domingo, 2 de abril de 2023

Quarto do Pânico – Domínio, Repetição & Desejo Mistificado.

                                Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido”. Michel Foucault (1984: 98)


A besteira não é a animalidade. O animal está garantido por formas específicas que o impedem de ser besta. Mas foram estabelecidas frequentemente correspondências entre os rostos humanos e as cabeças animais, isto é, entre diferenças individuais do homem e diferenças específicas do animal. Mas, assim procedendo, não se dá conta da besteira como bestialidade propriamente humana. Quando o poeta satírico percorre todos os graus de injúria, ele não permanece nas formas animais, mas empreende regressões mais profundas, dos carnívoros aos herbívoros, e acaba por desembocar numa cloaca, num fundo universal digestivo e leguminoso. Mais profundo do que o gesto anterior do ataque, segundo Gilles Deleuze no ensaio da Différence et Répétition (1968), ou o movimento de voracidade, há o processo interior de digestão, a besteira nos momentos peristálticos. Razão pela qual o tirano não é apenas um cabeça de boi, mas de pera, de couve ou de batata. Alguém jamais é superior ou exterior aquilo de que ele se aproveita: o tirano em geral institucionaliza a besteira, mas é o primeiro serviçal de seu sistema, e o primeiro instituído é sempre um escravo que comanda escravos. Nesse caso, como o conceito de erro daria conta da unidade de besteira e crueldade, de grotesco e terrificante, que duplica o curso do mundo? A covardia, a crueldade, a baixeza, a besteira não são potências corporais ou fatos de caráter e de sociedade, mas estruturas do pensamento e de poder como tal.

Para entender a questão em torno do quarto da família de classe média na sociedade contemporânea, como ocorre na narrativa do filme O Quarto do Pânico, uma representação social de suspense norte-americano de 2002, dirigido por David Fincher, com as atrizes Jodie Foster e Kristen Stewart e os atores Forest Whitaker e Jared Leto. A casa e seu quarto do pânico foram construídos em um lote no Raleigh Studios, um estúdio localizado em Hollywood, Los Angeles, sob propriedade da Raleigh Enterprises desde 1979. O local está ativo desde 1915. Antes de Raleigh, o estúdio era administrado pela Famous Players Film Company, Clune Studios, California Studios e outros. Sociologicamente, Raleigh “não tem marca ou logotipo útil”, servindo como um espaço transitório de aluguel para vários filmes antes e depois da propriedade da Raleigh Enterprises. O autor Tom Ogden descreve o Raleigh Studios como “um estúdio independente, não afiliado a nenhum dos principais”, que em 2009 tinha nove estúdios disponíveis. A partir de 2022, o local conta com 13 estúdios sonoros. Nicole Kidman foi originalmente escalada como a protagonista, mas ela saiu de cena depois de agravar uma lesão anterior. Sua partida ameaçou a realização do filme, mas Jodie Foster rapidamente ocupou o lugar de Nicole. Os cineastas utilizaram “imagens geradas por computador para criar a ilusão da câmera no filme parecer mover-se através das salas da casa”. Jodie engravidou durante as filmagens, que foram suspensas até depois de ocorrer o parto. A recém-separada matrimonialmente Meg Altman e a filha Sarah são surpreendidas com a invasão de sua enorme casa por três ambiciosos vigaristas. Elas se escondem em um quarto secreto para situações de emergências, mas passam a enfrentar pequenos problemas dentro e fora de seu refúgio, pois curiosamente o que os homens procuram está justamente no quarto onde elas estão.

A rua já era um tema familiar da iconografia medieval: ela se anima com uma vida particularmente expressiva nas admiráveis vistas das pontes de Paris da Vida de São Denis, notável pregador converteu centenas de pessoas, num manuscrito do século XIII. Assim como nas cidades árabes de hoje, a rua era o lugar onde se praticavam os ofícios, a vida profissional, as conversas, os espetáculos e os jogos. Fora da vida privada, por muito tempo ignorada pelos artistas, tudo se passava na rua. No entanto, as cenas dos calendários, de inspiração rural, durante muito tempo a ignoraram. No século XV, a rua tomou seu lugar nos calendários. É verdade que os meses de novembro e de dezembro do livro de horas de Turim são ilustrados com o tradicional sacrifício do porco. Mas aqui, ele se passa na rua, e os vizinhos estão diante de suas portas para observá-lo. No calendário do livro de horas de Adelalde de Savoie, aparece o mercado: moleques cortam as bolsas de donas-de-casa ocupadas e distraídas - reconhecemos aí o tema dos pequenos batedores de carteiras, que se iria manter na pintura picaresca ao longo de todo o século XVII. Uma outra cena do mesmo calendário representa a volta do mercado: uma comadre para falar com sua vizinha, que está na janela; alguns homens descansam sentados num banco, protegidos por um telheiro, e distraem-se vendo meninos jogar péla e lutar. Essa rua medieval assim como a rua árabe de hoje, não se opunha à intimidade da vida privada; era um prolongamento dessa vida privada, o cenário familiar do trabalho e das relações sociais na vida cotidiana.


