperial em Kyoto, entretanto, sem lograr êxito. Em finais de 1864, através dos confrontos bélicos, o xogunato conseguiu neutralizar o movimento xenófobo juntamente com movimentos nacionalistas como o Ishin Shishi, é o termo pelo qual vários ativistas políticos japoneses do final do período Edo são reconhecidos, o qual foi brutalmente reprimido. O imperador Kōmei decidiu alterar a sua atitude em não desenvolver tratados com as potências estrangeiras, sendo que mais tarde, em novembro de 1865, vários navios de guerra aliados foram estacados nos portos de Hyogo e Osaka, com o propósito de convencer o imperador a ratificar os acordos comerciais com os Estados Unidos. A partir desse momento, a filosofia de “expulsar os bárbaros” perdeu o seu ímpeto, visto que era algo irrealizável, especialmente quando as potências ocidentais conseguiram severamente suprimir aqueles que os desafiaram. No entanto, o ônus econômico que se impôs sobre o Japão ao ser vencido nestas batalhas, com indenizações, novos tratados, abertura de mais portos e privilégios para as potências, demonstrou que a estrutura do xogunato era obsoleta e precisava de um novo tipo de liderança, apresentando como figura máxima o imperador.

O Exército Imperial Japonês representou a força militar terrestre oficial do Império do Japão de 1867 até 1945. Era controlado pelo Gabinete do Estado-Maior do Exército Imperial Japonês, que por sua vez era subordinado ao Imperador do Japão. Em meados do século XIX, o Japão não tinha um exército nacional unificado e o país era formado por domínios feudais (han) com o xogunato Tokugawa (bakufu) no controle geral, que governava o Japão desde 1603. O exército bakufu, embora uma grande força, era apenas um entre outros, e os esforços do Xogum para controlar a nação dependiam da cooperação dos exércitos de seus próprios vassalos. A abertura do país após dois séculos de “reclusão” levou posteriormente à Restauração Meiji e à Guerra Boshin em 1868. Os domínios de Satsuma e Chōshū passaram a predominar a coalizão contra o xogunato. O estado Meiji exigia um novo comando militar para suas operações contra o xogunato. Em 1868, o Exército Imperial sendo apenas um amálgama frouxo de exércitos de domínio, o governo criou quatro divisões militares específicas: Tōkaidō, Tōsandō, San`indō e Hokurikudō, as quais receberam o nome de uma grande rodovia existente.

Supervisionando esses quatro exércitos estava um novo alto comando, o Alto Comando Expedicionário Oriental (Tōsei daisō tokufu), cujo chefe nominal era o príncipe Arisugawa-no-miya, com dois nobres da corte como oficiais superiores. Isso conectou a montagem frouxa das forças de domínio com a corte imperial, que era a única instituição nacional em um estado-nação ainda não formado. O exército enfatizou continuamente sua ligação com a corte imperial: primeiro, para legitimar sua causa; em segundo lugar, marcar os inimigos do governo imperial como inimigos da corte e traidores; e, por último, obter apoio popular. Para fornecer subsistência com alimentos, armas e suprimentos para a campanha, o governo imperial estabeleceu estações de retransmissão logística ao longo percurso daquelas grandes rodovias. Esses pequenos depósitos mantinham material armazenado fornecido por domínios regionais pró-governo e outros que, contrariamente se opunham ao poder do governo imperial. Os aldeões locais eram rotineiramente “contratados como carregadores para mover e entregar suprimentos entre os depósitos e as unidades da linha de frente”. 

Após a derrota do xogunato Tokugawa e das operações no nordeste de Honshu e Hokkaido, não existia um verdadeiro exército nacional. Muitos na coalizão de restauração reconheceram a necessidade de uma autoridade centralizada forte e, embora o lado imperial fosse vitorioso, o governo Meiji inicialmente era fraco e os líderes tinham que manter sua posição com seus domínios cujas forças militares eram essenciais para o que quer que o governo precisasse alcançar. Os líderes da restauração estavam divididos sobre a futura organização do exército. Ōmura Masujirō, que buscou um governo central forte às custas dos domínios, defendeu a criação de um exército nacional sob o controle do governo, a introdução do recrutamento para plebeus e a abolição da classe samurai. Ōkubo Toshimichi preferia uma pequena força voluntária composta por ex-samurais. Os pontos de vista de Ōmura para modernizar as forças armadas do Japão levaram ao seu assassinato em 1869 e suas ideias foram implementadas após sua morte por Yamagata Aritomo, descrito como o pai do Exército Imperial Japonês. Ele havia comandado unidades mistas de plebeus e samurais Chōshū durante a Guerra Boshin e estava convencido do mérito dos soldados camponeses. Embora ele próprio fizesse parte da classe samurai, sendo de status inferior, Yamagata desconfiava da classe guerreira, vários membros dos quais ele considerava como perigos claros para o estado Meiji.

Em março de 1871, o Ministério da Guerra anunciou a criação de uma Guarda Imperial (Goshinpei) de seis mil homens, composta por nove batalhões de infantaria, duas baterias de artilharia e dois esquadrões de cavalaria. O imperador doou 100.000 ryō para subscrever a nova unidade, que estava subordinada à corte. Ela era composta por membros dos domínios Satsuma, Chōshū e Tosa, que lideraram a restauração. Satsuma forneceu quatro batalhões de infantaria e quatro baterias de artilharia; Chōshū forneceu três batalhões de infantaria; Tosa dois batalhões de infantaria, dois esquadrões de cavalaria e duas baterias de artilharia. Pela primeira vez, o governo Meiji foi capaz de organizar racionalmente um grande corpo de soldados sob um esquema consistente de classificação e pagamento com uniformes, que eram leais ao governo e não aos domínios. A principal missão da Guarda Imperial do ponto de vista da segurança pública e do Estado era “proteger o trono suprimindo revoltas samurais domésticas, revoltas camponesas e manifestações políticas antigovernamentais. A posse dessa força militar foi um fator preponderante na abolição do sistema han pelo governo.

O ministério militar (Hyōbushō) foi reorganizado em julho de 1871; em 29 de agosto, simultaneamente com o decreto de abolição dos domínios, o Daijō-kan ordenou aos daimiôs locais que dispersassem seus exércitos privados e entregassem suas armas ao governo. Embora o governo sofresse com a ameaça estrangeira, especialmente a expansão da Rússia para o Sul, para justificar um exército nacional, o perigo imediatamente percebido era a insurreição doméstica. Consequentemente, em 31 de agosto, o país foi dividido em quatro distritos militares, cada um com sua própria guarnição (chindai) para lidar com levantes camponeses ou insurreições samurais. A Guarda Imperial formou a guarnição de Tóquio, enquanto as tropas dos antigos domínios preencheram as fileiras das guarnições de Osaka, Kumamoto e Sendai. As quatro guarnições tinham um total de cerca de 8.000 soldados - principalmente infantaria, mas também algumas centenas de artilheiros e engenheiros. Destacamentos menores de tropas também guardavam postos avançados em Kagoshima, Fushimi, Nagóia, Hiroshima e outros lugares. No final de dezembro de 1871, o exército estabeleceu a modernização e a defesa costeira como prioridades; planos de longo prazo foram concebidos para uma força armada manter a segurança interna, defender áreas costeiras estratégicas, treinar e educar oficiais militares e navais e construir arsenais e depósitos de suprimentos. Apesar da retórica anterior sobre a ameaça estrangeira, pouco planejamento foi direcionado. Em fevereiro de 1872, o ministério militar foi abolido e os ministérios separados para o exército e a marinha.

