sábado, 19 de março de 2022

Sir Ben Kingsley – Interpreta Ibn Sīnā, Excelso Físico Medievalista.

 

                                            A imaginação é a metade da doença”.  Ibn Sina (980-1037)

            Ivan Pinheiro Themudo Lessa nasceu em São Paulo, em 9 de maio de 1935 e faleceu em Londres, em 8 de junho de 2012. Foi um jornalista e escritor brasileiro. Filho do escritor Orígenes Lessa e da jornalista e cronista Elsie Lessa. Era neto do pastor presbiteriano Vicente Themudo Lessa (1874-1939) e bisneto do escritor e gramático Júlio César Ribeiro Vaugham (1845-1890), autor do romance naturalista A Carne (1888) e criador da bandeira do estado de São Paulo. Ivan Lessa foi editor e um dos principais colaboradores do jornal O Pasquim dos anos 1970, e suas colaborações para a imprensa. O escritor Ivan Lessa tinha um outro lado menos badalado, mas que também atraía uma enorme quantidade de admiradores em todo o Brasil. Era sua atuação como colaborador do Serviço Brasileiro da BBC de Londres, a transmissão que a emissora realizou, em português, durante quase sete décadas. Lessa participou como emissor entre 1968 e 1972 e 1978 e 2005, quando as transmissões se encerraram.

No jornal O Pasquim dos anos 1970, um semanário alternativo brasileiro, de característica paradoxal, editado entre 26 de junho de 1969 e 11 de novembro de 1991, reconhecido pelo diálogo estabelecido entre o cenário da contracultura da década de 1960 e por seu papel de oposição ao regime militar de 1964, onde assinava as seções Gip-Gip-Nheco-Nheco, Fotonovelas, Os Diários de Londres, escritos em parceria com seu heterônimo Edésio Tavares. Ivan Lessa publicou três livros: Garotos da Fuzarca (Contos, 1986), Ivan Vê o Mundo (Crônicas, 1999) e O Luar e a Rainha (Crônicas, 2005). Ele morava em Londres desde janeiro de 1978 e escrevia crônicas três vezes por semana para a BBC Brasil. Ivan Lessa criou junto com o cartunista Jaguar, o ratinho Sig (de Sigmund Freud), o fundador da psicanálise, baseada na anedota corrente da época segundo a qual se dizia que se “Deus criou o Sexo, Freud criara a sacanagem”. O ratinho se tornou símbolo do tabloide O Pasquim, aparecendo também nas capas da coleção “As Anedotas do Pasquim”, publicada nos anos 1970 pela Editora Codecri, nome inventado pelo cartunista Henfil, seria o acrônimo de “Companhia de Defesa do Crioléu”. Ele também escreveu em 2003, a apresentação para o livro: A Sangue Frio (1965), de Truman Capote, que em nova edição no ano de 2009, integrou a Coleção Jornalismo Literário, junto de outros livros renomados, como Berlim, de Joseph Roth e Hiroshima, de John Hersey.                  

Para o que nos interessa no artigo de Ivan Lessa, intitulado: O Mister de Ser Sir (2006), publicado pela British Broadcasting Corporation (BBC), uma corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido fundada em 1922. Possui uma boa reputação nacional e internacional. Por vezes, é chamada afetuosamente pelos britânicos como Beeb, The Corporation ou Auntie, demonstra o estilo jornalístico do autor. Diz ele: - Como nossos grandes atores e atrizes são ocasionalmente condecorados com uma ordem do Cruzeiro do Sul, ou um Saci (é isso?) no Festival de Gramado, os grandes atores e atrizes britânicos ganham títulos e honrarias duas ou três fartas distribuições nobiliárquicas realizadas anualmente. E lá ficam eles, entre políticos, comerciantes, contribuintes para os cofres de partidos e os cada vez mais homenageados roqueiros. O primeiro ator a ser feito Cavaleiro do Reino, foi Henry Irving, em 1895. Com ele começou também a tradição não escrita, de interpretação, mas decorada como uma fala de teatro ou cinema, de jamais, nunca, em hipótese alguma usar o título como chamariz ou distinção na porta do teatro, no programa, no cartaz ou nos créditos de um filme. É uma questão de ouvido, como estudar a teoria musical por trás do som. Melhor dizendo, uma questão de classe, não confundir as coisas, de não ser besta, para ser franco.

O sublime canastrão Laurence Olivier foi feito, primeiro, Cavaleiro, e depois, Par do Reino, ou seja, primeiro Sir e depois Lord. Nunca usou para fins artísticos os títulos, nem mesmo nos comerciais da câmara Polaroid, exibidos apenas no Japão. Ele era, antes e depois de tudo, ator. Enfileiremos outros Sirs, só para dar uma conferida: Ralph Richardson, Michael Redgrave, Alec Guinness, Michael Caine, Anthony Hopkins, Ian McKellen, Sean Connery. E o equivalente feminino? As Dames daquele que foi o Império Britânico? Pois não: Judi Dench, Maggie Smith, Helen Mirren, Diana Rigg. Botando para quebrar, vamos aos roqueiros, diz ele, quase que eu escrevo “músicos”: Bob Geldof, Paul McCartney, Mick “Copacabana” Jagger. Além das honrarias, todos eles têm em comum o fato sociológico de não se apresentarem com o título de Sir ou Dame, em coisíssima alguma.                 

Michael Gambon, talvez o melhor ator britânico vivo, já avisou (e traduzo “presamente”): - “Me chamou de Sir, eu quebro a cara!”. Roger Moore, talvez o pior ator britânico vivo – mas ele, com muito senso de humor, sabe disso e é o primeiro a se apossar da honra - insiste em que só chamem de “Rog”. Mas e Krishna Bhanji? Krishna Bhanji faz questão de ser Sir em tudo que faz 24 horas por dia. Quem é Krishna Bhanji? Krishna Bhanji é aquele cidadão britânico que adotou o nome artístico de Ben Kingsley e adquiriu fama mundial ao encarnar o papel-título de ET, O Extraterrestre (1982), filme do Steven Spielberg. Ou terá sido Gandhi, do hoje Lord Richard Attenborough, diretorzão danado de ruim, camarada dos mais simpáticos. Sir Ben Kingsley exige o título nos anúncios, cartazes e créditos dos filmes em que atua. Aí está ele nas revistas e nos jornais, ao lado dos plebeus Bruce Willis e Morgan Freeman, no filme que demorou estrear, Lucky Number Slevin: Sir Ben Kingsley (2006). E comentou informando a imprensa; - “Não há mais Mr. Ben Kingsley. Ser Sir traz responsabilidade”. Passou para a história da estupidez e pretensão humana, o outrora humilde (terá sido, um dia?) Krishna Bhanji, hoje Sir – eu disse e repito, com respeito e humildade – Sir, Sir, Sir Ben Kingsley. Gostou assim, Krishna?