Para compreendermos este “lugar praticado”, para usarmos a terminologia de Michel de Certeau, é necessário antes de tudo, investigarmos a história social da criança e da família, segundo o estudo clássico de Philippe Ariès (1978) conforme questões hic et nunc, nesta brevíssima introdução ao tema. Quanto mais avançamos no tempo e espaço, e sobretudo no século XVI, mais frequentemente a família do senhor da terra é representada entre os camponeses, supervisionando seu trabalho e participando de seus jogos. Numerosas tapeçarias do século XVI descrevem essas cenas campestres em que os senhores e suas crianças colhem uvas e supervisionam a colheita do trigo. O homem não está mais sozinho. O casal não é mais apenas o casal imaginário individual do referido amor cortês. A mulher e a família participam do trabalho e vivem perto do homem, na sala ou nos campos. Não se trata propriamente de cenas de família: as crianças ainda estão ausentes no século XV. Mas o artista exprime discretamente a colaboração da família, dos homens e das mulheres no âmbito da casa, no trabalho quotidiano, com uma preocupação de intimidade outrora desconhecida. Ao mesmo tempo, a rua surge nos calendários.

Os artistas, em suas tentativas de representação da vida privada, começariam por mostrá-la na rua, antes de segui-la até dentro de casa. Talvez essa vida privada se passasse tanto ou mais na rua do que em casa. Com a rua, os jogos invadiram as cenas dos calendários: os jogos de cavalaria, como os torneios (Turim, Hennessy), os jogos comuns a todos, e as festas folclóricas, como a árvore de maio. O calendário do livro de horas de Adelaïde de Savoie (1092-1154) compõe-se essencialmente de uma descrição dos mais diversos jogos, jogos de salão, jogos de força e de habilidade, jogos tradicionais: a festa de Reis, a dança de maio, a luta, o hóquei, as disputas entre dois homens armados de varas em duas barcas, as guerras de neve. Em outros manuscritos, assistimos a certames de tiro com bestas (Hennessy), a passeios de barco com música (Hennessy) e os banhos coletivos (Grimani). Ora, sabemos que os jogos não eram então apenas diversões, mas uma forma de participação na comunidade ou no grupo: jogava-se em família, entre vizinhos, entre classes de idade, entre paróquias. Finalmente, partir do século XVI, uma nova personagem entra em cena nos calendários: a criança. Sem dúvida, ela já aparecia com frequência na iconografia do século XVI, particularmente nos reconhecidos Miracles de Notre Dame. Mas ela havia permanecido ausente dos calendários, como se essa tradição antiga tivesse hesitado em aceitar esse elemento que concorre em momento tardio.

Nos trabalhos dos campos, ainda não aparecem crianças ao lado das mulheres. Apenas algumas servem à mesa nos banqudes de janeiro. Percebemo-las também no mercado do livro de horas de Adelalde de Savoie; nesse mesmo manuscrito, elas brincam de jogar bolas de neve, atrapalham com sua bagunça o pregador na igreja e são expulsas. Nos últimos manuscritos flamengos do século XVI, elas se divertem alegremente; percebe-se a predileção que lhes dedica o artista. Os calendários dos livros de horas de Hennessy e de Grimani imitaram com precisão a aldeia coberta de neve das Très Riches Heures do Duque de Berry, na cena do mês de janeiro, ao qual descrevemos acima, em que o camponês corre para casa a fim de se unir às mulheres que se aquecem. Foi encomendado por João, duque de Berry em torno de 1410. Eles acrescentaram outra personagem: a criança que aparece na pose do Manneken-Pis, que se tornara frequente na iconografia da época a criança urina pela abertura da porta. Esse tema do Manneken-Pis é encontrado em toda a parte: lembremos o sermão de São João Batista do museu dos Augustins de Toulouse que outrora ornava a capela do Parlamento dessa cidade, ou um certo putti de Ticiano. Nesses livros de horas de Hennessy e Grimani, as crianças patinam no gelo, brincam de imitar os torneios dos adultos, mas alguns reconheceriam entre elas o jovem Carlos V. No livro de horas de Munique, elas se atiram bolas de neve. No Hortulus animae, elas brincam de corte de amor e de torneio, montadas numa barrica, ou patinam no gelo. As representações sucessivas dos meses do ano introduziram, essas novas personagens: a mulher, o grupo de vizinhos e companheiros, a criança se ligava a essa necessidade outrora desconhecida de intimidade, de vida familiar, quando não era ainda precisamente, de vida “em família”.

Ao longo do decorrer do século XVI, essa iconografia dos meses sofreria uma última transformação  significativa para nosso estudo: ela se tornaria uma iconografia da família. Ela se tornaria familiar ao se combinar com o simbolismo de uma outra alegoria tradicional: as idades da vida. Havia várias maneiras de representar as idades da vida, mas duas delas eram mais comuns: a primeira, mais popular, sobreviveu na gravura, e representava as idades nos degraus de uma pirâmide que subia do nascimento à maturidade, e daí descia até a velhice e a morte. Os grandes pintores recusavam-se a adotar essa composição demasiado ingênua. De modo qual, adotavam a representação das três idades da vida sob a forma de uma criança, alguns adolescentes – em geral um casal - e um velho. No quadro de Ticiano ', por exemplo, aparecem dois putti dormindo, um casal formado por uma camponesa vestida tocando flauta e um homem nu no primeiro plano, e, ao fundo, um velho sentado e recurvado segurando uma caveira. O mesmo tema é encontrado em Van Dyck, no século XVII. Nessas três ou quatro idades da vida são representadas separadamente, segundo a tradição iconográfica.