Desnecessário dizer que os samurais eram militares profissionais que serviam a nobreza. Até o século XIII, se destacavam como arqueiros ou na cavalaria. Mas depois ganharam a imagem que conservam ainda hoje: a de espadachins, com suas inseparáveis katanas. Seguiam o bushido, uma série de normas morais baseadas no confucionismo, no zen-budismo e no xintoísmo. No século XVI, envolveram-se em guerras civis que só terminaram com a ascensão ao trono japonês de Tokugawa Ieyasu, um deles – à época, os samurais representavam quase 10% da população. A espada curta era usada no combate corpo a corpo, quando o guerreiro perdia ou dispensava a katana. Ficava na barriga. A clássica é chamada de haramaki e permaneceu idêntica durante séculos. Usa couro e metal em placas sobrepostas e amarradas umas às outras. Durante a 1ª Guerra Sino-Japonesa e a 2ª Guerra Mundial, um soldado que partia para lutar recebia frequentemente um senninbari haramaki (“cinto de 1.000 pontos”) de sua família.

Uma mãe, irmã ou esposa ficava na rua e pedia às mulheres que passavam para contribuir com um ponto até que 1.000 fossem coletados. A vestimenta foi criada para fornecer calor e servir como um talismã para afastar o mal. Os haramaki modernos não têm muito em comum com seus predecessores históricos que foram feitos para armaduras. Eles são um tubo circular simples de tecido, muito parecido com um top de tubo, usado ao redor da barriga em oposição ao peito. Os novos haramaki ganharam popularidade na moda japonesa como acessório e são feitos de diversos tecidos e estampas para fins práticos e estéticos. Shigesato Itoi e sua empresa Hobonichi são comumente creditados pelo atual ressurgimento. Itoi usava haramaki há anos, apesar de sua reputação antiquada e percepção como uma roupa íntima fora de moda, eventualmente reintroduzindo-os como um acessório à venda comercialmente no Japão. Um sarashi (“pano branqueado”) é um tipo de pano branco, geralmente algodão, ou menos comumente linho, usado também para fazer várias espécies de roupas no Japão, tais como o juban que representa uma espécie de quimono, fundoshi ou tenugui. Um comprimento de sarashi pode ser enrolado ao redor do corpo sob um quimono como a mesma forma de um haramaki, ou ao redor do peito para amarrar os seios.

Esventramento representa uma forma pragmática de execução associada com tortura que consiste em abrir o ventre da vítima e extrair seus órgãos internos (vísceras). Na Antiguidade, houve episódios de guerra em que, nas cidades capturadas, as mulheres grávidas sofreram o esventramento; isso ocorreu, por exemplo, quando o rei de Israel Menaém suprimiu uma revolta em Tifsa. O seu reinado ocorreu por volta de 752 a.C. - 742 a.C., segundo o teólogo Edwin Richard Thiele (1895-1986), um adventista norte-americano na China, editor, arqueólogo, escritor e professor de Antigo Testamento. Ele é consagrado por seus estudos cronológicos dos reinos de Judá e Israel. Menaém chegou ao trono após ter assassinado o rei Salum. O rei assírio Tiglate-Pileser III invadiu o seu reino e impôs a Menaém um alto tributo, “um tributo de mil talentos de prata”. Além da Bíblia, este episódio histórico e pontual encontra-se também descrito numa inscrição Assíria. Na Idade Média, os condenados ao esventramento eram colocados na Mesa de Esventramento, e quanto mais tempo a vítima levasse para morrer, “maior era considerada a perícia do executor”. O suicídio dos samurais japoneses reconhecido como hara-kiri, ou, mais corretamente, nomeado seppuku ou kappuku é uma forma de esventramento. Sociologicamente refere-se metodologicamente ao ritual suicida japonês reservado à classe guerreira samurai, em que ocorre o suicídio por esventramento.  

Surgiu no Japão no século XII generalizando-se até 1868, quando sua prática foi oficialmente interditada. A palavra haraquíri, embora reconhecida no estrangeiro, é raramente utilizada pelos japoneses, que preferem o termo seppuku que é composto pelos mesmos caracteres chineses por ordem inversa. O ritual de estripação normalmente fazia parte de uma cerimônia bastante elaborada e executada na frente de espectadores. O método apropriado de execução consistia num corte (kiru) horizontal na zona do abdómen, abaixo do umbigo (hara), efetuado com um tantō, wakizashi ou um simples punhal, partindo do lado esquerdo e cortando-o até ao lado direito, deixando assim as vísceras expostas como forma de mostrar pureza de carácter. Finalmente, se as forças assim o permitissem, era realizado outro corte puxando a lâmina para cima, prolongando o primeiro corte ou iniciando um novo ao meio desse. Terminado o corte, o kaishakunin realizava a sua principal função no ritual, a decapitação. Tratando-se de um processo extremamente lento e doloroso de suicídio, o seppuku foi utilizado como método de demonstrar a coragem, o autocontrole e a forte determinação característicos de um samurai. Como parte do código de honra do bushido, o seppuku representava culturalmente uma prática comum entre os samurais, que consideravam a sua vida puramente como uma entrega à honra de morrer gloriosamente, rejeitando cair nas mãos dos seus inimigos, ou como forma de pena de morte frente à desonra por um crime, delito ou por outro motivo que os desrespeitasse.

Buxido tem como significado literalmente, “caminho do guerreiro”, é um código de conduta e modo de vida para os samurais, a classe guerreira do Japão feudal ou bushi, vagamente semelhante ao conceito de cavalheirismo que define os parâmetros para os Samurais viverem e morrerem com honra. É originário do código moral dos samurais e salienta a frugalidade, fidelidade, artes marciais, mestria e honra e até a morte. Nascido de duas principais influências, a existência violenta do samurai é “atenuada pela sabedoria e pela serenidade do Confucionismo e do Budismo”. O Buxido foi desenvolvido entre os séculos IX e XII e inúmeros documentos traduzidos a partir dos séculos XII e XVI demonstraram a sua grande influência em todo o Japão, embora alguns estudiosos tenham mencionado que o “termo Buxido em si é raramente mencionado na literatura pré-moderna”. Durante o período da ditadura militar feudal do Xogunato Tokugawa estabelecida no Japão em 1603 por Tocugaua Ieiasu, os aspectos do Buxido ficaram formalizados no Direito Feudal japonês.  Outras razões estavam por detrás destes corajosos atos, como a violação da lei ou o chamado oibara, no qual o rōnin após perder o seu dáimio, que na época possuía um papel semelhante ao senhor feudal no ocidente, seria compelido à prática do seppuku, excetuando-se casos “em que o seu senhor por escrito impedia tal costume”.

Desde a Antiguidade, os escravos europeus foram comuns durante o reinado da Roma Antiga e proeminentes durante o Império Otomano no início da Idade Moderna. Para manter essas proteções e direitos, os dhimmis eram obrigados a pagar os impostos de Jizia e Caraje como uma tarifa pelo reconhecimento do domínio muçulmano. De acordo com Abu Yusuf, a falta de pagamento destes impostos deveria tornar a vida e propriedade do dhimmis nulas e submete-los à conversão forçada, escravidão, prisão ou morte. Se alguém tivesse concordado em pagar a Jizia, deixar o território muçulmano para a terra inimiga seria punível com escravidão caso fosse capturado. A falta de pagamento da Jizia era comumente punida com prisão e vigilância domiciliar e algumas autoridades permitiram a escravização de dhimmis por falta de pagamento de impostos. No Sul da Ásia, por exemplo, a captura de famílias dhimmis por não pagar a jizia anual foi uma das duas fontes significativas de escravos vendidos nos mercados de escravos do Sultanato de Déli, as cinco dinastias de curta duração, atualmente a capital da Índia, compostas por turcos e pastós na Índia medieval. Governaram do Sultanato de Déli entre 1206 e 1526, quando a última dinastia foi derrotada pelo Império Mongol. Os mongóis constituíram uma tribo de nômades da Ásia Central ou Norte da Ásia. Eles viviam nas estepes, com um estilo de vida de movimento constante, como um modus operandi.