            Não se trata de estupidez, pois títulos se conquistam com a dignidade do trabalho humano. Sir Ben Kingsley, nascido Krishna Pandit Bhanji, Scarborough, em 31 de dezembro de 1943 é um ator britânico de ascendência indiana (gujarati) e russo-judaica. Em 1983 foi premiado com o Globo de Ouro, o British Academy of Film and Tlevision Arts (BAFTA) e o Oscar de melhor ator pelo papel de Mahatma Gandhi no filme Gandhi (1982). O seu pai, Rahimtulla Pandit Bhanji, foi um médico de ascendência indiana nascido no Quênia, e a sua mãe, Anna Lyna Mary Bhanji, uma modelo e atriz. Kingsley começou a sua carreira no palco, mas iniciou-se cedo no cinema. O seu primeiro filme, Fear is the Key, de 1972, não foi bem um sucesso. Kingsley alcançaria a fama em 1982, interpretando o papel de Mahatma Gandhi, no filme Gandhi, indo-britânico-estadunidense um drama de ficção histórica-biográfico, dirigido por Richard Attenborough. Os ancestrais do seu pai tinham vindo do Gujarate, e de Maharashtra, é estatisticamente o segundo estado mais industrializado donde era originário o próprio Gandhi, embora fossem muçulmanos e não hindus.

Ben Kingsley conseguiu evitar os estereótipos sócio-culturais interpretando papéis diversificados nos filmes: Turtle Diary, Maurice (1987), Pascali`s Island (1988), Without a Clue (1988), no papel de Dr. Watson junto com o Sherlock Holmes de Michael Caine, Bugsy (1991), nomeação para o Óscar (de melhor Ator Secundário), Quebra de Sigilo (1992), Dave - Presidente por um Dia (1993), Lances Inocentes (1993), A Lista de Schindler (1993), A Morte e a Donzela (1994), Murderers Among Us: The Simon Wiesenthal Story (1989), Sexy Beast (2000), outra nomeação para o Oscar para Melhor Ator Secundário, e Casa de Areia e Névoa (2003), nomeação para o Óscar de melhor ator, como também um papel em José (1995), filme bíblico onde interpreta um alto oficial do faraó do Egito, Potifar. Kingsley também apareceu com frequência na televisão, tendo sido o seu primeiro papel uma aparição fugaz em Coronation Street (1966-1967) e no telefilme Moisés (1995), no papel principal. No filme Guerra S.A. Faturando Alto (2008), junto com Hilary Duff, John Cusack e Marisa Tomei. Em Homem de Ferro 3, de 2013, o ator aparece como Trevor Slattery, o suposto Mandarim. Kingsley também já narrou documentários, como História das Religiões (1998). Em 2016 emprestou a sua voz no filme Mogli - O Menino Lobo. O Físico (Der Medicus, 2013)  tem como representação um filme de aventura, realizado por Philipp Stölzl, e baseado no romance homônimo de Noah Gordon. Stölzl foi formado como cenógrafo e figurinista na Companhia de Teatro Münchner Kammerspielen em 1988. Trabalhou nestas profissões em teatros alemães e começou a trabalhar para filmes em 1996.

            Estreou como diretor em 1998 com o videoclipe de Rammstein`s “Du riecht so gut”. Ele continuou a dirigir vídeos para artistas como Mick Jagger, Marius Müller-Westernhagen, Madonna e Garbage `s Bond tema The World Is Not Enough. Ele também dirigiu comerciais. Seu primeiro longa-metragem como diretor foi Baby, de 2002. Seguiu-se com North Face (2008), Young Goethe in Love (2010), Erased (2012) e The Physician (2013). O trabalho de Stölzl para o palco da ópera inclui uma produção de Fausto, de Charles Gounod em 2008 e Il trovatore, de Giuseppe Verdi em 2013. Der Medicus estreou no Brasil a 9 de outubro de 2014. A trama se passa inicialmente na Inglaterra, na virada do século X para o Século XI. Ainda criança, Rob (Tom Payne) vê sua mãe morrer em decorrência da “doença do lado” que representa um caso claro de apendicite. Ele cresce sob os cuidados do barbeiro e charlatão Bader, que promete curar doenças. Adulto jovem, Rob acumula os conhecimentos de Bader, mas sonha em saber Medicina. Faz então uma longa e penosa viagem à Ásia para conhecer e estudar com Ibn Sina, ou Avicena, como ficou reconhecido no Ocidente, o “Príncipe dos Clínicos”, que viveu entre 980-1037, considerado o intérprete de Galeno de Pérgamo, médico e filósofo romano de origem grega. Suas teorias influenciaram a ciência médica ocidental por mais de um milênio. Seus relatos de anatomia médica eram baseados em macacos, pois a dissecação humana não era permitida, mas insuperáveis até a descrição impressa e ilustrações de dissecções humanas por Andreas Vesalius em 1543. Galeno é um precursor da prática da vivissecção e experimentação com animais.