Ninguém teve a ideia de reuni-las dentro de uma mesma família, cuja gerações diferentes simbolizariam as três ou quatro idade da vida. Os artistas, e a opinião que eles traduziam, permaneciam fiéis a uma concepção mais individualista das idades: o mesmo individuo era representado nos diversos momentos de seu destino. Entretanto, ao longo do século XVI, surgira uma nova ideia, que simbolizava a duração da vida através da hierarquia da família. Lá tivemos a ocasião de citar Le Grand Propriétaire de Toutes Choses, esse velho texto medieval traduzido para o francês e editado em 1556. Como observamos, esse livro era um espelho do mundo. O sexto livro trata das “Idades”. É ilustrado com uma xilogravura que não representa nem os degraus das idades, nem as três ou quatro idades separadas, mas simplesmente uma reunião de familia. O pai está sentado com uma criancinha sobre os joelhos. Sua mulher está de pé à sua direita. Um dos filhos está à sua esquerda, e o outro dobra o joelho para receber algo que o pai lhe dá. Trata-se ao mesmo tempo de um retrato de família, como os que abundavam nessa época nos Países Baixos, na Itália, na Inglaterra, na França e na Alemanha, e uma cena de gênero familiar, que os pintores e gravadores multiplicariam no século XVII. 

Esse tema reconheceria a mais extraordinária popularidade. Não era um tema totalmente desconhecido da Idade Média, ao menos da parte final. Foi desenvolvido de forma notável num capitel das loggias do palácio Ducal de Veneza, dito capitel do casamento. Neste caso, constitui o membro superior de uma coluna (ou pilastra). Ele faz a mediação entre a coluna e a carga que é empurrada para baixo sobre ela, ampliando a área da superfície de suporte da coluna. O capitel, projetando-se de cada lado à medida que sobe para sustentar o ábaco, junta-se ao ábaco geralmente quadrado e ao eixo geralmente circular da coluna. O capitel pode ser convexo, como na ordem dórica; côncavo, como no sino invertido da ordem coríntia; ou rolando para fora, como na ordem iônica. Estes formam os três tipos principais nos quais todas as capiteis da tradição clássica se baseiam. Venturi data essa representação de cerca de 1424, enquanto Toesca a coloca no fim do século XIV, o que parece mais provável devido ao estilo e ao traje, mas mais surpreendente em virtude da precocidade do tema. As oito faces desse capitel contam-nos uma história dramática que ilustra a fragilidade da vida, um tema familiar nos séculos XIV e XV - porém aqui, esse drama se passa no seio de uma familia, e isso é novo. A representação começa pelo noivado. A seguir, a jovem mulher aparece vestida com um traje de cerimônia sobre o qual foram costurados pequenos discos de metal: seriam simples enfeites ou seriam moedas, já que as moedas desempenhavam um papel no folclore do casamento e do batismo? A terceira face representa a cerimônia do casamento, no momento em que um dos cônjuges segura uma coroa sobre a cabeça do outro: rito que subsistiu na liturgia oriental. Então, os noivos têm o direito de se beijar.

Na quinta face, eles estão deitados nus no leito nupcial. Nasce uma criança, que aparece enrolada em cueiros e segura pelo pai e a mãe juntos. Suas roupas parecem mais simples do que na época do noivado e do casamento: eles se tornaram pessoas sérias, que se vestem com uma certa austeridade ou segundo a moda antiga. A sétima face reúne toda a familia, que posa para um retrato. O pai e a mãe seguram a criança pelo ombro e pela mão. Já é o retrato familiar, tal como o encontramos no Le Grand Propriétaire. Mas, com a oitava face, o drama explode: a familia sofre uma prova, pois a criança está morta, estendida sobre a cama, com as mãos postas. A mãe enxuga as lágrimas com uma das mãos e põe a outra no braço da criança; o pai reza. Outros capitéis, vizinhos deste, são ornados com putti nus que brincam com frutas, aves ou bolas: temas mais banais, mas que permitem recolocar o capitel do casamento em seu contexto iconográfico. A história do casamento começa como a história de uma familia, mas acaba com o tema diferente da morte prematura. No museu Saint-Raimond, em Toulouse, podemos ver os fragmentos de um calendário que pôde ser datado do início da Segunda metade do século XVI graças aos trajes. Na cena do mês de julho, a familia está reunida num retrato, como na gravura contemporânea do Le Grand Propriétaire, mas com um detalhe adicional que tem sua importância: a presença dos criados ao lado dos pais. O pai e a mãe estão no meio. O pai dá a mão ao filho, e mãe à filha. O criado está do lado dos homens, e a criada do lado das mulheres, pois os dois sexos são separados como nos retratos de doadores: os homens, pais e filhos, e as mulheres, mães e filhas, do outro.