Eles sempre foram dependentes e anexados aos seus cavalos, que representava o principal meio de transporte. Religiosamente, eram “animistas politeístas”. Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. Eles nunca estabeleceram um grande império, organizado, e em vez disso ficaram como uma coalizão de tribos no norte da China. Historicamente eles entravam geralmente em guerra com seus vizinhos. A China ao Sul de fato construiu a Grande Muralha da China durante o reinado do Imperador Shi Huang (247-221 a. C.) como um meio para manter os mongóis e outros para longe de suas aldeias. Os mongóis também rivalizaram com outros grupos tribais na Ásia Central, como tribos turcas e os tártaros. A história social Mongol mudou para sempre durante o reinado de Genghis Khan. Ele transformou-se em chefe tribal dos mongóis entre 1206 e 1227. Em seu reinado, ele conseguiu unificar as diversas tribos mongóis, juntamente com inúmeras tribos turcas existentes. Com um grupo grande, unificado, começou a conquistar terras onde os cavaleiros mongóis poderiam alcançar.  Genghis Khan conquistou a maior parte do Norte da China em 1210.

Ao fazê-lo, de fato ele destruiu as dinastias Xia (cf. Schafer, 1979), também reconhecida como dinastia Hsia, a primeira dinastia descrita pela historiografia tradicional chinesa. Reinou cerca século XXI a. C. – século XVI a. C. A historiografia lista os nomes de 9 (nove) reis por 14 (catorze) gerações e Jin, também reconhecida como a dinastia Jurchen, fundado pelos Waynan, clã dos Jurchen, antepassados dos manchus que estabeleceram a dinastia Qing, 500 anos mais tarde. O nome é algumas vezes escrito como Jinn para ser diferenciado da primeira dinastia Jin, “cujo nome é igual ao desta dinastia no alfabeto latino”. Fundada em 1115, no Norte da Manchúria, aniquila a dinastia Liao no ano 1125. Esta última tinha existido entre a Manchúria e a fronteira Norte da China historicamente durante vários séculos. Em 9 de janeiro de 1127, as forças Jin saquearam Kaifeng, a capital da dinastia Song do Norte, capturando o novo imperador Qinzong (1100-1161), que havia subido ao trono após a abdicação do pai, o imperador Huizong (1082-1135), ao ver a necessidade de organização política com o objetivo de enfrentar o exército Jin. 

Depois da queda da capital de Kaifeng, os Song (960-1279), sob a liderança da herdeira dinastia Song do Sul, continuaram a luta por conquista de territórios durante mais de uma década contra os Jin, assinando por fim um Tratado de Paz em 1141, e cedendo todo o Norte da China aos Jin em 1142, a fim de obter a paz. Ele também conseguiu conquistar a maioria das tribos turcas da Ásia Central, abrindo todo o território para a geopolítica da Pérsia. Isso o levou a enviar exércitos para o Leste da Europa, bem como, a atacar terras russas, inclusive as fronteiras de Estados alemães da Europa Central. Mais importante do que o processo civilizatório é entender como Genghis Khan o conquistou. Na esfera política ele usou deliberadamente o “terror como arma de guerra”. Se uma cidade que ele estava sitiando desistisse sem lutar, o povo normalmente seria poupado, mas teria que ficar sob controle Mongol. Se a cidade lutou contra os mongóis, todos, incluindo civis, seriam massacrados. Este reinado de terror é uma grande parte da razão pela qual ele irá se tornar um “conquistador consagrado”. Os povoados estavam mais dispostos a desistirem do que sofrerem massacres em suas mãos. Por exemplo, quando ele sitiou a cidade de Herat, no atual Afeganistão, matou mais de 1,6 milhões de pessoas. No Norte da África e no Oriente Próximo, algumas dinastias principais, como os Fatímida (909-1171), surgiram e governaram uma área que inclui as regiões atuais do Egito, Sicília, Argélia, Tunísia e partes da Síria.  Foi também neste período que algumas das principais dinastias turcas e povos da Ásia central tomaram a vanguarda da política e da criatividade artística do mundo islâmico. 

Os seljúcidas eram nômades da Ásia central que governaram terras do oriente islâmico e eventualmente controlaram o Irã, o Iraque e grande parte da Anatólia, embora tenha sido um império de curta duração. O ramo principal dos seljúcidas, o Império Seljúcida, manteve o controle sobre o Irã. Esse foi também o período das cruzadas cristãs europeias, que tinham por objetivo reconquistar a Terra Santa dos muçulmanos. Uma série de pequenos reinos cristãos surgiram no século XII, bem como dinastias muçulmanas, como o Império Aiúbida (1179-1260), cujo líder mais famoso, Salah al-Din (r.1169-93), reconhecido no ocidente como Saladino, terminou a dinastia Fatímida. Por fim, os soldados escravizados, responsáveis pela proteção militar da dinastia Aiúbida, derrubaram o último sultão Aiúbida em 1249-1250. Esses escravos, denominados em árabe mamluk, que significa “possuídos”, ficaram reconhecidos como mamelucos na antropologia colonialista e controlaram a Síria e o Egito até 1517. Representavam soldados de uma milícia egípcia constituída por escravos capturados turcos. 

        Formaram uma casta militar, vindo a conquistar o poder no Egito. Giocangga (1526-1583) era filho de Fuman e avô paterno de Nurhaci, o homem que unificou os povos Jurchen e fundou a dinastia Jin posterior da China. Tanto ele quanto seu filho Taksi atacaram o Forte de Atai, que estava sendo sitiado por um chefe rival de Jurchen, Nikan Wailan, que “prometeu o governo da cidade a quem o matasse”. Um dos subordinados se rebelou e o assassinou. Ambos Giocangga e Taksi foram mortos por Nikan Wailan em circunstâncias pouco claras. Giocangga, Taksi e Nikan estavam todos sob o comando de Li Chengliang. Giocangga recebeu o nome de templo Jǐngzǔ e o nome póstumo Imperador Yi pela dinastia Qing. Em 2005, um estudo liderado por um pesquisador do Instituto britânico Wellcome Trust Sanger sugeriu que Giocangga pode ser um ancestral direto de gênero de mais de 1,5 milhão de homens no Nordeste da China.  Este aspecto foi atribuído às muitas esposas e concubinas de Giocangga e seus descendentes. Os descendentes de Giocangga na linha patrilinear estão concentrados entre várias minorias étnicas que faziam parte do sistema Manchu Eight Banners, e não são encontrados na população Han. Giocangga pode ter deixado cerca de 1,5 milhão de descendentes homens na China e na Mongólia, de acordo com uma pesquisa baseada na análise do cromossomo Y, exclusivo dos homens.

O primeiro haraquíri citado nas crônicas de guerra data de 1170, cometido pelo célebre Minamoto no Tametomo do clã Minamoto, “reconhecido pela sua habilidade no manejo de arco-e-flecha”, o qual se suicida após perder uma batalha contra o clã Taira. Entretanto, o primeiro modelo formal do ritual seppuku foi o de Minamoto no Yorimasa, em 1180, motivado por uma inevitável derrota na Primeira Batalha de Uji em 1180 e executado no templo de Byōdō-in. Entre as mais reconhecidas e horrendas histórias de haraquiri cometido por um guerreiro samurai ocorreu em 1333, na Era Kenmu, quando Murakami Yoshiteru se esventrou para dissimular a fuga de seu senhor durante a guerra pela restauração dos plenos poderes imperiais, em oposição aos bushidan do clã Hojo − que regia no xogunato Kamakura. Antes do budismo no Japão, a história do país revela que o povo japonês tenderia a dar ênfase à continuidade da vida enquanto que a tradição zen tende a sublinhar a importância do momento e a forma de morrer. O importante passa a ser, não apenas se o corpo vive e morre, contrariando a analítica de Michel Foucault, mas “se a mente vive em harmonia e paz consigo mesma”. Os japoneses davam mais importância à paz da mente e à honra da vida do que uma vida longa. Com a aceitação do budismo e dos seus respectivos conceitos de transitoriedade da natureza da vida e a glória da morte, o desenvolvimento do pensamento deste tipo ideal de ritual de passagem foi-se tornando possível. Ao contrário das religiões cristãs, tanto o budismo como o xintoísmo não trazem o estigma do pecado atrelado ao ato de suicidar-se. O suicídio egoísta chegava a ser visto como uma boa maneira com eficácia para resolver determinadas situações-limite, não sendo considerado um ato de desespero humano.