            Andreas Vesalius por vezes referido na literatura portuguesa como André Vesálio (1514-1564), foi um médico belga, considerado o “pai da anatomia moderna”. Foi o autor da publicação De Humani Corporis Fabrica, um atlas de anatomia publicado em 1543. Muito pouco havia sido descoberto sobre anatomia e fisiologia desde a Antiguidade, cujas descobertas foram baseadas na dissecação de animais. A falta de aulas práticas de anatomia na Universidade de Paris acabou levando Vesalius, assim como Michelangelo, a frequentar cemitérios em busca de ossadas de criminosos executados e vítimas de praga. Casou-se em 1544 com Anne van Hamme e teve uma filha com o mesmo nome. Graduou-se doutor em Medicina pela Universidade de Pádua, na Itália, e em 1538 publicou seu primeiro trabalho, as Tabulae Sex, um conjunto de seis desenhos de anatomia feitos por ele próprio. Em 1546 foi nomeado médico da corte do sacro imperador romano Carlos V e ficou a serviço do Império até a abdicação de Carlos em 1556, tendo passado depois disso a servir a Filipe II, rei da Espanha. Através de sua obra De Humani Corporis Fabrica Libri Septem, Vesalius conseguiu refutar diversas teorias abstratas sobre o corpo humano, anteriormente propostas por Galeno, o que foi de extrema importância para o avanço de estudos relacionados à anatomia, provando até mesmo o contrário acerca da crença comum de que os homens possuíam uma costela a menos que as mulheres.

Vesalius produziu, em sua obra De Humani Corporis Fabrica Libri Septem (Sobre o Tecido do Corpo Humano), ilustrações que retratavam o sistema muscular e as respectivas atuações de cada musculo, possibilitando um maior entendimento sobre a mecânica do corpo humano. Além disso, Vesalius ia em contraste com as ideias de que o coração era o centro das emoções e da mente, sendo definidas estas ao cérebro, isto pelo fato de os nervos serem originários ao mesmo, e não ao coração. Suas descobertas não pararam por aí: como exemplo, afirmou que os rins não filtravam a urina, e sim o sangue, sendo a urina as excretas retiradas deste. Também é creditado como o responsável por fazer a primeira descrição do conceito de ventilação mecânica, um feito de destaque no campo da Anestesia. – “uma abertura deve ser tentada no corpo da traqueia, na qual um tubo de junco ou caniço deve ser inserido; você então deve soprar nesse tubo, de modo que o pulmão possa aumentar de novo e o coração se torne forte”. Fora de dúvida, o trabalho científico ministrado por Vesalius se tornou revolucionário, pois ia contra a tradição que remontava aos antigos, contribuindo assim para o avanço da ciência, mesmo que talvez suas descobertas não fossem totalmente aceitas, em um período de revelações, mudando completamente a forma de se chegar ao conhecimento, que se baseava em fontes antigas, baseando-se agora na experimentação e prática.

Vesalius viria a morrer em 1564 em um naufrágio durante uma tempestade. O cenário da Idade Média europeia caracterizava-se pela predominância de florestas, umas poucas cidades e alguns domínios onde servos trabalhavam, monges rezavam, cavaleiros lutavam e nobres governavam. Mundo de refúgio, a floresta possuía seus atrativos. Para os camponeses e os pequenos trabalhadores, era uma fonte de ganho. Lá iam pastar os rebanhos, lá se encontra a madeira, indispensável numa economia por muito tempo pobre em pedra, ferro e carvão mineral. A floresta estava repleta de ameaças, de perigos reais ou imaginários. Era o horizonte inquietante do mundo medieval, cercando-o, isolando-o. Situava-se entre senhorios, mas também entre países. De sua opacidade temível, surgiam os lobos famintos, os malfeitores, os cavaleiros saqueadores. A Cristandade pareceu querer ultrapassar suas fronteiras, substituir a ideia de missão pela de Cruzada, abrir-se para o mundo. Entretanto, ela mantinha-se fechada, uma sociedade que excluía o outro. Pertencer ao Cristianismo era o critério de valor e comportamento no Ocidente. A guerra, considerada um mal aparentemente entre cristãos, era vista como um dever contra não-cristãos. A usura, proibida entre cristãos, era permitida aos infiéis, isto é, aos Judeus.

            No livro de Noah Gordon, O Físico. A Epopeia de um Médico Medieval (2010), cap. 1 – Aprendiz de Barbeiro, destaca aqueles que foram os últimos momentos de abençoada inocência na vida de Rob J. mas em sua ignorância achava um sacrifício ser obrigado a permanecer na casa do pai com os irmãos e a irmã. A primavera mal começara e o sol estava bastante baixo para acariciar mornamente os beirais do telhado de palha; aproveitando o aconchego, ele deitava-se no degrau de pedra áspera na frente da porta. Uma mulher caminhava cautelosa na superfície rachada da Carpenter Street. A rua precisava de conserto, como a maioria das casas pequenas de madeira dos trabalhadores, construídas descuidadamente por hábeis artesãos que ganhavam a vida construindo casas sólidas para os mais ricos e mais afortunados. Ele estava debulhando um cesto de ervilhas, tentando não perder de vista as crianças mais novas, sua responsabilidade quando Mãezinha estava fora. William Stewart, seis anos e Anne Mary, quatro, cavavam a terra ao lado da casa, em suas brincadeiras secretas e risonhas. Jonathan Carter, dezoito meses, estava deitado em uma pele de carneiro, alimentado, arrotado e gorgolejando satisfeito. Samuel Edward, sete anos, tinha escapado de Rob J. Cheio de artimanhas, Samuel sempre conseguia desaparecer para não trabalhar, e Rob procurava-o com os olhos, furioso. Abria as vagens verdes uma por uma, tirava as ervilhas da película cerosa com o polegar, como Mãezinha fazia. Não interrompeu o trabalho quando viu que a mulher se dirigia para ele. Barbatanas no corpete erguiam seus seios, quando se movia aparecia o mamilo vermelho, e o rosto estava vulgarmente pintado Rob J. tinha 9 anos, um menino de Londres reconhecia uma puta.                   