Os criados fazem parte da familia. Agosto é o mês da colheita, mas o pintor se empenha em representar, mais do que a própria colheita, a entrega da colheita ao senhor, que tem na mão moedas para dar aos camponeses. Essa cena prende-se a uma iconografia muito frequente no século XVI, particularmente nas tapeçarias em que os fidalgos do campo supervisionam seus camponeses ou se divertem com eles. Outubro: a refeição em familia. Os pais e as crianças estão sentados à mesa. A criança menor está encarapitada numa cadeira alta, que lhe permite alcançar o nível da mesa - uma cadeira feita especialmente para as crianças de sua idade, do tipo que vemos ainda hoje. Um menino com um guardanapo serve à mesa: talvez um criado, talvez um parente, encarregado naquele dia de servir à mesa, função que nada tinha de humilhante, muito ao contrário. Novembro: o pai está velho e doente, tão doente que foi preciso recorrer ao médico. Este, com um gesto banal pertencente a uma iconografia tradicional, inspeciona o urinol. Dezembro: familia está reunida no quarto, perto do leito onde o pai agoniza. 

Ele recebe a comunhão. Sua mulher está de joelhos ao pé da cama. Atrás dela, uma moça ajoelhada chora. Um rapaz segura uma vela. Ao fundo, percebe-se uma criança pequena: sem dúvida o neto, a próxima geração que continuaria a familia. Portanto, esse calendário assimila a sucessão dos meses do ano à das idades da vida, mas representa as idades da vida sob a forma da história de uma familia: a juventude de seus fundadores, sua maturidade em torno dos filhos, a velhice, a doença e a morte, que é ao mesmo tempo a boa morte, a morte do homem justo, tema igualmente tradicional, e também a morte do patriarca no seio da familia reunida. A história desse calendário começa como a da família do capitel do casamento do palácio dos Doges. Mas não é o filho, a criança querida, que a morte rouba cedo demais. As coisas seguem um curso mais natural. É o pai que parte, ao final de uma vida plena, cercado por uma família unida, e deixando-lhe sem dúvida um patrimônio bem administrado. A diferença está toda aí. Não se trata mais de uma morte súbita, e sim da ilustração de um sentimento novo: o sentimento da família.

O aparecimento do tema da família na iconografia dos meses não foi um simples episódio. Uma evolução maciça arrastaria nessa mesma direção toda a iconografia dos séculos XVI e XVII. No princípio, as cenas representadas pelos artistas se passavam ou num espaço indeterminado, ou em lugares públicos como as igrejas, ou ao ar livre. Na arte gótica, livre do simbolismo romano-bizantino, as cenas de ar livre tornaram-se mais numerosas e mais significativas graças à invenção da perspectiva e ao gosto pela paisagem: a dama recebe seu cavaleiro num jardim fechado; a caçada conduz grupos através dos campos e florestas; o banho reúne as damas em torno da fonte de um jardim; os exércitos manobram, os cavaleiros se enfrentam em torneios, o exército acampa em torno da tenda onde o Rei descansa, os exércitos sitiam cidades; os príncipes entram e saem das cidades fortificadas, sob a aclamação do povo e dos burgueses. Penetramos nas cidades por pontes, passando diante das tendas onde trabalham os ourives. Vemos passar os vendedores de biscoitos, e as barcas carregadas descendo o rio. Ao ar livre ainda, vemos todos os jogos serem praticados. Acompanhamos os jograis e os peregrinos em seu caminho. A iconografia profana medieval é uma iconografia do ar livre.

Quando, nos séculos XIII ou XIV, os artistas se propõem a ilustrar anedotas ou episódios particulares, eles hesitam, e sua ingenuidade surpresa produz um resultado canhestro: nenhum deles se compara ao virtuosismo dos artistas que representam episódios nos séculos XV e XVI. Antes do século XV, portanto, as cenas de interior são muito raras. A partir de então, elas se tornam cada vez mais frequentes. O evangelista, antes situado num meio atemporal, torna-se um escriba em sua escrivaninha, com a pena e a raspadeira na mão. Primeiro ele é colocado na frente de um simples drapeado decorativo, mas finalmente aparece num quarto cheio de livros em prateleiras: do evangelista, passou-se ao autor em seu quarto, a Froissart escrevendo uma dedicatória em seu livro. Nas ilustrações do texto de Terêncio do palácio dos Doges, as mulheres trabalham e fiam em seus aposentos, com suas criadas, ou aparecem deitadas na cama, nem sempre sozinhas. Veem-se cozinhas e salas de albergues. As cenas galantes e as conversações se passam agora no espaço fechado de uma sala. Surge o tema do parto, cujo pretexto é o nascimento da Virgem. Criadas, comadres e parteiras se atarefam no quarto em torno da cama da mãe. Surge também o tema da morte, da morte no quarto, em que o agorlizante luta em seu Idto por sua salvação. A representação mais frequentes do quarto e da sala corresponde a uma tendência nova do sentimento, que se volta então para a intimidade da vida privada.  As cenas de exterior não desaparecem, é certo - são a origem das paisagens, mas as cenas de interior tornam-se mais numerosas e mais originais. Iriam caracterizar a pintura de gênero todo o tempo de sua existência. 