Bibliografia geral consultada.

ANDERSON, Perry, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Porto: Edições Afrontamento, 1984; DUBY, Georges, A Idade Média na França: de Hugo Capeto a Joana D’Arc. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1992; AUGÉ, Marc, La Guerre des Rêves. Exercices d`ethno-fiction. Paris: Éditions du Seuil, 1997; PRADO, Maria Yuka de Almeida, “A Canção Infantil no Processo de Ocidentalização do Japão. Estudo de Caso: Akatonbo”. Brasília: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música, 2006; FRANCO, José Eduardo, “Jesuítas e Franciscanos perante as Culturas e as Religiões do Extremo Oriente: O Caso da Apologia do Japão e a Dramática Missionação das Ilhas do Sol Nascente”. In: História Unisinos. Volume 11, nº 2 - maio/agosto de 2007; MELL, Julie Lee, Religion and Economy in Pre-Modern Europe: The Medieval Commercial Revolution and the Jews. Thesis PhD. North Carolina: University of North Carolina, 2007; MOORE JR., Barrington, As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senhores e Camponeses na Construção do Mundo Moderno. 1ª edição. Lisboa: Edições 70, 2010; KIKUCHI, Wataru, Relações Hierárquicas do Japão Contemporâneo: Um Estudo da Consciência de Hierarquia na Sociedade Japonesa. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012; CHURCH, Stephen, King John: England, Magna Carta and the Making of a Tyrant. Oxford: Editor Macmillan, 2015; ROCHA, Rafael Machado da, O Processo de Ocidentalização do Estado e do Direito Japonês na Era Meiji: Conflitos e Contradições. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016; RIBEIRO, Jaqueline de Sá, As Transformações Sociopolíticas e Culturais no Japão da Era Meiji (1868-1912) a Partir das Cartas do Japão, de Wenceslau de Moraes. Dissertação de Mestrado em História Política. Programa de Pós-Graduação em História. Centro de Ciências Sociais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017; HIRST, John, A Mais Breve História da Europa. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2018; IWAMOTO, Vivian, Cultura Nipo-Sul-Mato-Grossense de Dourados. Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2023; entre outros.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Margarida Bonetti – Gosto, Compulsão & Destrutividade Humana.

                                                  “A ânsia de poder não é originada da força, mas da fraqueza”. Erich Fromm (1975)

  

Concordamos com o filósofo Louis Althusser (1977) que infere Charles-Louis de Secondat - Montesquieu (1689-1755), o fundador da ciência política, sendo uma verdade adquirida. Disse-o o fundador da Sociologia Auguste Comte, repetiu-o Émile Durkheim e nunca ninguém contestou seriamente tal afirmação. Mas talvez seja preciso recuar um pouco para distingui-lo de seus predecessores e compreender exatamente o que o distingue deles. Desnecessário dizer que todo o pensamento político antigo viveu sob a convicção não de que uma ciência do político era possível, o que é uma convicção crítica, mas de que era necessário fazê-la. E os pensadores modernos na esteira desse debate, retomaram esta tese que vemos em Bodin, Hobbes, Spinoza e Grotius. Acho que se deve recusar aos antigos, não a pretensão de refletirem sobre a política, mas a ilusão de lhe terem construído a ciência. Porque a ideia que faziam da ciência provinha diretamente dos conhecimentos que detinham. E estes, para além de certas regiões matemáticas não unificadas na história antes de Euclides, não passavam de visões imediatas ou de projeções da filosofia nas coisas, eram estranhos à nossa ideia de ciência, visto que não lhe conheciam ainda o exemplo. A questão filosófica posta por Althusser é a seguinte: Como explicar que o espírito de um Jean Bodin, de Nicolau Maquiavel, de Thomas Hobbes ou de um Baruch Spinoza, contemporâneo das disciplinas já rigorosas que triunfavam em matemática e em física, tinha podido permanecer cego ante o modelo do conhecimento que herdamos?  

O projeto de constituir uma ciência da política e da história supõe que a política e a história podem ser objeto de uma ciência, isto é, contém uma necessidade que a ciência pretende descobrir. Logo, é preciso destruir a ideia cética de que a história da humanidade não é senão a história dos seus erros, de que um só princípio pode unir a prodigiosa e desencorajante diversidade dos costumes: a fraqueza humana; de quem uma só razão pode esclarecer esta desordem infinita: a irracionalidade do homem. É necessário dizer: Comecei por examinar os homens e conclui que na infinita diversidade das leis e dos costumes, não eram conduzidos apenas pelas suas fantasias, mas por uma razão profunda que, embora nem sempre razoável, é pelo menos sempre racional; por uma necessidade cujo poder é tão forte que nela entram não só instituições bizarras, mas até o próprio acaso que faz com que se perca ou ganhe uma batalha e pode determinar uma conjuntura qualquer. Através desta necessidade racional é rejeitada, com o ceticismo que lhe serve de pretexto, toda a tentação apologética pascaliana que procura a todo o transe na desrazão humana a prova de uma razão divina; e todo o recurso a princípios que no homem passam por cima do homem, como a religião, ou lhe impõem fins, como ocorre em análise comparada sociologicamente com a moral.                        

Não é à teologia que cabe enunciar a verdade dos fatos da política. Velha querela, esta. Mas hoje imaginamos dificilmente quanto pesava sobre a história o decreto da Igreja. Basta lermos Bossuet em guerra aberta contra Spinoza, culpada de ter esboçado uma história do povo judeu e da Bíblia, ou contra Richard Simon, que concebeu o mesmo projeto no seio da própria Igreja, para termos uma ideia da violência do conflito entre a teologia e a história. Este conflito ocupa toda a Défense de l` Esprit des Lois. Acusam Montesquieu de ateísmo, de deísmo; de ter calado o pecado original; justificado a poligamia, etc.; numa palavra, de ter “reduzido as leis a causas puramente humanas”. Montesquieu responde: introduzir a teologia em história, é confundir as ordens e misturar as ciências, o que é o meio mais seguro para as deixar na infância. Não, o seu propósito não é fazer de teólogo; não é teólogo, mas jurisconsulto e político. Está de acordo em que todos os objetos da ciência política possam ter também um sentido religioso, que se possa discutir o celibato, a usura, a poligamia, como teólogo. Mas todos estes fatos revelam também e antes de mais de uma ordem estranha à teologia, de uma ordem autônoma que tem os seus princípios próprios. Deixem-no, pois, em paz. Não proíbe que se ajuíze como teólogo. Cedam-lhe, portanto, em troca disso o direito de ajuizar como político.  E não se procure teologia na sua política. Há tanto de teologia na sua política como de campanário de aldeia no óculo através do qual um cura vê a Lua. A religião não pode impedir a história de tomar foros de ciência ou da moral. 


       Ipso facto em Montesquieu que se bate e se defende na margem terrivelmente estreita que separa as suas convicções do crente ou todas as suas precauções de espírito maligno, das duas exigências de estudioso. Porque não há dúvida, segundo Louis Althusser (1977), de que Montesquieu expõe muitas vezes, através de seus exemplos, toda a argumentação de uma verdadeira teoria sociológica das crenças religiosas e morais. Religião e moral, vale lembrar, às quais recusa precisamente que julguem a história, não passam de elementos internos relativo à sociedade dadas, elementos que moldam a forma e a natureza dessas sociedades. O princípio que analisa uma sociedade, obviamente é o que lógica ou abstratamente explica-lhe também as crenças. A distinção, se a quisermos reter, o que aliás é muito necessário, passa assim através da própria ordem do religioso e do moral. Dir-se-á, portanto, que a religião pode ser encarada no seu sentido e no seu papel humanos – que recaem no campo de estudo de uma sociologia – ou no seu sentido religioso (que lhe escapa). E deste modo Montesquieu recua, não querendo dar o salto dialético na história social e política. Daí a acusação de ateísmo e a fragilidade da sua defesa. Porque embora pondo vigor nas suas respostas, não pode imprimir forças as suas razões. Querem convencê-lo de que é ateu? Tem por único argumento: não é de ateu escrever que este mundo segue o seu curso e as suas leis, foram criados como uma inteligência.