            - Você aí. Esta é a casa de Nathanael Cole? Ele a observou ressentido, pois não era a primeira vez que uma mulher daquele tipo aparecia procurando por seu pai. - Quem quer saber - perguntou asperamente, satisfeito porque o pai estava fora, à procura de trabalho e ela não ia poder falar com ele, satisfeito por sua Mãezinha estar entregando bordados, sendo assim poupada daquele constrangimento. - A mulher dele precisa dele. Ela me mandou. - O que quer dizer, precisa dele? - As competentes mãos infantis interromperam o trabalho. A prostituta olhou para ele friamente, percebendo o que Rob pensava dela por seu tom e modos. - Ela é sua mãe? Fez um gesto afirmativo. - Está tendo um parto difícil. Está nos estábulos de Egglestan, perto de Puddle Dock. É melhor procurar seu pai e avisar - disse a mulher, e se afastou. O garoto olhou desesperadamente em volta. - Samuel! - gritou, mas o maldito Samuel estava só Deus sabe onde, como sempre, e Rob interrompeu a brincadeira de William e Anne Mary. - Tome conta dos menores, Willum - disse. Então deixou a casa e começou a correr. Pessoas dignas de crédito dizem que o Anno Domini 1021, o ano da oitava gravidez de Agnes Cole, pertenceu a Satã. Foi um ano marcado por calamidades para o povo e monstruosidades ocorridas da natureza. No outono anteriores colheitas nos campos foram queimadas pelas geadas intensas que congelaram os rios. Choveu como nunca antes e o descongelamento rápido, a rua Tâmisa encheu e arrastou como maremoto na sua corrente pontes e casas.  

Estrelas caíram, riscando de luz o céu ventoso de inverno e foi visto um cometa. Em fevereiro a terra tremeu. Um relâmpago atingiu a cabeça de um crucifixo e os homens murmuraram que Cristo e seus santos estavam dormindo. Contavam que durante três dias jorrara sangue de uma fonte e viajantes diziam que o demônio tinha aparecido em bosques e em lugares secretos. Agnes disse ao filho mais velho para não dar ouvidos a essas histórias. Mas acrescentou preocupada que se Rob J. visse alguma coisa fora do comum devia fazer o sinal da cruz. Todos oneravam Deus com uma carga pesada porque a queima das colheitas naquele ano trouxera tempos difíceis. Nathanael há mais de quatro meses estava desempregado e a família se mantinha com a habilidade de bordadeira da mãe. No começo do casamento, ela e Nathanael estavam perdidamente apaixonados e cheios de confiança no futuro; ele pretendia enriquecer com a profissão de construtor. Mas a promoção era lenta dentro da corporação prática dos carpinteiros, nas mãos de comitês examinadores que escrutinizavam projetos como se cada parte da obra fosse destinada ao rei. Nathanael passou seis anos como aprendiz de carpinteiro e mais doze como Sócio Marceneiro. Agora devia ser aspirante de Mestre Carpinteiro, a classificação profissional necessária para ser empreiteiro. Mas o processo de se tornar Mestre exigia energia e tempos prósperos, e ele estava desanimado demais para tentar. Suas vidas continuaram na dependência da associação de classe, mas agora nem mesmo a Corporação de Carpinteiros de Londres os ajudava, pois todas as manhãs Nathanael comparecia na sede da corporação só para ser informado de que não havia nenhum emprego vago.           

Com outros homens desesperançados procurava uma fuga na bebida que chamavam pigmento: um dos carpinteiros fornecia o mel, outros levavam algumas especiarias, e a Corporação “sempre tinha uma jarra de vinho à disposição deles”. As mulheres dos carpinteiros disseram a Agnes que era comum um dos homens sair e voltar com uma mulher com quem os maridos desempregados se revezavam. Apesar das suas falhas, ela não podia esquivar-se a Nathanael, pois Agnes gostava muito dos prazeres da carne. Ele a mantinha sempre barriguda, bombeando um filho logo que ela se livrava de outro, e sempre que o parto estava próximo, Nathanael evitava ficar em casa. Sua vida era quase a prova das previsões pessimistas do pai de Agnes quando, já grávida de Rob J., tinha se casado com o jovem carpinteiro que estava em Watford para construir o celeiro do vizinho. O pai culpava o fato de ela ter estudado, dizendo que a instrução enchia as mulheres com tolices e lascívia. Seu pai tinha uma pequena fazenda, dada por Aethelred de Wessex como pagamento por seus serviços ao exército. Foi o primeiro da família Kemp a se tornar proprietário rural. Walter Kemp mandou a filha à escola, na esperança de que ela conseguisse se casar com um proprietário de terras, pois os donos das grandes propriedades gostavam de ter uma pessoa de confiança que soubesse escrever e contar, e por que essa pessoa não podia ser a esposa? Ficou desgostoso com o casamento imoral e desigual da filha. Nem teve tempo de deserdá-la, o pobre homem. Suas modestas posses foram para as mãos da coroa como pagamento de impostos atrasados, quando ele morreu.

Mas sua ambição havia dado forma à vida dela. Os cinco anos mais felizes da sua vida foram os que havia passado na escola das freiras. As freiras usavam sapatos vermelhos, túnicas violeta e brancas e véus delicados como nuvens. Elas a ensinaram a ler e escrever, o latim superficial usado no catecismo, ensinaram a cortar roupas e fazer uma bainha com pontos invisíveis, a bordar, um trabalho tão elegante que mais tarde foi muito apreciado na França, onde era chamado de Bordado Inglês. A “bobagem” que tinha aprendido com as freiras estava alimentando sua família. Ficara na dúvida se devia ou não ir entregar o trabalho. Estava muito perto do momento do parto e sentia-se imensa e pesada, mas tinham muito pouco na despensa. Teria de ir ao Mercado de Billingsgate comprar farinha e comida e para isso precisava do dinheiro que ia receber do exportador de bordados que morava em Southwark, do outro lado do rio.