A vida privada, rechaçada na Idade Média, invade a iconografia, particularmente a pintura e a gravura ocidentais no século XVI e, sobretudo no XVII: a pintura holandesa e flamenga e a gravura francesa comprovam a extraordinária força desse sentimento, antes inconsistente ou menosprezado. Sentimento já tão moderno, que para nós é difícil compreender o quanto era novo. Essa farta ilustração da vida privada poderia ser classificada em dois grupos: o do namoro e da farra à margem da vida social, no mundo suspeito dos mendigos, nas tabernas, nos bivaques, entre os boêmios e os vagabundos - que desprezaremos por estar fora de nosso assunto - e sua outra face, o grupo da vida em familia. Se percorrermos as coleções de estampas ou as galerias de pintura dos séculos XVI-XVII, ficaremos impressionados com essa verdadeira avalancha de imagens de familias. Esse movimento culmina na pintura da primeira metade do século XVII na França, e na pintura de todo o século e até mais na Holanda.  Ele persiste na França durante a segunda metade do século XVII na gravura e nos leques pintados, reaparece no século XVIII na pintura, e dura até o século XIX, até a grande revolução estética que baniria da arte a cena de gênero. Nos séculos XVI e XVII, os retratos de grupos são numerosíssimos. Alguns são retratos de confrarias ou corporações. Mas a maioria representa uma familia reunida.  Estes surgem no século XV, com os doadores que se fazem representar no nível inferior de alguma cena religiosa, como sinal de sua devoção. Esses doadores são discretos e estão sozinhos.

Mas logo começam a trazer a seu lado toda a familia, incluindo os vivos e os mortos: as mulheres e os filhos mortos também têm seu lugar na pintura. De um lado aparece o homem e os meninos, do outro a ou as rnulheres, cada uma com as filhas de seu leito. O nível ocupado pelos doadores amplia-se ao mesmo tempo em que se povoa, em detrimento da cena religiosa, que se torna então uma ilustração, quase um hors-d`oeuvre. Na maioria dos casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mãe, o santo do lado dos homens e a santa do lado das mulheres. Convém observar a imponência assumida pela devoção dos santos padroeiros, que figuram como protetores da familia: ela é o sinal de um culto particular de caráter familiar, como o do anjo da guarda, embora este último tenha um caráter mais pessoal e mais peculiar à infância. Essa etapa do retrato dos doadores com sua família pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI: os vitrais da família Montmorency em Monfort-L`Amaury, Montmorency e Ecouen; ou os numerosos quadros pendurados como ex-votos nos pilarcs e nas paredes das igrejas alemãs, muitos dos quais ainda permanecem em seu lugar nas igrejas de Nuremberg e muitas outras pinturas, às vezes ingênuas e mal feitas, chegaram aos museus regionais da Alemanha e da Suíça alemã. Os retratos de familia de Holbein são fiéis a esse estilo. Tudo indica que os alemães se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religioso da familia, destinado às igrejas; ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores, mais antigo, e anunciaria os ex-votos mais anedóticos e pitorescos do século XVIII e início do XIX, que representam não mais a reunião familiar dos vivos e dos mortos, mas o acontecimento miraculoso que salvou um indivíduo ou um membro da familia de um naufrágio, um acidente ou uma doença. O retrato de familia representa na sociedade uma espécie de ex-voto.

Mas logo começam a trazer a seu lado toda a familia, incluindo os vivos e os mortos: as mulheres e os filhos mortos também têm seu lugar na pintura. De um lado aparece o homem e os meninos, do outro a ou as rnulheres, cada uma com as filhas de seu leito. O nível ocupado pelos doadores amplia-se ao mesmo tempo em que se povoa, em detrimento da cena religiosa, que se torna então uma ilustração, quase um hors-d`oeuvre. Na maioria dos casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mãe, o santo do lado dos homens e a santa do lado das mulheres. Convém observar a imponência assumida pela devoção dos santos padroeiros, que figuram como protetores da familia: ela é o sinal de um culto particular de caráter familiar, como o do anjo da guarda, embora este último tenha um caráter mais pessoal e mais peculiar à infância. Essa etapa do retrato dos doadores com sua família pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI: os vitrais da família Montmorency em Monfort-L`Amaury, Montmorency e Ecouen; ou os numerosos quadros pendurados como ex-votos nos pilarcs e nas paredes das igrejas alemãs, muitos dos quais ainda permanecem em seu lugar nas igrejas de Nuremberg e muitas outras pinturas, às vezes ingênuas e mal feitas, chegaram aos museus regionais da Alemanha e da Suíça alemã. Os retratos de familia de Holbein são fiéis a esse estilo. Tudo indica que os alemães se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religioso da familia, destinado às igrejas; ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores, mais antigo, e anunciaria os ex-votos mais anedóticos e pitorescos do século XVIII e início do XIX, que representam não mais a reunião familiar dos vivos e dos mortos, mas o acontecimento miraculoso que salvou um indivíduo ou um membro da familia de um naufrágio, um acidente ou uma doença. O retrato de familia é uma espécie de ex-voto.

Recentemente divorciada Meg Altman e sua filha Sarah acabam de adquirir uma casa de quatro andares no Upper West Side. O anterior proprietário da casa, um milionário recluso, instalou uma sala isolada usada para proteger os ocupantes da casa de intrusos. O “quarto do pânico” é protegido por um sistema de segurança abrangente, com múltiplas câmeras de vigilância, um sistema de voz, e uma linha telefônica separada concreto e aço de todos os lados, e uma porta de aço. Na noite que as duas se mudam para a casa, ela é invadida por Junior, o neto do proprietário anterior; Burnha, um empregado da empresa de segurança da residência; e Raoul, um pistoleiro recrutado por Junior. Os três estão atrás de 3 milhões de dólares em títulos ao portador (cf. Hilferding, 2011), que estão trancados dentro de um cofre no chão do quarto do pânico. Depois de descobrir que as Altmans se mudaram mais cedo do que o esperado, Junior convence o relutante Burnham, que assegurou que a casa estava desocupada, para continuar com seu assalto. Enquanto eles começam o roubo, Meg acorda e observa os intrusos nos monitores de vídeo no quarto do pânico.