É este, no entanto, o problema da reflexão política de seu tempo, e se a sua forma é estranha, a sua lógica é profunda. Para se demonstrar a origem radical da sociedade, pense em Leibniz querendo captar “a origem radical das coisas”, é preciso tomar os homens antes da sociedade, isto é, in statu nascendi. Saindo da terra como abóboras, diz Hobbes. Como nus, dirá Rousseau. Despidos não só de todos os meios da arte, mas sobretudo de todos os laços humanos. E toma-los num estado que seja como que o nada de sociedade. Este estado original recebe traços diferentes segundo os autores. Hobbes e Spinoza vêm nele o reino do estado de guerra, o triunfo do forte sobre o fraco. Locke, a paz. Rousseau, a solidão absoluta. Os diferentes traçados do estado natural ora se lançam no desenho das razões que os homens tiveram para sair dele, ora esboçam as forças geradoras do estado social que está para vir e o ideal das relações humanas. Paradoxalmente, este estado ignorante de todo o tipo de sociedade, contém e prefigura o ideal de uma sociedade a criar. É o fim da história inscrito na origem. Assim, a ideia de “liberdade” do indivíduo em Hobbes, Spinoza e Locke. Assim a igualdade e a independência do homem em Rousseau. Mas todos estes autores fundamentaram o que têm em comum o mesmo conceito e o mesmo problema: o estado natural é apenas a representação da origem de uma sociedade de que querem descrever a gênese. É o contrato social que assegura a passagem do nada de sociedade a sociedade existente. 

 É bem verdade que, a partir de meados do século XVI, se assiste ao nascimento e ao desenvolvimento, num movimento conjunto, de uma primeira física matemática e à exigência de uma segunda a que depressa se chamará física moral ou política, e que aspirará ao rigor da primeira. É que a oposição entre as ciências da natureza e as ciências do homem não surgiu claramente ainda. Os mais metafísicos exilam em Deus essa ciência da política ou da história que apontas o conjunto dos acidentes da fortuna, ou dos decretos da liberdade humana: tal Leibniz (1646-1716), um proeminente polímata e filósofo alemão e figura central na história da matemática e na história da filosofia. Mas segundo Althusser, só se põem nas mãos de Deus os defeitos da mão do homem e ele confiava de fato a Deus a ideia humana de uma ciência do homem. Quanto aos positivistas, moralistas, filósofos do direito e ao próprio Spinoza, não duvidam nem por um instante que as relações humanas possam ser tratadas como relações físicas. Thomas Hobbes só vê entre as matemáticas e as ciências sociais uma diferença: as primeiras unem os homens; as segundas dividem-nos. Daí decorre a tese de oposição dialética que nas primeiras, a verdade e o interesse dos homens não se encontram em oposição, enquanto nas segundas sempre que a razão é contrária ao homem e o homem é contrário à razão.

Como pretender que Montesquieu tenha aberto vias que encontramos antes? Na verdade, se ele parece seguir vias já reconhecidas, não vai ao mesmo objeto. Helvetius diz que Montesquieu tem a “sutileza” de Montaigne. Possui a mesma curiosidade e tem a mesma maneira de refletir. Como Montaigne e todos os seus discípulos, compiladores de exemplos e de fatos inquiridos em todos os lugares e em todos os tempos, tinha por objeto a história inteira de todos os homens que viveram. E não foi por acaso que teve essa ideia. Pensemos no fato duplo da revolução que abala o mundo entre os séculos XV e XVI. Uma revolução no espaço do mundo. Uma revolução na sua estrutura. É o tempo da Terra descoberta, das grandes explorações que abrem à Europa o conhecimento e a exploração das Índias do Oriente e do Ocidente, e da África o chamado continente negro. Os viajantes trazem então nos seus cofres as especiarias e o ouro e, na memória, o relato dos costumes e de instituições que abalam todas as verdades estabelecidas. Mas este escândalo não teria provocado mais que um rumor de curiosidade nos próprios países que assim lançavam os seus navios em busca de novas terras. Outros acontecimentos não tivessem também resolvido os fundamentos destas convicções estabelecidas: guerras civis, revolução religiosa da Reforma, guerras de religião, transformação da estrutura tradicional do Estado, ascensão dos plebeus, decadência dos grandes – transformações cujo eco se ouve em todas as obras deste tempo, conferem à matemática dos escandalosos relatos trazidos de além-mar a dignidade contagiosa de fatos reais e plenos de sensos.

 É este o fundamento desse exotismo político, até a história conhecida, a Grécia e Roma, se torna esse outro mundo em que o mundo presente procura a sua própria imagem que domina o pensamento a partir do século XVI. Uma das mais célebres expedições do período colonial, cujo relato etnográfico foi publicado, se deve a Charles-Marie de La Condamine e uma equipe científica patrocinada pela Academia das Ciências de Paris, e ocorreu entre 1735 e 1744. O objetivo da viagem era realizar medições técnico-científicas para reconhecer a circunferência da Terra. Os relatos de La Condamine (cf. Martins, 2012) são peças das mais importantes, considerando a escassez de descrições históricas e geográficas da Amazônia no período colonial. Se até então as viagens científicas eram uma exceção, a partir de meados do século XVIII a situação se transforma. O movimento da chamada Ilustração em Portugal deflagrou um processo de valorização dos produtos naturais das colônias portuguesas, e claramente a do Brasil, em particular. A política colonial desenvolvida pela metrópole buscou promover ações políticas no sentido aproveitar de forma lucrativa as riquezas do Brasil. A administração régia promoveu pesquisas para a naturalização de plantas exóticas, favoreceu o estabelecimento de sociedades letradas e organizou expedições científicas que tinham por objetivo conhecer os produtos da natureza, descobrir seus usos e propriedades.

Dentre alguns dos principais promotores das pesquisas sobre o Brasil foi o naturalista Domingos Vandelli (1735-1816), membro da Academia Real das Ciências de Lisboa, professor de história natural e química da Universidade de Coimbra e diretor do Jardim Botânico do Real Palácio da Ajuda. Vandelli formou toda uma geração de naturalistas, muitos dos quais nascidos no Brasil. Foi ele quem indicou Alexandre Rodrigues Ferreira como naturalista responsável pela expedição que explorou o norte do Brasil, realizada entre 1783 e 1792. A Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, foi a mais importante expedição realizada pelos luso-brasileiros no Brasil. Os comerciais interesses gerais da expedição foram o reconhecimento medicinal das chamadas “drogas do sertão”, passíveis de serem comercializadas e a legitimação da ocupação da Amazônia pelos colonizadores, depois da conquista legal, garantida e sacramentada pelo Tratado de Madri de 1750. A viagem de Alexandre Ferreira é filosófica na medida em que se enquadra nos moldes das expedições do enciclopedismo.

Ele age segundo a lógica do “administrador colonial esclarecido”, como se julgava em tese, pelas luzes da ciência. É com esse espírito utilitário que o viajante nascido na Bahia descreve plantas, animais, regiões e aspectos físicos e culturais das diversas tribos e povos indígenas dentre os povoamentos brasileiros. Acompanharam-no o jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo e os desenhistas José Joaquim Freire e Joaquim Codina. O frei franciscano José Mariano da Conceição Velloso (1741-1808) foi um dos mais importantes executores da política científica ilustrada de fins do século XVIII e início do século XIX. Suas viagens pelo Rio de Janeiro, promovidas pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos (1742-1809), se realizaram entre 1782 e 1790, passando por Parati, Ilha Grande e chegando até São Paulo. A equipe, constituída, entre outros, pelos religiosos frei Francisco Solano, desenhista de história natural e frei Anastácio de Santa Inês, encarregado das descrições científicas, tinha por objetivo fazer o levantamento dos recursos naturais da capitania do Rio de Janeiro. Embora o material produzido por Velloso e seus ajudantes tenha sido executado com rigor e de acordo com os padrões científicos de seu tempo, a divulgação dos resultados da viagem foi demorada e incompleta. A Flora Fluminensis seria publicada com os textos e as pranchas a partir de 1827. Manuel Arruda da Câmara, natural da Paraíba, viajou pelo Nordeste em diversas ocasiões: entre 1794 e 1795 percorreu as províncias de Pernambuco e Piauí, de 1797 a 1799 esteve nas províncias da Paraíba e no Ceará e em 1799 e 1800, no Maranhão.