Carregando o pequeno embrulho, caminhou lentamente pela Rua Tâmisa na direção da Ponte de Londres. Como sempre, a Rua Tâmisa estava repleta de animais de carga e estivadores movimentando mercadorias entre os cavernosos armazéns e a floresta de mastros de navios nos cais. O barulho caía sobre ela como chuva na terra seca. Apesar dos seus problemas era grata a Nathanael por tê-la levado para longe de Watford e da fazenda. Gostava tanto daquela cidade! “Filho da puta! Volte aqui e devolva meu dinheiro. Devolva!” uma mulher furiosa gritou para alguém que Agnes não pôde ver. Carreteis de riso misturavam-se a fitas de palavras em línguas estrangeiras. Palavrões eram lançados como bênçãos afetuosas. Passou por escravos esfarrapados carregando lingotes de ferro para os navios ancorados. Cachorros latiam para os pobres homens que se esforçavam sob o peso brutal, pérolas de suor brilhando nas cabeças raspadas. Aspirou o cheiro de alho dos corpos mal lavados e o cheiro metálico do ferro e depois o odor mais agradável de um carrinho onde um homem vendia pastéis de carne. Sua boca encheu-se de água, mas não tinha mais do que uma moeda no bolso e filhos famintos em casa. “Pastéis como doce pecado”, dizia o homem. “Quentes e bons!”. Das docas vinha o aroma de pinho aquecido ao sol, piche e corda queimada. Levou a mão à barriga e sentiu o movimento do bebê flutuando no oceano contido no interior dos seus quadris. Na esquina um bando de marinheiros com flores nos gorros cantava alegremente ao som de um pífaro, um tambor, uma harpa. Quando passou por eles notou um homem encostado em uma carroça estranha onde estavam desenhados os signos do zodíaco. 

O homem devia ter uns quarenta anos. Seu cabelo que, como a barba, era castanho escuro, começava a escassear. Os traços eram regulares. Seria mais bonito do que Nathanael se não fosse gordo. O rosto era vermelho e a barriga projetava-se para a frente quase como a dela. Sua corpulência não era repulsiva; ao contrário, cativava e encantava ao seu redor anunciando que ali estava um espírito amistoso e alegre que gostava das melhores coisas da vida. Os olhos azuis tinham um brilho esfuziante que combinava com o sorriso. - Linda senhora. Quer ser minha namorada? - disse ele. Sobressaltada, Agnes olhou em volta para ver com quem ele estava falando, mas não havia ninguém. - Hah! Geralmente ela congelava aquele tipo de observação só com um olhar e esquecia, mas tinha senso de humor e gostava de homens que tinham também, e esse era muito interessante. - Fomos feitos um para o outro. Eu daria a vida por você, minha dama - disse ele ardorosamente. - Não precisa. Cristo já fez isso, senhor - respondeu ela. Ergueu a cabeça, aprumou os ombros e continuou a andar com um meneio sedutor, precedida pela enormidade quase incrível da barriga com criança dentro, juntando sua risada à dele. Há muito tempo um homem não a cumprimentava por sua feminilidade, nem mesmo por brincadeira, e a troca de palavras absurdas a animou enquanto caminhava pela Thames Street. 

Ainda sorrindo aproximava-se de Puddle Dock quando chegou a dor. - Mãe misericordiosa - murmurou ela. Outra dor, começando no abdome, mas tomando toda sua mente e todo o seu corpo, impedindo-a de ficar de pé. Quando caiu sobre as pedras da rua a bolsa d'água se rompeu. - Ajudem-me! - gritou ela. - Alguém, me ajude! Uma multidão londrina formou-se logo, ávida para ver, e Agnes foi cercada por pernas. Através da névoa da dor via o círculo de rostos olhando para baixo, para ela. Agnes gemeu. - Vocês aí, seus cretinos, resmungou um carroceiro. - Deixem a mulher respirar. E deixem que a gente ganhe o pão de cada dia. Saiam da rua para nossas carroças passarem. Levaram Agnes para um lugar escuro e fresco com cheiro forte de esterco e alguém deu sumiço no seu embrulho de bordado. Na obscuridade, formas grandes se mexiam e oscilavam. Uma pata escoiceou uma tábua com estrondo, e ouviu-se um relincho. - Que negócio é esse? Ora, não pode trazer essa mulher para cá - disse uma voz irritada. Era de um homenzinho afobado, barrigudo e desdentado, e quando ela viu as botas de montaria e o boné reconheceu Geoff Egglestan e ficou sabendo que estava nos estábulos dele. Há mais de um ano, Nathanael havia reformado algumas baias e Agnes lembrou-se disso. - Master Egglestan - disse com voz fraca. - Sou Agnes Cole, mulher do carpinteiro, que o senhor conhece muito bem. Pensou ter visto um olhar de reconhecimento e a aceitação relutante de que não podia expulsá-la dali. O povo se amontoava atrás dele, olhos brilhantes de curiosidade. Agnes disse com voz entrecortada: - Por favor, será que alguém pode fazer a bondade de ir chamar meu marido? 

- Não posso deixar o meu negócio - resmungou Egglestan. - Outra pessoa deve ir. Ninguém se moveu, nem disse uma palavra. Agnes levou a mão ao bolso e tirou a moeda. - Por favor - disse outra vez, com o dinheiro na mão erguida. - Vou cumprir meu dever de cristã - disse imediatamente uma mulher, obviamente uma prostituta. Seus dedos fecharam-se como garras na moeda. A dor era insuportável, nova e diferente. Estava acostumada com contrações de pouco intervalo; seus partos tinham sido um pouco difíceis depois das duas primeiras crianças, mas no processo Agnes tinha se alargado. Sofreu abortos (cf. Agnoli, 2005) antes e depois do nascimento de Anne Mary, mas tanto Jonathan quanto a menina mais nova haviam deixado seu corpo facilmente depois da perda da água, como pequenas sementes escorregadias apertadas entre dois dedos. Em cinco partos nunca sentira o que sentia agora. Doce Inês, disse ela em silêncio, Doce Inês que socorre os cordeiros, socorra-me agora. Sempre durante os partos rezava para a santa do seu nome e Santa Inês ajudava, mas desta vez o mundo inteiro era dor incessante e a criança dentro dela parecia um tampão. Finalmente os gritos desesperados atraíram a atenção de uma parteira que passava, uma velha mais ou menos bêbada, que afastou os espectadores do estábulo com palavrões. Voltando-se, observou Agnes com desgosto. - Os malditos homens te enterraram na merda - resmungou. Não havia lugar melhor para levar Agnes. A mulher levantou a saia dela até acima da cintura e cortou a roupa de baixo; então, no chão, de frente para a vagina dilatada, afastou a palha cheia de esterco com as mãos, que depois limpou no avental sujo. Tirou do bolso um vidrinho de gordura escurecida com o sangue e os líquidos de outras mulheres. 