Antes dos três poderem alcançá-las, Meg e Sarah correm para o quarto do pânico e fecham a porta em seguida deles. Elas são incapazes de usar o telefone no quarto, que era uma linha telefônica separada que nunca foi ligada por Meg. Com a intenção de forçar as duas saírem da sala, Burnham introduz gás propano nas saídas de ar do quarto. Raoul, em conflito com Burnham e Junior, perigosamente aumenta a quantidade de gás. Não sendo possível selar as aberturas, Meg incendeia o gás enquanto ela e Sarah se encobrem com cobertores à prova de fogo, enquanto ocorre uma explosão nas aberturas para a sala de fora e faz com que o fogo queime Junior. As Altmans fazem várias tentativas para pedir ajuda, incluindo sinalização com um vizinho com uma lanterna através da abertura de um tubo de ventilação, mas o vizinho ignora. Meg então consegue ligar o telefone na linha principal e fala com seu ex-marido Stephen, antes dos assaltantes cortarem a linha. Quando todas as tentativas de entrar na sala falham, Junior deixa escapar que há muito mais dinheiro no cofre do que aparentava, e desiste do roubo. Ao sair da casa, ele é baleado por Raoul, que obriga Burnham terminar o assalto. Stephen chega à casa é tomado como refém por Burnham e Raoul que lhe bate. Para piorar Sarah tem diabetes, sofre “uma convulsão devido a uma hipoglicemia”.

A hipoglicemia é uma alteração no nível de açúcar presente na circulação sanguínea do paciente, ficando fora dos padrões recomendados pelos médicos. Isso causa uma série de sintomas incômodos, como tontura e tremores, além de poder afetar portadores ou não de diabetes. Esse quadro ocorre quando há muita insulina no sangue e muita glicose entrando nas células, porém, pouco se permanece na corrente sanguínea. A hipoglicemia também tecnicamente pode surgir quando a quantidade dos hormônios de contrarregulação diminui o glucagon, hormônio do crescimento, adrenalina e cortisol. Eles ajudam a liberar o glicogênio armazenado no fígado, necessário quando se esgota o estoque disponível de glicose no sangue.  Sua injeção com glicose de emergência está no frigorífico fora do quarto do pânico. Depois de usar Stephen inconsciente para enganar Meg que momentaneamente deixou o quarto do pânico, Burnham entra nele, encontrando Sarah imóvel no chão. Depois de recuperar a seringa para Sarah, Meg briga brevemente com Raoul, que ao entrar no quarto do pânico, deixa a arma do lado de fora. Enquanto Meg consegue jogar a seringa no quarto do pânico, Burnham freneticamente tranca a porta, com Raoul e Sarah dentro, esmagando a mão de Raoul na porta de aço.

Meg, que agora tem a arma, implora aos dois intrusos no sistema de som para dar a injeção em Sarah. Depois de algum tempo Burnham, que não mostrou nenhum interesse em ferir Meg ou Sarah ao longo do filme, dá a injeção em Sarah. Enquanto isso, ele diz a Sarah que ele não queria isso, e a única razão pela qual ele concordou em participar era para dar ao seu próprio filho uma vida melhor. Após Burnham dá a injeção em Sarah que agradece a ele e ele diz a Meg que Sarah está agora bem. Tendo anteriormente recebido um telefonema de Stephen, dois policiais que tratam da vigilância do bairro chegam, o que leva Raoul na relação causa e efeito a sustentar ameaça à vida de Sarah. Sentindo o perigo potencial para a filha, Meg fala com os oficiais e eles saem. Enquanto isso, Burnham abre o cofre e remove os 22 milhões de dólares em títulos ao portador, o que confere ao possuidor do documento o direito de crédito, mesmo que não conste o seu nome como beneficiário. A mera posse terrena do documento legitima a exigência. A transferência do crédito se dá pela tradição do documento. Como os ladrões tentam sair, usando Sarah como refém, Meg bate em Raoul com uma marreta e Burnham foge. Stephen ferido atira em Raoul e erra, Raoul se prepara para matar Meg com uma marreta, mas Burnham, ao ouvir os gritos de dor de Sarah, retorna à casa e atira em Raoul, afirmando: - “Você vai ficar bem agora”, para Meg e sua filha antes de sair.