Algumas vezes pode contar com o espírito de colaboração do padre João Ribeiro Montenegro, afamado desenhista de plantas. Arruda da Câmara publicou alguns trabalhos de história natural e economia rural, sempre buscando divulgar novas técnicas agrícolas, além de refletir sobre aspectos filosóficas da natureza. Diversos outros homens de ciência realizaram expedições nesse período, como é o caso notável de João da Silva Feijó, José Vieira Couto e do próprio José Bonifácio de Andrada e Silva. Antes de assumir cargos públicos no Brasil, José Bonifácio havia estudado em Freiberg e em Paris e publicado artigos sobre mineralogia em periódicos científicos europeus. Além de ter empreendido expedições mineralógicas na Europa viajou pela província de São Paulo em 1820. A geração luso-brasileira identificada com o ideário iluminista apresenta, desse modo, uma certa homogeneidade de conduta, de mimetismo sociológico, onde a ciência pura é vista “como instrumento necessário à prosperidade econômica do Estado”. O período áureo das viagens científicas ao Brasil foi o século XIX. Com a migração da Corte e o fim das guerras napoleônicas, em 1815, houve um “novo descobrimento do Brasil”, segundo a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, que se tornou clássica.

Os viajantes desse período são muito mais especializados do que os do século anterior e, em geral, cumpriam missões com objetivos científicos bem definidos. Data dessa época a relativa separação do campo científico da esfera de ação da política. O cientista passa a ser, em muitas ocasiões, a figura principal das expedições, em vez de subordinar-se a interesses políticos e militares. José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) foi um naturalista, estadista e poeta brasileiro, reconhecido pelo epíteto de Patriarca da Independência por seu papel na Independência do Brasil. Em 11 de janeiro de 2018, foi declarado oficialmente Patrono da Independência do Brasil. Além de sua atuação política, obviamente, teve destacada carreira como naturalista, notadamente no campo da mineralogia, “tendo recebido reconhecimento internacional em vida”. Descobriu 4 minerais, incluindo a petalita, que permitiria a descoberta do elemento lítio, e a andradita, “batizada em sua homenagem”. Na esfera política, foi ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros de janeiro de 1822 a julho de 1823, e, desde o início do cargo, colocou-se em apoio à regência de D. Pedro de Alcântara. Proclamada a Independência, comandou uma política centralizadora e organizou a ação militar contra os focos de resistência à separação de Portugal. Nos debates da Assembleia Constituinte, deu-se o rompimento dele e de seus irmãos Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva com o já imperador Pedro I.

Como consequência, em 16 de julho de 1823, o imperador demitiu-o do posto de ministro, e José Bonifácio passou à oposição. Após o fechamento da Constituinte, em 11 de novembro de 1823, José Bonifácio foi banido e exilou-se na França por seis anos. De volta ao Brasil, e reconciliado com o imperador, quando de sua atitude política de abdicação, em 1831, assumiu tutoria de seu filho. Permaneceu como tutor do futuro Pedro II até 1833, quando “foi demitido pelo governo da Regência, devido a disputas por poder dentre as facções que o compunham”. Do ponto de vista de sua formação em São Paulo, frequentou aulas de gramática, retórica e filosofia, nos cursos abertos por Dom Frei Manuel da Ressurreição (1718-1789), dono de boa biblioteca. Era o ensino preparatório para o ingresso na universidade em Coimbra, para onde iam os brasileiros com recursos financeiros e boa conduta em termos de relações internacionais. Tinha 16 anos quando, com seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco, José Bonifácio requereu habilitação de genere, passo indispensável à carreira eclesiástica. Não havia universidades no Brasil nem qualquer prelo. Em 1783, viajou da ciade do Rio de Janeiro para Portugal, matriculando-se na Universidade de Coimbra e iniciando curso de estudos jurídicos, acrescidos em outubro de 1784, dos cursos de matemática e filosofia natural.

Por mais simples que seja a linguagem e clara a sua exposição, sempre apresenta dificuldades específicas inevitáveis, porque dizem respeito à natureza própria da teoria, mais precisamente da produção do discurso teórico, e por isto produção. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste pois em que, por detrás do significado usual da palavra, é sempre preciso discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual. Um bom exemplo, ocorre quando o leitor pensa compreender imediatamente o que Marx quer dizer quando emprega uma palavra tão corrente como a palavra trabalho. No entanto, é preciso um grande esforço para discernir, por detrás da evidência familiar (ideológica) desta palavra, o conceito marxista de trabalho, e mais ainda, para ver que a palavra trabalho pode designar vários conceitos distintos: os conceitos de processo de trabalho, de trabalho concreto, de trabalho abstrato, etc. Quando uma terminologia teórica é boa, lembra Althusser, no ensaio: Sobre o Trabalho Teórico (1978), isto é, bem determinada e bem referenciável, ela assume a função precisa de impedir as confusões entre o significado usual das palavras e o significado teórico (conceptual) das mesmas palavras. Sua conjunção particular que produz significado novo, definido que é o que chamamos do ponto de vista científico de conceito teórico. Não pode haver discurso teórico sem a produção destas expressões específicas, que designam conceitos teóricos de determinada prática da teoria.

            Isto quer dizer que a cultura, a sociedade e a comunicação vêm articular-se a uma estrutura de relações sociais. No escravagismo antigo, nada distingue, do ponto de vista abstrato da estrutura do modo de produção (cf. Bartra, 1978), o escravo do agricultor independente, proprietário privado individual. O que os distingue é a relação com o trabalho. Se um se conduz como proprietário das condições materiais da reprodução de sua existência, no outro caso é o mestre que se conduz como proprietário das condições naturais da reprodução de sua existência material do escravo. Pode-se fazer a mesma comparação e distinção entre o escravo moderno, do século XIX, e o trabalhador agrícola no sistema técnico de trabalho, ao qual se articulam relações sociais diferentes. A interligação dos processos de trabalho é primeiramente de ordem técnica, na medida em que está contida nos meios de trabalho e envolve imediatamente trabalhadores em situações específicas de trabalho. Em seguida é de ordem social, basicamente quanto à escala e quanto ao sentido de conjunto para satisfazer necessidades sociais. É, finalmente, de ordem tecnológica, na medida em que a produção, circulação, uso, dos produtos resultantes do processo de trabalho interligados, representam o próprio sistema social no âmbito de determinada cultura e/ou sociedade. Produzindo e consumindo determinados produtos/mercadoria os homens primeiro tecnologicamente (cf. Leroi-Gourhan, 1984) produzem a sociedade e as relações sociais nela existentes. Um sistema de trabalho é uma estrutura onde o que está em jogo como atividade é o trabalho e a reprodução da vida.

            Um bom exemplo, encontra-se em Marx (2013), na análise econômica e social da mercadoria em que o produto do fiandeiro de algodão – o fio – é a forma-mercadoria de seu capital; é, para ele, capital-mercadoria. O fio não pode voltar a funcionar como componente de seu capital produtivo, seja como material de trabalho, seja como meio de trabalho. Mas nas mãos do tecelão que o compra, ele é incorporado a seu capital produtivo como um de seus componentes líquidos. Para o fiandeiro, porém, o fio é o suporte do valor de uma parte tanto de seu capital fixo como de seu capital líquido (abstraindo do mais-valor). Assim, uma máquina, como produto do fabricante da maquinaria, é a forma-mercadoria de seu capital; ela é, para ele, capital-mercadoria e, enquanto permanece sob essa forma, não é capital líquido nem fixo. Se é vendida a um fabricante que a emprega, ela se converte em elemento fixo de um capital produtivo. Mesmo quando o produto, segundo sua forma útil, pode voltar a ser integrado como meio de produção no processo do qual saiu, como ocorre, por exemplo, com o carvão na produção carbonífera, a parte do produto destinada precisamente à venda não representa capital fixo nem circulante, mas simplesmente capital-mercadoria. Por outro lado, pode ocorrer que, dependendo de sua forma útil, o produto seja absolutamente inadequado para constituir qualquer elemento do capital produtivo, seja como material de trabalho, seja como meio de trabalho. É o que ocorre como qualquer meio de subsistência. 