Tirando um pouco da gordura rançosa passou-a nas mãos até ficarem bem lubrificadas, enfiou dois dedos, depois três e toda a mão no orifício dilatado da mulher que uivava como um animal. Vai doer duas vezes mais, dona - disse a parteira, lubrificando os braços até os cotovelos. - O bandidinho pode morder os dedos dos pés se quiser. Está vindo sentado. A história do aborto, segundo a Antropologia, remonta à Antiguidade. Há evidências que sugerem que, historicamente, dava-se fim à gestação, ou seja, provocava-se o aborto, utilizando diversos métodos, como ervas abortivas, o uso de objetos cortantes, a aplicação de pressão abdominal entre outras técnicas em geral. A legislação sobre o aborto e sua execução prática variaram segundo sua época. Muitas leis e doutrinas religiosas antigas consideravam os golpes da criança em gestação no ventre da mãe como um parâmetro para diferenciar quando a prática do aborto deixava de ser aceitável. Nos séculos XVIII e XIX vários médicos, o clero e reformadores sociais conseguiram aprovar leis que proibiam totalmente a prática do aborto. Durante o século XX o aborto induzido tornou-se prática legal em muitos países do Ocidente, todavia com a oposição sistemática de grupos pró-vida, por via de ações legais, seja por protestos e manifestações públicas.

A história social do aborto acompanha a história das sociedades humanas e ainda se mantém em construção na atualidade, revelando aspectos importantes da chamada história das mulheres. A forma de abordagem sobre a prática do aborto sofreu alterações ao longo do tempo, em termos técnicos, éticos e jurídicos. De acordo com Galeotti (2007) “muitas das convicções que hoje são dados adquiridos constituem, na verdade, o fruto de um árduo trabalho amadurecido ao longo dos séculos: o papel da mulher, as formas de considerar o feto e a gravidez, as intervenções externas, os interesses políticos e os parâmetros de avaliação mudaram desde a Antiguidade até os dias de hoje, assumindo diferentes funções e significados”. Até o século XVIII o feto era entendido como uma parte do corpo feminino e, apesar da interferência das religiões da Antiguidade até o século XVIII, a gestação, o parto e o aborto mantiveram-se como um assunto privado de mulheres, por isso a vida da mulher e a do feto não foi colocada no mesmo plano por séculos. Até esse momento, a mulher estava associada à maternidade e o aborto acontecia principalmente nas situações de prostituição, adultério e para salvar a vida da mãe. Nas sociedades em que o aborto não era tolerado, durante a Antiguidade, isso não se dava em razão do direito do feto, mas como “garantia de propriedade do pai sobre um herdeiro”.

A partir do século XVIII, com as descobertas científicas e conhecimentos médicos e a afirmação dos Estados Nacionais com a Revolução Francesa, a mulher começa a perder o conhecimento sobre os saberes do corpo e, especialmente, dos saberes ligados à questão da reprodução. Consequentemente as visões sobre gravidez, parto e aborto também vão se alterar. O feto passa a ser considerado como entidade autônoma, o que traz consequências tanto para as reflexões da Igreja como para o Estado. As conquistas científicas do século XVII e XVIII vão influenciar a demografia e a política do Estado quanto ao papel da mulher e sua importância para a reprodução de futuros cidadãos. O papel das parteiras tradicionais também é alterado e estas passam a ser o bode expiatório do grande número de mortalidades maternas. As parteiras passam a receber treinamento de médicos e seu campo de ação é restringido. Ao mesmo tempo em que era desenvolvido esse processo, passa a ser perigoso para a saúde as práticas de parto e aborto, quando realizadas pelas mulheres ou pelas parteiras não capacitadas, agravando o risco para a vida da mãe, além do estabelecimento de punições para a prática do aborto.

Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo. Estudaram-no no campo de uma demografia ou de uma patologia históricas; encaram-no como sede de necessidades e de apetites , como lugar de processos fisiológicos e de metabolismos, como alvos de ataques microbianos ou de vírus: mostraram até que ponto os processos históricos estavam implicados no que se poderia considerar a base biológica da existência; e que lugar se deveria conceder na história das sociedades a “acontecimentos” biológicos como a circulação dos bacilos, ou o prolongamento da duração da vida. Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhes sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo Foucault (2014), as relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição, onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado; o corpo só se torna força útil se é corpo produzido e corpo submisso.

Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usara a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e, no entanto, continuar a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é amis que a capacidade de vencê-las: esse sabe e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo.  Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõe-se muitas vezes de peças ou pedaços; utiliza material e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da coerência dos resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. Para Foucault, o estudo dessa microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nela antes uma rede de relações tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que se lhe seja dado como modelo antes a batalha  perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um determinado domínio.

Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e por meios deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que eles os alcançam. O que significa que essas relações se aprofundam dentro da sociedade, que metodologicamente não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira da classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos, na forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade ipso facto realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas engrenagens, mas não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade. Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um de seus aspectos de riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças. A derrubada desses “micropoderes” não obedece, portanto, à lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra.  

Galeno por volta dos anos 170 - mutatis mutandis - realizou uma experiência que iria mudar o curso da história da medicina: demonstrou pela primeira vez que as artérias conduzem sanguenão ar, como até então se acreditava. No campo da anatomia, Galeno distinguiu ainda “os ossos com e sem cavidade medular”. Descreveu “a caixa craniana e o sistema muscular”. Pesquisou os nervos do crânio e “reconheceu os raquidianos, os cervicais, os recorrentes e uma parte do sistema simpático”. Quer dizer foi o primeiro a demonstrar, baseado em experiências, que o rim é um “órgão excretor de urina”. Farmacologia também interessava Galeno que também foi um reconhecido cirurgião, e muitos dos seus procedimentos clínicos e técnicas. Em vista das limitações técnicas, em especial suas limitações ópticas, Galeno inevitavelmente acabou cometendo erros. Não era possível ver e entender o que se passava no interior dos órgãos. Seus dois maiores erros ocorreram em sua teoria da circulação e na sua ideia de que cada órgão realiza sua função própria devido a uma ação de forças que atuavam sobre os órgãos. Tal concepção foi estendida para todos os órgãos. O respeito pelas teorias de Galeno levou mais de 15 séculos para que sua teoria das forças fosse contestada. Foi graças à difusão da medicina árabe e ao médico inglês William Harvey (1578-1657) que os erros de Galeno neste assunto foram corrigidos.