A polícia, alertada devido ao comportamento suspeito de Meg, chegam com reforço e capturam Burnham, que permite que os títulos ao portador se espalhem com a ventania. Mais tarde, Meg e Sarah, depois de se recuperar da experiência angustiante, começam a procurar no jornal um novo lar. Com a paisagem do deve-se introduzir nela o lugar do tirano, do escravo e do imbecil, sem que o lugar se assemelhe aquele que o ocupa e sem que o transcendental seja declarado sobre as figuras empíricas que ele torna possíveis.  Não só a univocidade do ser em relação à Deus e às criaturas se prolonga na univocidade dos “atributos”, mas, sob a condição de sua infinitude, Deus pode possuir esses atributos unívocos formalmente distintos sem nada perder de sua unidade. O outro tipo de “distinção”, a distinção modal, se estabelece entre o ser ou os atributos, por um lado, e, por outro, as variações intensivas de que são capazes. Essas variações visuais, como os graus do branco, são modalidades individuantes das quais o infinito e o finito constituem precisamente a condição e a possibilidade abstrata para reter as intensidades singulares. Na sua própria neutralidade, o ser unívoco não implica somente formas qualitativas ou atributos distintos, eles mesmos unívocos, mas se reporta e os reporta a fatos intensivos ou graus individuantes que variam seu modo sem modificar-lhe a essência enquanto ser. A distinção reporta o ser à diferença, a distinção formal e a distinção modal sãos os tipos sob os quais o ser unívoco, em si mesmo, por si mesmo, se reporta à diferença. É com Espinosa que o ser unívoco, tornando-se expressivo, tornando-se uma verdadeira proposição expressiva afirmativa deixa de ser neutralizado.  

Mas é o ponto de partida para a constituição do sujeito que desejo, mas não um desejo dirigido a uma coisa qualquer no mundo. O homem se torna humano quando “deseja outro desejo”. Abre-se assim, ao homem, um novo espaço de liberdade, que se manifesta antes de tudo como um desejo de reconhecimento e produz uma luta de morte por puro prestígio – o ato fundante da história, o ato antropogênico por excelência. Mas para que haja história, é preciso que haja relação social entre homens vivos. A luta não pode terminar com a aniquilação de um dos lados. Um deles deve abdicar do combate, colocar a liberdade acima de sua vida, fora da relação entre “senhor-escravo”. Nela se concentrando outra atividade essencial ao projeto do homem: o trabalho intelectual como princípio de liberdade. A dialeticidade que assim se estabelece, como unidade dos contrários, é um dos pontos culminantes do pensamento humano em todas as épocas, e sua conclusão é surpreendente e magistral: o homem integral, livre, satisfeito com o que é; o homem que se aperfeiçoa, não é o senhor nem o escravo, mas o que consegue suprimir sua sujeição.

Na linguagem teórica, academicamente entendemos que as palavras e expressões funcionam como representação de conceitos teóricos, mas em sua periodização histórica as palavras e expressões funcionam sempre de forma distinta, porque se referem a concepção pontual de uma teoria da história. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste, pois, neste sentido em que, por detrás do significado usual da palavra, é preciso sempre discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual empírico e casual contido na representação das fontes, nas atas, nos documentos oficiais etc. Na sua significação mais geral deve nos permitir a compreensão histórica e sociológica que tem por efeito social o conhecimento de um objeto: a narrativa da história. A história abstrata ou a história em geral não existem, no sentido do termo, mas apenas a história real, ou “como efetivamente ocorreu, desses objetos concretos e singulares que enformam a experiência acumulada da humanidade.

A determinação mais simples e primeira que o espírito pode estabelecer é o Eu, a faculdade de poder abstrair todas as coisas, até sua própria vida. Chama-se idealidade, idealização, precisamente esta supressão da exterioridade. Entretanto, o espírito não se detém na apropriação, transformação e dissolução da matéria em sua universalidade, mas, enquanto consciência religiosa, por sua faculdade representativa, penetra e se eleva através da aparência dos seres até esse poder divino, uno, infinito, que conjunta e anima interiormente todas as coisas, enquanto pensamento filosófico, isto é, como seu princípio universal, a ideia eterna que as engendra e nelas se manifesta. Portanto, que o espírito finito dialeticamente segue um passo a passo e se encontra inicialmente numa união imediata com a natureza, a seguir em oposição com esta e finalmente em identidade com esta, porque suprimiu/subsumiu a oposição e voltou a si mesmo e, per se o espírito finito é a ideia, mas ideia que girou sobre si mesma e que existe por si em sua realidade.

Todo conhecer, todo aprender, toda visão, toda ciência, inclusive toda atividade, não possui nenhum outro interesse além do aquilo que “é em si”, no interior, manifestar-se desde si mesmo, ou seja, transformar-se objetivamente. Nesta diferença se descobre toda a diferença na história do mundo. Os homens são todos racionais. O formal desta racionalidade é que o homem seja livre. Esta é a sua natureza. Isto pertence à essência do homem. O europeu sabe de si, é objeto de si mesmo. A determinação que ele conhece é a liberdade. Ele se conhece a si mesmo como livre. O homem considera a liberdade como sua substância. Se os homens “falam mal de conhecer é porque não sabem o que fazem”. Conhecer-se, converter-se a si mesmo no objeto (do conhecer próprio) e o fazem relativamente poucos. Mas o homem é livre somente se sabe que o é. Pode-se também em geral falar mal do saber, como se quiser. Mas somente este saber libera o homem. O conhecer-se é no espírito a existência. Esta é a única diferença da existência, a diferença do separável. O Eu é livre em si, mas também por si mesmo é livre e eu sou livre somente enquanto existo como livre.