        Excetuando-se sempre a parte do produto diretamente consumida como meios de produção por seus produtores, vale para a produção capitalista a tese geral: todos os produtos chegam ao mercado  como mercadorias e, assim, circulam para o capitalista como a forma-mercadoria de seu capital, como capital-mercadoria, não importando se tais produtos , por sua forma natural, por seu valor de uso, devem ou podem funcionar como elementos do capital produtivo (do processo de produção) e, portanto, como elementos fixos ou circulantes deste último, ou se só podem servir como meios de consumo individual, e não do consumo produtivo. Todos os produtos são lançados ao mercado como mercadorias; por isso, todos os meios de produção e de consumo, todos os elementos do consumo produtivo e individual têm de ser novamente retirados do mercado como mercadorias, por meio da venda. Essa trivialidade está naturalmente correta. A máquina é, de fato, comprada no mercado, assim como o algodão. Mas, uma máquina de fiar não tem valor se não é utilizada para fiar, ou seja, se não funciona como elemento de produção e, do ponto de vista capitalista, não funciona como componente fixo de um capital produtivo. Mas a máquina de fiar é móvel. Ela pode ser exportada do país no qual foi produzida e ser diretamente vendida no estrangeiro, em troca de matérias-primas etc., ou de champagne. No país em que foi produzida ela funcionou apenas como capital-mercadoria, mas nunca nem mesmo depois de sua venda, como capital fixo.     

Do ponto de vista metodológico notou Norbert Elias (2006) que o conceito de civilização se refere a uma grande variedade de fatos sociais: nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma “civilizada” ou “incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como chave na civilização. Mas também não significa a mesma coisa para diferentes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre a forma como ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães, por outro. Para os primeiros, o conceito resume em palavra seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade em geral.

O conceito de figuração distingue-se de outros conceitos teóricos da sociologia por incluir expressamente os seres humanos em sua formação social. Contrasta, portanto, decididamente com um tipo amplamente dominante de formação de conceitos que se desenvolve sobretudo na investigação de objetos sem vida, portanto no campo da física e da filosofia para ela orientada. Há figurações de estrelas, assim como de plantas e de animais. Mas apenas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modo de sua vida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular e sempre co-determinado pela transmissão de conhecimento de uma geração a outra, por tanto por meio do ingresso singular do mundo simbólico específico de uma figuração já existente de seres humanos. Às quatro dimensões espaço-temporais indissoluvelmente ligadas se soma, no caso dos seres humanos, uma quinta, a dos símbolos socialmente apreendidos. Sem sua apropriação, sem, por exemplo, o aprendizado de uma determinada língua especificamente social, os seres humanos não seriam capazes de se orientar no seu mundo nem de se comunicar uns com os outros. Um ser humano adulto, que não teve acesso aos símbolos da língua e do conhecimento de determinado grupo permanece fora de todas as figurações humanas, pois não é um ser humano.

As definições de controle social são demasiado amplas e vagas, e, portanto, seria legítimo indagar, escolhendo-as mais ou menos ao acaso, para inferir que resultam em termos de um controle, isto é, qualquer estímulo ou complexo de estímulos que provoca uma determinada reação. Assim, pois, todos os estímulos são controles, pois representam a direção do comportamento por influências grupais, estimulando ou inibindo a ação individual ou grupal. O controle social pode ser definido como a soma total ou, antes, o conjunto de padrões culturais, símbolos sociais, signos coletivos, valores culturais, ideias e idealidades, tanto como atos quanto como processos diretamente ligados a eles, pelo qual a sociedade inclusiva, cada grupo particular, e cada membro individual participante superam as tensões e os conflitos entre si, através do equilíbrio temporário, e se dispõem a novos esforços criativos. Ipso facto, em toda a dimensão da vida associativa deverá haver algum ajustamento de relações sociais tendentes a prevenir a interferência de direitos e privilégios entre os indivíduos. De maneira mais específica, são três as funções do estabelecidas pelo controle social: a obtenção e a manutenção da ordem social, da proteção social e da eficiência social. O seu emprego hic et nunc na investigação sociológica contribuiu consideravelmente para produzir uma simplificação ou redução na análise dos problemas sociais, conseguida proporcionalmente, graças à compreensão positiva da integração das contradições correspondentes no sistema de organização das sociedades e da importância relativa de cada um deles, como e enquanto expressão do jogo social.  Embora obscuro e equívoco, em seu significado corrente na história contemporânea, o conceito de controle social é necessário à investigação sociológica encontraram um sistema de referências propício à sua crítica científica, seleção lógica e coordenação metódica.  

O crescimento de um jovem convivendo e habitando comum em figurações humanas, como processo social e experiência, assim como o aprendizado de um determinado esquema de autorregulação na relação com os seres humanos, é condição indispensável ao desenvolvimento rumo à humanidade. Socialização e individualização de um ser humano, são nomes diferentes para o processo. Cada ser humano assemelha-se aos outros, e é, ao mesmo tempo, diferente de todos os outros. O mais das vezes, as teorias sociológicas deixam sem resolver o problema da relação entre indivíduo e sociedade. Quando se fala que uma criança se torna um indivíduo humano por meio da integração em determinadas figurações, como, por exemplo, em famílias, em classes escolares, em comunidades aldeãs ou em Estados, assim como mediante a apropriação e reelaboração de um patrimônio simbólico social, conduz-se o pensamento por entre dois grandes perigos da teoria e das ciências humanas: o perigo de partir de um indivíduo a-social, portanto como que de um agente que existe por si mesmo; e o perigo de postular um “sistema”, um “todo”, em suma, uma sociedade humana que existiria para além do ser humano singular, para além dos indivíduos. Embora não possuam um começo absoluto, não tendo nenhuma outra substância a não ser seres humanos gerados familiarmente por pais e mães, as sociedades humanas não são simplesmente um aglomerado cumulativo dessas pessoas. O convívio dos seres humanos em sociedades tem sempre, mesmo no caos, na desintegração, na maior desordem social, uma forma absolutamente determinada. É isso que o conceito de figuração exprime.

O processo de concentração física de força pública se acompanhada de uma desmobilização da violência ordinária. A violência física só pode ser aplicada por um agrupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim, claramente identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um agrupamento simbólico, centralizado e disciplinado. A noção de disciplina, sobre a qual Max Weber escreveu páginas magníficas, é capital: não se pode concentrar a força física sem, ao mesmo tempo, controla-la, do contrário é o desvio da violência física, e o desvio da violência física está para a violência física assim como o desvio de capitais está para a dimensão econômica: é o equivalente da concussão. A violência física pode ser concentrada num corpo formado para esse fim, claramente identificado em nome da sociedade pelo uniforme simbólico, especializado e disciplinado, isto é, capaz de obedecer como um só homem a uma ordem central que, em si mesma, não é geradora de nenhuma ordem. O conjunto das instituições mandatadas para garantir a ordem, a saber, as forças públicas e de justiça, são, portanto, separadas pouco a pouco do mundo social corrente. Essa concentração do capital físico se realiza em um duplo contexto. Para uns, o desenvolvimento do exército profissional está ligado à guerra, assim como o imposto; mas há também a guerra interior, a guerra civil, a arrecadação do imposto como uma espécie de guerra civil.  