           Abu Ali Huceine ibne Abdala ibne Sina, reconhecido como Ibn Sīnā, ou por seu nome latinizado, Avicena, foi um polímata persa que escreveu tratados sobre variado conjunto de assuntos técnicos, históricos e científicos, dos quais 240 chegaram aos nossos dias. Destes, 150 tratados se concentram no âmbito da Filosofia e 40 em Medicina. Ele é considerado como o mais famoso e influente polímata da Era de Ouro Islâmica, reconhecida como Renascimento islâmico é datada entre os séculos VIII e XIII, embora a estendam até ao período do século XIV ou XV. Engenheiros, acadêmicos e comerciantes islâmicos contribuíram em áreas especializadas como artes, agricultura, economia, indústria, literatura, navegação, filosofia, ciências, e tecnologia, preservando e melhorando o legado clássico, e acrescentando novas invenções e inovações próprias. Filósofos, poetas, artistas, cientistas, comerciantes e artesãos muçulmanos criaram uma cultura que influenciou as sociedades de todos os continentes.

Ibn Sina nasceu em 980 na vila de Afshana, perto de Bukhara, que hoje está localizada no extremo sul da Rússia. Seu pai, Abdullah, um adepto da seita ismaelita, era de Balkh e sua mãe da aldeia perto de Bukhara. Em qualquer época Ibn Sina, reconhecido no Ocidente como Avicena, teria sido “um gigante entre gigantes”. Ele exibiu proezas intelectuais excepcionais quando criança e aos dez anos já era proficiente no Alcorão e nos clássicos árabes. Durante os seis anos seguintes, dedicou-se à Jurisprudência Muçulmana, Filosofia e Ciências Naturais e estudou Lógica, Euclides e Almagesto. Ele voltou sua atenção para a Medicina aos 17 anos e achou, em suas próprias palavras, “nada difícil”. No entanto, ele estava muito preocupado com problemas metafísicos e, em particular, as obras de Aristóteles. Por acaso, obteve um manual sobre o assunto do célebre filósofo al-Farabi que resolveu suas dificuldades. Aos 18 anos, ele construiu uma reputação como médico e foi convocado para atender o governante Samani Nuh ibn Mansur (976-997 d. C.), que, em gratidão pelos serviços de Ibn Sina, permitiu que ele fizesse “uso gratuito da biblioteca real, que continha muitos livros raros e até únicos”.

Este estudioso muçulmano “devorou o conteúdo da biblioteca e aos 21 anos estava em condições de compor seu primeiro livro”. Mais ou menos na mesma época ele perdeu seu pai e logo depois deixou Bukhara e vagou para o oeste. Ele entrou nos serviços de Ali ibn Ma`mun, o governante de Khiva, por um tempo, mas acabou fugindo para evitar ser sequestrado pelo sultão Mahmud de Ghazna. O governante ambicionava ter um minarete tão alto que do seu topo conseguisse avistar Bukhara. Mesmo que tal fosse possível o seu sonho não se teria concretizado, pois faleceu quatro anos após o início dos trabalhos, que foram suspensos, deixando o minarete inacabado. Depois de muitas andanças, ele chegou   a Jurjan, perto do mar Cáspio, atraído pela fama de seu governante, Qabus, como patrono do aprendizado. Infelizmente a chegada de Ibn Sina quase coincidiu com a deposição e assassinato deste governante. Em Jurjan, Ibn Sina lecionou lógica e astronomia e escreveu a primeira parte do Qanun, sua maior obra. As suas obras mais famosas são o Livro da Cura, escrito entre 1014 e 1020, representando vasta enciclopédia filosófica e científica, e o Cânone da Medicina, o texto padrão em muitas universidades medievais, entre elas a Universidade de Montpellier e a Universidade Católica de Leuven, ainda em 1650.

O livro se baseava em uma combinação de sua própria experiência pessoal, de medicina islâmica medieval, dos escritos de Galeno, Sushruta e Charaka, assim como da antiga medicina persa e árabe. O Cânone é considerado um dos livros mais famosos da história social da medicina. Ele apresenta um sistema de pensamento completo de medicina em acordo com os princípios de Galeno e Hipócrates, suficientes para que se possa afirmar “uma pluralidade de doutrinas e concepções médicas”. No século XIII apareceu uma tradução para o Latim em Toledo, mas senão até 1907 que apareceria outra versão em línguas europeias, desta vez em alemão. Partes do texto, notavelmente a Metafísica, foram traduzidas para o francês, o inglês e o italiano. O texto árabe, compilado a partir de vários manuscritos de origens diversas, foi editado por vários arabistas, entre os que se destaca principalmente George Anawati, e foi publicado em vários volumes em Cairo entre 1953 e 1983. Ele é o autor de uma obra viva que abrange campos tão diversos quanto os estudos medievais, a história das ciências árabes e o diálogo islâmico-cristão.

Al-Qifti afirma que Ibn Sina completou 21 trabalhos maiores e 24 menores em filosofia, medicina, teologia, geometria, astronomia e afins. Outra fonte atribui 99 livros, sendo 16 sobre medicina, 68 sobre teologia e metafísica, 11 sobre astronomia e quatro sobre versos. A maioria deles estava em árabe; mas em seu persa nativo ele escreveu um grande manual sobre ciência filosófica intitulado: Dinamarquês-naama-e-Alai e um pequeno tratado sobre o pulso. Seu poema célebre descreve a descida da Alma ao Corpo da Esfera Superior. Entre trabalhos científicos, os dois principais são o Kitab al-Shifa (Livro da Cura), uma enciclopédia filosófica baseada em tradições médicas aristotélicas e o al-Qanun al-Tibb que representa a “categorização final do pensamento greco-árabe sobre a questão da medicina”. Das 16 obras médicas, oito são tratados versificados sobre assuntos como os 25 sinais que indicam o fim fatal das doenças, preceitos higiênicos, remédios comprovados, memorandos anatômicos etc. Entre suas obras em prosa, depois do grande Qanun, o tratado sobre drogas cardíacas, dos quais o Museu Britânico possui manuscritos, é provavelmente o mais importante, mas permanece inédito.