Agora Nietzsche, mutatis mutandis - contamina a reflexão crítica na Sétima Arte. O trágico sempre será afirmativo e não reativo. O reativo, dialético, é simplesmente conservação de força frente ao inesperado. Que precisa do controle e da submissão daquele que é atingido pelo inusitado. O trágico afirma-se na consciência plena do acaso como constituinte da própria realidade e o “cosmiza” ativamente e não reativamente. O trágico não só afirma a necessidade a partir do acaso, como afirma o próprio acaso. Não só afirma a ordem a partir da desordem, como afirma a própria desordem. Não só afirma o cosmos a partir do caos, como afirma o caos. Reitera, sobretudo, o próprio devir. Essa é a grande inversão de Nietzsche. Que tira do pensamento qualquer pressuposição de sentido e valor, para construí-los a partir do “jogo de forças” visando expansão da capacidade de potência. A tese de Nietzsche em relação ao homem ocidental pressupõe que o sentido e valor já uma é Der Wille Zur Macht, se afirmando como força e moldando os agentes a reagirem contra aquilo que constitui a realidade: a falta de valor em si e sentido próprio. O mundo, para Nietzsche, não é ordem e racionalidade, mas desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e, por isso, se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir.

A única e verdadeira realidade “sem máscaras”, para Nietzsche, é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante. Nietzsche era um crítico: a) das “ideias modernas”, b) da vida social e da cultura moderna, c) do neonacionalismo alemão, e, para sermos breves, d) Para ele, os ideários modernos em torno da democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência de determinado “tipo homem”. Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da concepção de pós-modernidade. A figura de Nietzsche foi particularmente promovida na Alemanha Nazi, num processo político mediante o qual você opta, mas não decide, tendo sua irmã, simpatizante do regime, fomentado esta associação. Como dizia Heidegger, ele próprio nietzschiano, “na Alemanha se era contra ou a favor de Nietzsche”. Durante toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, chegando à conclusão de que “nascera póstumo”, para os leitores do porvir. O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra: Assim Falou Zaratustra e, então, tratou de difundi-la, em 1888. Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental. Teria testemunhado o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto. Então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão.

Nos dias seguintes, Friedrich Nietzsche enviou escrito breve reconhecido como: “Wahnbriefe” (“Cartas da loucura”) para um número de amigos, entre eles, Cosima Wagner, filha do pianista Franz Liszt com a Condessa Marie d`Agout e Jacob Burckhardt, historiador, filósofo da história e da cultura suíça, autor de importantes obras sobre a cultura e história da arte. Muitas destas cartas foram curiosamente assinadas “Dionísio”. Embora a maioria dos comentaristas considere seu colapso como alheios à sua filosofia, Georges Bataille chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido e a psicanálise “post-mortem”, de René Girard, postula uma “rivalidade de adoração” com Richard Wagner. Todavia, subsiste ainda uma indiferença entre a substância e os modos: a substância espinosista aparece independente dos modos, e os modos dependem da substância, mas de outra coisa. Seria preciso que a substância fosse dita dos modos e somente dos modos. Tal condição só pode ser preenchida à custa de uma subversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo e assim por diante. Que a identidade não é a primeira, que ela existe como princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza da revolução copernicana que abre à diferença a possibilidade própria, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito geral já posto como idêntico.

Com o eterno retorno, o bravo Nietzsche não queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo, o da vontade de potência, em que toda as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Revir é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz o mesmo retornar, mas o revir constitui o único Mesmo do que se torna. Revir é o devir-idêntico do próprio devir. Revir é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como repetição. Do mesmo modo a repetição do eterno retorno consiste em pensar o messo a partir do diferente. Esse pensamento já não é uma representação teórica: ele opera praticamente uma seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno. A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição.

Bibliografia geral consultada.

DELEUZE, Gilles, Différence et Répétition1ª édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968; ARIÈS, Philippe, História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1978; VALADIER, Paul, Nietzsche y la Critica del Cristianismo. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1982; BLUMER, Herbert, Filmes e Conduta. Novas York: Macmillan Editor, 1983; FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, em particular, Cap. IV- O dispositivo da sexualidade. Item 3 - domínio, pp. 98-108; Idem, Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1987; BRAIER, Eduardo Alberto, Psicoterapia Breve de Orientação Psicanalítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1991; MACIEL, Lucia Maria Argollo, Transtorno do Pânico e Neurose de Angustia: Analise dos Conceitos. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Medicina. São Paulo: Universidade de São Paulo,1992; DENZIN, Norman, A Sociedade Cinematográfica. Londres: Sage Publications, 1995; DOMINGUES, José, As Ordenações Afonsinas. Três Séculos de Direito Medieval – 1211 a 1512. Tese de Doutoramento. San Tiago de Compostela: Universidade de San Tiago de Compostela, 2007; HILFERDING, Rudolf, Il Capitale Finanziario. Milano: Editore Mimesis, 2011; GIMBO, Fernando Sepe, Foucault, o Ethos e o Pathos de um Pensamento. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2015; MOURÃO, Patrícia, A Invenção de uma Tradição: Caminhos da Autobiografia no Cinema Experimental. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2016; CAFÉ, Alana Boa Morte, Natureza Humana e História em David Hume. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2018; RODRIGUES NETO, Pedro de Souza, Economia, Moral e Natureza Humana em David Hume. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.  Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2019; MEDEIROS, Maria Carolina El-Huaik de, Essa fez Socila: Narrativas de Etiqueta, Socialização Feminina e Aperfeiçoamento Social da Mulher. Tese de Doutorado. Departamento de Comunicação Social. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2022; entre outros.   

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