A estratégia do passado que visava organizar novos espaços urbanos transformou-se meramente em artifícios políticos e muito pouco em torno de reabilitação de patrimônios. Depois de haver inconscientemente projetado a cidade futura, torna-se uma cidade frequentada por sua estranheza, muito mais elevada aos excessos que reduzem o presente, a nada mais que simples escombros como caixas d`água que deixam escapar seu domínio do tempo. Mas os técnicos se denunciam já no quadriculamento que atrapalhavam os planejadores funcionalistas que deviam fazer tábula rasa das opacidades contidas nos projetos de cidades transparentes. Afinal qual o urbanismo que não descontroem mais do que uma guerra a questão da memória e da história aldeã, operária, com casas desfiguradas, fábricas desativadas, universidades sem vida, cacos de histórias naufragadas que hoje formam as ruínas de uma cidade fantasma ou fantasmas da cidade, antes modernista, cidade de massa, homogênea, como os lapsos de uma linguagem que se desconhece, quem sabe inconsciente. Mas elas surpreendem. O imaginário individual (sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos), em primeiro lugar, são as coisas que o soletram. Eles têm uma função social que consiste em abrir uma profundidade no presente, mas não têm mais o conteúdo que provê de sentido a estranheza do passado. Suas histórias deixam de ser pedagógicas para inferir o  trágico.  

O Estado se constitui, portanto, em relação à forma de governo um duplo contexto: de um lado, efeitos de poder político em relação a outros Estados, atuais ou potenciais, isto é, os princípios concorrentes – portanto, precisa concentrar “capital de força física” para travar a guerra pela terra, pelos territórios; de outro lado, em relação a um contexto interno, a contrapoderes, isto é, príncipes concorrentes ou classes dominadas que resistem à arrecadação do imposto ou ao recrutamento de soldados. Esses dois fatores favorecem a criação de exércitos poderosos dentro dos quais se distinguem progressivamente forças propriamente militares e forças propriamente policiais destinadas à manutenção da ordem interna. Essa distinção exército/polícia, evidente hoje, tem uma genealogia extremamente lenta, as duas forças têm sido por muito tempo confundido. O desenvolvimento do imposto está ligado às despesas de guerra. O nascimento do imposto é simultâneo a uma acumulação extraordinária de capital detido pelos profissionais da gestão burocrática e à cumulação de um imenso capital informacional. É o vínculo institucional entre Estado e estatística: o Estado está associado a um conhecimento racional do mundo social e governamental. A estatística em como representação o campo da matemática que relaciona fatos sociais e números em que há um conjunto de métodos que nos possibilita coletar dados e analisá-los, assim sendo possível realizar alguma interpretação deles.

            No âmbito da historiografia e em filosofia da história, o progresso representa a ideia de que o mundo pode se tornar gradativamente melhor no que diz respeito à ciência, tecnologia, modernização, liberdade, democracia, qualidade de vida, etc. Embora ao progresso esteja frequentemente associada a noção ocidental da mudança monótona de uma tendência, em linha reta, no entanto concepções alternativas existem, como a teoria cíclica do “eterno retorno” formulada por Friedrich Nietzsche, ou “em forma de espiral” o progresso da dialética de Friedrich Hegel, Karl Marx e outros. Noutras palavras, o progresso é entendido como um conceito que indica a existência de um conteúdo de sentido de melhorar a vivência sobre a condição humana. A consideração de possibilidade foi fundamental para a separação da rotinização feudal medieval, baseada no teocentrismo cristão ou muçulmano e expresso na escolástica. A partir desse ponto de vista o qual não é o único possível em teologia, o progresso é sentido quando a história humana provém da queda do homem (o pecado original) e o futuro tende ao ideário da salvação em Cristo.

A história em si, interpretada como providencial, é um parêntesis na eternidade, e o homem não deve ter esperança de participar em mais do que a divindade concedida pelo Apocalipse. A crise medieval e renascentista, com o antropocentrismo, resolvera o debate dos antigos e modernos, superando o Argumentum ad verecundiam e revelação como fonte do conhecimento. Desde a crise da consciência europeia do final do século XVII e da era do iluminismo do século XVIII tornou-se banal expressar as ideias dominantes do capitalismo e da ciência moderna. A segunda metade do século XIX foi o momento otimista de seu aparente triunfo, com os avanços técnicos da Revolução Industrial, no qual o imperialismo europeu estendeu o seu conceito de civilização para quase todo o mundo. A sua expressão máxima foi o positivismo normativo de Auguste Comte. Embora os percursores pudessem ser evidentes, até depois da 1ª grande guerra (1914-1918), não houve um verdadeiro questionamento e um debate adequado sobre a ideia de progresso, incluindo a questão tópica mudança do paradigma científico, as vanguardas na arte, e o reexame da ordem econômico-social e política que envolveram a Revolução Russa de 1917, a Grande Depressão e o fascismo e assim por diante.

Acumulação compulsiva, reconhecida como “transtorno de acumulação”, é um padrão de comportamento que se caracteriza pelo excesso de aquisição de itens, e uma incapacidade ou relutância para o descarte da grande quantidade de objetos que cobre as áreas residenciais e causam significantes estresse e perda de função. O comportamento de acumulação compulsiva está associado com riscos de saúde, função danificada, peso econômico, e efeitos adversos em amigos e membros da família. Apenas recentemente pesquisadores começaram a estudar a acumulação, e por isto, foi definida como “doença mental” apenas na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), resultado de mais de 10 anos de pesquisa de especialistas do mundo, traz o que há de mais atual em termos de classificação técnica e diagnóstico na área da saúde mental, constituindo-se em recurso indispensável a estudantes, clínicos e pesquisadores.

As taxas de prevalência têm sido estimadas entre 2% e 5% em adultos, embora a condição geralmente se manifeste na “infância com sintomas de agravamento em idade avançada”, ponto no qual os itens coletados chegaram a um total demasiado excessivo, e os membros da família, que poderiam ajudar a manter e controlar os níveis de desordem já morreram, ou se afastaram. O “comportamento acumulador” é, com frequência, grave, pois os acumuladores não o reconhecem como um problema, devido ao efeito Dunning–Kruger, geralmente explicado em termos de habilidades metacognitivas. É muito mais difícil para a terapia comportamental tratar com êxito os chamados “acumuladores compulsivos” que não têm boa compreensão da própria doença. Os resultados de uma pesquisa de 2008 demonstram que acumuladores têm bem menos probabilidade de ver um problema numa “situação de acumulação” do que um amigo, familiar ou um parente. Marx lembra-nos que uma jornada prolongada de trabalho parece ser o segredo do método racional e salutar que elevará a condição de trabalhador, mediante o aperfeiçoamento de suas aptidões intelectuais e morais, fazendo dele um consumidor racional. O que ele entende por consumo racional se mostra claramente lá onde ele é tão transigente que pratica diretamente o comércio dos artigos a serem consumidos pelos seus trabalhadores: no truck system, do qual o fornecimento de habitação – que faz com que o capitalista seja ao mesmo tempo o senhorio do trabalhador – é apenas um ramo entre muitos.  

Ipso facto, todo esse movimento, parece girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida. Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada como uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do capital original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for, vejamos.

Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e as riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenha deixado de trabalhar. São trivialidades como essas que, por exemplo, o sr. Thiers, com a solenidade de um estadista, continua a ruminar aos franceses, outrora tão sagazes, como apologia da proprieté. Mas quando tão logo entra em jogo a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como afirma Marx, o papel principal e representado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos admitidos como idílicos.

Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa transformação só pode operar-se  em determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livre, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livre no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção, no caso do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais do processo da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva a separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.   

A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte nada mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque em análise histórica comparada constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde historicamente. A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os elementos sociais daquela. O produtor direto, o trabalhador, só pode dispor de sua pessoa depois que deixou de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou enquanto vassalo de outra pessoa. Para converter-se em livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde haja mercado para ela, ele tinha além disso, de emancipar-se do jugo das corporações, de seus regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo. Em síntese, os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram, por sua vez, de deslocar não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas também os senhores feudais, que detinham as fontes de riquezas.

Bibliografia geral consultada.

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