O Qanun é a maior, mais famosa e mais importante obra de Ibn Sina. Ela contém cerca de um milhão de palavras e, como a maioria dos livros árabes, é elaboradamente dividida e subdividida. A divisão principal é em cinco livros, dos quais o primeiro trata de princípios gerais; o segundo com medicamentos simples organizados em ordem alfabética; o terceiro com doenças de determinados órgãos e membros do corpo, da cabeça aos pés; o quarto com doenças que, embora locais em seu início, se espalham para outras partes do corpo como febres e o quinto com medicamentos compostos. O Qanun distingue a mediastinite da pleurisia e reconhece a natureza contagiosa da tísica (tuberculose do pulmão) como é demonstrado no filme sobre sua vida e a disseminação da doença pela água e pelo solo. Dá um diagnóstico científico de anquilostomíase e atribui a condição da moléstia a um verme intestinal. O Qanun destaca a importância da dietética, a influência do clima e do ambiente na saúde e o uso cirúrgico de anestésicos orais. Ibn Sina aconselhou os cirurgiões a tratar o câncer em seus estágios iniciais, garantindo a remoção de todo o tecido doente. A matéria médica da Qanun considera os 760 medicamentos com comentários sobre sua aplicação e eficácia. Ele recomendou o teste da nova droga em animais e humanos antes do uso geral.                        

Ibn Sina observou a estreita relação entre as emoções e a condição física e sentiu que a música tinha um efeito físico e psicológico definido nos pacientes. Dos muitos distúrbios psicológicos que ele descreveu no Qanun, um é de interesse incomum: a doença do amor! ibn Sina tem a fama de ter diagnosticado esta condição em um príncipe em Jurjan que estava doente e cuja doença desconcertou os médicos locais. Ibn Sina notou uma palpitação no pulso do príncipe quando o endereço e o nome de sua amada foram mencionados. O médico tinha um remédio simples: unir o sofredor ao amado. O texto árabe do Qanun foi publicado em Roma em 1593 e, portanto, foi um dos primeiros livros árabes a ser impresso. Foi traduzido para o latim por Gerard de Cremona no século XII. Este Cânon, com seu conteúdo enciclopédico, seu arranjo sistemático e plano filosófico, conquistou uma posição de proeminência, substituindo as obras de Galeno, al-Razi e al-Majusi, e tornando-se o livro de texto para a educação médica nas escolas da Europa. Nos últimos 30 anos do século XV passou por 15 edições latinas e uma hebraica.

Nos últimos anos, foi feita uma tradução parcial para o inglês. Do século 12 ao 17, o Qanun serviu como o principal guia para a ciência médica no Ocidente e diz que influenciou Leonardo da Vinci: - “uma bíblia médica por mais tempo do que qualquer outro trabalho”. Apesar dessas gloriosas homenagens ao seu trabalho, Ibn Sina raramente é lembrado no Ocidente e suas contribuições fundamentais para a Medicina e o despertar europeu passam amplamente despercebidas. No museu de Bukhara, há exposições que demonstram muitos de seus escritos, instrumentos cirúrgicos e pinturas de pacientes em tratamento. Um impressionante monumento à vida e obra do homem que ficou reconhecido como o “médico dos médicos” ainda está do lado de fora do museu de Bukhara. A zona mais interessante da cidade é o seu extenso centro histórico; o resto são velhos edifícios cor de cimento, herança do período soviético. Depois de ter festejado com reconstruções maciças os seus 2.500 anos, perdeu-se algo da sua agitação, típica da Ásia Central. É extremamente agradável percorrer calmamente ruas quase sem tráfego, deixando a imaginação lúdica preencher seus aparentes vazios. E os pontos de interesse visitam-se a pé, de forma segura, em circuitos planejados. Conte com um mínimo de três dias para reconhecer um pouco da cidade e das suas gentes.

Bibliografia geral consultada.

GORDON, Noah, O Físico: A Epopeia de um Médico Medieval. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998; AGNOLI, Francesco, Storia dell’Aborto nel Mondo. Madrid: Editore Segno, 2005; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/CCBB, 2006; LESSA, Ivan, “O Mister de Ser Sir”. Disponível em: https://www.bbc.com/22/02/2006ZAMORA, José Antonio (Coord.), “Antisemitismo: Clave Civilizatoria y Funcinalidad Social”. In: Constelaciones. Madrid: Revista de Teoría Crítica. Vol. 4, 2012; HORKHEIMER, Max, Los Judíos y Europa. In: Constelaciones - Revista de Teoria Crítica, nº 4, dec. 2012, pp. 2-24; CUPERSCHMID, Ethel Mizrahy, “Eternamente Estrangeiros: Judeus na Inglaterra do Século XI no Romance de Walter Scott”. In: Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, vol. 4, nº 7, out. 2010; BÍSSIO, Beatriz, O Mundo Falava Árabe: A Civilização Árabe-islâmica Clássica através da Obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013; KRÖMER, Francisco, La Fotografia del Deseo Homoerótico: Signos de Construcción de la Indentidad Masculina. Tese de Doutorado. Departamento de Humanidades: História, Geografía y Arte. Universidad Carlos III de Madrid, 2013; DEMANT, Peter, O Mundo Muçulmano. 3ª edição. São Paulo: Editor Contexto, 2014; DAMACENO, Mauricio Ribeiro, Ensino, Ofício e Prática Cirúrgica na Obra de Henri de Mondeville: Cirurgiões na Corte Francesa e nos Campos de Batalha (séculos XIII-XIV). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de História.  Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020; SOUZA, Lidiane Alves de, Concepção, Esterilidade e Saúde das Mulheres na Medicina Medieval (Montpellier - Sécs. XIII-XIV). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de História. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020; DOMLADOVAC-SILVA, Carolina, Um Estudo Léxico-semântico sobre a Farmacologia do Brasil Colonial em Documentos do século XVIII. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara: Universidade Estadual Paulista, 2022; entre outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário